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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa espe ranga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
' visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
£L vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
índice
pag.

"A VIAGEM" E O ALÉM-AQUÉM 185

Quem sabe ?
CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 187

Documento Importante:
RENASCIMEMTO RELIGIOSO NA U.R.S.S 201

Os anjos anunciadores sao símbolos ?


E O ANJO DA ANUNCÍAgÁO A MARÍA ? 217

Um despertar de consci§ncia3:
O CRISTÁO FRENTE A UCENQA DOS COSTUMES 222

GUERRA NO LÍBANO 223

LIVROS EM ESTANTE 3? capa

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Valores transcenderíais na literatura russa. — Matar para


livrar o enfermo ? — Obstinar-se contra a morfe ? — A morte do
cardeal Daniélou.

AMIGO, NAO SE ESQUEQA DE RENOVAR SUA ASSINATURA!


DESEJAMOS CONTINUAR A SERVIR COM O AUXILIO DOS
NOSSOS COLABORADORES.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Assinatura anual Cr$ 60,00
Número avulso de qualquer mes Cr$ 6,00
Volume encadernado de 1975 Cr$ 85,00

EDITORA LAUDES S. A.

REDAgAO DE PR ADMINISTRAgAO
Calxa Postal 2.666 Rúa Sao Rafael, 38, ZC-09
ZC-00 20.000 Rio de Janeiro (RJ)
20.000 Rio de Janeiro (RJ) Tels.: 268-9981 e 268-270H
"A VIAGEM" E O ALÉM-AQUÉM
A novela de televisáo «A viagem» conseguiu despertar
vivamente o interesse do público... Levanta questóes de índole
transcendental, como as que se relacionam com a vida pos
tuma. O produtor tentou apresentar o Além... Como, porém?
— Como se fosse urna sucursal da térra: com ciúmes, precon-
ceitos raciais, angustias... É verdade que, para sondar o des-
conhecido, o homem tende a usar das suas habituáis catego-
rias de pensamento ; concebe o invisivel k semelhanca das coisas
visíveis. Essa tendencia espontanea é corrigida por urna refle-
xáo mais apurada sobre o assunto.

É justo, pois, que o cristáo indague a si mesmo: como


será a vida eterna ?

Para responder á pergunta, a S. Escritura propóe algumas


imagens: a vida eterna seria semelhante a urna festa nupcial
com seu banquete solene (cf. Mt 22,1-14); seria o paraíso
(cf. Le 23,44), concebido talvez como lugar ameno; seria «o
seio de Abraáo» ou a grande reuniáo de familia (cf. Le 16,22).
Isto tudo sao símbolos que, através de roupagem sensível, signi-
ficam bem-estar, plenitude, ventura... Sugerem a idéia de
localizacáo, ambiente feérico e nspetáculo... Ora, se de um
lado, a vida etema será a saciedade de nossas aspiracóes mais
genuínas, ela, de outro lado, nada terá de topográfico e teatral.
Nao se poderia, pois, concebé-la em termos mais precisos e
menos antropomórficos ?

— Sim. A fé ensina que a vida eterna será o encontró


com Deus, sem véus nem misterio. «Nos o veremos como Ele é»
(Uo 3, 2). Nao se julgue, porém, que Deus aparecerá frente
ao homem como talvez tenha acontecido em historias de teo-
fanias. Deus nao é um estranho ao homem, nem é um «amigo
oculto», nem um Grande Reí em cujos aposentos nos penetra
remos. S. Agostinho diz muito sabiamente que «Deus é mais
elevado do que o que tenho de mais elevado, e me é mais íntimo
do que o que tenho de mais íntimo». O cristáo participa da
vida do próprio Deus, como «consorte da natureza divina»
(2Pd 1, 4). Isto nao quer dizer que urna parcela de Deus esteja
dentro do homem (Deus nao tem partes), mas, sim, que a graga
santificante habilita o homem a conhecer como Deus conhece
e a amar como Deus ama. Donde se segué que a vida eterna
edmega no tempo; nao é simplesmente algo de vindouro, que
o cristáo deva esperar, mas é algo de que desfruta já na vida
presente. Em conseqüéncia, se alguém quer ter urna nogáo apro-

_ 185 —
ximada (pálida, mas auténtica) do que seja a vida etema,
aplique o seguinte criterio, que é de todos o mais direto e fiel:
pergunte a si mesmo: «Quem é Deus para mim ? Que lugar
ocupa Ele em minha vida ? Em que medida encontró nele a
minha resposta ?»

Via de regra, um cristáo dirá: «Deus é tudo para mim»,


fazendo eco talvez á célebre exclamagáo : «Meu Deus e meu
tudo!» Note-se, porém, que é fácil dizer isto enquanto temos
o subsidio das criaturas sensiveis: parentes, amigos, saúde,
suficiencia material... Estas sao «muletas» com o apoio das
quais nos sustentamos diante de Deus e dizemos «Deus é tudo
para mim!» Talvez seja um tanto ilusorio dizer isto enquanto
me vejo apoiado em tantas muletas. Pergunte, porém, cada
um a si mesmo: «Estaría eu em condigóes de dizer que Deus
é tudo para mim, ainda que nao tivesse tais subsidios?» Estaría
eu á vontade diante de Deus, encontrando nele a minha res-
posta, se eu me visse sobre um leito de dor, talvez esquecido
por meus amigos e abandonado pelas criaturas? Até que ponto
Deus hoje ou agora é a minha suficiencia, Ele que, sem dúvida,
deverá ser a minha suficiencia por toda a eternidade ? Já
iniciei realmente a eternidade no tempo ?

Sao estas as indagagóes que o cristáo deve enfrentar sin


ceramente quando considera a vida eterna. Nao a procure á
distancia, mas encare-a dentro de si mesmo, e examine-se a
respeito do que significa o «estar-com-Deus» na sua vida pes-
soal. Até que ponto me regozijo e sinto feliz ao lembrar-me de
Deus, o Sumo Bem ?

A atengáo a estes dados será o termómetro mais seguro


para que cada um avalie o seu crescimento interior e definitivo.
Este nao pode deixar de merecer o máximo da atengáo de um
cristáo; os criterios que o examinam, sao «vivos, eficazes e mais
penetrantes do que qualquer espada de dois gumes, chegando
a dividir alma e espirito, junturas e médulas» (Hb 4,12).

Olhando para a Virgem-Máe María neste mes de maio, a


Ela dedicado, o cristáo se reconforta para prosseguir na tarefa
de construir a si mesmo e construir um mundo melhor. É
precisamente dessa variegada construgáo, dentro, da problemá
tica mais viva de nossos días, que falam as páginas deste
fascículo!
E.B.

— 186
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XVI — N« 197 — Mqio de 1976

Quem sabe?

cristianismo e marxismo se coadunam ?


Em sfntese: Hoje em día procura-se Insistentemente urna conciliacao
teórica (ou, ao menos, prátlca) entre Cristianismo e marxismo. Exlstem
varios grupos de crlstSos que se dizem "de esquerda" e colaboram ■ direta
ou Indiretamente com o marxismo. Tais cristaos.baseiam-se em dlstlnc6es
sutis, como serlam "ideología ¿ ciencia", "materialismo filosófico ^ materia
lismo histórico", "Ideología marxista^ anállse da socledade capitalista". O
marxismo terla que ser desmitizado, dizem, de modo a se guardar dele
o que fol com provado como positivo através da historia recente e a se
rejeitarem os "ramos secos".

Ora é preciso dizer que o marxismo ó utn todo compacto, Inspirado


radicalmente pelo materialismo e o ateísmo, de modo que é Imposslvel
separar entre si os seus diversos aspectos. Marx fol um ateu, e a historia
do marxismo demonstra que urna das suas prlmelras preocupacSes, quando
sobe ao poder, é a de sufocar a rellgiio. Ademáis note-se que a anállse
científica da sociedade felta pelo marxismo é multo mals filosófica (deri
vada de principios teóricos e pró-concebldos) do que científica (bascada
na experiencia); a prova disto é que as predlcdes de Marx no tocante
ao futuro das sociedades capitalistas e do proletariado nSo se reallzaram.
Se alguns marxistes prezam a fé, fazem-no nSo porque a consideren) como
um valor em si, mas, slm, porque véem nela um fator que pode ser revo
lucionarlo e que, conseqüentemente, pode favorecer a ascensSo do mar
xismo (que por principio ó sempre materialista e antlcrlstSo).

Comentario: Nos últimos anos, tém-se registrado movi-


mentos e pronunciamentos que tentam aproximar entre si
Cristianismo é marxismo. Urna das mais recentes afirma-
Cóes a este propósito foi a de Marcháis, Secretário-Geral do
Partido- Comunista Francés, que proclamou a abolicáo da
ditadura do proletariado. O Partido Comunista Italiano, por
sua vez, apregoa a valorizagáo da fé religiosa. Do seu lado,
alguns grupos cristaos tém procurado reler o marxismo, a
fim de descobrir a maneira de o conciliar com o Cristianismo.
Sem düvida, tais posicóes, de parte a parte, eram inconcebí-

— 187 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 197/1976

veis há decenios. Torna-se pois, importante, analisá-las de


perto e tentar averiguar se há possibilidade de as sustentar

Comecaremos por fazer sucinto levantamento das atitudes


cristas voltadas para a esquerda.

1. Cristaos «de esquerda»

1. O cristáo que se volte com simpatía para o comu


nismo, distingue, ao menos subconscientemente, entre o mar
xismo como doutrina e os movimentos políticos que, no decor-
rer dos tempos, se inspiraram do marxismo para realizar a
revolugáo; desses movimentos históricos, o mais notorio é o
leninismo, que na Rússia implantou os principios de Marx
apregoados e interpretados por Lenin. É variada a escala dos
cristaos que pretendan conciliar a doutrina marxista com os
principios do Cristianismo. Relevaremos dois dos grupos mais
significativos:

1) Os cristaos marsdstas aceitam, aínda que em espirito


crítico, as principáis teses do marxismo, como o materialismo
histórico, a crítica radical ao capitalismo, a teoría e o método
da luta de classes, e mesmo o ateísmo «como momento nega
tivo do sentimento religioso, momento necessário para ajudar
o sentimento religioso a recuperar a fé na sua plenitudes»
(G. della Pérgola, em «Rocca» 15/DI/1975, p. 42).

Varios desses cristaos militam diretamente em Partidos


Comunistas; outros colaboram com estes, enquanto terceiros
formam grupos próprios. Quando se examinam diante da fé
crista, alguns respondem que a fé se coloca num plano dife
rente do da política; outros asseveram que é próprio da fé
incitar os homens á luta de classes.

2) Os cristaos para o Socialismo, apesar da diversidade


de suas tendencias, concordan! em admitir o método de aná-
lise marxista da sociedade capitalista e a «praxis» revolucio
naria que aquela desencadeia. Nao aderem, porém, á filosofía
marxista (que é materialista e atéia). Verdade é que alguns
expoentes desse movimento propugnam «urna unidade dialé-
tica entre marxismo e Cristianismo»; aspiram a urna síntese
entre ambos, cientes, porém, de que «isto implica mudanca
total e revolucáo cultural». Quem assim pensa, considera o

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CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 5

marxismo e o Cristianismo nao como sistemas de pensamento


completos e fechados nem como «depósitos de verdade», mas
como sistemas de pensamento dinámico, capazes de se ques-
tionar e renovar constantemente. Suposto isto, o Cristianismo
rejeitaria a tese do primado do espiritual sobre o temporal;
rompería os seus vínculos de solidariedade com as classes
dominantes e recusaría concepgóes de inspiracáo espiritual e
sobrenatural, de modo a poder aceitar o marxismo como teo
ría da revolucáo e assumir deste os métodos de análise critica
da sociedade. Por sua vez, o marxismo faria a sua autocrítica
em nome das exigencias revolucionarias e do próprio mate
rialismo histórico; procuraría rever a sua atitude frente aos
valores de «superestrutura», em particular frente á religiáo,
que, conseqüentemente, podería ser mais estimada...

2. Quais as idéias que movem táo ampia faixa de cris-


táos a aderir em graus diversos ao marxismo? — Podemos
responder que tal posicáo se baseia sobre tres principáis pre-
missas:

a) O capitalismo é um sistema radicalmente injusto.


Por isto, se queremos eliminar as injustigas de que ele é causa,
devemos eliminar totalmente o próprio capitalismo. Quem
julga que poderá corrígir a este, engana-se, pois a injustica e
a violencia nao sao notas acidentais ou contingentes do capi
talismo, mas pertencem á índole do mesmo; este é, por sua
própria estrutura, um sistema de exploragáo do próximo.

b) O Cristianismo nao somente nao se mostrou capaz de


suscitar urna ordem social mais justa, mas aliou-se ao capita
lismo. A própria doutrina social da Igreja ficou sendo prisio-
neira do sistema capitalista e revelou-se totalmente estéril.

c) O único movimento histórico capaz de combater efi


cazmente o capitalismo é o socialismo científico, que se inspira
no marxismo. Este tem o mérito de realizar urna análise ver-
dadeiramente científica da sociedade capitalista e de oferecer
urna visáo nao parcial, mas global, da vida social, política e
económica. Principalmente tem o mérito de propor a luta de
classes como método de combate ao capitalismo. Por conse-
guinte, a quem deseja lutar contra o capitalismo, nao resta
senáo optar pela luta revolucionaria socialista, inspirada pelo
marxismo. '

Sao estas tres proposigóes que explicam a passagem de


grupos cristáos para o marxismo: colocando-se contra o capi-

— 189 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

talismo, optaram pela luta de classes em vista da construgáo


de urna sociedade socialista,... socialista de tipo marxista.

A escolha do marxismo por parte de tais cristáos (que


querem permanecer cristáos) deve ter-lhes suscitado, a prin
cipio, certo conflito de consciéncia (será que alguém pode ser
simultáneamente cristáo e marxista?). Todavía, com o passar
do tempo, essas dúvidas de consciéncia se teráo atenuado até
desaparecer, pois esses cristáos procederam a urna reinterpre-
tacáo do Cristianismo, enquanto, por sua vez, os marxistes
que os acompanharam, realizaram urna desmitizagáo do mar
xismo (ou seja, atenuaram os aspectos de messianismo e pa
raíso terrestre que os mais exaltados marxistas atribuíram á
sua ideología). Esse processo de integragáo de marxismo e
Cristianismo chegou a tal ponto que alguns católicos passaram
a ver no marxismo a tradugáo histórica da mensagem evan
gélica de justica para os pobres e se sentiram impelidos a
abracar o marxismo, nao apesar de ser católicos, mas pelo
fato mesmo de ser católicos.

3. Com outras palavras: os cristáos «de esquerda» afir-


mam que a clássica ideología marxista é hoje apenas urna reli
quia do passado; o marxismo nao é um dogma intocável; em
nossos dias, dizem, ninguém mais o aceita em sua integridade.
É preciso fazer um retrospecto da .historia do marxismo no
século XX e julgá-lo criticamente, a fim de aceitar os aspec
tos e as teses do mesmo que se tenham mostrado válidos e
deixar cair os «ramos secos». Tais cristáos propóem distin-
góes sutis:

— assim a distihcáo entre materialismo histórico «cientí


fico» e materialismo dialético «filosófico». Este propugna o
ateísmo, nega a existencia do espirito como realidade distinta
da materia, e deve ser rejeitado. Quanto ao materialismo cien
tífico, ensina a ler a historia da sociedade e a fazer a análise
da mesma, a fim de se descobrirem os fatores de opressáo e
se promover a reforma social; afirma que o fator económico é
a forga mais importante na orientagáo geral da historia. Pode
ser aceito por um cristáo (como dizem), o qual professará o
materialismo científico ou histórico; mas nem por isto negará
a existencia de Deus e da alma espiritual. Os cristáos mar
xistes afirmam claramente a sua adesáo ao materialismo his
tórico e procuram interpretar á luz deste nao somente a his
toria e a vida da Igreja, mas também a revelagáo crista e a

— 190 —
CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 7

S. Escritura; assim a fé seria «revista» através do enfoque do


materialismo científico; este, dizem, nao extingue as proposi-
cóes da fé, mas dá-lhes novo colorido;

— assim também a distingáo entre ideología mandsta e


análise da sociedade capitalista. Esta merecería ser aceita pelo
seu valor científico, ao passo que aquela, sendo materialista e
atéia, deveria ser rejeitada. Esta distingáo equivale á anterior;

— outros há que véem no marxismo apenas urna teoría


científica da revolugáo contra o capitalismo e um método con
cebido em vista da instauragáo do socialismo mediante a luta
de classes;

— por fim, existem aqueles para os quais o ateísmo nao


é essencial no marxismo, de tal modo que alguém pode ser
marxiste sem se tornar ateu.

Em conseqüéncia, o estudioso se vé frente nao a um, mas


a muitos marxismos «encarnados» na historia e desmitizados
(como se diz). Nessa gama de sistemas, o peso da ideología
atéia vai sendo mais e mais reduzido, ao passo que a énfase
é cada vez mais colocada nos aspectos do marxismo que o
apresentam como ciencia da sociedade e como método revolu
cionario para instaurar urna sociedade pretensamente mais
humana e mais justa (como deveria ser a sociedade socia
lista).

É tal modo de pensar que explica a insensibilidade de mui


tos católicos á voz da Igreja, que vem condenando o mar
xismo desde o século passado. Julgam que a Igreja, repu
diando o comunismo, procede sabiamente; todavía o comu
nismo por Ela condenado, dizem, já nao tem incidencia his
tórica, ou nao se realiza na historia contemporánea; por con-
seguinte, nao há obstáculo em professar o Cristianismo e,
simultáneamente, o comunismo tal come ele hoje é proposto
(aliviado de seu peso ideológico) e tende a se realizar (sem
implicagóes de ateísmo militante).

Passemos agora a urna reflexáo sobre tal posigáo.

2. Sim ou Nao ?

Diante dos dizeres e fatos mencionados, compreende-se


que se recoloque, para o cristáo sincero, a questáo: podem-se

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8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

realmente conciliar ou nao o marxismo e o Cristianismo? É


possível ser alguém cristáo auténtico e marxista sincero?

A estas perguntas proporemos a resposta deduzida de


razóes filosóficas.

2.1. Teoría e «praxis» do marxismo

1. O marxismo pode ser considerado teoría e como


«praxis» (acáo).

Como teoría, o marxismo é essencialmente materialista e


ateu. Reduz todos os valores a materia; esta, posta em dialé-
tica ou em antíteses, explicaría toda a realidade, ficando ex
cluida peremptoriamente a existencia de um Criador ou Prin
cipio Supremo diferente da materia.

Como «praxis», propóe a violenta luta de classes, nega a


originalidade e a transcendencia da pessoa humana, absor-
vendo-a na sociedade e na historia; além do que, se fecha
num messianismo meramente terrestre e imánente. Ora é
claro que a fé crista

— nao se concilia com o materialismo e o ateísmo (ou


com a negagáo de Deus e da alma espiritual);

— nao se concilia também com a luta de classes e o odio


entre os homens, pois estáo em contraste com o preceito evan
gélico do amor a todos os homens e com a visáo de solidarie-
dade social que o Novo Testamento apregoa;

— nao se concilia com a negagáo da liberdade e da digni-


dade eminente da pessoa humana, ponto culminante no mundo
das criaturas visíveis e chamada á visáo e fruigáo face-a-face
do Bem Infinito;

— nao se concilia com a imanéncia histórica do homem


e da sociedade, pois o homem e o mundo estáo destinados a
se ultrapassar no Reino de Deus, que será escatológico, mas
que já comecpu no curso mesmo da historia. Embora esteja
vinculado a este mundo sensivel na medida em que é corpóreo,
o cristáo (e, com ele, todo ser humano) está interiormente
dinamizado por um apelo do Criador a se realizar na plenitude
da Verdade, do Amor e da Vida que se sucederáo á historia
em curso, mas que já existem embrionariamente no curso
mesmo da historia.

— 192 —
CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 9

2. Todavía pergunta-se: mas será que essa recusa do


marxismo nao supóe o marxismo da primeira metade do
século XX, e nao recaí sobre o marxismo «depurado» como
é hoje proposto por seus fautores na Italia, na Franga, no
Japáo ? Nao se pode dizer que o ateísmo já perdeu sua; viru
lencia no marxismo e pode mesmo deixar de influir no com-
portamento prático dos marxistas ?

— Em resposta, observa-se que a ideología marxista deri


vada do materialismo e do ateísmo parece estar longe de ter
perdido sua influencia na historia. Nos países de regime so
cialista (quaisquer que sejam os seus matizes próprios), veri-
fica-se que a ideología assume lugar de primeiro relevo e que
os governos respectivos se esforgam ao máximo por «educar»
as massas populares e as geragóes jovens nessa ideología.
Deve-se mesmo dizer que esta é a primeira preocupagáo de
qualquer regime comunista. Conforme noticias provenientes
do Vietná, a primeira tarefa que os conquistadores do Vietná
do Sul se propuseram, foi a de submeter a populacho sul-vite-
namita a um curso de «formagáo» ideológica e política atéia.

Escreve um sacerdote que foi testemunha da implantacáo


do comunismo no Vietná do Sul:

"Em Tra On, capital da provincia de Blnh Dlnh, on vlelcongs obrl-


garam os cristfios a demolir a sua nova igreja paroqulal: tiveram que
derrubar os muros a golpes de picareta e serrar as colunas. Ao demo-
llrem a Igreja, dez pessoas perecerán) e mals de cem flcaram ferfdas.
Em Vlnh Long, balrro de Nhan Po, os norte-vietnamitas penetraram na
Igreja e a reduziram a destrocos. O Chafe sentou-se sobre o altar, pro»
ferlndo as mals violentas blasfemias. A seguir, os fiéis que nSo tlnham
conseguido escapar, foram barbamente assasslnados" (P. Werenfrled van
Straaten, em artigo traduzldo para o castelhano e publicado na revista
"Iglesia-Mundo" n? 103, dezembro 1975v p. 39).

Sao notorias as campanhas de lavagem cerebral e de


massificacáo da opiniáo pública que caracterizam os países
de regime socialista (ou, mais geralmente, todos os de govemo
totalitario).

Verdade é que todas as ideologías, inclusive a marxista,


tém entrado em certa crise nos últimos anos; faz-se a crítica
da crítica. Mas continua sendo fato que os Partidos Comu
nistas da Europa professam no seu Estatuto a intengáo de
inspirar-se no marxismo, conformar a este as suas atividades
e formar os seus dirigentes e militantes ñas fontes do
marxismo.

— 193 —
10 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

Mesmo os católicos que se dizem marxistas estáo cons


cientes de que o marxismo tem uma estrutura fortemente
unitaria e nele teoría e «praxis» se condicionam mutua
mente, de tal modo que nao se pode aceitar uma sem aceitar
a outra. Eis por que os maís conscientizados nao se contentam
com a «praxis» marxista, mas adotam também a teoría do
materialismo filosófico e ideológico.

2.2. Materialismo filosófico ^ Materialismo histórico?

Por materialismo filosófico entende-se a visáo global do


mundo e do homem que tudoi reduz á materia e excluí Deus,
ao passo que por materialismo histórico ou científico se com-
preende a posicáo que diz nao entrar na questáo de Deus, mas
se ocupar apenas com a análise da sociedade capitalista e das
formas de revolugáo socialista. — Pois bem; pergunta-se:
distinguem-se realmente um do outro esses dois tipos de ma
terialismo ?

Há marxistas e cristáos que hoje em dia afirmam tal


distingáo; com isto visam a enfatizar a índole humanista do
marxismo. Todavía a clássica interpretacáo do marxismo
— desde Engels a Stalin e aos mestres de hoje — nega a
possibilidade de tal distingáo : o materialismo histórico, dizem,
nao é senáo a aplicacáo á historia do materialismo filosófico.
Com efeito, nao se vé como, de um lado, se possa admitir que
os valores económicos, em última instancia, determinem toda
a historia, inclusive a consciéncia mesma do homem1 e, de
outro lado, sustentar a existencia de um mundo espiritual,
independente da esfera material e económica. Por definicáo,
os valores espirituais nao sao efluxo da materia, mas sao de
índole radicalmente diversa da material (embora a alma espi
ritual do homem tenha sido feita para existir na materia ou
no corpo1 do homem). Por conseguinte, quem professa a exis
tencia do espirito (isto é, da alma espiritual e de Deus Criador)
nao pode professar que os valores espirituais e a consciéncia

1 Segundo Marx e seus seguidores ortodoxos, a consciéncia mesma


do homem com seus valores moráis, jurídicos, estéticos, religiosos, nSo é
senlo uma funcSo do processo económico: é gerada e regida por este.
SSo palavras de Marx:

"O modo de producSo da vida material condiciona em geral o pro


cesso social, político e transcendente da vida. Nao é a consciéncia dos
homens que determina o seu ser, mas, ao contrario, é o seu ser social
que determina a- sua consciéncia".

— 194 —
CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 11

do homem sejam meras conseqüéncias dos bens materiais. Se


Deus e a alma humana, com seus valores espirituais, á seme-
lhanga de qualquer outra realidade, sao apenas o produto ou
a superestrutura das bases económicas, como afirma o mate
rialismo histórico, eles nao sao valores reais, mas fenómenos
ilusorios ou «ideáis» (diría o marxismo).

Seguem-se agora dois subtítulos que atendem a outras dis-


tineóes feitas pelos «cristáos marxistas». Estes dizem aderir á
análise científica da sociedade realizada pelo marxismo (sem
aderir á filosofía materialista) como também professam aderir
«sem ateísmo» á luta de classes.

2.3. A análise morxista da sociedade

Diz-se comumente que Marx fez urna análise científica da


sociedade capitalista do seu tempo e que, dado o rigor científico
do autor, tal análise é válida aínda hoje e pode ser aplicada
ao capitalismo contemporáneo. Ora convém indagar se tal
afirmacáo é certa; pois sobre ela se baseia a distincáo entre
adesáo ao materialismo histórico científico e adesáo ao mate
rialismo filosófico-ideológico.

— Sem dúvida, Marx, particularmente no «O Capital»,


tencionou fazer urna análise rigorosamente científica do sis
tema capitalista, a fim de colocar as bases de um socialismo
que fosse «científico» e nao utópico (como o de Proudhon e*
outros socialistas franceses). Todavía, embora a análise dé
Marx contenha elementos científicos, nao é científica no sen
tido que hoje se dá a esta palavra (= baseada em observacóes
empíricas, experiencias, leis estatísticas...), mas é ideológica.
Isto quer dizer: Marx empreendeu a leitura da sociedade
capitalista muito mais sob a luz do materialismo histórico e
dialético (tido como premissa indiscutível) do que sobre os
dados de pesquisas e experiencias concretas. Marx serviu-se
de algumas teses de filosofía para interpretar a sociedade e
predizer o seu futuro; dado que se tratava de premissas pre
concebidas, entende-se que grande parte das previsóes formu
ladas por Marx a respeito do futuro do capitalismo e da as-
censáo do socialismo nao se tenham realizado, mas se hajam
demonstrado erróneas, embora tivessem base «científica».

Assim Marx predisse a concentracáo dos meios de pro-


dugáo ñas máos de grupo sempre mais limitado de capitalistas
e, conseqüentemente, o fim do capitalismo; previu também

— 195 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

o empobrecimiento progressivo do proletariado e a multiplica-


Cáo dos proletarios pelo desaparecimento de estrados inter
mediarios entre proletarios e capitalistas; apregoou também
a ascensáo do socialismo nos países de capitalismo evoluido.
— Ora o que se verificou, foi precisamente o contrario:
quanto mais o capitalismo amadureceu, tanto mais cresceu o
número de capitalistas e diminuiu o de proletarios, os quais,
em vez de se tornar mais pobres, melhoraram as suas condi-
cóes de trabalho e salario pela instauragáo das leis trabalhistas.
As classes intermediarias (R-C.B), em lugar de desaparecer,
se dilataram, visto que muitos proletarios conseguiram ter
ascensáo a elas. O capitalismo nao caiu e o socialismo nao se
impós em nenhum país de capitalismo evoluido, mas ele foi
imposto pela forca a sociedades nao capitalistas ou, ao menos,
sociedades em que nao existíam as condicóes assinaladas por
Marx como necessárias á sua implantagáo.

Desta observacáo deduz-se que nao tem sentido falar da


análise «científica» do capitalismo feita por Marx ou do valor
«científico» da análise marxista da sociedade. Na análise mar-
xista, há elementos científicos que aínda podem ser válidos
em nossos dias, mas no seu conjunto tal análise nao é cientí
fica, e, sim, filosófica. Note-se outrossim que o neo-capitalismo
de nossos dias é muito mais complexo do que o capitalismo
analisado por Marx, de modo que mais difícilmente aínda se
pode pretender analisar a sociedade capitalista de nossos
tempos simplesmente por métodos marxistas.

Mais: se a análise que Marx faz da sociedade é filosófica


mais do que científica, verifíca-se que ela é inseparável da
filosofía do materialismo dialético. Por conseguinte, quem
aceita a análise marxista da sociedade, aceita outrossim a
filosofía do materialismo dialético. No sistema de Marx os
diversos elementos (análise da sociedade e filosofía materia
lista) se supóem e complementan! mutuamente, de tal modo
que é impossível aceitar certos aspectos do marxismo e rejei-
tar outros.

2.4. A luta de classes .

A luta de classes é inegavelmente um fato da sociedade


capitalista, em que os mais fortes se prevalecem dos mais
fracos e os assujeitam ao seu egoísmo. Todavia, para o mar
xismo, a luta de classes nao é simplesmente um fato doloroso

— 196 —
CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 13

da historia da humanidade, tendo por raizes o egoísmo e a


cupidez. Ela é também, e principalmente, o que se chamaría
urna «leitura» dos fatos históricos ou da vida social, política
e económica ; é urna leitura feita á luz da; interpretagáo mar-
xista da historia, de tal modo que no conceito marxista de
«luta de dasses» está contida toda a filosofía do materialismo
histórico e dialético.

Na verdade, Marx vía a sociedade capitalista como urna


luta de vida e morte entre duas grandes dasses antagónicas:
a burguesía e o proletariado. Entre esses dois adversarios nao
pode haver paz nem reconciliacáo, mas táo someñte guerra
total, de tal modo que a luta só terminará com a destruieáo
violenta da dasse burguesa e a instauragáo de urna sociedade
sem dasses, na qual se exercerá a ditadura do proletariado
(ao menos, segundo o modo de pensar do marxismo clássico).
É por isto que o marxismo promove a luta de dasses em
estilo de guerra total, como sendo o instrumento essendal para
favorecer a instauragáo da sociedade socialista. A medida
que vai lutarido, o proletario vai tomando consdéncia da sua
eondigáo de dasse explorada e se empenha por obter a sua
libertagáo.

Compreende-se que a luta assim entendida seja inspirada


e alimentada pelo odio, Ora tal atitude nao é crista, mas radi
calmente oposta ao espirito cristáo. Verdade é que alguns
marxistas e certos cristáos rejeitam o odio como fundamento
da luta de classes. Todavía, aínda que isto aconteca, nao
impede que a luta de classes seja considerada e praticada por
um marxista como conseqüéncia lógica da visáo que o mar-
xista tem do homem e da historia. É isto que leva a pergun-
tar: será que um cristáo pode praticar a luta de classes mar
xista sem aceitar também a ideología (materialista) da qual
ela é a expressáo, e o totalitarismo ao qual ela leva ? — Por
certo, o materialismo e o totalitarismo também nao sao
cristáos.

A propósito sejam citadas palavras de Paulo VE na Carta


«Octogésima Adveniens» : depois de ter afirmado que «no
marxismo, como é concretamente vivido, se podem distinguir
diversos aspectos», acrescenta:

"Serta ilusorio e perlgoso chegar a esquecer o Intimo llame que une


radicalmente tais aspectos, e aceitar os elementos da anállse marxista sem
reconhecer as suas relajees com a Ideología ou, aínda, entrar na prática
da luta de classes e de sua Interpretacfio marxista esquecendo o tipo de
sociedade totalitaria e violenta á qual esse processo leva" (rr? 34).

— 197 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

Coloca-se agora novamente a pergunta: o marxismo é


essencial e intrínsecamente ateu? Ou pode-se dizer que é tal
únicamente por efeito de circunstancias históricas e contin
gentes, de tal modo que em outras situacóes históricas se pode-
ria conceber e realizar um marxismo nao ateu ?

3. Será o marxismo necessariamente ateu?


1. Após quanto foi dito até aquí, parece que a resposta
positiva é obvia: por mais que se queira distinguir entre os-
diversos aspectos do marxismo, eles sao táo interdependentes
entre si que quem afirma um, afirma necessariamente os
outros; a filosofía materialista, radicalmente avessa ao con-
ceito de Deus, está implícita nos varios postulados da teoría
e da prática do marxismo; é ela que inspira toda a cosmovi-
sáo, a antropología, a sociología... do marxiste. As teses
concretas e práticas do marxismo supóem tal base.

Além destas ponderacóes de índole filosófica, podem-se


propor outras de natureza histórica:

Marx nao sámente foi um ateu radical, mas também em


todas as suas obras teceu urna crítica mortal á religiáo, ten
tando provar que esta é urna construgáo ilusoria e fantástica,
urna doenca do espirito alienado, «um reflexo do mundo real»
e das suas contradigóes, de modo que desaparecerá por si
mesma quando tais contradicóes forem extintas. Por isto, o
Partido operario deve «libertar a consciéncia de todo fantasma
religioso» («Crítica ao programa de Gotha» 1875). E nao é
um fantasma inocuo, pois a religiáo nao somente é contraria
á razio, mas também é prejudicial ao homem; ela o impede
de ser ele mesmo e de se realizar, porque «quanto mais o
homem se dá a Deus, tanto menos ele é ele mesmo» («Manus
critos económico-filosóficos» de 1844). É. o homem quem, por
seu próprio trabalho, se faz a si mesmo e faz a historia. Por
conseguinte, se Deus existisse, o homem seria criatura e nao
se faria a si mesmo; a historia seria dirigida pela Providencia
Divina e já nao seria obra do homem. Partindo de tais premis-
sas, entende-se que Marx, desejoso de salvar o homem e a
historia na sua originalidade e na sua liberdade, tenha negado
Deus. Entende-se também que no marxismo o ateísmo é con-
dicáo essencial para que o homem possa ser ele mesmo e a
historia possa ter um sentido original. Assim se vé que o
ateísmo é constitutivo essencial do marxismo. Na verdade, o
marxismo nao é somente um sistema económico ou urna teoría

— 198 —
CRISTIANISMO E MARXISMO SE COADUNAM ? 15

concernente & producáo e distribuigáo de bens matériais; ele


é urna filosofía que pretende ser completa, abarcando toda a
realidade do homem, do mundo e da historia, a ponto de ex
cluir outra filosofía.

2. Estas reflexóes sao confirmadas pela consideragáo da


historia do marxismo. Este foi sempre ateu. Melhor: o ateísmo
de Marx se transformou no antiteísmo de Lenin ou em luta
sistemática contra qualquer forma de religiáo sob a alegagáo
de que é supersticáo e contraria á visáo científica do mundo.
Até nossos días, onde quer que o marasmo suba ao poder,
passa a sufocar o exercício da religiáo (se nao de maneira san
grenta, ao menos mediante medidas administrativas); enquanto
nao a extingue por completo (o que na verdade parece impos-
sível), tolera-a como um residuo supersticioso que deverá por
si mesmo desaparecer com o tempo.1

3. Verdade é que nos últimos anos alguns pensadores


marxistes ocidentais (mesmo lideres de Partidos Comunistas
na Franca, na Italia, na Espanha...) tém feito pronuncia-
mentos que parecem valorizar de novo a fé. Dizem que um
cristáo, conservando a sua fé, pode participar da luta de clas-
ses revolucionaria; pode até encontrar na sua fé a motivacáo
e o estímulo para essa luta de classes ; em nome do Evangelho
e do Cristianismo é que o cristáo faria a revolugáo social.

Que dizer a este fenómeno ?

a) Parece que varios daqueles que assim falam estáo


iludidos, ignorando o que sejam propriamente marxismo e Cris
tianismo. Falam simploriamente porque ouviram falar ou por
que a tendencia a conciliar tudo se tornou um pouco «moda».

b) Outros que defendem a tese ácima, defendem-na cons


cientemente. Nao tencionam, porém, valorizar a fé como tal,
pelo conteúdo intrínseco e as verdades que ela propóe, mas
valorizam a fé na medida em que esta possa ser um fator polí
tico ou propulsivo em favor da revolugáo. Embora a fé fique
sendo sempre urna grande ilusáo para tais marxistas, eles jul-
gam que a fé apresentada de certa maneira ou manipulada
pode ter urna forga revolucionaria e pode ser um instrumental
que acarrete vantagens para a ascensáo do Partido Comunista.

1 Neste fascículo, o artigo que se segué mostrará quanto é vS a


luta do marxismo contra a reltgiSo. Esta nfio se extingue, porque congenlta
no homem.

iqq
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

Em suma, julgam que também o homem «religioso» poder ser


um colaborador na edificagáo do socialismo marxista, e é isto
que lhes interessa. Nenhum marxista convicto pode aceitar a
hipótese de se tornar ele mesmo um homem religioso ou de
considerar a fé como um valor em si, que merega ser promo
vido como tal. Mesmo aqueles que se mostram mais chegados
ao Cristianismo ou afirmam que o Cristianismo pode oferecer
algo ao marxismo, como Garaudy e Bloch, ficam firmes no
seu ateísmo. Disto se depreende que a fé, devidamente mani
pulada, pode fornecer subsidios á revolugáo, mas o marxismo
nao abandona o seu ateísmo, nem o pode sem se autodestruir;
fica sendo radicalmente atea

Ademáis o marxismo, além de ser urna doutrina materia


lista e urna prática revolucionaria, cria também urna atmosfera
imanentista e secularista; quem a respira, corre o grave perigo
de, cedo ou tarde, perder a fé. É na observagáo deste fato que
está a raiz das preocupagóes da Igreja quando vé que alguns
de seus filhos pretendem aderir ao marxismo, levados nao raro
por motivos nobres, como sejam o amor aos pobres e a aspira-
gáo a urna sociedade mais justa e amiga. Tais cristáos difícil
mente conservaráo a sua fé, e, sem fé, nao conseguiráo realizar
as suas nobres aspiragóes, pois, se os homens nao superam
seu inato egoísmo por amor a Deus, também nao o superaráo
por amor aos irmáos.

Nos principios da fé crista, elaborados pela doutrina social


da Igreja, o discípulo de Cristo encontra as luzes e forgas ne-
cessárias para dissipar situagóes iniquas e preparar nova socie
dade, em que o verdadeiro amor a Deus e aos homens trans
formará a face da térra. Os cristáos sao assim incitados a des-
cobrir e utilizar as potencialidades contidas na doutrina da
sua fé, com as quais se poderáo aproximar melhor daquilo
que o marxismo jamáis conseguirá atingir.

Na elaboracáo deste estudo, multo nos servimos do artigo editorial


"Fede cristiana e marxismo" da revista "La Civlltá Cattollca" n? 3014,
a. 127, 17/1/76, pp. 105-115.
A propósito aínda se podem citar:
Ulisse A. Florldl, "Humanismo Soviético: Mito ou Realidade ?". Ed.
Agir, Rlc| de Janeiro 1968.
Jorge Lojacono, "O Marxismo". Ed. Paulinas, SSo Paulo 1968.
Plerre Blgo, "A doutrina Social da Igreja". Ed. Loyola, Sfio Paulo 1969.
Ídem, "Marxlsme et Humanismo". París 1961 (3? ed.).
Jean-Yves Calvez et Jacques Perrln, "L'EglIse et la soclótó écono-
mique". 2 vols., París 1959 e 1963.

— 200 —
Documento importante:

renascimento religioso na u.r.s.s.

Em smtese: Ñas páginas que se seguem, é transcrito, em traducfio


brasileira, um artigo do Cardeal Franz Koenig, arceblspo de Viena (Austria)
e Presidente do Secretariado Romano para o Diálogo com os N9o Crentes.
Esse artigo que, aos 16/VIII/1975, apareceu na imprensa alema, mostra
como o Estado Soviético, combatendo a clássica rellgláo na U.R.S.S.,
restaurou al as estnituras religiosas com rótulos ateus. Com efelto; exlstem
o Credo oficial do Partido e os rítuais de Iniclacfio dos meninos e jovens
á Ideología marxiste. O Estado faz discriminacio entre cldadfios que pro-
fessam o marxismo, e os que testemunham algum Credo religioso clásslco.
A liberdade de consciéncia e de culto garantida pela ConstituicSo da
U.R.S.S. é sujelta a formalidades e restricSes tais que proprlamente nSo
existe. — Apesar disto, o senso religioso se reafirma na Rússla Soviética;
subsiste nSo so nos anclaos, mas surge também dq intimo das consclén-
clas da geracSo adulta; este fato ó especialmente significativo para quem
leva em conta que a U.R.S.S. se Impermeablllzou ás Influencias religiosas
estrangelras; o senso religioso-místico Inato em todo homem asslm se
afirma como algo de autentico e profundamente embebido dentro do ser
humano. O processo de secularlzacfio ou lalrtzacSo da vida pública na
U.R.S.S. (e em outros países) so contribulu para ofuscar a límpida face
de Deus e erguer {dolos; estes, porém, vfio calndo para ceder de novo,
em alguns lugares, á Imagem de Deus entrevista pelo homem no íntimo
da sua consciéncia e no espelho da natureza. — É o que propSem os
comentarlos anexos ao artigo do Cardeal Koenig.

Comentario: Após quase cinqüenta e nove anos de regime


ateu fortemente militante na Rússia Soviética, os pensadores
do mundo inteiro, mesmo os da própria U.R.S.S., procuram
examinar com grande interesse os resultados de tal ordem de
coisas. Confirmaram-se realmente as predicóes dos mestres
marxistas e leninistas que previam a nxtincáo do senso reli
gioso da populagáo soviética ? — Os motivos desta indagagáo
e das reflexóes que ela sugere, é o fato de que na U.R.S.S.
se registra um curioso fenómeno: nao somente o senso reli
gioso resiste em grupos que o herdaram das geragóes passadas,
mas ele germina, novo e surpreendente, na própria estufa
fechada e impermeável da nagáo russa atéia.

Tal fato, suficientemente documentado, levou o Cardeal


Franz Koenig, arcebispo de Viena (Austria) e Presidente do
Secretariado da Igreja destinado ao Diálogo com os Nao Cren-

— 201 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

tes, a escrever interessante artigo no jornal «Frarikfurter


Allgemeine Zeitung» de 16/VHI/1975. Tal estudo, surpreen-
dente por sua originalidade, vai aqui reproduzido em tradugáo
portuguesa, á qual se seguiráo breves comentarios.

I. O TEXTO DO CARDEAL KOENIG

1. Novo despertar cristao na U.R.S.S.

"Já há clnqüenta e oito anos, a religiáo na Uniáo Sovié


tica, segundo a teoria oficial, está condenada á morte. Ora
é precisamente nesse país que atualmente se verifica um
'renascimento espiritual', caracterizado por nova e auténtica
reflexáo religiosa, tanto em personalidades de primeiro plano
quanto em pequeños grupos. Numerosos fiéis ligam esse
'renascimento espiritual', que encontróu sua expressáo mais
significativa na literatura do Samizdat, com o 'renascimento
cultural' da Rússia em fins do século passado; naquela época,
homens como Soloviev, Berdiaev, Bulgakov e outros lancavam
os principios filosóficos de urna nova visao do mundo a partir
da fé em Cristo. Hoje, muitas pessoas, entre as quais nume
rosos jovens, vivem na Uniáo Soviética essa fé em Cristo de
de maneira consciente e com todas as conseqüéncias que ela
acarreta num ambiente que rejeita radicalmente a religlao.

A sobrevivencia da religiáo, após cinqüenta e oito anos


de propaganda e discriminacao atéia (principalmente se se
leva em conta a transformacao total das próprias relagóes de
producáo) suscita urna grave questáo para a teoria marxista-
-leninista. É significativo o fato de que alguns sociólogos da
Polonia, da Hungría e da Tchecoslováquia tenham chegado
a perguntar se o socialismo implica automáticamente a liber-
tacáo do homem frente a toda alienacao, alienacao que, na
concepcao marxista, é a fonte da religiáo. Esses cientistas
acentuam o fato de que mesmo numa sociedade socialista
persistem muitas alienacoes e sobrevivem 'necessidades reli
giosas1, que exigem ser satisfeitas.

2. Engels tem razáo?

Como se sabe, na lugoslávía muitos filósofos deram um


passo a mais e puseram em dúvida o valor da definigao da
religiáo dada por Engels. A seus olhos, a religiáo nao pode

— 202 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 19

ser reduzida a conseqüéncia de urna falsa visáp do mundo.


Ela nao é mero reflexo da base socio-económica, mas, ao
contrario, pbssui relativa autonomía. Alguns intelectuais mar-
xistas, mais intuitivos, comecaram a lancar com prudencia a
seguinte interrogacao: De que maneira, na sociedade socia
lista, a dor, o sofrimento e a morte devem ser considerados
como urna 'alienacáo' essencial e irredutível ?

É verdade que se trata de tentativas tímidas e hesitantes,


concebidas a partir, de urna ótica marxiste, para estabelecer
novo relacionamento do marxismo com a religiao. Essas ten
tativas aínda-nao exerceram influencia algurroa sobre a situa-
cáo concreta dos fiéis na Uniáo Soviética e na maioria dos
outros países socialistas. Dever-se-á entáo concluir que a.
discriminagáo religiosa desembocou num impasse na Rússia?
Será que novas idéias progressistas substituiráo o antigo
conceito marxista de política religiosa ?

3. A religiao dos Sovietes

Atualmente, a análise dos fatos leva á conclusáo de que,


na Uniáo Soviética, nao existe propriamente sepanscáo entre
a Igreja e o Estado. Com outras palavras: a Uniáo Soviética
nao é um Estado leigo e neutro do ponto de vista ideológico.
Numa visao apurada, a U.R.S.S. representa o tipo do Estado
ideológico dos séculos passados que caracterizou, por exem-
plo, a época do absolutismo. No Estado absolutista, a religiao
define a vida privada e pública do cidadáo : o Estado abso
lutista, na sua funcáo política, serve-se da religiao como se
fosse urna ideología apta a justificar e estabilizar as esta
turas sociais e jurídicas.

Foí contra esse tipo de Estado que a luta se desenca-


deou nos séculos XVIII e XIX. Nao se tratava entao de eli
minar totalmente o fator religioso, mas, sim, de expeli-lo das
estruturas jurídicas e do Estado, de modo que os fiéis das
diversas denominscóes religiosas pudessem usufruir dos mes-
mos direitos, ter os mesmos deveres e chances do ponto de
vista cívico. Esse longo e doloroso processo teve por resul
tado libertar a Igreja dos seus liames com o Cristianismo do
Estado e dar-lhe urna forga nova. O Estado novo, neutro do
ponto de vista ideológico, que emerge das revolugdes euro-
péias dos séculos XVIII e XIX, é agnóstico, mas nao anti-

— 203 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

-religioso. Está supresso o estreito vínculo entre a religiáo e


o Estado. O Estado reconhece aos seus cidadaos a possibi-
lidade de decidirem em fungáo da sua consciéncia.

Totalmente diversa é a situagáo na Uniao Soviética. Lá


a doutrina oficial afirma que a religiáo deve desaparecer e
que, em conseqüéncia, a luta contra os 'vestigios religiosos'
é um dever para o bom cidadáo. Assim encarado, o marxismo-
-leninismo nao é uma doutrina política, mas uma visáo do
mundo que dispóe de uma explicacáo da realidade, e
— muito mais — pretende possuir a única explicagáo válida
da realidade.

Por suas pretensóes ao absoluto e sua orientagáo mes-


siánica, o sistema marxista-leninista, principalmente quando
examinado sob os aspectos sociológico e filológico, assume
traeos religiosos. Se se quer desenvolver a comparacáo,
deve-se dizer que o Partido Comunista é a Igreja na qual
se concretiza essa 'religiáo'. Com efeito, o Partido exige uma
confianga ilimitada no conhecimento que ele tem da evolucáo
histórica ou, numa palavra, exige uma atitude de fé. A ima-
gem de uma nova 'confissáo' assumiu os seus últimos reto
ques desde que se criaram na Rússia novos ritos seculares1.

Visto que o Estado e o Partido se confundem na Rússia


ou, melhor ainda, visto que o Estado encontra a sua única
justificativa na realizacao dos objetivos do Partido, e a lei e
o direito sao interpretados em fungió um do outro, a Uniao
Soviética deve ser considerada como uma especie de 'Estado
confessional*. Nesse Estado confessional, a visáo do mundo
marxista-leninista ocupa a posigáo que era reservada, na
época do absolutismo, ás diversas Igrejas cristas. Donde
se segué haver praticamente duas classes de cidadaos: os
que aderem á 'religiáo do Estado* (o ateísmo oficial) e os
outros que, em virtude da sua fé, nao Ihe aderem; é o que
os torna cidadaos de segunda categoría.

1 Com efeltcr, últimamente o Estado soviético tem dado orlgem a rl-


tuals paralelos aos rltuals religiosos para o casamento, os futierais, a
InlciacSo progresslva do menino na vida do Partido, etc. — éo que expo-
remos melhor á p. 215s deste fascículo (N. d. T.).

— 204 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 21

4. Urna sociecfade com duas classes

O Estado de tipo marxista-leninista poe em prática exa-


tamente o tipo de tolerancia — no sentido de paciencia —
que caracterizava outrora o Estado confessional. Neste havia
duas categorías de cidadios: os fiéis da religláo do Estado
(na Uniáo Soviética de hoje, sao os que aderem ao Credo
marxista-leninista) e os fiéis das outrajs religiSes (que sao
apenas tolerados). O paralelo torna-se ainda mais evidente
quando se observa que as conseqüéncias, na vida prática,
sao exatamente as mesmas hoje no Estado soviético que as
de outrora no Estado confessional: o cidadao nao confor
mista (por conseguirte, na Uniáo Soviética, ou crente ou fiel
de urna forma de religiáo) experimenta urna serie de proibi-
c6es que o cerceiam no-plano profissional.

Nao Ihe é lícito exercer profissóes que sao particular


mente interessantes para o Estado, como as de professor,
funcionario ou oficial; o acesso á Universidade ou a outras
grandes escolas Ihe é tornado mais difícil, quando nao Ihe
é totalmente vedado. Fica excluido de toda participacao na
vida pública, guardando apenas o direito de voto ativo e a
obrigagáo do servigo militar. Só escapará a estas sancóes
se ocultar as suas conviccóes íntimas e levar urna dupla exis
tencia, apresentando-se como partidario convicto do ateísmo
do Estado na sua profissao e na sua vida social, e vivendo
como crente entre quatro paredes ou mesmo no fundo do
seu coragao. Mas, desde que reivindicar ainda que apenas
a liberdade de culto limitada, garantida pela legislacáo sovié
tica, deverá contar com a perda do seu cargo de responsa-
billdade. Nesse contexto, será para ele um pobre consolo
saber que oficialmente as creng>as religiosas nao podem ser
tidas como motivo de demissao do emprego, mas que, para
tanto, o Estado deve alegar urna falta contra a legalidade
socialista.

Assim o fato de que o ateísmo é elevado á categoría


de ideología obrigatória cria realmente urna sociedade com
duas classes.

5. A finalidade <fa Constifuigao

É quando. se leva em conta esse fundo de cena que se


torna clara a finalidade intencionada pelo § 124 da Consti-

— 205 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

tu ¡gao Soviética1: o objetivo supremo, deste é o ateísmo, e


nao o direito do cidadáo a escolher urna religiáo ou nao.
A maneira como se praticam concretamente os parágrafos
da Constituicao na Uniáo Soviética faz que esse objetivo
apareca ainda mais claramente: ao passo que todo ensino
religioso é proibido ñas escolas, a iniciacáo aos fundamentos
do 'ateísmo científico' deve ser aceita como materia obriga-
tória. Os meios de comunicacáo de massa e toda a apare-
Ihagem do Estado servem á propaganda do ateísmo. Os esta
tutos nao somente do Partido, mas também dos Komsomols
e das outras organizagóes de trabal hado res obrigam seus
adeptos a se entregar á propaganda anti-religiosa; ao con
trario, a libérdade de culto é impedida e o direito á propa
ganda é oficialmente proclamado em favor do ateísmo: 'A
libérdade de consciéncia nao impede que se pratique e inten
sifique a propaganda do ateísmo. Essa libérdade deve mesmo
contribuir para a supressáo definitiva dos preconceitos reli
giosos... O Estado soviético, na medida em que é auténtico
Estado popular, nao se pode desinteressar da luta contra a
religiáo, que freía a nossa sociedade na marcha para o
comunismo'.

Em contradigáo com estes principios, observe-se que a


Uniáo Soviética dei( o seu aval a Declaragáo dos Direitos do
Homem, que fundamenta precisamente 'a liberdade de crenga
religiosa. Além disto, a Uniáo Soviética ratificou a Convengáo
da ONU de 2 de julho de 1962, cujo artigo 52 reza: 'Os pais
devem ter a possibilidade de assegurar a educagáo religiosa
e moral de seus filhos, em conformidade com as suas con-
viccSes'.

Em flagrante contradigáo com o que precede, eis urna


decisáo do Comité Central do Partido Soviético tomada há
mais de onze anos 'para reforgar o trabalho de educagáo
atéia do povo': 'Será reforgada a orientagáo anti-religiosa
dos programas escolares, principalmente nos ramos das cien
cias sociais'. E: 'A fim de evitar a atividade ilegal do clero,
de grupos de crentes e de individuos crentes, será reforgado

1 Eis o teor desse parágrafo :


"Para assegurar aos cidadSos a libérdade de consciáncia, a Igreja
na Uniáo Soviética é separada do Estado, e a escola é separada da Igreja.
A libérdade de exercer um culto religioso e a libardade de propaganda
anti-rellglosa sSo garantidas a todos os cldadáos" (N. d. T.).

— 206 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 23

o controle destinado a proteger as enancas e os adolescentes


contra as influencias clericais e a pressáo dos pais que quei-
ram levar os filhos á participacáo dos ritos religiosos*.

6. Rigoroso controle do Estado

O decreto, ainda hoje vigente, do 'Comité executivo pan-


-russo e do Conselho dos comissários do povo', de 9 de
abril de 1929, concernente ás comunidades religiosas, unificou
e reforcou as disposigóes anteriores. As comunidades religio
sas foram submetidas a rigoroso controle da parte do Estado,
em total contradigáo com a concepcao clássica da separagáo
da Igreja e do Estado. Ora, quando existe verdadeira separa-
gao entre a Igreja e o Estado, a Igreja pode ao menos, levar
a sua própria vida, preservada das ingerencias e das regu-
lamentagóes do Estado.

Mas o decreto de 1929 ataca o setor mais íntimo da vida


da Igreja. Na Uniáo Soviética, os edificios religiosos e os
objetos do culto sao propriedade do Estado. Este, mediante
um contrato de utilizagáo, entrega-os aos fiéis, que, para
tanto, devem constituir-se, em cada localidade, numa 'asso-
ciagáo religiosa' composta de vinte membros ao menos. Essa
sociedade há de ser, registrada no 'Conselho para os Assuri
tos Religiosos junto ao Conselho dos Ministros da U.R.S.S.'...
O registro depende da boa vontade da Comissáo do Estado.
As 'associagoes religiosas', também chamadas 'grupos de
vinte', nao gozam de personalidade jurídica. Os funcionarios
do Estado tém o direito de recusar reconhecer a comissáo
composta por tres pessoas eleitas para assegurar a diregáo
de urna 'associagáo religiosa'. Desde 1961, é proibido aos
sacerdotes de paróquias supervisionar o que se refere á
administragáo da comunidade e dos seus meios financeiros.
Ao contrario do que prescreve o Direito Eclesiástico dos
ortodoxos e dos católicos, dos armenios e dos Velhos-Católi-
cos, o sacerdote é atualmente confinado em suas fungóes
litúrgicas e espirituais. Atualmente ele é também contratado
pelos tres dirigentes do 'grupo de vinte'.

7. As crianzas nao tém o direito de cantar na Missa

Nos contratos de utilizagáo dos edificios religiosos e dos


objetos de culto, os 'grupos de vinte' devem dar garantías de
que assumiráo a seus cuidados todos os tipos de conserto,

— 207 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

aquecimento, seguros, vigilancia e impostes, e ressarcirao


toda eventual diminuicao de valor. Os edificios religiosos nao
de ser obrigatoriamente postos no seguro contra o fogo, em
nome dos fiéis particulares que assinaram o contrato. Em
caso de incendio, porém, o Comité executivo local reserva
a si o direito de decidir se as indenizagoes seráo aplicadas á
restauragáo da igreja ou á 'conservagáo dos interesses sociais
e culturáis da localidade em foco'. Sao os tres dirigentes
dos 'grupos de vinte' que apresentam ao Comité executivo
local as propostas para se realizarem reparos e obras ñas
igrejas, assumem a cbntabilidade (nao esquecendo as taxas
para o Fundo da Paz) e recebem os pedidos concernentes
aos atos de culto da Igreja.

As 'associagóes religiosas' nao tém o direito de criar


'caíxas de socorro ou de assisténcia, agrupamentos ou socie
dades de produgáo'. É-lhes proibido 'conceder auxilio material
aos seus membros'. Nao tém o direito de organizar 'reunióes
religiosas ou outras reuni5es, grupos e círculos de estudo
que versem sobre a Biblia, a literatura ou outros assuntos,
ou que se destinen) a atividades manuais ou que digam res-
peito ao ensino da religiáo, etc.' As 'associacóes religiosas'
nao estáo autorizadas a organizar excursoes ou a. criar cam
pos de jogos para as criangas. Nos edificios religiosos só
podem ser conservados os livros necessários ao exercfcio
do respectivo culto.

Desde que nao se encontré 'número suficiente de pes-


soas interessadas em aproveitar do direito ao culto para sa-
tisfazer as suas necessidades religiosas', a igreja respectiva
é fechada. Caso os edificios de culto 'sejam urgentemente
exigidos pelas necessidades do Governo ou para fins sociais',
podem ser retirados aos fiéis pelo Comité Executivo perma
nente do Estado.

Alguns números sobre a situagáo em Moscou e em


Leningrado podem ilustrar o que essas decisoes significam
na prática. Em 1917 Moscou contava 657 igrejas e cápelas
para 1.900.000 habitantes. Hoje, para mais de 7.000.000 de
habitantes, restam 100 igrejas, das quais 40 — ou, apenas
26, segundo as últimas estatfsticas — ficam abertas ao culto.
Em 1917 Leningrado — entlo Petrogrado — contava mais
de 5.460 lugares de culto (ortodoxos, católicos, protestantes,
velhos-católicos) para 2.100.000 habitantes. Hoje, para mais

— 208 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 25

de 3.500.000 habitantes, ficam apenas 15 igrejas abertas. Em


mu ¡tas e mu ¡tas das grandes cidades (com mais de 100.000
habitantes), só tica urna igreja aberta. Por ocasiáo das cam-
panhas para o fechamento das igrejas, foram destruidos va
lores insubstituíveis da cultura russa ou, antes, da cultura
dos outros povos da Uniao Soviética.

O campo de agáo da Igreja é ainda reduzido em conse-


qüéncia das medidas administrativas. Assim em margo de
1974 o clero católico da Lituánia foi intimado com a proibigáo
de abordar na pregacáo questoes de critica dos cóstumes,
batizar urna criancinha, mesmo em perigo de morte, sem que
essa criancinha tivesse sido registrada pelo Estado, e princi
palmente de preparar e examinar em grupo as crlancas antes
da Primeira Común nao. As criancas nao é permitido nem
ajudar a Missa nem cantar no coral nem participar das pro-
clssóes.

8. Prisao que pode durar cinco anos

Desde 1962, pelo artigo 227, foi introduzida no Código


Penal da República Socialista Federativa da Rússia urna dis-
posigao que, se é interpretada em sentido lato, pode tornar
impossivel qualquer participacáo dos menores em atos reli
giosos. Eis tai artigo:

"A organlzacSo ou dlrecSo de uní grupo cuja atlvldade, sob a cober


tura de pregacSo de doutrina religiosa ou sob o pretexto de ritos religiosos,
estela ligada á deterloracáo da saúde dos cldadáos ou a outras IImltac8es
dos direltos dos cldadSos..., assim como a admlssSo de menores em tais
grupos, s&o punidas por pena de prlsSo, que pode Ir até cinco anos ou
por exilio de Igual duracfio, acompanhada ou n9o pela perda dos bens
pessoals".

Nos comentarios publicados por urna revista jurídica so


viética, está expressamente dito que as tongas oragSes e os
prolongados jejuns podem ser igualmente nocivos á saúde.
Doutra parte, o comentador enfatiza que a lei nao faz dife-
renga alguma entre as seitas proibidas e as comunidades
religiosas autorizadas.

Desde 1962, a administragáo do Batismo tornou-se radi


calmente mais difícil. A partir de entao, quando urna crianga
está para ser batizada, o pai e a máe tém que apresentar
aos funcionarios locáis um consentimento escrito, assim como
certificado de trabalho e de estadía.

— 209 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

Em marco de 1973, 14.384 lituanos, entre os quais 25%


de escolares e estudantes, dirigiram urna declaragáo ao Mi
nisterio da Educacáo da República Soviética Socialista da
Lituánia. Ai se lia entre outras coisas:

"Os estudantes religiosos sio freqüentemente incomodados. SSo cari


caturados nos jomáis muráis da escola. Os estudantes religiosos sSo obrl-
gados a talar e escrever contra as suas próprias conviccdes e a desenhar
caricaturas antl-religlosas. Os que se recusam a fingir, obtém notas más.
Os mestres obrlgam os estudantes religiosos a. entrar em organlzacSes e
grupos, ateus... Em certos casos, dá-se a nota 'mediocre' únicamente
porque o estudante vai á-MIssa. As convlccdes religiosas dos estudantes
sao registradas na sua cademeta escolar — o aue torna mals difícil o
acesso dos mesmos a urna escola superior".

No relatório muito conhecido de Leonid llitchev apre-


sentado em 1963 diante da Comissao Ideológica do Comité
Central do Partido Soviético, encontram-se queixas sobre a
'vitalidade da resistencia religiosa'. Ali é dito com énfase que
a tradigáo e os costumes nao sao capazes de explicar 'a
sobrevivencia dos sentimentos religiosos' ñas condicoes atuais
da Sociedade soviética, llitchev julgava encontrar a causa
da irredutibilidade da fé dentro da Uniáo Soviética no tato de
que 'a religiáo se beneficia da heranca que recebemos do
antigo regí me de exploracáo, dos obstáculos com que nos
defrontamos em nossa marcha para a frente, e das dificul-
dades que os homens encontram em sua vida particular'.

Todavia os homens que hoje integram o novo despertar


religioso na Uniáo Soviética, nao sofrem da nostalgia do
tempo passado; nao sao homens que lutam com dificuldades
pessoais, as quais os incitariam a recorrer á mística. Em sua
maioria, sao homens que, desde a infancia, cresceram no
socialismo, mas nao conseguiram Mvrar-se das perguntas re
ferentes á origem, á destinagáo e ao- porqué da vida — per
guntas para as quais encontraram em Cristo a resposta. Em
seu ensaio 'A Térra Rebelde', A. Levitin-Kraznov saiienta:
'Existe hoje entre as pessoas cultas táo vivo interesse pela
religiáo que, se o Governo o quisesse impedir mediante a
repressáo, teria que encarcerar a metade dos nossos inte-
lectuais de primeiro plano'.

Nos jomáis soviéticos, principalmente no 'Komsomolskai


Pravda', destinado á élite juvenil, encontram-se regularmente
(e sempre sob a forma de 'exemplos horrendos') relatos da

— 210 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 27

conversáo de jovens ao Cristianismo. A descoberta da cien


cia das religióes, segundo a qual a religiáo é algo profunda
mente ancorado no homem, assim como a marcha erguida,
a linguagem e o pensamento lógico, parece encontrar justi
ficativa no que está acontecendo nao só na Uniao Soviética,
mas também em outros países socialistas.

9. Cristaos de novo tipo

Ante o despertar religioso que se manifesta na U.R.S.S.,


é muito difícil falar de 'vestigios de ideología burguesa',
corno o fazem os representantes do ateísmo oficial. Com
efeito, enquanto instituigáo, a Igreja estava praticamente des
mantelada vinte anos após a Revolugáo, e a continuidade das
tradigóes estava quebrada. Os homens que suscitam o novo
despertar religioso, nasceram no seio da sociedade socia
lista, foram educados em escola socialista e praticamente nao
tém nenhum vínculo vivo com o passado. Nem se pode dizer
que tenham sofrido influencia exterior, táo espessa que é a
cortina que defende a Uniáo Soviética de todo sopro religioso
procedente do estrangeiro. Nao; o despertar religioso ori-
ginou-se em meio aos homens soviéticos e na sociedade
soviética.

Mais: tal fenómeno nao é fenómeno limitado aos ambien


tes intelectuais. Dados ¡solados, como a afirmagáo do conhe-
cido sacerdote ortodoxo Dimitri Dudko, que teria batizado em
dois anos cerca de 5.000 adultos, mostram que se trata de
um movimento que ganhou o povo. Para citar urna vez mais
Livítin-Kraznov: '... um movimento religioso p6e-se em
marcha. Nao estaríamos longe da verdade se descrevéssemos
a realidade do seguinte modo: o povo ainda nao recuperou
a religiao, mas, por certo, já se desviou do ateísmo'.

Mais: é preciso levar em conta o fato, de que esse novo


despertar religioso nao se produz em um no man's land (térra
de ninguém) religioso. Milhóes de cldadáos soviéticos, apesar
de todas as pressóes, conservaram a fé, urna fé simples,
purificada pelas provagóes. A luta contra a religiáo mos-
trou-se inútil; nela foram gastas, sem compensacao, ingentes
energías. A profissáo de ateísmo do Estado pesou sobre
homens que, em virtude de saas convicgóes religiosas, sao

— 211 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 197/1976

cidadaos leáis,... homens que de boa vontade dáo ao Estado


o que toca ao Estado, se o Estado os deixa livres para dar
a Deus o que é de Deus.

10. Urna frase de Luigi Longo

Talvez seja prematuro esperar urna revisao da teoría


marxista-leninista no tocante á religiao e ao Cristianismo. O
respeito pela decisáo tomada pelo homem no fundo da sua
consciéncia conviria muito bem ao humanismo que a socie-
dade soviética considera seu fundamento. Que o marxismo-
-leninismo e o ateísmo de Estado nao estejam incondicional-
mente ligados um ao outro, eis o que comunistas ocidentais,
como, por exemplo, Luigi Longo, tém admitido, ao menos na
prática, desde meados da década de 60: 'Assim como nos
recusamos o Estado confessional, assim somos contrarios
ao ateísmo do Estado e nos opomos a que o Estado conceda
preferencias a urna ideología qualquer ou a urna fé religiosa' *.

Precisamente em virtude de suas pretensóes científicas,


o marxismo-leninismo deverá perguntar a si mesmo (e isto
também a partir das suas premissas teóricas) se pode sus
tentar, como sustentou ató agora, o axioma, segundo o qual
•a religiao nao é senáo o produto de um sistema socio-eco-
nómica determinado, produto que morre por si mesmo desde
que se troque o sistema sócio-económico. Trata-se agora de
saber se, em um país táo grande quanto a Uniáo Soviética,
nao deveria ser posslvel repudiar o confessionalismo ateu
do Estado e deixar a decisáo do individuo em favor da
religiao ou do ateísmo depender do livre jogo das torgas e
dos argumentos mais persuasivos; e isto,... em condi$5es
iguais para todos os cidadáos. O fato de que os cristáos
sabem colaborar lealmente na construcao da sociedade so
cialista, ... o fato de que sabem cultivar valores, como o
cumprimento do dever, a sinceridade, a consciéncia, o amor
do próximo, sem os quais nem a sociedade socialista poderia
prosperar, mostraram suficientemente a oportunidade de tal
reivindicacao".

*A respelto de aflrmacóes deste género, ve]a-se o prlmelro artigo


deste fascículo. Na prática, a aflrmacao de L. Longo é InexeqOfvel.

— 212 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 29

II. REFLEXÓES

O longo e interessante artigo do Cardeal Konig sugere


algumas ponderagóes que váo abaixo esbogadas:

1. O intrigante fenómeno religioso


O marxismo combate a religiáo em virtude de certas pre-
missas, que podem ser assim delineadas:

A revolucáo científica dos séculos XV-XVIÜ (com Copér-


nico, Galileu, Newton...) deu a ver que muitos fenómenos
que outrora os homens explicavam pela religiáo, podiam ser
elucidados simplesmente por leis físicas e químicas ou de
maneira leiga, dessacralizada; a fantasía, a imaginagáo e o
sentimentalismo cederam, em grande parte, á razáo e aos
processos científicos. — Em sua época, Karl Marx (1818-1883),
como herdeiro dessa mentalidade, julgava que a religiáo era
condicionada nao só pela ignorancia e o medo, mas também
pela pressáo exercida por certas classes da sociedade sobre
outras; o • homem ignorante e oprimido se refugiava entáo na
religiáo, a qual era um conjunto de ilusóes anestesiantes e
alienantes, necessárias para que as carnadas esclavizadas da
sociedade pudessem suportar as correntes escravizadoras. «A
religiáo é a consciéncia-de-si e o como-sentir-se do homem
que ou ainda nao se encontrou ou que voltou a perder-se»
(Marx and Engels. «On Religión». New York 1964, p. 41).
A religiáo, segundo Marx, tem urna fungáo permanentemente
conservadora; os homens «devem reconhecer e aceitar como
urna concessáo dos céus o próprio fato de serem eles domina
dos, controlados, possuídos» (ib. 44s). Na base desses princi
pios, Marx propunha abolir as condigóes de injustiga e opres-
sáo da sociedade do séc. XIX ; conseqüentemente, esperava que
a religiáo desaparecesse.

Ora tais concepgóes, aos olhos de urna crítica objetiva e


tranquila, aparecem preconcebidas e unilaterais. A historia
pode, sim, apontar casos em que a religiáo, mal entendida ou
abusivamente manipulada, se tornou instrumento de opressáo
e alienacáo de grupos pobres e ignorantes; quando mal prati-
cada, foi opio para o povo. Todavía nao se deve confundir a
auténtica atitude religiosa com tais caricaturas.

Na verdade, a religiáo encontra suas raízes no íntimo de


todo ser humano, tanto antígo como contemporáneo. — Obser-

— 213 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 197/1976

ve-se que os animáis irracionais nao tém religiáo; o homem,


porém, a tem,... e a tem desde as cavernas da pré-história.
Na verdade, os animáis conhecem apenas um mundo: o que
eles percebem através da sua experiencia. Todavia o homem
conhece também um mundo ideal e certas valores transcen-
dentais. Em outrós termos: o homem recusa-se a aceitar a
realidade como ela é: a verdade mesclada ao- erro, a vida
ameacada e tragada pela morte, o amor traído pelo odio, a
feliddade sobrepujada1 pela desgraga K Conseqüentemente,
póe-se á procura da VERDADE, do AMOR, da VIDA, da
FELICIDADE...

Mais : é verdade qqe o homem é um ser corpóreo e, como


tal, está sujeito as leis da física e da química. Todavia o homem,
ao contemplar as realidades corpóreas, eleva-se a realidades
que ultrapassam a corporeidade; vendo o que é parcialmente
belo e o que nao é belo, ele concebe a BELEZA e aspira a
contemplá-la; vendo os acontecimentos justos e injustos, ele
concebe e ama a JUSTICA; em suma, percebendo a insuficien
cia de todos os bens visíveis que o cercam, ele concebe a PLE-
NITUDE do BEM ou o BEM SUPREMO, ao qual aspira em
suas expressoes místicas, que, á primeira vista, tém um qué
de utópico e infantil, mas que sao incoerciveis, porque integram
a realidade mesma do homem.

Por isto é que se torna inútil querer combater a religiáo.


Ela pode mudar de expressóes, mas nao se deixa sufocar.
Haja vista ao chamado processo de «secularizagáo», que se
tem verificado nos últimos quinze anos: muitos pensadores
(cristáos e nao cristáos) julgaram que deveriam apagar todos
os nomes e símbolos explícitamente religiosos, pois, diziam, o
homem de hoje, imbuido de mentalidade científica (ou cienti-
ficista), nao os tolera ou os julga ridiculos. Ora o que se veri
fica, é que os nomes e sinais se apagam, mas nao se extingue
na sociedade contemporánea a atitude mística ou a devogáo
religiosa. Numa análise muito interessante dos fatos de nossos
tempos, o pensador polonés Leszek Kolakowski verifica como
novas formas «secularizadas» ou «laicizadas» de religiáo vém
aparecendo na Polonia, onde o governo comunista julga ter
ultrapassado a religiáo :

"A chuva dos deuses cal dos céus sobre o túmulo do Deus que
sobrevlveu á sua próprla morte. Os ateus tfim seus santos, e os blasfemos

1 "O homem é a única criatura que se recusa a ser o que ela ó"
(Albert Camus, "Trie Rebol". New York 1956, p. 11).

— 214 —
RENASCIMENTO RELIGIOSO NA U.R.S.S. 31

constroem templos" ("The Priest and the Jester", em "The Modern Polish
Mlnd". Ndw York 1963, p. 325s).

A propósito comenta Rubem Alves :

"A historia parece que se deleita em zombar de nossas previsóes


científicas. Quando tudo parecía anunciar os futierais de Deus e o fim
da rellgüo, o mundo foi invadido por urna Infinidade de novos deuses e
demonios, e um novo fervor religioso, que totalmente desconheclamos,
tanto pela sua intensidade quanto pela variedade de suas formas, encheu
os espacos profanos do mundo que se proclamava secularizado... O fas-
cínlo pelo misticismo oriental, a loga, o zembudismo, a meditacSo trans
cendental, os cultos demoniacos e a fetticaria, a busca de experiencias
transracionais, como o falar de linguas estranhas (nao mals expllcáveis em
termos de classe social I) — todos esses elementos fizeram calr por térra
as previsdes científicas acerca do fim da religiao. Mudam-se as vestes.
Freqüentemente deixam-se de lado os símbolos ostensivamente religiosos.
Mas sempre, de urna forma ou de outra, é possfvel constatar no mundo
humano e nos recónditos da personalIdade a presenca obsessiva e inco
moda das questaes religiosas" ("O enigma da rellgláo". Fetrópolis 1975,
p. 10).

"É mlnha conviccSo pessoal que este fenómeno é de fundamental


importancia para se entender a religiao no mundo moderno. A secularlzacao
nao fol a morte dos deuses, mas, antes, a promoc&o ao status de deuses,
de certos fatores do nosso mundo que se pretendían» secularizados. Será
posslvel tomar 4 lugar dos deuses sem se tornar um deus ? Ora foi isto
exatamente que a ciencia, a tecnología e certas Ideologías fizeram. No
processo de secularizagSo contemplamos a revolta do secular contra os
deuses que habitavam nossos panteons. Os templos foram invadidos, os
deuses foram expulsos e os rebeldes — ainda com suas, roupagens secu
lares — tomaram seus lugares nos altares agora vazlos" (ib. p. 10, n. 5).

Rubem Alves, em linguagem figurada e um tanto satírica,


faz eco a outros pensadores que reconhecem a fé e o devota
mente «religiosos» com que o homem jura pela ciencia, a tecno
logía e o materialismo contemporáneos. Essas ponderacóes
todas levam a concluir que o fenómeno religioso decorre da
própria constituigáo psíquica do ser humano.

Tais observacóes, fiéis e verídicas como sao, ajudam o


estudioso a compreender o fenómeno paralelo que se registra
na Rússia Soviética, segundo o artigo do Cardeal Kónig.

2. Os ritos «seculares» da Rússia Soviética


Sabe-se que o Governo Soviético, embora tente sufocar a
Religiao, nao se pode furtar a corresponder ao senso sacral e
místico da populagáo russa. Aos poucos, as autoridades russas
foram introduzindo na sua sociedade urna serie de cerimónias
ou rituais «civis», que tomam o lugar das funcóes religiosas.

— 215 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 197/1976

Com efeito. Desde pequenino, o cidadáo soviético é «ini


ciado na mística do Partido. Entre os seis e oito anos de
idade, é alistado na categoría dos «Octiabroenók» (os filhos
de outubro); aprende entáo a venerar Lenin como se fosse Deus,
ornando com flores os pés das inúmeras estatuas deste líder,
recitando poesias ai e jurando ser fiel ao ideal de perfeicáo
moral soviético.

Mais tarde, entre os oito e quatorze anos, o menino passa


para o Grupo dos «Pioneiros»; recebe um lengo vermelho, que
usará em torno do pescpco e promete solenemente «amar com
ardor a sua patria, viver, estudar e lutar segundo os preceitos
de Lenin e estar sempre pronto a cumprir o estatuto dos pió-'
neiros», isto é, trabalhar corretamente, ser bom filho, cidadáo
leal, etc.

Dos quatorze aos vinte e sete anos de idade, o jovem faz


parte da associacáo dos Komsomols do Exército e da Univer-
sidade. Recebe em qualquer desses setores intensa doutrinagáo.
Um estudante de Politécnica, por exemplo, freqüenta quatro
aulas semanais de catecismo marxista-leninista; sao aulas obli
gatorias e eliminatorias.

A cerimónia mais aparatosa é a de casamento. Realiza-se


em palacios do Governo, com música, champanhe, chocolate...;
a funcionária do Governo que lhes preside, profere um discurso
bem estruturado sobre o amor, o respeito mutuo e a educagáo
dos filhos. A seguir, o jovem casal vai visitar os monumentos
dedicados aos mortos, diante dos quais se recolhe, venerando
os heróis cujo sangue derramado salvou a patria.

Além de recorrer a esses cerimoniais, o Governo Soviético


dissemina vivamente a sua «mística» e doutrinagáo mediante
o radio, a televisáo e o cinema, atingindo assim profundamente
a populagáo russa, que nao tem termos de comparagáo, pois
há 59 anos que só ressoa propaganda marxista na Rússia,
impermeável a infiltragóes doutrinárias estrangeiras.

A verificagáo destes fatos leva o cristáo a almejar que o


processo de restauragáo do «homem religioso» chegue aos seus
resultados decisivos na Rússia Soviética e nos países satélites.
Para tanto deveráo concorrer as preces e a vida auténtica e
coerente dos fiéis cristaos; é o orvalho da graga de Deus, assim
impetrada, que faz frutificar todas as sementes do bem e im
pede que o homem se embrutega !

— 216 —
Os anjos anunciadores sSo símbolos?

e o arijo da anunciacáo a marla ?

Em sfntesa: A exegese moderna julga que existe na Biblia o género


literario do "anuncio do an|o"; ó o que resulta do confronto dos textos
de Gn 18; Ja 6. 13; Dn 10; Le 1.2; Mt 28. Nestas passagens há ele
mentos constantes, que parecem convenclonals e que constltulrlam a mol
dura da mensagem transmitida.

Tal conclusSo nao se op6e aos dados da fé católica. Esta professa


com firmeza a existencia dos anjos bons e maus; mas n&o se define sobre
o sentido das passagens bíblicas de "anunclagSo". Em qualquer hfpótese,
importa sempre sustentar que, nos episodios de anunclacSo, Deus quls
comunicar realmente alguma mensagem ao homem ou á mulher destlna-
tário(a). A presenca sonsível de um anjo a dialogar com esse destinatario
é relativamente secundarla.

Em suma, nao se pode dirimir a questSo com respostas absolutas,


pols dependem dos argumentos de critica literaria, que nem sempre chegam
a conclusSes metafísicas.

Comentario: É freqüente a pergunta referente ao modo


de se entenderem os anjos que anunciam alguma boa mensagem
a Zacarías, a Maria, aos pastores... nos Evangelhos : trata-se
de criaturas reais ou de meros símbolos? Em vista das dúvidas
assim formuladas e repetidamente abordadas, vamos abaixo
estudar o assunto com objetividade.

De antemáo observamos que a questáo colocada nestes ter


mos nao coincide com a da existencia mesma dos anjos. Esta
é assegurada pela S. Escritura e tem sido reafirmada pelo
magisterio da Igreja nestes últimos tempos em vista de hesi-
tacóes ocorrentes a respeito ; cf. PR 19171975, pp. 490-499.

1. Géneros literarios

1. Os críticos católicos dos Evangelhos reconhecem que


estes sao o eco escrito da pregacáo oral dos Apostólos. Isto quer
dizer que nao pretendem ser urna biografía de Jesús no sen
tido moderno da palavra, mas, sim, um compendio de fatos e

— 217 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976 ._

ditos de Jesús aptos a suscitar e avivar a fé dos ouvintes e lei-


tores. Os Evangelhos, portento, nao contém lendas, mas apre-
sentam fatos reais; todavía nao á guisa de crónicas rigorosa
mente concatenadas.

2. Posto este dado, é necessário reconhecer que os evan


gelistas recorreram a géneros literarios, ou seja, a modos de
expressáo convencionais que devem ser entendidos como exprés-
sionismos e que nao se opóem á veracidade ou fidelidade his
tórica dos Evangelhos. Tenham-se em vista as parábolas; estas,
embora apresentem verossemelhanca com fatos históricos, sao
estórias cuja mensagem é teológica ou moral, nunca, porém,
historiográfica.
3. Ora entre os géneros literarios dos Evangelhos, e da
Biblia em geral, está, segundo bons exegetas, o das anunciagoes.
Tais estudiosos ensinam que, quando os autores sagrados que-
rem dizer que o Senhor Deus comunicou a um homem ou a
urna mulher determinada mensagem, costumam recorrer a um
esquema que tem suas notas constantes no Antigo e no Novo
Testamento, como se fosse um cliché ou um auténtico género
literario. Esta conclusáo se funda no confronto mutuo dos se-
guintes episodios de anunciagáo :
Gn 18,1-15: o anuncio do nascimento de Isaque a Abraáo
e Sara ;

Jz 6,11-24: o anuncio a Gedeáo, chamado a libertar dos


madianitas os filhos de Israel ;
Jz 13,2-21: o anuncio do nascimento de Sansáo;
Dn 10,4-22: o anuncio a Daniel referente á libertacáo de
Israel;

Le 1,5-23: o anuncio a Zacarías sobre o nascimento de


Joáo Batista ;

Le 1,26-38: o anuncio a María ;


Le 2,9-14: o anuncio aos pastores a respeito do nascimento
de Jesús;
Mt 28,5-7 : o anuncio da ressurreigáo de Jesús as mulheres.
Verificam-se nessas diversas anunciagóes alguns tragos
constantes, que parecem constituir a moldura da mensagem.
Assim
1) a apresentacáo dos personagens da cena, que nao raro
sao um casal estéril (Abraáo e Sara, Manué e sua esposa, Zaca
rías e Elisabete, María esposada virginalmente a José...) ;

— 218 —
ANJOS QUE ANUNCIAM NA BIBLIA 35

2) a aparígáo do anjo anunciador, que saúda o (a) desti


natario (a) da mensagem : Jz 6,12 ; Le 1,28 ;

3) a perturbacáo deste(a) : Jz 6,21; 13,20 ; Dn 10,7-9 ;


Le 1,12.29;

4) palavras de reconforto («Nao temas...»): Dn 10,12.19:


Le 1,13.30;

5) mensagem divina transmitida pelo anjo: Jz 6,14-16;


13,3-5.7 ; Le 1,13-17 ; 1,31-33 ;

6) objegáo da parte de quem a ouve («como se fará


isso ?») : Le 1,18.34 ; Jz 6,1,25.15 ;

7) resposta do anjo que tranquiliza: Dn 10,12: Le 1,35;


Jz 6,16 ;

8) oferecimento de sinal por parte do anjo, que assim


confirma a sua mensagem: Jz 13,17-23; Dn 10,17-19; Le 1,20.36;
9) desaparecimento do anjo ; Jz 6,21; 13,21; Le 1,38.

Está claro que esses tragos literarios nao voltam sempre


na mesma proporcáo e com rigidez em cada anunciagáo, mas
parecem integrar um estilo convencional de redagáo utilizado
pelos autores sagrados. Em conseqüéncia, dizem os mestres
que «o anuncio do anjo» é um género literario próprio na Biblia.
Suposto isto, nao se deveria atribuir significado objetivo e real
ao anjo anunciador; este seria mera figura literaria. Sempre
que a Biblia apresenta um caso de anuncio, o leitor deveria
dar toda a atengáo ao conteúdo dessa mensagem (Deus quis
comunicar tal ou tal designio seu...) e nao se prender as
circunstancias ou á moldura em que é apresentado o anuncio.

2. Que pensar?
1. Pergunta-se agora: que julgar a respeito de tal tese
exegética ?
— Deve-se reconhecer que
a) tem fundamento válido na análise literaria dos textos
bíblicos; portante nao é arbitraria nem resulta de um pre-
conceito;
b) é conciliável com a doutrina da fé católica. A Igreja
professa a existencia dos anjos como artigo de fé, com base
no testemunho das Escrituras Sagradas. Todavía o magisterio
da Igreja nao se pronunciou sobre a realidade ou nao dos epi-

— 219 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

sodios de anjos anunciadores. A Igreja reconhece tranquila


mente a existencia de géneros literarios na Biblia; desde que
haja criterios de análise literaria para admitir que tal ou tal
passagem é expressionismo convencional, o estudioso católico
pode reconhecé-lo; pondere os argumentos dos críticos e dé-lhes
a sua adesáo, que poderá ser ou total ou apenas parcial, ou
mesmo nula (caso os argumentos nao o convengan*). Nem
sempre a crítica literaria leva a conclusóes evidentes e defini
tivas; ela nao raro apresenta os pros e contras de suas teses
ou hipóteses, de tal modo que o leitor da Biblia se deve con
tentar com probabilidades em tais casos. — Note-se que sao
casos que nao afetanr a doutrina da fé, mas apenas tópicos
laterais da mensagem bíblica.

2. Por conseguinte, se um fiel católico, baseado no exame


literario do texto de Le 1,26-38, julga que o anjo da anunciacáo
a Maria pode ser tido como expressáo literaria (expressáo que
nao obriga a admitir uma figura sensivel na presenga de Maria),
esteja tranquilo. Sao Lucas em 1,26-38 teria feito eco as nar-
ragóes bíblicas anteriores de anunciagdes, utilizando elementos
constantes das mesmas. Esta conjetura se toma especialmente
verossímil se se leva em conta que os capítulos 1 e 2 de Le
contení alusóes freqüentes a textos do Antigo Testamento:
Sao Lucas quis descrever os fatos da infancia de Jesús de tal
modo que o leitor percebesse que tais episodios eram o cum
plimento fiel das promessas de Deus e das expectativas do
povo de Israel. Em particular, no anuncio a Maria Deus teria,
em diálogo íntimo, anunciado á Virgem SS. o seu designio de
torná-la Máe do Salvador; Maria haveria respondido com humil-
dade e dedicagáo a essa mensagem do Pai; o anjo, no caso, nao
deveria ser colocado em primeiro plano, mas pertenceria á mol
dura ou ao género literario do episodio.
Se, ao contrario, alguém prefere adotar a clássica tese,
segundo a qual Maria teve em sua presenga o anjo Gabriel
como pessoa sensivel com quem terá realmente dialogado, pode
seguir essa tese. Os argumentos literarios nao sao tais que
excluam a presenga sensivel do anjo, nem a fé tem alguma
sentenga definida sobre a realidade ou nao do anjo da anun-
ciagáo. É importante que os cristáos conhegam os termos até
os quais vai a doutrina da fé, e após os quais comecam as
hipóteses e conjeturas de livre discussáo.

Em última análise, a questáo do anjo anunciador nao pode


ser dirimida de maneira'categórica. Por conseguinte, guarde
cada cristáo a liberdade de julgar pessoalmente o assunto e

— 220 —
ANJOS QUE ANUNCIAM NA BIBLIA 37

tomar a sua posigáo, ou também nao tomar posigáo decisiva,


visto que a questáo fica sendo discutível e nao se reveste de
importancia capital.

3. Por último, convém aínda notar : se se pode dizer que


o «anuncio do anjo» é género literario na Biblia, é necessário
que o leitor nao julgue que poderá tachar de «género literario»
ou expresionismo (sem fundamento histórico) os episodios que
ele julgar nao serem históricos. Assim, por exemplo, os mila-
gres de Jesús, como a multiplicacáo dos páes, o oaminhar sobre
as aguas, a ressurreigáo de Lázaro... Muitas pessoas, igno
rando o porqué de novas sentencas da exegese católica, julgam
ter o direito de proferir sentencas inovadoras sem fundamento,
atendendo apenas a um parecer subjetivo («eu acho», «para
mim é isso...») ou á moda de inovar sentengas ou de reciuzir
os textos bíblicos a categorías filosóficas (racionalistas) pre
concebidas. Desta forma os episodios portentosos da Biblia sao
desvirtuados ou sao destituidos de valor histórico, porque o
«exegeta» incauto julga erróneamente que a tendencia da exe
gese moderna é eliminar o portentoso das narragóes escriturís-
ticas. Tal procedimento é gravemente abusivo; funda-se em
mal-entendidos. Nao se deve abandonar a letra do texto bíblico
sem fundamentos objetivos e ponderáveis, descobertos pela
análise literaria e destituida de preconceitos. Pondera-se tam
bém que em alguns casos é afoito definir categóricamente o
género literario de um episodio e querer impor a sentenca ao
público; com efeito, a literatura nao é ciencia matemática; ela
tem seus matizes, que cada leitor depreende, as vezes de ma-
neira subjetiva, sem que se possa chegar sempre a definigóes
metafísicas nesse setor. Isto pode acontecer, sim, na herme
néutica bíblica, todavía sem que, por isto, seja afetada a dou-
trina da fé católica ; as probabilidades e hipóteses versam sem
pre sobre elementos acessórios, sobre os quais nem o magisterio
da Igreja pretende manifestar-se.

Bibliografía:

R. Uurentln, "Structure et théologle de Luc I-I I". París 1957.


J. P. Audet, "L'annonce á Marie", em "Revue bfbllque" 63 (1956),
pp. 346-374.
O. Bardenhewer, "Mariá Verkündigung. Ein Kommentar zu Lukas
1,26-38", em "Blbllsche Studlen" 10 (1906), 5. Heft, pp. 129-137.
A. Médebielle, "lAnnonciation", em "Dlctlonnaire de la Bible. Supplé-
ment" (Vlgouroux), 1 (1928), 262-297.
E. Power, "In festo Annuntlatlonls", em "Verbum Domlnl" 5 (1925),
pp. 33-41.

— 221 —
Um despertar de consclénclas:

o cristáo frente a licenca dos costumes

O Cardeal Léon-Joseph Suenens, arcebispo de Malines-


-Bruxelles, publicou no boletím «Pastoralia» de outubro 1975
o seguinte artigo, cuja importancia é tal que merece ser repro-
duzido em traducáo brasileira:

A decadencia em curso

"Nao é fácil a um bispo denunciar a onda de imoralidade


que, através dos mass medía, se desencadeia sobre o mundo
de nossos dias: diráo logo que tal bispo atenta contra a
liberdade alheia, ignora os direitos e as exigencias da criacao
artística e quer conservar tabus e interditos de outra época,
qualificados como preconceitos burgueses. Acontece mesmo
que alguns cristáos, em reacáo contra inegáveis estreitezas
do passado, assumem posicóes extremadas, colocando-se
entre os defensores da permissividade desenfreada.

Apesar da atmosfera em que vivemos e do risco de pare-


cermos defasados em relacao ao nosso tempo, é-nos impe
rioso dizer de novo, diante da decadencia moral da vida
pública, que estamos simplesmente solapando a civilizacáo
humana. Urna onda de pornografía se desencadeia sobre os
nossos países, encontrando caminho através de filmes, livros,
periódicos, que realizam a investida final nessa materia. Nin-
guém ignora que esse tipo de comercio atinge cifras de
receita fabulosas: tal filme, dizem-nos, já suscitou urna arre-
cadagáo de 300 milhoes de francos, e as multidóes continuam
a fazer fila diante dos guichés. Tanta gente é atraída por que
motivo ? Pela curiosidade ? Pelo esnobismo ? Pelo desejo
de mostrar que já superou os tabus ? Nao sei! O que é
grave, é a lenta destruicáo da consciéncia moral, para nao
dizermos... do sentido elementar de pudor; é também a
especie de consentimento tácito dado pelo público a todo
tipo de deboches e de decadencia. Esse declfnio da moral
pública foi denunciado recentemente na Franca simultanea-
mente pelo Cardeal Marty, arcebispo de Paris, e também por

— 222 —
UCENCIOSIDADE DE COSTUMES 39

Georges Marcháis, chefe do Partido Comunista Francés.


Nao é coisa banal urna tal convergencia: ela convida á
reflexáo.

Um despertar necessárío

Impoe-se um despertar moral; é preciso que todos aque


les que estao feridos em sua dignidade humana por tal de-
clínio da civilizagáo manifestem sua desaprovacáo e sua
indignacao a todas as instancias que tenham urna parcela
de responsabilidade dessa situacáo; é necessário exijam
medidas de reerguimento. Somente urna opiniáo pública aler
tada e atuante de maneira prática e concreta pode opor um
dique á onda pornográfica e sanar a atmosfera que todos
respiramos. Fazemos votos para que nossos Conselhos Pres-
biterais e Pastoraiá, como também nossas organizares
sociais, se debrucem sobre esse problema de salubridade
pública.

Um esforjo educativo

Mas nao basta reagir: é necessário também educar po


sitivamente e agir mediante a familia e a escola, a fim de
incutir concretamente o respeito dos valores humanos fun
damentáis, dos quais o primeiro é o amor.

Se no passado os homens falaram demais do amor, como


se a vida sexual nSo existisse, eis-nos hoje diante de urna
especie de onda que faz o sucesso dos filmes pornográficos,
em que o amor é totalmente excluido. Chega-se a dizer
que essa libertinagem é um remedio para curar a miseria
e a tensáo sexual dos nossos contemporáneos.

Aos nossos olhos, o que há de mais dramático nisso


tudo, é que estamos assistindo a urna dessacralizagáo da
realidade infinitamente respeitável e sagrada que é o amor
humano, genuinamente humano e auténtico. Com razáo, um
escritor denunciava recentemente, com vigor, a onda porno
gráfica em um artigo intitulado : "Os assassinos do amor".
O amor, é preciso dizé-lo de novo, é santo porque criado á
imagem mesma de Deus, que é amor. Quem perverte a nocáo

— 223 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

mesma do amor, fere o ser humano no coracao, tanto em


sentido próprio como no figurado: desfigura o que é emi
nentemente divino no homem e degrada o que ele tem de
mais profundo. Se as coisas do diabo sao a Inversáo sacri
lega das coisas de Deus, é preciso reconhecer que as torcas
do mal estáo poderosamente em acáo debaixo dos nossos
olhos. Como escrevla muito sabiamente Charles Moeller:
,'O mal da impureza consiste em ser ela uma das formas mais
graves de recusa do verdadeiro amor'.

É preciso que a palavra 'amor* encontré de novo o seu


sentido original e que nao seja deturpada a servlco de todas
as perversdes. A palavra amor tornou-se uma etiqueta que
recobre as mercadorias mais deterioradas; multas servem-se
déla como se fosse a grande desculpa para inocentar tudo,
como se ela trouxesse em si mesma a sua própria justifica-
cáo. Quando um homem abandona sua mulher e seus filhos
para ir viver com outra mulher, ele se recobre com essa des
culpa e reivindica a liberdade de trair os seus em nome da
soberana liberdade do amor. É preciso que restauremos o
sentido das palavras, se queremos restaurar os valores que
elas significam.

Tudo o que acabamos de dizer, é válido para todo homem,


cristáo ou nao. Para o cristáo, ainda há perspectivas e dimen-
soes novas, que se abrem para ele; ele tem motivos suple-
mentares de se colocar em estado de alerta e de tomar
consciéncia das responsabilidades tanto positivas como nega
tivas. Ele sabe pela fé que o amor humano é vivificado inte
riormente pelo amor divino. Toca-lhe reagir a titulo especial,
pelo amor do Deus vivo, que o anima a partir do seu íntimo.
Essa presenca do amor divino é, para o cristáo, uma fonte
sempre borbulhante e nova de vida e de fecundidade. Toca-
-Ihe, a título especial, reagir, como se fosse a uma profana-
gao, a tudo o que trai e compromete o amor no mundo.
Possam os cristáos oferecer ao mundo a imagem do amor
auténticamente vivido no íntimo de nossos lares! Há urgen
cia nisto, se queremos por um termo ás tentativas de degra-
dac§o e evitar um genuino colapso dos costumes públicos.

(a) L.-J. Cardeal Suenens

Arcebispo de Malines-Bruxelles"

— 224 —
UCENCIOSIDADE DE COSTUMES 41

As reflexóes do Cardeal Suenens, que é tido como prelado


aberto e atualizado no mundo de hoje, sao especialmente signi
ficativas. Embora citem exemplos europeus, aplicam-se, sem
dificuldade, á realidade brasileira, onde a onda de pornografía
nao é menos violenta. — Vem muito a propósito citá-las nestes
tempos em que a Santa Sé houve por bem mais urna vez
(29/XII/75) lembrar a dignidade do corpo humano e as exi
gencias que desta decorrem («Noblesse oblige !» — A nobreza
obriga!). Muitas pessoas já nao acreditam no valor ou na
possibilidade da castidade, seja antes, seja depois do casamento,
táo difundida está a atmosfera de libertínagem e pomografia
em nossos diasí Vale a pena realcar que muitos daqueles que di-
fundem essa pornografía nao estáo absolutamente interessados
no bem-estar do ser humano, nem procuram a felicidade ou a
dignidade da pessoa humana, mas, ao contrario, sao movidos
preponderantemente por interesses financeiros. Para que alguns
líderes do poder económico tenham mais dinheiro, derrubam-se
lares, desfaz-se a paz e á alegría dos jovens, prejudicam-se
(as vezes, irremediavelmente) curriculos e currículos de vida
humana! Quem tem consciéncia disto, nao pode ficar impas-
sível a onda, mas, ao contrario, há de se empenhar por que,
ao menos nos seus ambientes de habitacáo e de trabalho, sejam
profligados os instrumentos da degradacáo (revistas, jornais,
filmes, pecas de teatro...). Se é verdade que «urna andorinha
só nao faz veráo» ou que o cristáo isolado nada há de conseguir
nessa luta, também é verdade que «a uniáo faz a forga», de
modo que, se os cristáos procederem unánimemente frente á
pornografía e á licenciosidade, algo de novo há de acontecer
em nossa sociedade; teráo menos éxito ou menos lucro finan-
ceiro os que disseminam o mal; este, conseqüentemente, será
coñudo e «perderá sua graca».

É certamente esta a conduta que o Senhor Deus pede dos


seus fiéis na hora que passa! Ele saberá multiplicar os frutos
dos esforcos que cada fiel puder e souber desdobrar em prol
de táo nobre causa.

— 225 —
& «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

GUERRA NO LÍBANO
O conflito no Líbano tem sido algo de misterioso ou difícil
de se entender... Quais as causas exatas que o movem ? Por
que lutam entre si os filhos da mesma patria? — A primeira
vista, dir-se-ia que, por motivos religiosos, cristáos e mucul-
manos no Líbano se digladiam. Todavía eis que fontes de infor-
macáo segura desmentem essa impressáo: a guerra no Libano,
embora conserve seus rótulos religiosos, vem sendo aciortada
por interesses políticos e outros.

1. Tenha-se em vista, por exemplo, um trecho da Decla-


ragáo final do Seminario de Trípoli (Libia), que, reunindo
cristáos e muculmanos de diversos países, versou sobre o diá
logo islamico-cristáo (1« a 5 de fevereiro de 1975) :
"O Líbano, caro ao coragáo dos muculmanos e dos crlstáos, fol
exposto a urna subversao que causou mllhares de vítlmas Inocentes. Certos
elementos subversivos interessados, tanto dentro como fora do Líbano,
tentaram apresentar o conflito como sendo de natureza confesslonal entre
muculmanos e crlstSos. Esta alegacao nSo só traz prejufzos aos mucul
manos e Cristáos no Líbano como também visa a fazer malograr as serias
tentativas de aproximagSo o de amlzade entre o mundo muculmano e o
mundo cristSo. Por Isso as duas partes denunciam a subversSo que se
verificou no Líbano, e a sua camuflagem em conflito confessional. Denun
ciam Igualmente toda tentativa de prejudlcar a coexistencia tolerante entre
todas as familias esplrituals do Líbano" (n? 18).
2. De certo modo, fazendo eco a essa Declaracáo, citare
mos outro documento que evidencia como, dentro do clima de
odio e guerra estranhamente instaurado no Libano, existem
sentimentos de amor fraterno inspirados pela fé religiosa e,
em especial, pelo Cristianismo.
Reportemos-nos ao Líbano em dezembro 1975... O jovem
Ghasibé Kayrouz tinha 22 anos e preparava-se para ser orde
nado sacerdote católico. Tencionava passar as festas nataunas
com a sua familia na cidadezinha de Nabha. Antes, porem, de
seguir viagem, quis escrever urna mensagem, que era a expres-
sáo do pressentimento da morte iminente e que assim se tor-
nou o testamento espiritual desse estudante. Com efeito, na
véspera de Natal foi morto na estrada entre Baalbeck e Nabha.
No quarto em que morava, os colegas encontraram a carta que
abaixo vai traduzida. É, sem dúvida, um testemunho de grande
valor moral e cristáo.

"Ao comecar a escrever este testamento, parece-me que


é outra pessoa que fa!a no meu lugar. Nestes tempos, liba-

— 226 —
___ GUERRA NO LÍBANO 43

neses e residentes no Líbano estáo todos em perigo. Já que


eu sou um deles, vejo-me assassinado e morto na estrada
que leva á minha cidadezinha de Nabha. E, para o caso de
que esta intuigáo se verifique realmente, deixo urna palavra
á minha familia, ás pessoas da minha cidade e ao meu país.
A minHa máee ás minhas irmas digo com toda a fir
meza : nao íestejam tristes, ou, ao menos, nao chorem e nao
se lamentem exageradamente; a minha ausencia, por mais
longa que parega, será curta: é certo que haveremos de
nos encontrar de novo; nos nos encontraremos na mansao
eterna do céu. Lá existe alegría... Nao tenham medo; a
misericordia de Deus nos reunirá a todos conjuntamente.

Tenho um só pedido a fazer-lhes: perdoem de todo o


coracáo aqueles que me tiverem tirado a vida; pegam comigo
que o meu sangue (ainda que seja o sangue de um pecador)
sirva de resgate para o pecado do Líbano. Seja esse sangue,
misturado ao de todas as vítimas que calram, de qualquer
opiniáo e de qualquer confissáo religiosa, oferecido como
prego da paz, do amor e da concordia, que desapareceram
deste país e também do mundo inteiro. Que a minha morte
possa ensinar aos homens a caridadel Que Deus as consolei
Tome Ele cuidado de voces e as ajude na vida I Nao tenham
receio. Eu nao lamento em absoluto a partida deste mundo.
O que me faz sofrer, é que voces váo ficar tristes. Rezem,
rezem, rezem, e amem seus inimigos.

E ao meu país digo: os moradores da casa podem ter


opiniñes diversas, mas eles nao se odeiam uns aos outros;
podem irritar-se uns com os outros, mas eles nao se tornam
adversarios uns dos outros; podem discutir, mas nao se
matam mutuamente. Recordem-se dos dias de concordia e
de amor fraterno; esquegam-se da cólera e do desacordó.
Junto comemos, bebemos, trabalhamos outrora; juntos ele
vamos a nossa oracáo ao Deus único; por conseguinte,
juntos devemos morrer. Meu pal era o socio de um mugul-
mano, que eu chamava tio Hussein. Eu tlhha muito prazer em
chamá-lo assim. Foram socios durante 75 anos sem violar o
seu contrato e sem desconfiar um do outro. Pensem bem:
acontece muitas vezes que agora nao podemos pedir aos
nossos próprtos irmáos cem libras esterlinas emprestadas.
Basta procurar na aldeia um mugulmano, um maronita, um
sunita, um druso, para que nos maltrate. Todos sabem que
a situagáo é esta; mas o pecado nos torna cegos. Cada um

— 227 —
44 <tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 197/1976

de nos deve voltar á oragáo segundo o seu Credo e a sua


consciéncia, a fim de que Deus extinga a ira e a fim de que
as tramas doa grandes deste mundo sejam reduzidas a nada
sobre o solo deste país, país que nao está obrigado a pagar
com o seu sangue as maquinacSes dos estranhos.
No céu, eu nao terei repouso enquanto durar esta situa-
gáo no Líbano.
Fagam dos meus funerais um dia de ordenacáo, nao de
enterro ou de tristeza.
Quando me sepultarem, que o Pe. Boutros celebre a
Missa, sem a concelebragao de muitos padres e sem comu
nicado oficial. E, se Abou-Khalil pudesse fazer o meu caixio
com as tábuas de velhos caixotes, eu me sentiría muito feliz.
Nao fagam ceia fúnebre.1
Que as pessoas me perdoem... e n§o me fulminem; na
verdade, eu sou apenas poeira; mas a Forga de Deus me fará
participar da vida divina.
Escrevendo aqui, eu pensó em todos, sem esquecer nin-
guém: meus companheiros, meus amigos. Em minha afeigáo
para com eles, eu quisera encontrar palavras de esperanga.
Afinal creio ter encontrado a palavra que convém.a saber:
'Rezem por mim, temam a Deus e amem o Senhor*.
... Do ponto de vista financeiro, tenho algumas dividas
a pagar, de um modo ou de outro: vendendo um terreno
ou dando o meu sangue; o importante é que eu pague.
Pego perdáo a todos, porque sou pecador diante de
todos. Coragem !
Eu, pecador, no Cristo Jesús Salvador.
(a) Ghasibé Kayrouz"

Diz a Escritura que Abel, apesar de morto, ainda fala


(Hb 11,4). De modo semelhante, o cristáo cujo testamento
acaba de ser publicado, é urna testemunha cuja voz ressoa pro
fundamente nos coracóes de quantos ainda acreditam na possi-
bilidade de se construir um mundo mais amigo e fraterno.

EstévSo Bettencourt O.S.B.

*Os antlgos crlstSos e os orientáis aínda hoje costumavam e costu-


mam fazer refelcSes Junto ao túmulo do defunto como se este partlclpasse
do convivio dos familiares logo depols de sepultado.

— 228 —
livros em estante
A Biblia de Jerusalém. Novo Testamento. Edicáo em língua portu
guesa a cargo de urna equipe de tradutores sob a coordenacSo de Freí
Gilberto Corgulho, Pe. Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson. — Ed. Paulinas,
Sao Paulo 1976, 722 pp. 130x190 mm.

Salu finalmente em marco pp. a tio aguardada edicSo portuguesa da


"Biblia de Jerusalém". Deve-se ao esforgo tenaz das Edlcdes Paulincs e
de seus colaboradores, que fazem jus á benemerencia do público. A Biblia
dita "de Jerusalém" deve-se a urna equipe de tradutores filiados á Escola
Bíblica de Jerusalém, que, sob a orientacSo dos padres dominicanos dessa
Escola, verteram os textos origináis da Biblia para o francés, acrescen-
tando-lhe introducóes e notas. Esse trabalho foi iio aplaudido pelo público
que em diversos paises (inclusive no Brasil recentemente) a Biblia de
Jerusalém foi tomada como padráo dos tradutores. Isto nSo quer dizer que
tenham traduzido do francés para o vernáculo — o que seria obra de
segunda mió. Os tradutores verteram dos origináis diretamente...; tcdavia
onde o texto original delxava margem a dúvidas (por estarem os códices
deteriorados ou apresentarem variantes...), os tradutores seguiram as
opcóes apresentadas pela "Biblia de Jerusalém", visto que tém grande
autorldade. Quanto as ¡ntroducóes e notas explicativas, foram, sim, tradu-
zidas do texto francés da "Biblia de Jerusalém". — O Antigo Testamonto
aínda está sendo preparado, devendo satr em 1977.

Chamam a atencSo do leltor, entre outras particularidades desta


edicao, a traducSo de "eplskopos" (grego) por episcopo (em vez de bispo),
com a nota explicativa aposta a Tt 1,5; o assunto é delicado, mas está
bem explanado. Veja-se também em Le 1, 28 a saudacSo do anjo: "Ale
gra-te, chela de graca...", forma que é justificada pela respectiva nota:
ao pé da letra, diz o texto grego "tu, que foste e permaneces repleta do
favor divino". Em Mt 16,19 diz Jesús: "Eu te darei as chaves do Reino
dos Céus e o que ligares na térra será ligado nos céus, e o que desligares
na térra será desligado nos céus", em vez da nova forma de traducSo
que se vem difundindo mais por motivos teológicos do que lingüísticos:
"... lera sido ligado,... lera sido desligado".

Merecem especial mencSo os anexos ao texto sagrado: quadros cro


nológicos, calendario, lista de medidas e moedas..., subsidios estes que
nao se encontram táo explícitos em edicces congéneres da Biblia no Brasil.

Poder-se-la pleitear a troca de urna ou outra expressáo do texto


portugués dessa edicSo, a fim de tornar o vernáculo mais fluente; cf.
At 2,4; 4,2 (galicismo). Também seria para desejar, na próxima edig§o,
a InclusSo de mapas (do mundo mediterráeno, da Térra Santa, de Jeru
salém. ..) em apéndice, de modo a facilitar a leitura e a aprendizagem
do texto sagrado.

Como quer que seja, esta recente edicSo do Novo Testamento signi
fica um passo notável no progresso tanto dos estudos bíblicos como do
setor editorial no Brasil. Fazemos votos para que, sem tardar, venha á
luz o correspondente texto do Antigo Testamento.
E. B.

Vive lúa vida — como ?, por Gastón Dutil, Alexandre Guibal e Francls
Saunler. Traducio de Francisca Pereira Novis e outros. — Ed. Agir, Rio
de Janeiro 1975, 170x215 mm, 423 pp.

Com esse título, a Editora Agir acaba de publicar excelente llvro,


que é verdadeiro rotelro para a difícil arte de "saber viver". NSo de qual-
quer maneira, pois a vida é dom precioso de Deus para ser vivido em
plenitude. á luz da fé, da esperanga, do amor, a fim de que a criatura
humana atinja sua dimensáo total e conheca a verdadeira felicidade, capaz
de florescer até em meio de lutas, desengaños, provacSes.
Na conturbada época em que vivemos, nSo há leitura mais benfazeja:
corresponde de modo seguro aos anseios e temores do homem de nosso
tempo Tempo de transiólo e por isso mesmo doloroso, marcado pela vio
lencia por terrfveis neuroses e agress8es, decorrentes do próprio progresso
material e técnico de nosso sáculo — admiráve!, sem dúvida —, mas do
qual o homem se torna escravo, esquecendo-se de que o primeiro — o valor
dos valores — está dentro dele mesmo : é sua personalidade, chamada a
desabrochar, a realizar-se plenamente no meio em que Deus o colocou.
O livro gráficamente muito bem apresentado, diz logo na primeira
página qual o seu objetivo : PENSAMIENTOS PARA O DÍA DE HOJE. Pen-
samentos colhldos entre os mais variados escritos, das mais diversas épo
cas oferecendo-nos urna síntese da experiencia humana vivida por homens
e iríulheres que "nao passaram pela vida em branca nuvem"...; pelo con
trario, souberam trabalhar, esperar, sofrer, amar, rezar deixando após si
o tesouro dessa vivencia, expessa em frases que sao animador estimulo
para o cotidiano, ponto-de-partida para fecundas reflexóes.

Os autores desta pequeña enciclopedia espiritual — Gastón Dutil,


Alexandre Guibal, Francis Saunier — levaram quatro anos para conseguir
esta maravilhosa coletanea, em nada desmerecida pela traducáo, que prima
pelo estilo simples, a linguagem clara, correta, harmoniosa. A equipe das
tradutoras — Francisca Pereira Novis, M. Cecilia Duprat, María José Ma
chado Carneiro, Mary Pucheu, Teresa de Araújo Penna — realizou ótimo
trabalho com fidelidade ao texto francés.
O volume de 421 páginas é ilustrado com 16 lindas fotografías e
dividido em quatro partes: I Amar — II Trabalhar — III Esperar —
IV Rezar. Cada urna délas é subdividida em numerosos capítulos, nos quais
o tema focalizado aparece em expressivos pensamentos, máximas ou pro
verbios, tirados de tontes muito diversas, tanto do passado quanto da
atualidade ; tanto partindo de filósofos, religiosos e santos, quanto de lei-
gos, nomes ilustres da literatura universal, industriáis, dentistas, artistas,
ou simpiesmente, de modesta menina como Anne Frank, cuja mensagem
postuma até hoje comove o mundo. Podemos dizer que encontramos
nessas páginas um luminoso panorama do que o homem pensa, experi
menta, através dos tempos, e em circunstancias diferentes : dor e alegría,
fracasso e sucesso, lutas e Vitorias, trabalho e prazer.

Lucia Jordáo Villela.

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