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UMA VOZ QUE A ALMA ENCERRA

Por: Inês Martins Ferreira

MATISSE, Musique

- Quem és tu que quebras o silêncio e chamas por mim? Quem és tu que


me mostras o mundo lá fora? Quem és tu que dás voz aos segredos que a
minha alma encerra? Quem és…?
- Sou a Música.
GRANDE REPORTAGEM

“Musicoterapia é a utilização da música e/ou dos seus elementos musicais (som,


ritmo, melodia e harmonia) por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente
ou um grupo, num processo planificado com o objectivo de facilitar e promover a
comunicação, a relação, a aprendizagem, a mobilidade, a expressão, a organização
e outros objectivos terapêuticos importantes, que vão ao encontro das suas
necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais ou cognitivas. A Musicoterapia
tem por objectivo desenvolver potenciais e/ou restaurar funções do indivíduo, a
fim de melhorar a sua organização intrapessoal e/ou interpessoal e, em
consequência, adquirir uma melhor qualidade de vida, através da prevenção,
reabilitação ou tratamento.”
Comissão de Prática Clínica da Federação Mundial de Musicoterapia, 1996

Quando as palavras teimam em não sair e os receios de se dar a conhecer são pesados
demais, é a música que abre portas para todos aqueles que sempre julgaram não ter
saída. Mariana, Pedro, Sofia e Rute são quatro jovens adolescentes que encontraram na
musicoterapia uma ajuda valiosa para os seus problemas. Com idades entre os doze e os
dezasseis anos, sofrem de deficiências mentais várias e revelam problemas de
comportamento, razões que os levaram a fechar-se sobre si, acabando por voltar costas a
um mundo que nem sempre os aceita.

A musicoterapia adaptada à pedagogia deve-se em grande parte a Juliet Alvin, hoje


considerada como uma figura de referência no panorama das artes terapias. Margarida
Azevedo, musicoterapeuta e professora de apoio educativo na EB 2 3 da Pedrulha,
dedica grande parte do seu tempo a ajudar estas crianças que, por razões várias, se
desenvolvem física e psicologicamente mais devagar do que é normal. O objectivo
inicial do seu trabalho é habituar as crianças a comunicar e a estabelecer relações de
sociabilização, mas depressa desperta o gosto pela música e as sessões ganham um
carácter marcadamente pedagógico.

«A música, usada como terapia de activação, permite-nos explorar o universo afectivo-


emocional das crianças, estimular nelas não só a imaginação criadora e a inteligência,
mas também ensiná-las a aceitar o “eu” e os “outros” no seu dia-a-dia.» A grande
vantagem parece ser o facto de haver um único requisito obrigatório para receber este
tratamento: gostar de música. Margarida Azevedo afirma que se houver receptividade à
música, então esta terapia pode ser aplicada em casos de deficiência (sensorial, motora

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ou mental), distúrbios neurológicos (lesões cerebrais, dislexias) ou então com


finalidades educativas. De facto, a musicoterapia pode ser aplicada em inúmeras
situações. (fig.1)

Indicações sintomáticas: Indicações nosográficas:


— desarmonias gestuais; — doenças somáticas;
— handicaps sensoriais; — doenças psicossomáticas;
— angústia; — afecções neuropsiquiátricas orgânicas
— desorganização da vida interior; (epilepsias, oligofrenias, sequelas derivadas
— dificuldades de se aceitar a si próprio, de intervenções cirúrgicas ou de lesões
aos outros e de se inserir na realidade; vasculares);
— distúrbios comunicacionais; — neuroses;
— inibições e bloqueios. — psicoses;
— desequilíbrios psíquicos;
— toxicomanias.

Figura 1 fonte: JacquelineVerdeau-Paillès

Uma das mais valias da musicoterapia reside no facto de esta forma de expressão não-
verbal não se limitar a usar os sons, a música e o corpo. Esta arte terapia pode aparecer
associada a outras expressões, sejam elas plásticas, escritas, gestuais ou teatrais. Aliás, a
estratégia das técnicas associadas é muito usada em sessões individuais ou de grupo.
Natália, a actual estagiária em musicoterapia na escola, admite aplicar esta estratégia
regularmente nas sessões colectivas, e «o resultado é um diálogo sonoro de que os
miúdos gostam imenso, mesmo os mais tímidos.»

Na opinião de Backer, o método mais usado na Europa é o das técnicas activas, muito
úteis para estimular o diálogo e a comunicação, bem como para evidenciar perturbações
psíquicas ou emocionais. Neste tipo de sessão, as crianças são convidadas a usar voz e
percussões corporais ou então instrumentos simples. Em certas ocasiões são elas
próprias que constroem e adaptam esses instrumentos consoante as suas necessidades.
Esta terapia activa funciona na base da improvisação ou da imitação, com vista à
criação musical e/ou sonora.

Por outro lado, existem técnicas receptivas baseadas na escuta de obras musicais, cujo
objectivo é proporcionar estados de relaxamento, inspiração ou criatividade. Convém

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sublinhar que, apesar da designação, este processo terapêutico não implica passividade
por parte dos frequentadores das sessões, pois exige deles o funcionamento simultâneo
dos sentidos, dos afectos e da inteligência. Enquanto não é avaliada a vida musical de
cada uma das crianças, Margarida e Natália planificam as actividades de modo a agradar
a todas elas, o que pressupõe um risco. Natália relembra as dificuldades que surgem
pontualmente «quando elas não gostam de uma música, não mudam de ideias e se
recusam a participar».

É verdade que há obstáculos na actividade da musicoterapia, e reconhece que «os


resultados musicais alcançados com as sessões são mais satisfatórios e rápidos do que as
alterações do seu comportamento», mas Margarida garante que quase todas as
recordações que guarda do seu trabalho são boas. «Uma das mais marcantes passou-se
durante um congresso em Beja, numa instituição de caridade dirigida por uma
comunidade de freiras. Um grupo de crianças com deficiências mentais e motoras
profundas apresentou uma peça musical fantástica, que tinha sido ensaiada sem ajuda de
professores ou musicoterapeutas. O que demonstrou um esforço imenso e que deve ser
valorizado por todos.»

Trabalho de equipa é algo fundamental quando se entra no domínio da musicoterapia –


logo, é essencial que o musicoterapeuta compreenda as linguagens específicas da
medicina clínica, da pedagogia, da psicologia e da psiquiatria. Só assim se entende a
importância da formação profissional de musicoterapeutas. Actualmente, muitas das
instituições que investem neste tipo de terapia contratam pessoas com conhecimentos
musicais, normalmente professores, mas que não possuem o estatuto de
musicoterapeutas. «Em 1998 quando tirei o curso de musicoterapia na Madeira com a
drª. Jacqueline Verdeau-Paillès, era a única a aluna de Coimbra mas agora ouço dizer
que há imensos musicoterapeutas a exercer por aí». Margarida respira fundo e confessa
«ficar irritada por ver como algumas dessas pessoas, sem formação, contribuem para o
descrédito da profissão que, aliás, ainda não é reconhecida no nosso país.»

Esta última declaração vai ao encontro do pensamento de Even Ruud que alerta para a
necessidade de distinguir claramente entre a musicoterapia ortodoxa e científica, de uma
outra mais especulativa que os media costumam divulgar e que não passa de new age
trend. «Não me venham dizer que a musicoterapia é uma medicina alternativa»,

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exclama Margarida. Na verdade, qualquer doente que frequente sessões de


musicoterapia não pode dispensar o uso de tratamentos farmacológicos ou de outro tipo,
se estes já lhe tiverem sido aconselhados. A importância do acompanhamento da
musicoterapia em doentes perturbados é uma das motivações de Margarida para pôr em
prática um projecto inovador: abrir um consultório em Coimbra onde possa praticar a
actividade junto de adolescentes e adultos, com suporte psicológico e médico.

Está comprovado que não basta um diagnóstico musical dos pacientes para fazer
musicoterapia. E mesmo esse processo é bastante complicado, na medida em que exige
cuidado com traumas e problemas emocionais que, à partida, não saltam à vista do
terapeuta. Segundo Margarida e Natália, a melhor maneira de começar o trabalho com
as crianças é partir dos sons e melodias que lhes são familiares e agradáveis, para depois
a educar a audição de novas sonoridades.

Para o nórdico Even Ruud, a musicoterapia deve representar um esforço para aumentar
as possibilidades de acção dos indivíduos, de modo a que estes possam ter mais
qualidade de vida. E tem-se caminhado nessa direcção quer através da música na
terapia, quer pela música como terapia. Sobretudo nos últimos 50 anos a musicoterapia,
à semelhança das restantes artes terapias, tem vindo a ganhar uma maior credibilidade
em termos científicos. Em Portugal, é de louvar o trabalho desenvolvido durante a
segunda metade da década de 90 por pessoas dedicadas de corpo e alma a esta causa.
Entre elas, Fernanda Prim, a primeira presidente da Associação Portuguesa de
Musicoterapia.

Os resultados desta técnica inovadora estão à vista um pouco por todo o país em
escolas, hospitais, associações e centros de apoio. Em Coimbra, a Associação de
Paralisia Cerebral de Coimbra conta com um caso reconhecido de sucesso. Trata-se dos
“5ª Punkada”, uma banda constituída por alunos da instituição, sob a orientação do
musicoterapeuta Francisco Borges, que entretanto faleceu. No decorrer da Capital
Nacional da Cultura 2003, estes jovens tiveram a oportunidade de subir ao palco e
mostrar os seus dotes musicais a um «país de analfabetos musicais», como diria o
maestro Virgílio Caseiro.

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Musicoterapia em Portugal
Depois de décadas na ignorância, finalmente a musicoterapia é do conhecimento geral
dos portugueses e a sua aplicação terapêutica tem sido bem recebida em centros
hospitalares e instituições.

Margarida Azevedo concluiu na sua tese que, em 1998, esta técnica terapêutica já era
aplicada em cerca de 1/3 das instituições. Apesar de auxiliar o tratamento de inúmeros
distúrbios e patologias, a musicoterapia tem sido usada quase exclusivamente no
tratamento de doenças e deficiências mentais.

Olhando para o panorama actual, continua a haver um reduzido número de


musicoterapeutas a exercer a profissão. Esta escassez de profissionais pode ser causada,
em grande parte, pela ausência do estatuto da profissão do musicoterapeuta em território
nacional.

Os principais problemas para os pioneiros da musicoterapia passam pela falta de meios


materiais e humanos, tal como pelo acesso à literatura produzida sobre o tema. Quem
estiver atento pode verificar que as iniciativas nesta área são muito isoladas e que até
hoje quase foi feita pouca investigação no nosso país. Apesar de tudo, são cada vez mais
os workshops e acções de formação que dão a conhecer as vantagens deste tipo de
terapia.

Percurso histórico da musicoterapia


O papel benéfico da música para o bem-estar humano já não é surpresa para ninguém
nos dias que correm. São-lhe atribuídas funções intelectuais, lúdicas, sociais,
linguísticas, sociais, religiosas, educativas, medicinais e até éticas. Apesar de muito
recente enquanto ciência, a musicoterapia encontra origens nas sociedades arcaicas que
usavam as artes com fins curativos. A ligação entre artes e saúde está sempre presente
na história da humanidade. Já Aristóteles reconhecia o efeito de catarse das artes, na
medida em que estas provocam uma libertação emocional. Por sua vez, no século XVII,
acreditava-se ser possível curar a picadela de tarântula através de uma melodia. Na
mitologia a relação também é visível – Apolo era o deus grego da medicina e da música.

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As artes terapias alcançam uma posição de destaque quando são postas em prática em
hospitais ao serviço da psiquiatria. Inicialmente, tratava-se apenas de uma estratégia
para combater a solidão dos doentes mas, a partir da 1ª Grande Guerra, estas terapias
assumiram-se como instrumento de diagnóstico e compreensão das doenças mentais.
Personalidades europeias como Freud e Jung foram essenciais para o aparecimento de
novas correntes psicológicas integradoras das artes como terapia. Os EUA foram os
pioneiros da musicoterapia, com os primeiros programas universitários a datar da
década de 40 do século XX.

Contudo, foi necessária a introdução de profissionais para serem dados passos


significativos nas artes terapias. Rolando Benezon, Juliet Alvin, David Aldridge, Lia
Barcello, Nordoff&Robbins e Even Ruud são alguns dos vultos incontornáveis no
historial da musicoterapia moderna. A música, tida anteriormente como mero prazer
sensorial, ganha o estatuto de linguagem não-verbal, à medida que criação artística
aparece como um factor de descoberta e desenvolvimento capaz de abrir canais de
comunicação.

Contra-indicações
A música nem sempre provoca melhorias na regulação do humor dos indivíduos. Em
termos práticos, uma melodia tanto pode activar sentimentos positivos como negativos;
tudo depende da situação emocional da pessoa envolvida. Portanto, não é de estranhar
que se registem casos de violência ou suicídio supostamente motivados por certo tipo de
música.

O tema tem sido muito debatido por psiquiatras, como Carlos Brás Saraiva e José Pio de
Abreu, mas ainda não há conclusões objectivas para esta questão. Segundo um estudo
recente de Cláudia Borralho, é muito provável que a música de Beethoven desperte
ideias depressivas ou até mesmo suicidas nos ouvintes. Tal descoberta enfraquece os
comuns argumentos da má influência de géneros musicais como o metal, o punk ou o
rap.

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Margarida Azevedo, professora e musicoterapeuta, defende que não está provado que
estilos de música mais agressivos actuem indiscriminadamente segundo uma lógica
directa de causa-efeito. No entanto, admite que são adolescentes as vítimas mais
prováveis dessa influência negativa, por ainda estar em curso o processo de formação da
sua identidade pessoal.

Contudo, há casos em que as reacções negativas passam por factores de outra ordem. É
o caso da chamada epilepsia musicogénica, em que os doentes sofrem ataques
epilépticos, resultantes da intolerância a determinadas melodias ou sons, sem que se
saiba ao certo qual a componente responsável pela reacção patológica.

(aproximadamente 14 000 caracteres)

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