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O PRESEPIO DE UTACH

Dezembro chegou. O dia 25 aproxima-se e a preparação do Natal não deixa


ninguém desocupado. Mas não haverá luzinhas ou outro tipo de enfeites ou decorações.
Vai ser uma coisa muito discreta. O “Natal das Luzes”, certamente, não será tentação
para nós, cristãos de Nyala. Simplesmente pelo facto de que a igreja, neste canto do
mundo, não tem o direito de existir, oficialmente. Mas vamos dando graças a Deus e
optando por não dar nas vistas de quem tem a faca e o queijo na mão. A luzinha que
brilha dentro de cada um de nós, essa ninguém a poderá apagar e não precisa de
documentos dos soberanos deste mundo. Esta situação convida-nos a voltar a Belém da
Judeia, onde há mais de dois mil nos atrás, aconteceu o verdadeiro presépio. “Natal sem
Luzes”. Sem luzes, mas não sem o esplendor e brilho daquele que é a Luz do mundo

Ai, acabou-se o alcatrão! Que remédio senão abrandar!? É que o selim não é de
estofo! Mais umas quantas pedaladas e já estou no “suq” (mercado). Hoje o desvio é
obrigatório. A estrada principal é para as Forças Armadas que vão chegar. “Vêm trazer a
paz ao Darfur” – anunciou a emissora nacional. Oxalá fosse verdade! Mas como podem
trazer a Paz, se nas mãos têm instrumentos de guerra?
Desço da bicicleta e sou mais um no meio da multidão que se move, acotovelando-
se, à procura de viver. Lentamente, vou fazendo caminho por entre a densa massa
humana. Aparelhos de rádio ecoam no ar com discursos a cruzarem-se com músicas
variadas. Vendedores gritam o melhor e mais barato produto do mundo. Cestas e potes
com sementes e especiarias embebedam a atmosfera com os seus cheiros misturados.
De repente, a bicicleta empancou. É o brincalhão do Yohana, um dos membros do
conselho paroquial. Agarrando a roda dianteira com a sua mãozona, sai-se com mais
uma das suas gracinhas de costume: “abuna (padre), e que tal se fizéssemos aqui a
celebração da missa de Natal, no meio desta multidão?” Outras pessoas, que não
conheço, cumprimentam-me e convidam a comprar na sua barraca. Sim, quase todos de
religião muçulmana, pertencentes às muitas e variadas tribos darfurianas. Mas todos
filhos de Deus que buscam a sua Luz.

Finalmente, livre do suq, estou na direcção de Utach – o mais próximo dos


campos de refugiados, mesmo à saída da cidade. Estendo o olhar ao longe: um mar de
tendas brancas e azuis. À mediada que me aproximo e entro nas ruas desta “imensa
aldeia” improvisada forçadamente pela guerra do Darfur, sinto, dentro de mim, que
estou a pisar terra sagrada. “Natal sem Luzes”. De bicicleta à mão, vou-me perdendo e
encontrando em vielas todas tão iguais. Bandos de meninos vestidos de poeira, rodeados
de moscas que procuram amizades. São crianças iguais às de todo o mundo. Brincam e
correm, contentes, não sabendo como e porquê vieram aqui parar. Ao passar no meio
delas, repetem-me o já conhecido refrão: “Khauaja (estrangeiro), Okay, Khauaja,
Okay”. Palavras que aprenderam e repetem quando vêem algum branco funcionário das
Organizações de ajuda humanitária (ONG).
De repente, vejo que tenho um traquina – o mais crescido entre eles – sentado no
suporte da bicicleta. Deve saber quem eu sou, pois é a segunda vez que venho a este
lugar. Mas, antes que eu interviesse, ele antecipou-se e disse: “é ali mais à frente”.
Deixo-me guiar pelo meu novo amigo que fala num sotaque darfuriano muito
carregado. O pequeno continua a dizer coisas que não entendo por completo, até que,
finalmente, ouço que diz: “o meu nome é Khamis e tu és o abuna”.
A noticia deve ter passado de tenda em tenda. Muita gente se aproxima para ver
o espectáculo do Khamis que conquistou o selim e o abuna que empurra a bicicleta….
Mas logo dou conta que o verdadeiro espectáculo é outro: pensam que vim distribuir
alimentos. E ao verem-me de mãos vazias, a desilusão aparece marcada nos seus rostos.
A minha dor aumenta porque não lhes posso valer.
Mais uma rua. E outra. Num salto, o Khamis, pôs-se no chão e convidou-me a
entrar: “a casa de Deus é aqui”.
Era uma tenda maior que as outras onde estavam mais de meia centena de
pessoas de todas as idades. Cantavam e rezavam sob a guia do catequista Joseph que
dirigia o encontro de oração. Ouvi o meu amigo Khamis chamar mãe a uma senhora
ainda jovem. Dei-lhe os parabéns por ter um filho tão esperto. E ela, entre soluços,
contou a história daquela que foi a mãe do Khamis. Maria era o seu nome. Fora morta a
tiro pelos Janjauid, quando fugia da sua casa em chamas que esses mesmos homens
sanguinários tinham incendiado. Levanto os olhos e vejo braços que se vão erguendo.
Percebi então que muitos dos presentes eram dessa mesma aldeia. Ao meu lado, um
jovem acrescentou, tristemente: “famílias inteiras foram mortas nessa mesma hora, ali,
com a Maria; os seus corpos ficaram espalhados no chão”. E, a custo, concluiu:
“fugimos sem os ter podido sepultar; que Deus nos perdoe”.
O encontro está para acabar. Alguém lembra que se faça um presépio. Chovem
ideias. Será um presépio vivo. Aquela tenda-casa de Deus representará o acampamento
de Utach, abraçando todo o Darfur e o mundo inteiro. Não vão trazer bonequinhos nem
figuras de fora. “No dia 25 – disseram com determinação – nós estaremos aqui”. Sim,
acredito e estou certo de que eles farão uma linda representação. Eles mesmos vão ser o
presépio. “Natal sem Luzes”, onde abunda a simplicidade e o brilho da fé que ilumina e
conduz à salvação.
À tardinha, na volta para casa, as duas rodas pediam mais velocidade, mas os
pedais não tinham culpa. Parte do meu ser estava ainda no acampamento que há pouco
tinha deixado. Aquele presépio não vai morrer. Não haverá Janjauid que o mate. Estará
sempre vivo. O Filho de Deus veio montar a sua tenda no meio do seu povo. Deus
connosco. Emanuel. A sua Luz brilhará para sempre! Gloria a Deus no Céu e paz na
terra…
(Padre Feliz da Costa Martins – Nyala, Natal 2006)

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