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ENTREVISTA À DRA.

ISABEL JONET

PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO DOS BANCOS ALIMENTARES

SOLIDARIEDADE – Como é que, sendo economista, abraçou esta causa da solidariedade e do voluntariado, em 1993?
ISABEL JONET – Eu acho que foi mesmo por ser economista. Por razões de ordem familiar eu regressei da Bélgica, onde vivia, e decidi parar em
termos profissionais durante uns tempos, para ajudar os meus filhos a integrarem-se no sistema de ensino português. Colaborava com a DG10 na
Comissão Europeia mas sobrava-me tempo que decidi oferecer ao projecto do Banco Alimentar. Não fui eu que fundei o Banco Alimentar. Foi o
Comandante José Vaz Pinto em 1992. Eu entrei nessa equipa em 1993.

SOLIDARIEDADE – Está no Banco Alimentar Contra a Fome desde então. O que a fez ficar até hoje?
ISABEL JONET – Isto foi uma opção de vida. Sinto-me realizada, quer do ponto de vista profissional quer do ponto de vista pessoal. Ao fim destes anos
todos, e apesar de ser presidente do Banco Alimentar, continuo sempre a visitar instituições. Sou eu quem faz, todos os meses, a distribuição dos
alimentos. Muito facilmente nos distanciamos do que é o mundo real. Atrás de um computador transformamos rapidamente pessoas em números. Eu
faço questão de ir aos bairros para não perder essa proximidade com as pessoas. É isso que me mantém aqui. Eu vejo como as pessoas vivem mal e
sinto que através do meu trabalho no Banco Alimentar Contra a Fome essas pessoas podem viver um pouco melhor.

SOLIDARIEDADE – O Banco Alimentar Contra a Fome é uma ideia que funciona. Não é, no entanto, frustrante sentir que a realidade da
pobreza em Portugal se mantém ou até se degrada...
ISABEL JONET – Os Bancos Alimentares contra a fome não existem para dar de comer a quem tem fome mas para lutar contra o desperdício. Os 11
bancos seleccionam no terreno instituições de solidariedade social (ISS) que dão de comer a quem tem fome. Nós somos grossistas. Vamos buscar onde
sobra para entregar onde falta. O que nós exigimos às instituições, com quem fazemos acordos de parceria, é que respeitem os critérios de distribuição,
acompanhem as famílias, visitem as famílias, não reintroduzam os produtos no mercado, etc., etc.. Não há insucesso. Basta ver as toneladas de
alimentos recolhidas todos os anos junto da indústria agro-alimentar, da agricultura, dos mercados abastecedores. Ainda há dias assinei um protocolo
com o Banco Santander/Totta para recuperarmos todo o peixe que é deitado ao mar. São três mil toneladas por ano que são atiradas fora por razões
meramente comerciais para não baixar o preço no mercado. O grande escândalo é a falta de respeito pelo trabalho de todos os agentes daquela
actividade. Os pescadores, que têm vidas difíceis, vêm o seu trabalho deitado ao lixo. Muitas vezes eles mesmos têm grandes necessidades.
O mais gratificante para mim, para além das toneladas de alimentos que recolhemos, para além da grande mobilização de voluntários que temos
conseguido, para além disso tudo, é o envolvimento. Vir a uma campanha do Banco Alimentar Contra a Fome, aqui em Lisboa, por exemplo, é do mais
comovente que há. Tem pessoas de todas as idades, de todas as classes sociais, de todas as cores, de todos os credos, de muitas nacionalidades a
trabalharem lado a lado por uma causa comum. De seis em seis meses cá estão sem a gente as convocar. Trabalho aqui todos os dias. Quase todos os
dias me comovo. A relação com estas pessoas e com as instituições é o nosso bem mais precioso. Há uma relação de confiança que leva instituições a
virem ter connosco na hora das aflições. Sabem que têm em nós um amigo que dá resposta aos problemas e não cobra nada.

SOLIDARIEDADE – De certa forma acaba por provar que Portugal é um país de


solidariedade...
ISABEL JONET – Eu sou mais adepta da caridade do que a solidariedade. A caridade é muito
mais. A palavra está desvirtuada por ter uma conotação religiosa, mas para mim a caridade é a
solidariedade com amor. Com entrega de si mesmo. A grande diferença é que caridade é amor e
solidariedade é serviço. Portugal ainda é um país de caridade... O que aconteceu em grande
medida é que a caridade teve que se transformar em solidariedade para ter acesso às verbas do
Estado.

SOLIDARIEDADE – No Banco Alimentar descobriu que há outras formas de ajudar


pessoas...
ISABEL JONET – Como eu vou aos bairros conheço bem a forma como as instituições
trabalham. Devo dizer que tenho a maior admiração pelas pessoas que estão à frente das
instituições e vejo que elas se deparam no dia a dia com dificuldades tremendas por que não
têm conhecimentos ao nível da gestão. São pessoas que têm escassos recursos à sua disposição
e não os sabem utilizar correctamente. Com a minha experiência de economista e com a minha
experiência aqui decidi criar a Entrajuda que pretende dotar as instituições com estrutura de
gestão competente. Vem complementar toda a acção que é desenvolvida pelo Banco Alimentar
Contra a Fome. Neste momento estou envolvida nesse projecto que foi criado há um ano e meio
e tem tido um sucesso surpreendente.

SOLIDARIEDADE – Essa é uma actividade que algumas empresas perseguem...


ISABEL JONET – Desde que o façam como nós a custo zero... A Entrajuda propõe fazer o mesmo que os Bancos Alimentares Contra a Fome fazem com
os produtos alimentares, mas com serviços que vão contribuir de uma forma estruturante para as instituições libertarem recursos que podem afectar a
outros sectores de interesse para a comunidade. Tem sido um projecto fascinante. Eu tinha medo que as instituições não acolhessem bem esta ideia até
por receio de perderem algum poder. Foi bem acolhida pelas instituições e pelas empresas parceiras. As empresas têm nos seus orçamentos verbas
consignadas para a responsabilidade social que acabam por atribuir a instituições e projectos que não conhecem e não controlam. Acabam por escoar
verbas que não servem para nada. Quando muito servem para despesas correntes e para diminuir défices. Nós propomos às instituições um melhor
funcionamento. Muitas vezes as instituições em busca de financiamentos alternativos desvirtuaram o seu objecto estatutário. Quantas instituições
criaram empresas de inserção só para se financiarem, desviando-se daquilo que é o seu rumo?
SOLIDARIEDADE – Essa intervenção pressupõe alguma crítica à forma como as instituições têm funcionado...
ISABEL JONET – Sim... Os gestores, presidentes e responsáveis têm que aceitar o que lhes é proposto. Nós fizémos um questionário em que as
instituições do universo do Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa podiam candidatar-se à ajuda em áreas técnicas específicas. Em três semanas
tivemos 193 inscrições. Eu achei que não ia ter respostas... Os próprios responsáveis das ISS sentem que a sua gestão não é a correcta e, no entanto,
todos os meses recebem subsídios da Segurança Social. Temos um plano de apoio que passa por elaborar um diagnóstico. Para cada instituição há um
tutor, um voluntário, um gestor muito qualificado, que vai à instituição e faz o diagnóstico. São pessoas disponibilizadas por empresas, ao abrigo do
programa voluntariado-empresa, e que a Entrajuda coloca nas ISS. Há exemplos em que uma empresa, tendo todas as áreas de intervenção, se
responsabiliza por uma instituição. Sempre em consonância com as direcções e sempre tendo em vista a missão e vocação da ISS. O tutor propõe com
a Entrajuda um plano de acção e recuperação daquela instituição.

SOLIDARIEDADE – Isso é um plano nacional a longo prazo...


ISABEL JONET – Há-de ser um plano nacional. Quando vimos que havia tanta procura e que era tão necessário - porque as instituições estão num
estado de gestão de tal forma deficiente e deficitário -, decidimos alargar a Entrajuda a todo o país. Há instituições que transportam crianças sem ter
seguros, há as que não têm um mínimo de regras de segurança e higiene alimentar e servem refeições, etc., etc.... Decidimos, por isso, formatar
produtos. E de uma forma transversal criámos produtos que podem ser comuns às várias instituições de solidariedade. Estamos a tentar criar regras,
procedimentos e modelos comuns. Por exemplo, na webização, nos seguros, no apoio jurídico... Ajudar as instituições a arrumar as suas casas numa
óptica de gestão.

SOLIDARIEDADE – Se isso resultar em pleno a Entrajuda fica como uma espécie de representante das instituições, com um poder
considerável...
ISABEL JONET – Nós não queremos isso... A Entrajuda não pretende ser uma fonte de poder. E não é. O que se faz é uma ponte entre instituições que
necessitam de ajuda por áreas e empresas e pessoas que querem dar o seu conhecimento e o seu tempo por uma causa em que acreditam, durante um
determinado período de tempo. É uma intervenção pontual fazendo com que as instituições tenham uma gestão organizada e sustentada no tempo. Nós
fazemos um diagnóstico, propomos um plano de acção, determinamos o tempo necessário para a intervenção e depois faz-se uma avaliação e acabou.

SOLIDARIEDADE – Porque é que esse plano não está a ser feito de acordo com a CNIS, as Mutualidades e as Misericórdias?
ISABEL JONET – É uma boa ideia, mas neste momento ainda estamos a estruturar os produtos todos. Temos que ter as ferramentas completamente
apuradas para depois as disponibilizarmos para quem quiser. A Entrajuda nem sequer quer ser detentora exclusiva dessas ferramentas. Todos vão ter
acesso a tudo. Estamos a conceber uma mega-base de dados que se chama “Respostas sociais em rede” em que pretende fazer um repertório de todas
as respostas sociais por valência para o país inteiro. Será agrupado por distrito, concelho, freguesia e tipo de valência. Quando, por exemplo, se
pretende encaminhar uma pessoa que vai procurar ajuda alimentar o sistema informa quais são as instituições que, em determinada zona, dão apoio
alimentar. O mesmo é válido para assistência a crianças, lares de idosos... O Ministério da Segurança Social tem uma coisa semelhante que é a Carta
Social mas que não é dinâmica e não está actualizada.

SOLIDARIEDADE – Isso é um instrumento político importante...


ISABEL JONET – Não queremos que seja. Eu já provei o suficiente à frente do Banco Alimentar Contra a Fome para se perceber que não temos de todo
esse ideal. O que pretendemos é ajudar as pessoas que precisam. Entendemos que a forma de combater a pobreza em Portugal e ajudar as pessoas
que precisam é através das ISS.

SOLIDARIEDADE – Por um lado critica as Instituições de Solidariedade Social mas por outro afirma que elas são a única forma de
resolver os problemas sociais... Reconhece o esforço das instituições mas quase afirma que em grande medida é um desperdício...
ISABEL JONET – É por isso que nasceu Entrajuda. Esse esforço é fantástico mas pode ser potenciado. É preciso colocar ferramentas que são
dominadas pelos gestores e empresas e colocá-las ao serviço das instituições. Permitir que haja uma maior conjugação entre as necessidades das
instituições e as competências, as capacidades das empresas e pessoas de boa vontade que querem ajudar. As instituições, dada a sua proximidade, o
conhecimento de cada caso, o acompanhamento e atenção desempenham um papel insubstituível. A grande mudança é o investimento na sua
“capacitação”.

SOLIDARIEDADE – O Estado, através dos acordos de cooperação, delega nas


instituições a intervenção e acção social. Considera que por essa via há também uma
desresponsabilização?
ISABEL JONET – No social o Estado faz mal. O Estado deve financiar estruturas e serviços mais
próximos das pessoas em vez de ser ele a fazê-lo. Por exemplo, na área das crianças e jovens
em risco o Estado podia conceder a gestão das casas de acolhimento à iniciativa privada,
financiando. O que se vê hoje em dia é que há equipamentos que funcionam de forma deficitária
que em vez de prepararem os jovens para uma vida diferente estão a criar pré-delinquentes.
Não são eficazes. O Estado deve financiar exigindo certificação, competência e avaliar
desempenhos.

SOLIDARIEDADE – A comparticipação financeira é feita da mesmo forma para todos...


ISABEL JONET – Per capita. O que é incorreto. Um lar de idosos que funciona como armazém de pessoas recebe o mesmo que um lar que dinamiza
actividades. O Estado não se pode demitir do seu papel de financiador, mas deve acautelar a forma como é utilizado o dinheiro.

SOLIDARIEDADE – Há uma tendência de mudança de critérios no financimento. Em vez de se entregar o dinheiro às instituições há quem
defenda que ele deve ser dado às famílias...
ISABEL JONET – Não concordo nada. Veja-se o que se passa no Rendimento Social de Inserção. É uma medida necessária mas é muito dificil de
controlar e fiscalizar e pode por isso ter muitas fraudes. O Estado deve pagar serviços que são prestados às famílias. Recordo-me das Casas do Povo em
que era levado à família o que ela necessitava, mas era fornecido em géneros, remédios, roupa, comida... O Estado deve pagar às instituições, e refiro-
me a todas... IPSS, Misericórdias, Mutualidades, as 4 mil e 500 que dizem que existem, o que eu duvido, em actividade devem ser menos.
SOLIDARIEDADE – Outra das tendências é a municipalização...
ISABEL JONET – A autarquização... Sou muito renitente. As autarquias estão muito ligadas aos poderes públicos. Corre-se o risco de só se ajudar
pessoas e famílias que
são da cor política. Eu defendo que, mesmo no caso em que a ajuda é prestada pelas autarquias, através das redes sociais, devem ser as instituições os
parceiros privilegiados e independentes. As instituições não podem ser obrigadas a divulgar dados pessoais das famílias que apoiam para, a troco disso,
as autarquias enviarem cartas com programas eleitorais. Em Portugal existe uma lei que é a da confidencialidade dos dados pessoais que hoje em dia é
sucessivamente atropelada à custa dos benefícios sociais. As pessoas mais carenciadas não são números, devem ser mais protegidas e acarinhadas.

SOLIDARIEDADE – Há novas problemáticas sociais e muita gente defende que devem inventar-se novas soluções. Parece-me que não é o
seu caso...
ISABEL JONET – Não é preciso inventar nada. Isso são fugas para a frente. Nós temos uma base fantástica constituída pelas 4 mil e 500 instituições
de proximidade. Só temos que as pôr a funcionar. E não é através da transferência mensal de verbas que são engolidas pelas despesas de
funcionamento. O grande desafio é conseguir que as instituições, mutualidades, misericórdias, conferências que há pelo país fora funcionem de forma
correcta em termos de gestão e organização. Dessa maneira as pessoas que lideram essas organizações vão libertar recursos e tempo para dedicar às
pessoas que apoiam. As instituições devem apoiar poucas famílias mas de uma maneira integral. Podem ter um papel fundamental em traçar um
projecto de vida, ajudando cada família a quebrar ciclos de pobreza, fazer um trabalho de grande proximidade promovendo uma verdadeira mudança de
vida. Ao dar verbas cegas o Estado está a perpetuar a pobreza e muitas vezes a criar dependências.

Data: 2006-08-01

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