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CONNGRESSO INNTERNACIO
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NICIDADE DO
D CONHECCIMENTO
Edu
ucação e Pssicologia

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ART
Kleberr Duarte Baarretto1 

 “O coração
o, se pudessee pensar,  parraria” 
(Fernando P
( Pessoa, Livro
o do desassosssego) 
 
“Co hor é o que eu sei e que o
onto ao senh o senhor não sabe; 
mas princiipal quero coontar é o quee eu não sei se sei, 
e que pode ser qu
ue o senhor saiba.” 
(João G
Guimarães R Rosa, Grandee Sertão: verredas) 
 

O  Acompan nhamento  Terapêuticco  (AT)  é  é uma  práática  clínicca  herdeira  do 


movimento  an quiatria  deemocrática  italiana  e  da 
ntipsiquiátrrico  inglêss,  da  psiq
psicooterapia in
nstitucionall francesa. SSurge no caampo da Saaúde Menttal, mas hojje em 
dia já se faz presente no ccampo da E Educação ee no campo o Judiciárioo e Penal. TTrata‐
se dee um modeelo de interrvenção clíínica que o ocorre no ccotidiano de uma pessoa – 
sua ccasa, trabaalho estudo o, lazer – e  não nos  espaços tra
e dicionais dde tratamento – 
conssultório  e  instituição.
i   Nas  décaddas  de  60  e  70,  no  Brasil 
B e  Arggentina,  muitos 
m
psicaanalistas  estiveram  ligados  a  hospitaais  psiquiiátricos  ee  comunid dades 
terappêuticas. D
Desta formaa, criaram n novas funçõ ões para oss agentes d de saúde m mental 
denoominadas:  atendenttes  psiquiiátricos  e  em  outtros  lugares,  auxilliares 
psiquuiátricos. AAs funções  desses ageentes foram m o embriãão daquilo  que mais ttarde 

1 Univ ia
versidade Pauliista – UNIP. amjoy@uol.com.br 
BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 
 
 
foi  denominado  amigo  qualificado  e,  posteriormente,  acompanhante  terapêutico. 
Isto  ocorreu  na  medida  em  que  o  trabalho  foi  se  dando  mais  na  rua,  na  casa  do 
paciente e deixando a instituição psiquiátrica e os consultórios. 

Esse  trabalho  nos  leva  a  testemunhar  a  maneira  como  os  problemas 


contemporâneos  afetam  os  modos  de  subjetivação  do  ser  humano.  Nessa 
perspectiva,  o  adoecimento  psíquico  pode  ser  visto  não  só  como  decorrente  de 
dinâmicas intrapsíquicas, mas também pelo mal estar no mundo social e cultural.  

Diferentes autores (Adorno, Stein, Heidegger) têm assinalado que os problemas 
contemporâneos são também frutos pelo modo como o processo de conhecimento 
aconteceu  na  modernidade.  Perspectivas  epistemológicas  utilizadas  na  maneira 
como  se  aborda  o  ser  humano  nas  Ciências  Sociais  levam  a  conseqüências 
significativas na desumanização do mundo e na fratura do ethos humano. 

Tendo em vista este tipo de situação, tenho recorrido à pesquisa da literatura e 
da  arte  como  modo  de  abordar  a  questão  do  conhecimento,  e  do  modo  como  a 
temporalidade vem afetando a subjetividade humana. 

Um autor que tenho considerado bastante fecundo nessa investigação e reflexão 
é o poeta indiano Rabrindanath Tagore. 

Não há como abordar a obra de Tagore sem nos determos na articulação que ele 
apresenta ao se referir a Deus, à Natureza e ao Homem. Não seria exagero afirmar 
que toda sua obra é atravessada por esses três pontos e a relação entre eles. 

Ao  longo  de  seus  poemas,  ensaios  e  palestras,  o  poeta  faz  referência  a  Deus 
como: Senhor, Ser Supremo, Personalidade Suprema, Criador, Pai, Amigo, Amante, 
Poeta...  O  Criador  se  faz  presente  em  sua  criação  e  se  expressa  através  dela.  O 
Infinito habita o finito. Daí a importância da relação harmoniosa com o mundo e o 
que  nele  está,  pois  nestes  elementos  vislumbramos  o  Todo  Infinito.  O  mundo  é  o 
lugar da manifestação do Divino. A qualidade da relação que estabelecemos com o 
mundo contribuirá ou não para nos aproximarmos do Ser Supremo. 

Em seu modo de ver, tudo que existe no mundo está envolto por Deus e é fonte 
de  alegria,  deleite  e  experiência  poética.  Assim  sendo,  a  presença  divina  se 
manifesta em todos os elementos da natureza, o que leva o poeta a uma atitude de 
reverência e sacralização do mundo. 

À pergunta sobre o que é esse que tudo permeia, Tagore encontra resposta nos 
sagradas escrituras do Hinduísmo. 

O que é esse espírito? Diz o Upanixade: O ser que é em sua essência a luz e 
a vida em tudo, que é universalmente consciente, é Brahma. (Sadhana; p. 
25) 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 

Brahma, o Criador, é o princípio, o meio e o fim de todas as coisas, mas ele em si 
não  possui  um  começo  e  nem  um  término.  Toda  a  criação  está  nele,  mas  Sua 
Grandeza  não  está  em  sua  totalidade  contida  no  universo.  Ele  está  perto  e  ao 
mesmo tempo distante. Estamos diante do paradoxo, o mistério que não é passível 
de  ser  resolvido.  Vejamos  como  Rabindranath  organiza,  poeticamente,  essa 
questão do criador e da criatura: 

Colocas uma barreira no teu próprio ser, e depois 

chamas de volta o teu próprio ser, repartido em milhares 

de notas musicais. Essa parte dividida de ti mesmo é 

a que se encarnou em mim. 

(Gitanjali; estrofe do poema 71) 

A  relação  com  o  ser  supremo  determina  não  só  um  registro  religioso,  mas 
também  se  torna  uma  necessidade  ética,  para  que  o  homem  não  torne  o  outro‐
coisa e aborde a Natureza, sem que ela seja mera fonte de materiais para os bens 
de consumo. 

Podemos  apreender  uma  relação  bastante  pessoal  e  amorosa  entre  Criador  e 


criatura.  Tagore  cunhou  o  conceito  de  jiban­devata,  cuja  tradução  literal  seria 
Deus‐vida,  ou  seja,  o  Senhor  da  vida.  Ele  a  define  como  “o  aspecto  limitado  da 
Divindade  que  tem  seu  lugar  singular  na  vida  individual,  em  contraste  àquela 
[Divindade]  que  pertence  ao  universo”  (Imperfect  encounter;  p.  321).  Curiosa  esta 
afirmação do ilimitado fazendo‐se presente na parte, de uma porção personalizada 
de Deus. Aqui vemos também a proximidade dessas concepções com a perspectiva 
teológica  cristã,  na  qual  Deus  limita‐se  por  meio  do  esvaziamento  de  si  (kenosis) 
para  permitir  que  o  mundo  possa  existir.  No  Cristianismo  esse  esvaziamento 
atinge o seu ponto mais dramático pela encarnação da divindade, momento em que 
a natureza humana é acolhida pela divindade. 

No  final  de  seu  livro  mais  autobiográfico,  Tagore  também  faz  uma  menção  a 
estes aspectos: 

Eu não tenho a capacidade de revelar e apresentar a suprema arte pela 
qual  o Guia  de  minha  vida  está,  alegremente,  me conduzindo através de 
todos  os  seus  obstáculos,  antagonismos  e  sinuosidades,  em  direção  à 
realização  de  seu  mais  profundo  significado.  E  se  eu  não  puder  tornar 
claro todo o mistério deste projeto, o que quer que eu tente apresentar é 
certo  que  será  confuso  a  cada  passo  do  caminho.  Analisar  a  imagem  é 
somente alcançar a poeira e não a alegria do artista. (My Reminiscences, 
pp. 271­272) 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 
 
 
Cada vida humana possui um Guia que a conduz em sua travessia pelo mundo. 
Isso se deve à concepção de que em cada homem habita a face do Criador. Dessa 
forma o Guia é o Divino no homem, ansiando retornar à fonte original. Vemos que 
por  essa  perspectiva  Tagore  nos  mostra  que  o  destino  humano  é  sagrado,  pois  o 
Divino procura manifestar um dos aspectos de sua face pela vida singular. Há aqui 
uma  ética  frente  ao  imponderável  e  à  santidade  do  destino  do  outro.  É  nessa 
perspectiva que o olhar proposto por Tagore se constitui em um lugar ético. 

Talvez  fosse  interessante  esclarecermos  como  ele  organiza  essa  relação 


harmoniosa  mesmo  nas  vicissitudes  da  vida.  A  harmonia  está  na  realização  das 
distintas dimensões humanas. Mas haveria algum dualismo entre Deus e o homem? 

Tudo tem seu dualismo de maya e de satyam, de aparência e de verdade. 
As  palavras  são  maya  onde  são  meros  sons  e  finitas,  porém  são  satyam 
onde são idéias e infinitas. Nosso ego é maya onde é apenas individual e 
finito,  onde  considera  a  sua  separação  como  absoluta;  e  satyam  onde 
reconhece a sua essência no universal e infinito, no supremo si mesmo, no 
paramatman.  Isto  é  o  que  Cristo  quer  dizer  quando  fala  que  ‘antes  que 
existisse,  eu sou’.  Esse é o  eterno  eu sou que  fala através do eu sou 
que  está  em  mim.  O  eu  sou  individual  atinge  o  seu  perfeito  fim 
quando  realiza  a  sua  liberdade  de  harmonia  no  eu  sou  infinito. 
Então  ele  é  seu  mukti,  sua  libertação  da  escravidão  de  maya,  da 
aparência que brota da avidya, da ignorância; a sua emancipação reside 
no cantam, çivam advaitam, no perfeito repouso na verdade, na perfeita 
atividade na bondade, e na perfeita união no amor. (Sadhana; pp. 74­75; 
grifo nosso) 

Importante  assinalar  que  maya  surge  pelo  sentido  de  dualidade,  quando  o 
homem se desenraiza do infinito, aí surge o ego. No entanto, quando a dualidade é 
superada pelo acolhimento do paradoxo o que surge é a personalidade, morada da 
Suprema Personalidade. 

A perfeição, na concepção de Tagore, não está na infalibilidade humana, mas na 
realização da liberdade do eu sou individual em harmonia com o eu sou infinito. 
O eu sou imortal que se revela no mundo através do eu sou humano. Vemos que 
ele  nos  ensina  que  o  desenraizamento,  forma  epidêmica  de  adoecimento  do  ser 
humano  na  atualidade,  não  só  acontece  no  registro  ético‐cultural,  mas  também 
pela dessacralização da condição humana. 

A aparência de dualidade é decorrente da limitação do Poder de Deus com o fim 
de  possibilitar  a  criação.  A  separação  reside  apenas  na  aparência.  O  próprio 
Criador estabelece limites a fim de que sua onipotência não destrua o jogo da vida. 
O  ato  de  criação  é  um  movimento  de  kenosis,  ou  seja,  Deus  se  esvazia  de  sua 
plenitude  a  fim  de  tornar  a  criação  possível.  A  compreensão  desse  ponto  é 
fundamental, pois, embora a criação seja a dança de alegria da Divindade, nela está 
também  contida  a  dor  do  sacrifício  decorrente  da  separação  de  Deus  de  sua 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 

plenitude. A criação move‐se em um ritmo de alegria celebrativa, ao mesmo tempo 
em  que  sofre  pelo  anseio  de  sua  fonte.  Recoloca‐se  nesse  ponto  o  registro  do 
paradoxo na compreensão da relação entre Deus‐Natureza‐Homem. Vejamos como 
Tagore vê a separação e a dor no mundo: 

A dor da separação invade o 

mundo e faz nascer inumeráveis formas no 

céu infinito. 

A tristeza da separação espia de 

estrela em estrela no silêncio da noite, e 

torna­se poética entre as folhas que 

farfalham na sombra chuvosa de julho. 

Essa dor transbordante se aprofunda 

em amores e desejos, em sofrimentos e 

alegrias, e penetra os lares humanos. É ela 

que sempre se dissolve e reflui em canções, 

através do meu coração de poeta.. 

(Gitanjali, poema 84) 

A dor está presente também na alegria. Por outro lado, a alegria de Deus está em 
submeter‐se  às  leis  que  estabeleceu  a  si  mesmo.  Enquanto,  a  alegria  do  homem 
está em transfigurar o que aí está e revelar a face do divino na água, na terra e em 
tudo  que  nos  cerca.  É  uma  alegria  que  nasce  da  alma  em  dor  pelo  anseio  de  seu 
criador.  Nesta  transfiguração  do  que  aí  está  naquilo  que  realmente  é,  o  homem 
participa da obra do Criador. 

Assim como a natureza se acha separada de Deus por meio dos limites da 
lei,  também  são  os  limites  do  egoísmo  que  separam  o  eu  em  relação  a 
Deus.  Ele  voluntariamente  colocou  limites  para  sua  vontade,  e  deu­nos 
domínio sobre o nosso pequeno mundo. É como um pai que entrega a seu 
filho uma quantia dentro do limite no qual o filho é livre para fazer o que 
desejar.  ...Assim,  o  amor  de  Deus,  a  partir  do  qual  o  nosso  eu  tomou 
forma, tornou­o separado de Deus; e é o amor de Deus que de novo 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 
 
 
estabelece uma reconciliação e une Deus com o nosso eu através da 
separação. (Sadhana; p.76; grifo nosso) 

A  vontade  para  Tagore  é  fruto  do  amor  e  para  se  realizar  verdadeiramente, 
precisa que a vontade do outro seja livre também. Nesta dimensão, a harmonia é 
casamento de liberdade e liberdade. O encontro exige um sim de ambas as partes. 
Vemos então que a relação do homem com Deus e do Criador com o homem é de 
amor. Tagore afasta‐se, dessa forma, de qualquer outra concepção teológica que vê 
a  relação  do  homem  com  Deus  pelo  vértice  da  submissão.  Deus  e  homem  são 
amantes  e  sua  câmara  nupcial  é  a  Natureza!  Vejamos  como  essa  perspectiva 
comparece na prática do acompanhamento terapêutico:  

Na primavera de 1996 acompanhei José a um parque. Sentamos em um banco, 
enquanto  ele  fumava  um  cigarro,  conversamos  entrecortadamente.  Mais  tarde, 
sugeriu que pegássemos um ônibus para passear – percurso que já havíamos feito 
nas  duas  semanas  anteriores  –  e  eu  insisti  que  naquele  dia  passeássemos  por  ali 
mesmo. Falei da primavera: as flores, o verde claro das folhas jovens, o movimento 
do  povo  pelo  parque.  Resolvemos  caminhar  um  pouco  pelo  fluxo  de  pessoas 
correndo,  pedalando,  exercitando‐se;  crianças  brincando,  patinando  e  jogando 
bola; mães com seus bebês; pombos voando, marrecos e patos agrupados à beira 
do  lago;  algumas  garças  e  biguás  buscando  o  de‐comer;  sabiás  e  bem‐te‐vis  em 
coro  pelas  árvores...uma  verdadeira  explosão  de  vida!  Em  um  determinado 
momento,  José  me  pediu  para  que  fôssemos  ao  hospital‐dia  para  ele  tomar  uma 
injeção.  

­ Por que você quer tomar injeção? 

­ Porque é bom. 

Pela  convivência  com  José  ao  longo  dos  anos,  observei  que  apesar  de  sua 
medicação  não  ser  feita  por  meio  de  injeções,  às  vezes,  quando  ele  estava  mais 
angustiado ou experienciando sentimentos que não conseguia dar contornos, pedia 
aplicações de injeção. Além disso, os passeios ao parque sempre tinham um certo 
padrão:  inicialmente  recusa  e  tentativa  de  ir  embora  que  se  transformavam  em 
satisfação  com  toda  a  experiência.  Resolvi  compartilhar  com  ele  a  maneira  que 
estava vivendo aquele momento: 

­ Isso que estamos vivendo aqui é uma verdadeira injeção de vida. Estar 
passeando aqui com você, batendo papo, vendo as pessoas se exercitando, 
as crianças brincando, os pássaros cantando, as flores, o verde­primavera 
das  árvores,  o  lago...me  deixa  emocionado.  Todas  essas  coisas  juntas 
tocam o coração. 

Não me lembro qual foi sua resposta, mas o pedido de uma injeção desapareceu 
andamos  um  pouco  mais  e  nos  sentamos  em  um  banco  com  vista  para  o  lago. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 

Conversamos  sobre  assuntos  variados.  Entretanto,  o  que  mais  me  chamou  a 


atenção foi um comentário solto que fez na hora de partirmos: 

­ Nossa! Hoje valeu, viu?! 

Percebi  que  nossa  experiência  havia  sido  bastante  significativa  e  o  fato  de 
compartilhar aquilo que eu estava sentindo ajudou‐o a dar um contorno simbólico 
para as suas vivencias. Algo bastante diferente de lidar com a situação através de 
uma injeção. 

A travessia humana se consuma no mergulho incessante no universal que brota 
a  cada  instante  no  perfeito  casamento  de  beleza  e  força.  O  eu  abre‐se  para  o  seu 
devir, em metamorfoses contínuas, em um vôo saudoso e contínuo em direção ao 
Ser  Supremo.  O  eu  estancado  no  apego  ao  tempo  pelo  temor  da  vertigem  da 
metamorfose encontra a esclerose da dualidade e se perde nos véus de maya. 

Vemos em todo lugar o jogo da vida e da morte – essa transmutação do 
velho no novo. O dia vem a nós a cada manhã, nu e branco, fresco como 
uma flor. Mas sabemos que ele é velho, que ele é a própria idade. É aquele 
longínquo dia que tomou a terra recém­nascida em seus braços, cobriu­a 
com seu branco manto de luz, e a enviou para a sua peregrinação entre as 
estrelas. (Sadhana; p 77) 

Compartilhamos  o  destino  da  terra.  Somos  peregrinos  através  das  idades  do 
tempo,  que  a  cada  dia  se  apresenta  a  nós  como  novo,  mas  traz  em  seu  seio  a 
antiguidade da origem – novo paradoxo. A verdade é saudação que o dia nos traz 
abrindo no horizonte o envelope com o amuleto de ouro da eternidade anunciando 
com a mensagem de amor do criador sempre fresca, jovem e antigo como o ‘Ancião 
dos Dias’. 

A dança da criação é uma dança de renascimentos e mortes em ciclos contínuos 
e  rítmicos.  Contraponto  entre  o  “desaparecimento”  do  ser  no  abismo  infinito  e  o 
seu renascer no orvalho de cada manhã. O ciclo dos dias e dos anos espelha a dança 
cósmica, na qual o homem participa em mortes e renascimentos. A cada dia, a cada 
aurora  a  vida  celebra  a  alegria  da  ressurreição  da  face  do  divino  que  sorri  no 
horizonte  do  mundo.  No  reencontro  de  cada  manhã  o  coração  do  mestre  se 
derrama em melodias de luz, flores e orvalhos. 

A vida é abundante e caprichosa, eternamente gerando o novo no seio do velho, 
a vida no berço da morte. A juventude da vida demanda a morte e o renascimento a 
cada  instante  de  vida.  O  paradoxo  é  envelhecer  para  reencontrar  a  juventude 
ontológica. O homem é contínua metamorfose e devir. Em seu envelhecer sopra a 
juventude eterna – o novo, que a cada dia acolhe o ser humano em seu despertar. 
Vida: perene renovação e ressurreição. Temos aqui a apresentação de um tipo de 
temporalidade cíclica, aparentada ao modo de ser humano. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 
 
 
Nossa vida, como um rio, bate a suas margens não para ficar encerrada 
dentro  delas,  mas  para  perceber  de  novo  a  cada  momento  que  possui  a 
sua inesgotável saída para o mar. É como um poema que compassa o seu 
metro  a  cada  passo  não  para  ser  silenciado  por  seus  rígidos 
regulamentos,  mas  para  a  cada  momento  dar  expressão  à  liberdade 
interior da sua harmonia. (Sadhana; pp. 78­79) 

O infinito é para ser vivido no coração e não na pele que é a marca da separação 
e  do  amor  do  ser  humano  em  relação  ao  Ser  Supremo.  Ter  o  infinito  na  pele  é 
querer fechar‐se no egoísmo do tudo‐em‐si.  

Rabindranath  dá  contorno  poético  à  sua  consciência  da  pulsação  do  universal 
no  coração  de  todas  as  coisas.  Podemos  aqui  observar  as  núpcias  acontecendo 
entre  Criador  e  criatura  no  leito  da  Natureza.  O  amor  do  poeta  não  acontece 
somente  em  relação  ao  próximo,  mas  em  relação  à  terra,  ao  céu,  à  Natureza.  No 
mundo  ocidental,  freqüentemente  encontramos  formulações  nas  quais  a  ética 
acontece entre o ser humano e o rosto do outro humano (Levinas, 1991). Tagore 
nos  lembra  que  “A  Face”  está,  não  só,  nos  outros  seres  humanos,  mas  em  toda 
criação. 

O arranjo das estrelas pode ser explicado na sala de aula por diagramas, 
mas a poesia das estrelas está no encontro silencioso de alma com alma, 
na confluência do claro e do escuro, onde o infinito imprime seu beijo na 
fronte  do  finito,  onde  nós  podemos  ouvir  a  música  do  Grande  ‘EU  SOU’ 
produzida  no  grande  órgão  da  criação  por  meio  de  suas  incontáveis 
flautas  em  harmonia  infinita.  É  perfeitamente  evidente  que  o  mundo  é 
movimento.  (a  palavra  em  sânscrito  para  o  mundo  significa  ‘o  que  se 
move’). (Personality, p.59)  

A  relação  ética  com  a  Natureza  não  pode  ser  pautada  pelas  medidas 
matemáticas científicas, mas pela poesia. Poesia aqui é ética! É olhar poético que 
revela o dharma do homem e da Natureza. Entre ambos “A Face” se revela e o amor 
movido  pela  dor  originária  encontra  um  momento  de  celebração.  O  mundo  é 
movimento realizando a eterna sinfonia do Maestro/Compositor. 

Qual  a  possibilidade  de  olharmos  o  mundo,  a  natureza  e  tudo  que  nos  rodeia 
com uma visão espiritual que nos revela a verdade total? Esta verdade nada mais é 
do que o descortinar da unidade que tudo permeia. O mundo visto como oferta de 
mensagens de amizade, pelo olhar poético do homem, revela a verdade ontológica 
das  coisas.  Tagore  propõe  aqui  uma  forma  de  conhecimento  do  real,  da  verdade. 
Este vértice nos remete àquela compreensão védica de natureza humana habitada 
pelos  dois  pássaros:  um  ocupado  em  comer  e  encontrar  alimento,  enquanto  o 
outro,  apenas  contemplando  a  beleza  do  mundo.  Penso  que  esta  perspectiva 
encontra ressonância quando Fernando Pessoa nos adverte que navegar é preciso, 
viver não é preciso; ou quando Guimarães Rosa diz que é preciso ter um olho na via 
e outro na poesia.  

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 

A realização plena de nossa humanidade implica na união com Deus por meio da 
qual percebemos a perfeita harmonia na unidade Deus‐Natureza‐Homem. 

Para  Tagore  o  universo  é  portador  de  uma  mensagem  que  parte  de  uma 
personalidade  que  se  preocupa  em  nos  dar  alegria  e  não  apenas  informações.  
Encontra‐se  aqui  um  contraponto  com  a  visão  tradicional  da  ciência. 
Diferentemente  de  outras  perspectivas,  esse  toque  mágico  que  revela  a 
personalidade,  não  é  passível  de  ser  decomposto  e  analisado.  Trata‐se  de  uma 
experiência que precisa ser sentida. O mundo não pode, eticamente, ser conhecido 
apenas  pela  razão  e  suas  medidas,  mas,  fundamentalmente,  pelo  coração  e  sua 
poesia. 

A  mera  informação  dos  fatos,  a  mera  descoberta  do  poder,  pertence  ao 
exterior  e  não  à  alma  interna  das  coisas.  A  alegria  é  o  único  critério  de 
verdade, e  nós sabemos quando tocamos a Verdade pela  música que Ela 
nos dá, pela alegria da saudação que ela envia à verdade em nós. Como eu 
disse  anteriormente,  não  é  com  as  ondas  etéricas  que  nós  recebemos 
nossa luz: a manhã não espera que algum cientista a apresente a nós. Da 
mesma maneira, nós tocamos a realidade infinita, imediatamente, dentro 
de  nós,  somente  quando  nós  recebemos  a  verdade  pura  do  amor  ou  da 
bondade, não com a explicação de teólogos, não com a discussão erudita 
das  doutrinas  sobre  a  ética.  (Lectures  and  addresses;  pp.  15­16;  grifo 
nosso) 

O  poeta  assinala  que  a  experiência  da  verdade  não  é  do  domínio  do 
conhecimento  e  da  erudição.  A  escolástica  jamais  poderá  fazer  da  Verdade  uma 
refém, seqüestrando‐a do mundo. O único critério para a verdade é a alegria que 
ela  desperta  em  nossos  corações,  pois  ela  é  palco  de  um  encontro  fundamental 
entre  a  Personalidade  Suprema  e  a  personalidade  humana.  A  verdade  não  é 
encontrada  pela  coerência  e  articulação  de  nossas  idéias,  ela  é  descoberta  na 
experiência amorosa de encontro com os outros humanos e com a Natureza. 

A  lei  é  o  primeiro  passo  em  direção  à  liberdade;  a  beleza  é  a  total 


libertação,  alicerçada  no  pedestal  da  lei.  A  beleza  harmoniza  em  si 
mesma o limite e o além, a lei e a liberdade. (Sadhana; p. 84) 

A  beleza,  a  experiência  estética  revela  a  face  do  Infinito  na  finitude.  Ela  se 
encontra entre a plenitude e o limite – lugar da criação. Ela torna a inflexibilidade 
da lei em direção amorosa. 

Na esfera da natureza a flor leva consigo um certificado que a recomenda 
como  possuindo  uma  imensa  capacidade  de  realizar  um  trabalho  útil, 
mas ela traz uma carta de apresentação diferente quando bate à porta do 
nosso  coração.  A  beleza  torna­se  então  a  sua  qualidade  única....  A  flor, 
portanto,  não  tem  apenas  uma  função  na  natureza,  mas  também  outra 
grande função, que ela exerce na mente humana. E qual é essa função? Na 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 
 
 
natureza  o  trabalho  dela  é  de  uma  serva  que  deve  aparecer  em  tempos 
determinados, mas no coração do homem ela chega como mensageira do 
Rei.... (Sadhana; pp. 86­87; grifo nosso) 

A flor para a nossa mente racional carrega uma série de informações, mas para o 
coração  humano  ela  é  mensageira  do  Amante  e  traz,  da  parte  dele,  uma  carta  de 
amor. O homem, dessa forma, em seu coração tem o dom litúrgico de dar aos entes 
naturais  o  dom  da  sacralidade.  Assim  sendo  o  homem  é  chamado  a  revelar  a 
realidade do mundo, ação que só acontece no diálogo em amizade e em alegria com 
o criador. 

Poderíamos  ilustrar  estes  aspectos  que  estamos  discutindo  a  partir  do  que  o 
artista  plástico  Frans  Krajcberg  relata  como  seu  segundo  nascimento  e  os 
desdobramentos  que  essa  experiência  teve  em  sua  vida  e  na  vida  de  outras 
pessoas. A despeito da posição do artista que, certamente, recusaria esta noção de 
alegria. 

Krajcberg nasceu em uma família judia na cidade polonesa de Kozienice. 
Sofreu  na  pele  toda  a  discriminação  por  sua  origem  judaica.  Após  a 
invasão  da  Polônia  pelos  nazistas  alistou­se  no  exército  russo  para 
combater  os  alemães.  Porém,  foi  afastado  da  frente  de  batalha  por  ter 
adoecido.  Cursou  Engenharia  e  Belas  Artes  em  Leningrado  (atual  São 
Petersburgo­Rússia).  Participou  nas  batalhas  que  culminaram  com  a 
queda de Berlim anos mais tarde, agora ao lado do exército polonês. Com 
o término da guerra decidiu voltar para sua cidade natal. As atrocidades 
que  havia  presenciado  fizeram  com  que  ele  perdesse  toda  crença  no  ser 
humano. Quando chega à sua cidade, ele relata: 

...  fui  em  casa  e  bati  na  porta.  Uma  senhora  abriu.  Tudo  estava  como 
antes. Só que minha família não estava lá. Meus pais e irmãos morreram 
em  campos  de  concentração  ou  desapareceram.  A  seguir  a  senhora 
começou a me xingar de uma maneira horrível, por eu ser judeu. Em vez 
de  pegar  um  revólver  e  dar  um  tiro  nela,  comecei  a  chorar....  (Caderno 
Mais! da Folha de São Paulo, de 10 de fevereiro de 2002, p.16) 

Foi o ápice do desalojamento e a descrença no ser humano se aprofundou ainda 
mais.  Perdido  e  sem  rumo,  mas  determinado  a  nunca  mais  colocar  os  pés  na 
Polônia,  passou  um  tempo  na  Alemanha.  Depois  partiu  para  a  França  com  uma 
carta  de  recomendação.  Por  fim  Marc  Chagall2  o  acolhe  em  sua  casa  por  quatro 
meses: 

Um  dia  o  dono  de  uma  agência  [de  viagens]  foi  jantar  lá.  O  dono  da 
agência disse que podia me arrumar uma viagem para  o Brasil. Eu nem 
sabia  direito  onde  era  o  Brasil.  Respondi  que  qualquer  lugar  me 
servia...cheguei  ao  Rio.  Sem  dinheiro, sem  falar português,  sem  conhecer 
2 Marc Chagall (1887‐1985), pintor de origem russa radicado na França. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 

ninguém.  Dormia  na  Praia  de  Botafogo.  Não  agüentava  a  miséria.  Fui 
para São Paulo de trem, clandestino. (op.cit., p.17) 

Em São Paulo empregou‐se no Museu de Arte Moderna. Tempos depois, mudou‐
se para o Paraná, agora empregado como engenheiro. Certo dia, caminhando pela 
mata local, viveu uma experiência que transformou sua vida: deparou‐se com uma 
flor de orquídea. Sua beleza e delicadeza o impactaram. Renasceu por meio da flor, 
renasceu  no  seio  da  mata.  Em  suas  próprias  palavras,  viveu  seu  segundo 
nascimento. 

Com  o  passar  do  tempo  dedicou‐se,  exclusivamente,  às  artes  plásticas.  Seu 
trabalho  ganhou  reconhecimento  tanto  no  Brasil  quanto  no  exterior.  Não  é  de  se 
estranhar  que  sua  arte  seja,  profundamente,  ligada  à  natureza.  Por  meio  de  seu 
trabalho busca denunciar a necessidade de preservarmos e cuidarmos da natureza. 
Para  ele  a  destruição  dos  recursos  naturais  e  das  matas  é  equivalente  ao 
holocausto  e  a  uma  guerra.  São  facetas  de  um  mesmo  fenômeno.  Com  o 
reconhecimento  de  seu  trabalho,  os  meios  de  comunicação  têm  apresentado 
reportagens a seu respeito. 

Há alguns anos atrás uma revista de circulação nacional publicou uma matéria 
sobre uma série de suas criações a partir de troncos e galhos de árvores marcados 
pelo fogo, recolhidos de áreas que sofreram queimadas.  

Em  um  presídio  feminino  na  Bahia,  uma  detenta  condenada  por  assassinato, 
folheava  a  revista  e  interessou‐se  pela  matéria  sobre  Krajcberg  e  sua  obra. 
Encantou‐se  com  seu  trabalho,  feliz  por  saber  que  existia  uma  pessoa  no  mundo 
capaz  de  transformar  em  arte  um  pedaço  de  madeira  queimada  supostamente 
estragado e sem utilidade. Ela sabia que sua vida tinha se queimado, virado carvão 
e que não teria mais saída. Presa naquela situação desoladora em que vivia, ficou 
contente  em  saber  dessa  possibilidade  no  mundo.  Escreveu  uma  carta  ao  artista 
plástico contando sua história e como se sentiu ao saber de seu trabalho. Esta carta 
chegou às mãos do destinatário. Entre as centenas de cartas que costuma receber, 
esta tocou‐o em particular: guardou‐a. 

Cumprindo  um  ritual  que  se  repetia  há  alguns  anos,  de  comemorar  seu 
aniversário,  em  um  Café  de  Paris,  com  um  jovem  amigo  brasileiro,  nascido  no 
mesmo  dia;  Kajcberg  durante  a  celebração  passou  a  carta  ao  amigo.  Este  ficou 
impressionado  e  por  ser  diretor  de  cinema,  disse  imediatamente:  “Eu  vou  filmar 
isto!” 

Walter Salles Jr3, o amigo, decidiu fazer um documentário sobre Socorro Nobre, 
a  presidiária.  Diferentemente  dos  outros  documentários  que  já  havia  realizado, 
este  foi  filmado  sem  roteiro,  sem  distanciamentos  em  relação  ao  objeto  do 
documentário.  Foi  com  sua  equipe  de  trabalho  e  seus  equipamentos  para  o 

3 Walter Salles Jr, dirigiu filmes como Central do Brasil e Abril despedaçado entre outros. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
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presídio. Por cerca de vinte minutos ele nos apresenta os protagonistas: Socorro, 
Krajcberg  e  o  encontro  entre  eles.  Segundo  Frans,  a  experiência  do  mergulho  no 
Documentário  transforma  seu  amigo.  Durante  todo  este  processo  foi 
amadurecendo  no  diretor  a  concepção  de  um  filme  realizado  alguns  anos  mais 
tarde, que se chamou Central do Brasil. O filme conta a história de uma escrevedora 
de cartas inescrupulosa e desonesta que, gradualmente, se transforma no encontro 
com um menino órfão na cidade do Rio de Janeiro. Vale lembrar que esta mulher, 
movida pela ganância, vendeu o garoto para traficantes de órgãos de crianças, mas 
depois,  arrependida,  o  resgata.  Após  o  resgate  a  dupla  empreende  uma  jornada 
pelo  sertão  do  nordeste  brasileiro  em  busca  do  pai  do  garoto.  Aliás,  uma  das 
ocupações de Socorro Nobre na penitenciária era escrever cartas para as detentas 
analfabetas.  Ela  participou  do  filme:  a  primeira  mulher  a  ditar  uma  carta  para  a 
escrevedora.  Fenômeno  de  saneamento  da  alma  humana  por  meio  da  arte  e  do 
gesto do outro. 

Estas histórias marcadas por tragédias que se transformam pelo encontro com 
uma  flor  de  orquídea,  pelo  encantamento  com  uma  obra  de  arte,  pelo  encontro 
significativo  com  um  outro  humano,  revelam  uma  dimensão  do  acontecimento 
humano apontado pelo escritor russo Fiodor Dostoievsky: 

Beleza salvará o mundo! 

Para  o  poeta  o  encontro  entre  Ciência  e  Religião  é  benéfico  para  ambos  os 
campos  de  experiência  e  conhecimento.  Como  temos  observado,  Tagore  nunca 
perde uma visão crítica das duas. 

Mencionei em relação à minha experiência pessoal algumas canções que 
tinha  ouvido,  inúmeras  vezes,  dos  cantores  andarilhos  das  vilas, 
pertencentes  a  uma  seita  popular  de  Bengala,  chamados  Baüls,  que  não 
têm  nenhuma  imagem,  templos,  escrituras,  ou  cerimoniais.  Eles 
declaram em suas canções a divindade do Homem, e expressam por 
ele  um  intenso  sentimento  do  amor.  Vindo  de  homens  não­
sofisticados,  vivendo  uma  vida  simples  na  obscuridade,  dá­nos  um 
indício ao significado interno de todas as religiões. Pois sugere que 
estas religiões nunca são sobre um Deus de força cósmica, mas sim, 
sobre o Deus de personalidade humana. 

Ao  mesmo  tempo  deve­se  admitir  que  mesmo  o  aspecto  impessoal  da 
verdade  tratado  pela  Ciência  pertence  ao  universo  humano.  Mas  os 
homens da Ciência dizem­nos que a verdade, ao contrário da beleza e da 
bondade,  é  independente  de  nossa  consciência.  Explicam­nos  como  a 
crença  de  que  a  verdade  não  é  independente  da  mente  humana  é  uma 
crença  mística,  natural  ao  homem,  mas  ao  mesmo  tempo  inexplicável. 
Mas não poderia a explicação ser esta, que a verdade ideal não depende 
da mente individual do homem, mas da mente universal que compreende 
o indivíduo? Pois dizer que a verdade, como nós a vemos, existe aparte da 

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Évora. 

humanidade é realmente contradizer a própria ciência; porque a ciência 
pode  somente  organizar  em  conceitos  racionais  aqueles  fatos  que  o 
homem é capaz de conhecer e compreender, e a lógica é uma maquinaria 
de pensar criada pelo homem mecânico. (The Religion of Man; pp. 87­89, 
grifo nosso) 

A dimensão humana é o denominador comum entre Ciência e Religião. O infinito 
é a própria medida do homem e do mundo. A concepção de uma verdade impessoal 
não  pode  ser  aceita  por  Tagore.  Em  sua  perspectiva,  a  visão  da  verdade  é 
fenômeno humano, uma das faces da relação entre o Homem e o homem. 

Neste aspecto havia uma divergência entre Einstein e Tagore: 

Em  1930,  conversando  com  Albert  Einstein  na  Alemanha,  Tagore  lhe 
disse:  ‘Este  mundo  é  um  mundo  humano  –  a  visão  científica  dele  é 
também  aquela  do  homem  científico’.  Embora  Einstein  não  tenha 
concordado, alguns distintos cientistas vêem agora a posição de Tagore. 
Um deles, Ilya Prigogine, um laureado com o Nobel de Química, afirmou 
em  1984:  ‘Curiosamente  o  bastante,  a  atual  evolução  da  ciência  está 
caminhando  no  sentido  indicado  pelo  grande  Poeta  Indiano’. 
(Dutta&Robinson, 1996; p.14) 

A ARTE COMO O OUTRO DA CIÊNCIA


O  poeta  ocupou‐se,  principalmente  em  suas  conferências,  com  a  relação  entre 
arte e ciência. 

Vimos  como  o  homem  primitivo  estava  ocupado  com  suas  necessidades 


físicas,  e  assim  restringiram­se  ao  presente  que  é  o  limite  de  tempo  do 
animal;  e  ele  perdeu  o  impulso  de  sua  consciência  em  procurar  sua 
emancipação em um mundo de valor humano final. 

A  civilização  moderna  pela  mesma  razão  parece  voltar­se  para  trás  em 
direção  a  essa  mentalidade  primitiva.  Nossas  necessidades  furiosamente 
se multiplicaram tão rápido que perdemos nosso lazer para a realização 
mais  profunda  de  nosso  self  e  de  nossa  fé  nele.  Isto  significa  que 
perdemos nossa religião, o anseio pelo toque do divino no homem, o 
construtor  do  céu,  o  criador  de  música,  o  sonhador  de  sonhos.  Isto 
tornou  mais  fácil  estilhaçar  nossa  fé  na  perfeição  do  ideal  humano,  em 
sua  totalidade,  como  o  significado  mais  completo  de  realidade.  Sem 
dúvida  é  maravilhoso  que  a  música  contém  um  fato  que  tem  sido 
analisado e medido, e representa aquilo que a música tem de comum com 
o  zurrar  de  um  burro  ou  de  uma  buzina  de  carro.  Mas  é  ainda  mais 
maravilhoso que a música tem uma verdade, que não pode ser analisada 
em frações; e lá a diferença entre ela e a impertinência gritante da buzina 

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do  carro  é  infinita.  Os  homens  de  nossas  épocas  analisaram  a  mente 
humana,  seus  sonhos,  suas  aspirações  espirituais,  ­­  na  maior  parte  das 
vezes  capturada  desapercebida  no  estado  estilhaçado  da  loucura,  da 
doença  e  de  sonhos  fragmentados  –  e  descobriram,  para  sua  satisfação, 
que  estes  são  compostos  de  animalidades  elementares  amarradas  em 
vários nós. Esta pode ser uma descoberta importante; mas o que é ainda 
mais  importante  de  realizar  é  o  fato  de  que,  por  algum  milagre  da 
criação, o homem transcende infinitamente as partes componentes de seu 
próprio caráter. (The Religion of Man; pp. 143­145, grifo nosso)  

A Ciência desenvolve‐se fundamentalmente por meio do emprego da análise dos 
fatos,  dissecando‐os  e  objetificando‐os  a  fim  de  conhecer  seus  componentes  e 
descobrir  a  lei  que  os  rege.  Como  o  poeta  afirmou  anteriormente,  o  homem 
também precisa ser conhecido por meio da Ciência. Porém não podemos perder de 
vista o milagre da criação que faz com que os elementos que compõem o homem, 
sua personalidade e o mundo transcendem suas partes. Nos dias atuais o cientista 
tem  tido  um  papel  de  destaque  na  sociedade,  mas  o  poeta  nos  chama  a  atenção 
para  o  toque  do  divino  no  homem  que  vem  a  ser  a  religião  do  artista.  Assim  a 
presença  da  arte,  em  um  mundo  organizado  pelos  princípios  da  técnica  e  da 
objetividade, traz ao homem a memória do necessário à sua natureza, e do anseio 
que habita o seu ser. 

Suponha  que  algum  explorador  psicológico  suspeite  que  a  devoção  do 


homem à sua amada funda­se no anseio do nosso estômago primitivo pela 
carne humana, não necessitamos contradizê­lo; pois o que quer possa ser 
sua  genealogia,  sua  composição  secreta,  o  caráter  completo  de  nosso 
amor,  na  sua  combinação  perfeita  das  associações  físicas,  mentais  e 
espirituais,  é  única  em  sua  total  diferença  do  canibalismo.  A  verdade 
subjacente  à  possibilidade  de  tais  transmutações  é  a  verdade  de 
nossa  religião.  Um  lótus  tem  em  comum  com  um  pedaço  de  carniça  os 
elementos do  carbono  e  do  hidrogênio. Em um  estado de dissolução  não 
há  nenhuma  diferença  entre  eles,  mas  em  um  estado  de  criação  a 
diferença é imensa; e é essa diferença que realmente importa. Nos dizem 
que  alguns  de  nossos  sentimentos  mais  sagrados  guardam  escondido 
neles  instintos  contrários  ao  que  estes  sentimentos  professam  ser.  Tais 
revelações  têm  o  efeito  sobre  determinadas  pessoas  de  alívio  de  uma 
tensão, até mesmo como o relaxamento na morte do incessante desgaste 
da vida. (The Religion of Man; pp. 143­145, grifo nosso) 

Essas  considerações  nos  permitem  afirmar  que  a  Arte  e  a  Religião  são,  não 
somente,  o  Outro  da  Ciência,  mas  também  da  Psicologia  e  da  Psicanálise.  Para 
conhecermos  verdadeiramente  algo  precisamos  encontrá‐lo  em  seu  estado  de 
criação  e  não  de  decomposição.  É  aqui  que  cada  coisa,  cada  ser  é  mensagem 
poética, lembrando ao homem o destino de sua viajem.  

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 

Encontramos na literatura moderna algo como uma gargalhada de uma 
exultante  desilusão  que  está  se  tornando  contagiosa,  e  os  cavaleiros 
errantes  do  culto  incendiário  estão  à  solta,  ateando  o  fogo  a  nossos 
altares sagrados de adoração, proclamando que as imagens consagradas 
neles, mesmo que belas, são feitas de barro. Dizem que se descobriu que as 
aparências  no  idealismo  humano  são  enganadoras,  que  a  lama 
subjacente  é  real.  De  tal  ponto  da  vista,  o  todo  da  criação  pode  ser 
compreendido como uma decepção gigantesca, e os bilhões de partículas 
elétricas  pululantes  que  têm  a  aparência  de  ‘você’  ou  ‘eu’  devem  ser 
condenados como portadores de falsa evidência. (The Religion of Man; pp. 
143­145) 

Penso  que  Tagore  esteja  criticando  uma  atitude  do  homem  moderno  que 
impregnou  todas  as  áreas  de  expressão  e  conhecimento  humano,  com  uma 
perspectiva objetiva e realista que abole o sonho e a poesia do mundo, levando o 
homem a um tipo de adoecimento grave: a doença da alma. 

Mas  quem  eles  procuram  enganar?  Se  for  seres  como  nós  que  possuem 
algum critério inato do real, então para eles estas mesmas aparências em 
sua  integridade  devem  representar  realidade,  e  não  suas  partículas 
elétricas  componentes.  Para  eles  a  rosa  deve  ser  mais  satisfatória  como 
um objeto do que seus gases constituintes, que podem ser torturados para 
depor  contra  a  identidade  evidente  da  rosa.  A  rosa,  assim  como  o 
sentimento humano de bondade, ou o ideal de beleza, pertencem ao 
reino  da  criação,  em  que  todos  os  seus  elementos  rebeldes  estão 
reconciliados  em  uma  harmonia  perfeita.  Porque  estes  elementos  em 
sua  simplicidade  se  rendem  ao  nosso  escrutínio,  nós  em  nosso  orgulho 
somos inclinados a dar­lhes os melhores prêmios como atores nesta peça­
mistério,  a  rosa.  Realmente,  tal  análise  está  dando  somente  um 
prêmio à nossa própria habilidade detetivesca. (The Religion of Man; 
pp. 143­145, grifo nosso) 

Infelizmente,  nossa  cultura  tem  entronizado  este  aspecto  detetivesco 


provocando  enormes  sangrias  em  tudo  que  há  de  mais  precioso  no  tesouro  da 
humanidade.  O  reino  da  criação  tem  sido  aviltado  continuamente.  Trata‐se  da 
impossibilidade  de  o  homem  atual  deter‐se  frente  ao  mistério  da  criação,  que 
devolve  o  homem  à  sua  origem.  A  arte  é  fundamental  como  contraponto  à 
disciplina  científica,  pois  assim  as  descobertas  dessa  última  encontram  seu  lugar 
apropriado na grande música do Homem. 

Neste sentido a intervenção por meio do Acompanhamento Terapêutico, por se 
dar  no  cotidiano de  uma  pessoa, favorece  o encontro  sujeito‐sujeito,  acolhendo  o 
tempo  da  experiência  constitutiva.  O  vértice  artístico,  neste  trabalho  presente 
através  da  literatura,  permite  que  se  possa  articular  e  refletir  sobre  o  acontecer 
humano preservando os fundamentos de seu ethos. 

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BARRETTO, K. (2007) Acompanhamento terapêutico: conhecer, tempo e arte. In, V. Trindade, 
N.  Trindade  &  A.A.  Candeias  (Orgs.).  A  Unicidade  do  Conhecimento.  Évora:  Universidade  de 
Évora. 
 
 
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