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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríetm)
APRESENTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
-Ul
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO XXXIV

JULHO

1993

(O SUMARIO
<

"A Alma viajadora do teu barco"

co
UJ A Astrologia considerada á luz da Ciencia:
o
Pessoa: como ¡dentif ¡cala?
tu
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A vida da máe ou a do f ilho?
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ai Eutanasia e Distanásia
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tu O que é preciso saber sobre a Renovacao Carismática


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O Onde fica a comunidade ideal?
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Livros em estante
PERGUNTE E RESPONDEREMOS JULHO 1993
Publicarlo mensal N9 374

Diretor-Responsável SUMARIO
Estéváo Bettencourt OSB
Autor e Redator de toda a materia "A alma viajera do teu barco..." 289
publicada neste periódico
Um Paradoxo de nossos Días:
A Astrologia considerada á luz da
Diretor-Administrador:
Ciencia 290
D. Hildebrando P. Martins OSB
Ciencia e Ética dialogam:
Administracao e distribuicao: Pessoa: como identifícala? 300

Edicoes "Lumen Christi" Abortar ou nao?


Rúa Oom Gerardo, 40 - 5? andar • sala 501 A vida da mae ou a do filho? 310
Tel.:(021) 291-7122
Eutanasia e Distanásia 317
Fax (021) 263-5679
Zelo Pastoral e Equilibrio:
Endereco para correspondencia: "O que é preciso saber sobre a Reno-
Ed. "Lumen Christi" vacao Carismática" por O. A. A.
Caixa Postal 2666 de Miranda 318
20001-970 - Rio de Janeiro - RJ Onde fica
Impfessío e Encadernagáo A Comunidade Ideal? . .'. 329
Livro» em estante 333

•MARQUESSARAIVA"
GRÁFICOS E EDITORES S.A.
Telt: 1021) 2730498 ■ 273-9447

NO PRÓXIMO NÚMERO

O Primado de Pedro. - Celeuma: Judeus Messiánicos. - "A Escolha de


Deus" (Card. Lustiger). - A TV brasileira. - Teresa de Los Andes. - O
itinerario de urna conversao. — Cientologia.

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA


4SSINATURA ANUAL 112 núimroil CrS 500.000,00 • n? avulto ou atrasado Cr* 50.000,00
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favorecido" e onde consta "Cod. da Ag. e o N? da C/C." anotar: 0229 -
02011469-5.

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Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, enviando a seguir xerox da guia
de depósito para nosso controle.

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Sendo novo Assinante, é favor enviar carta com nome e endereco legi'veis.
Sendo renovacao, anotar no VP nome e endereco em que está recebendo
a Revista.
'A ALMA VIAJORA DO TEU BARCO...

Há breves dizeres que podem tongamente ¡mpressionar os leitores,


deixando-lhes margem para proficua reflexSo. Entre outros, vao aquí
transcritos alguns versos de D. Hélder Cámara:
"Quando teu navio, ancorado muito tempo no porto, te deixar a im-
pressáo engañosa de ser urna casa,
Quando teu navio comecar a criar rafees na estagnaclo do cais, faze-
te ao largo.
é preciso salvar a qualquer preco a alma viajora de teu barco e tua al
ma de PEREGRINO".
Estas frases sao ricas em sugestSes:
Antes do mais, vém a ser urna alerta contra a natural tendencia á aco-
modacao que ameaca todo ser humano..., e ameca aos poucos, insensivel-
mente. De um navio pode-se fazer urna casa, e ... urna casa com sólidos
fundamentos, "lampando raizes" no seu solo. É, sem dúvida, mais atraente
a nocao de estabilidade que propicia repouso, do que a de sdfrega deman
da de algo que nos falta e nos deixa ansiosos. Todavía, para quem é pere
grino, a estabilidade é estagnacao e foote de morbidez e putrefacao.
O cristao, já por ser humano, isto é, dotado de capacidade de Infinito,
e, mais, por ser elevado á comunhao com o próprio Deus pela graca santifi
cante (cf. 2Pd 1,4), é essencialmente faminto e sedento de algo melhor do
que os bens que esta vida proporciona; estes nao raro sao bolhas de sabio,
coloridas por fora, mas vazias por dentro. Seduzem, e enganam..., enga-
nam no tocante ao essencial ou ao sentido da vida. Quem se deixa iludir
por eles, é comparável a um viandante que, olhando para a direita e a es-
querda, é atraido pelas flores e os pássaros e acaba esquecendo a meta para
a qual ele se propós tender.
Já o Senhor Jesús notava que "os filhos das trevas sao mais prudentes
(sabios) do que os filhos de luz" (cf. Le 16, 8b). Parecemter mais afinco
em prol do mal do que os bons em prol do bem. Esta verificacao em nos-
sos dias é tanto mais pungente quanto mais se verifica a enorme necessida-
de de sacudir qualquer tipo de covardia indolente em beneficio de urna
presenca crista mais atuante e coerente. O apelo vem do Senhor Jesús, vem
da Igreja de Cristo confiada a Pedro, vem do próprio mundo aparentemen
te ateu, mas incrivelmente sensível ao testemunho sincero e abnegado dos
filhos de Deus.

E.B.

289
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
ANO XXXIV - N9 374 - Julho de 1993

Um Paradoxo de nossos días:

AASTROLOGIA
CONSIDERADA A LUZ DA CIENCIA

Em síntese: A Astrologia está sempre em voga, apesar de ¡é ter sido


desmentida freqüentemente pela experiencia de seus própríos usuarios, fs-
to se explica porque no íntimo do homem moderno mesmo fíca muitas ve-
zes, de modo inconsciente, um resquicio de mentafidade mágica, animista,
primitiva; esta se reveste, através dos tempos, de roupagem aparentemente
científica e seria, mas nao deixade ser sempre urna heranca do primitivis
mo de sáculos muito recuados. É o que demonstra, ñas páginas subseqüen-
tes, o Prof. Dr. Fernando de Mello Gomide, até recente data docente do
ITA de Sao José dos Campos (SP) e atualmente pesquisador do Instituto
de Ciencias Exatas e Naturais da Universidade Católica de Petrópolis (RJ).

O artigo traduz bem a índole científica e criteriosa do seu autor, que


usa de finguagem veemente na tentativa de evidenciar como é paradoxal
recorrer á Astrologia em nossa era de ciencias e tecnología avancadas. 0
leitor saberá aproveitar o muito que de sabio e profundo é dito neste arti
go, sem se impressionar com certas expressoes ditadas pelo calor da ex-
planacao.

Ao Prof. Dr. Fernando de Mello Gomide seja consignada a vivagrati-


dao da Redacao de PR por sua valiosa colaboracao.
* * *

1. ASTROLOGIA: FUNDAMENTAQÁO NO MUNDO ANTIGO


PRÉ-CIENTI'FICO

1.1. Que é a Astrologia?

Parece que a astrologia entra na historia nos tempos das dinastías aca-
dianas da Sumaria,1 a civilizapao mesopotámica que precedeu á assírio-ba-
bildnica. Isso pode ser situado por volta do séc. XX ao XIX a.C. Mas é no

290
ASTROLOGIA Á LUZ DA CIENCIA

declínio da civilizacao babilónica, i. é, no séc. V a.C. que a astrologia ad-


quire forca e entra na Grecia com o sacerdote de Bel, Berosso, no séc. III
a.C. Os filósofos gregos Platao e Aristóteles (séc. V-IV a.C.) teorizam sobre
a influencia dos astros no mundo sublunar, e, como suas idéias exerceram
urna poderosa pressao de prestigio ao longo dos sáculos, nao é de admirar
que filósofos do mais alto gabarito, na civilizacao islámica e na cristandade
medieval, tenham aderido, em grande parte, ás elucubracoes astrológicas.

Mas que é a astrologia? é, como vemos, urna pseudo-ciéncia, ou, para


usar termo do físico teórico americano John Archibald Wheeler, urna cien
cia patológica.3 A dita pseudociéncia professa urna doutrina ambiciosa so
bre urna generalizada e totalitaria influencia do mundo planetario e estelar
sobre nosso planeta, de modo que todos os fenómenos físicos, biológicos,
psicológicos e sociais se encontram na dependencia dos movimentos dos
planetas, do Sol, da Lúa, da abobada estelar, assim como da posicao das
constelares do zodi'aco, dos planetas e também de conjuncoes planeta
rias. Nao só defendem os astrólogos essa universal causalidade astronómica
sobre a Térra, mas também pretendem possuir urna chave para a previ sao
de acontecímentos futuros.

1.2. Quatro axiomas básicos

Analisando as especulacoes e as sistematizacoes filosóficas da astro-


logia no pensamento platónico e aristotélico, podemos descobrir quatro
axiomas fundamentáis dessa pseudociéncia:

1) A materia celeste é incorruptível e imutável, essencialmente dife


rente da materia terrestre (sublunar), que é corruptível e mutável.

2) Principio de hierarquia: tudo no mundo sublunar depende da ma


teria celeste. Todos os processos e movimentos na Térra sao causados pe
los corpos celestes.

3) Principio da causalidade motora de Aristóteles: todo corpo só se


move localmente se atuado por outro corpo (o motor) e o movimento só
existe enquanto dura a acao do motor.3

4) Todo o universo astronómico obedece a urna rigorosa periodicida-


de. Este é o axioma do tempo cíclico do paganismo, tao bem formulado
por Platao4.
A d¡st¡ncá*o entre as duas materias (a celeste e a terrestre) tem sua orí-
gem ñas religiSes pagas, marcadas por um essencial imanentismo do divino
na ordem material. Pois, ou os corpos celestes eram encarados como deu-
ses, ou o mundo astronómico era considerado como habitáculo de deus e
semi-deuses. Conseqüentemente a materia celeste deveria ter urna consis-

291
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

téncia especial, i.é, nao poderla ser mutável ou corruptível, á semelhanca


da materia sublunar. Aristóteles chega a dizer que a materia celeste é divi
na e sua substancia consiste num quinto elemento, a quinta esséncia, o
éter i mutável.5 O mundo terrestre é palco da corrupcao e da morte, ao
passo que o mundo dos deuses é perene, incorruptível, sujeito a um tempo
cíclico sem comeco e sem fim6. Vé-se muito bem estabelecida essa dis-
tincao no séc. VI a.C. na escola pitagórica; sua justificacao está em que o
universo astronómico é considerado como o Olimpo do Panteón grego.
Em larga medida, podemos dizer que as religi5es pagas sao siderais. Dessa
superioridade divina do mundo astronómico decorre a inexorável depen
dencia dos acontecimentos terrestres em relacSo aos acontecimentos as-
trais: o mundo dos deuses, mundo dos imortais, domina os acontecimen
tos da humanidade mortal. Toda a astrologia depende do primeiro axioma.
Negar essa distinpSo é derrubar todo o edificio astrológico. No séc. XVII,
Sir Isaac Newton, com sua teoria da gravitacao, fez implodir este secular
erro ontológico. A Fi'sica e a Astronomía newton ¡anas fizeram da materia
celeste e da materia terrestre urna coisa só. A pretensao, dos astrólogos, de
que a astrologia é urna ciencia, foi derrubada de um só golpe com o nasci-
mento da Física e da Astronomía newton ¡anas no secuto XVII. A ciencia
moderna é radicalmente infensa as especulacoes astrológicas. A incompati-
bilidade entre a Astronomía e a Física, de um lado, e a astrologia, de ou-
tro, é simplesmente total. Quem hoje acredita em horóscopos e elucubra
res astrológicas, é um ignorante vivendo antes do séc. XVII, ou um char-
latao que vive ás custas desse tipo de individuo ignorante, crédulo e re
trógrado.

1.3. Uso da Matemática?

Quais sao as leis da astrologia? Os astrólogos reivindicam o status de


ciencia para esse corpo de idéias. Mas que é ciencia? Nos sabemos que a
ciencia é um corpo de idéias dedutivo com base em principios necessários;
sua estrutura dedutiva permite a inferencia lógica de leis verificáveis expe
rimentalmente. Os principios básicos de urna teoria científica, antes da
confirmacao experimental, sao as hipóteses criadas pela (porassim dizer),
adivinhacao do pesquisador. É na adivinhacSo de hipóteses, a qual nao
obedece a algum método pré-estabelecido, que reside a operacao mais im
portante da pesquisa científica. Nessa operacao é que se revela a inteligen
cia do dentista. Urna disciplina científica deve ter axiomas ou principios
básicos e leis experimentalmente verificaveis, deduzidas a partir daqueles
principios. Isto acontece com a astrologia?

Vimos os quatro axiomas básicos da astrologia. Suponhamos que se-


jam válidos e esquepamos a ambicao, dos astrólogos, de poder prever acon
tecimentos psicológicos e sociais. Como tem.os a ver com causalidade de

292
ASTROLOGIA A LUZ DA CIENCIA

realidades materiais, a matematizacao se faz necessária para haver previsi-


bilidade, via deducao causal, a partir dos axiomas. Como o nexo causal
entre astros e Térra tem um caráter totalitario, pois toda a Física e Quí
mica da Térra estaría determinada pelo universo astronómico, a matema
tizacao teria de ser muito mais vasta e complexa do que a de qualquer teo
ría físico-matemática moderna.

Quais sao as teorías físico-matemáticas da astrologia? Os astrólogos


nada nos ensinam sobre isso; dao sempre testemunho de nada saberem de
matemática e nao pertencerem a algum Departamento de Matemática ou
de Física de Universidade. Eles constituem urna classe alheia á común ida-
de científica. Portanto inexiste ciencia astrológica.

2. SAGRADA ESCRITURA E TRADIQÁO

2.1. A Escritura Sagrada

O prime i ro axioma da astrologia, o da dife renga essencial entre a ma


teria celeste imutável e a materia terrestre perecfvel, é ignorado na Biblia e
negado num dos salmos. O salmo 101, vs. 26-28 diz:

"Outrora fundastes a Térra, e os céus sao obra de vossas maos. Nao


obstante, vao deperecendo e vos permanecéis; desgastam-se todos eles co
mo urna veste, como roupa os mudáis e mudados ficam; mas vos sois sem
pre o mesmo e vossos anos nao terao fim".

Como vemos, a Sagrada Escritura encontra eco ñas disciplinas moder


nas da cosmología, astrofísica e astronomía, que falam eloqüentemente da
mutabilidade no dominio das galaxias, das estrelas, dos planetas, das nebu
losas, enfim, de todo o universo. A astrologia, com seu postulado da dife-
renca entre materia celeste imutável e materia terrestre, está inteiramente
fora de contexto da Sagrada Escritura. Nesta, ambas as materias sao cor-
ruptíveis.

Há urna passagem no Génesis, que, nao negando explícitamente qual


quer influencia dos corpos celestes na vida humana, contudo relaciona o
Sol, a Lúa, os corpos celestes com a ordem humana, apenas na linha de se-
rem sinais para a cronología e para a iluminacao:

"Ha/a luzeiros na abobada do céu para distinguir o día da noite, e sir-


vam eles para sinais e marquem as estacoes, os días e os anos; e brílhem na
abobada do céu para projetar luz sobre a Térra". "Portanto Deus fez os
grandes luzeiros: o luzeiro maiorpara dominar odiaeo luzeiro menor pa
ra a noite e as estrelas; e colocou-os na abobada dos céus para que luzis-

293
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

se/77 sobre a Térra, e para que presidissem ao día e á noite, e separassem a


luz das trevas" (Gn 1, 14-18).

Contra a pretensao dos astrólogos de conhecerem as influencias pla


netarias e estelares sobre a Térra, diz o livro de Jó:

"Conheces as feis dos céus e darás razao da sua influencia sobre a


Térra?" (38, 33).

Com respeito a fenómenos astronómicos como passagens de cometas,


conjuncoes planetarias, etc., diz o profeta Jeremías:

"Nao imitéis o procedimento dos pagaos; nem receeis os sinais celes


tes como os temem os pagaos. Pois as leis desses povos sao apenas coisas
vas" (10,2).

Parece claro que presságios astrológicos sao rejeitados pela Biblia, e


as leis que envolvem tais sondagens, sao obra da gentilidade, obra de vacui-
dade. E que nos diz o profeta Isaías? Eis suas palavras irónicas para o reí
da Babilonia:

"Esbanjaste teus esforcos entre tantos conselheiros. Que eles entao se


levantem e te salvem, aqueles que preparam o mapa do céu e observam os
astros, que comunicam cada mes como ¡rao as coisas" (47, 13).

2.2. A Patrística*

Os Padres da Igreja, do séc. II ao séc. VIII, na sua confutacao do pen-


samento gentílico, sao unánimes em rejeitar a astrologia; esta é visualizada
segundo o espirito da Sagrada Escritura:

1) Taciano (séc. II) — Relaciona a astrologia com a religiao sideral.


Considerando-se que os ídolos dos gentios, conforme a Sagrada Escritura,
sao demonios, Taciano afirma que os demonios estao ligados aos corpos
celestes e que exercem urna conduta irracional sobre a Térra. Os pecadores
estao sujeitos á acao desses demonios; daí seus Horóscopos7..

2) Tertuliano (t após 220) — Diz que a astrologia tende á idolatría,


sendo ¡nvencao dos demonios*.

3) S. Gregorio Nazianzeno (t 390) — Diz que a astrologia é perigosa


para muitos e condena os horóscopos9.

* Patrística é a doutrina dos Padres da Igreja, autores que nos oito primei-
ros sécu/os contribuiram brilhantemente para a correta formulacSo de
grandes verdades da fé. Gozam de especial autoridade na Teología. (Nota
do Editor).

294
ASTROLOGIA A LUZ DA CIENCIA

4) S. Cirilo de Jerusalém (+386): "Nos nao vivemos segundo os ho


róscopos e a conjuncao dos astros, como os astrólogos delirantemente
acreditam". "Nao devemos dar crédito aos astrólogos, pois deles disse a
Sagrada Escritura... Is 47.1310. I

5) S. Gregorio de Nissa (t394) - Oefende o livre arbitrio contra o fa


talismo astrológico. Reduz ao absurdo a idéia de que a posicao das estrelas
no nascimento determina o destino dos homens11.

6) S. Joao Crisóstomo (t 407) - As profecías dos astrólogos sao pro-


duto do demonio. Argumenta contra aqueles que acham as previsoes astro
lógicas bem sucedidas nos seguintes termos: quem abandona a fé e se en
trega aos astrólogos, leva os demonios a dispor dos fatos a fim de que
acontecam para o agrado dessas pessoas. Diz aínda que a astrologia é urna
doutrina perversa12.

7) Sto. Agostinho (+430) - Diz que se libertou dos grilhdes da astro-


logia após sua conversao. Propoe argumentos contra os horóscopos tirados
das experiencias de amigos e cita o caso dos gémeos Esaú e Jaco (Gn 25,
19-28), que nasceram sob mesmas condicoes planetarias e tiveram historias
radicalmente diferentes13.

8) S. Joao Damasceno (t 749) - Ao abordar a passagem do Génesis


que trata dos astros como sinais, nega que esses sinais possam ser conside
rados como causas dos acontecimentos sublunares. Nega, portanto, o
principio de causalidade astrológico.

3. O FIM E A PARADOXAL PERSISTENCIA DA ASTROLOGIA

3.1.0 Fim da Astrologia

No inicio deste trabalho, indaguei sobre as ieisda astrologia. Contes-


tei a pretensao daqueles que querem ver na astrologia urna ciencia, por
que Ihe faltam as condicoes que determinam a especificidade de uma cien
cia. Essas condicoes sao sobretudo as leis deduzidas dos axiomas funda
mentáis e que podem ser verificadas experimental mente. Mas essas leis
devem abranger os nexos causáis, e, como temos a ver com a ordem mate
rial, esses nexos causáis devem ser formalizados matemáticamente. Ora
isto os astrólogos nao o exibem. E por qué? Porque nao o podem. E nao o
podem, pois nao sabem o porqué da natureza desses nexos causáis imagi
nados entre os astros e os acontecimentos sublunares, ignorando assim sua
formalizacao matemática. Vejamos.

Qual a relacao matemática entre uma conjuncao de planetas, vg., Jú


piter-Saturno e o nascimento de Joaozinho no dia 5 de outubro? Os anti-

295
8 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

gos pagaos pensavam que era no nascimento que comecava a evolucá*o de


um ente humano. Mas hoje sabemos que a m'orfogénese do individuo é de
terminada no momento da concepcao, quando se constitui seu código ge
nético inserido em cadeias moleculares, o célebre DNA. Nessas cadeias mo
leculares estío contidas todas as ¡nformacoes biológicas que levaráo o indi
viduo a ser, digamos, louro com tendencias a introspectivo ou nao, etc. No
momento da sua concepcao, Johan Christian Bach recebeu os fato res here
ditarios de seu pai Johan Sebastian, que o levariam a ser um grande com
positor. Foi na concepcao que Johan Christian recebeu o poder para ser
músico e nao no nascimento. Por conseguinte, se existe acao astral, ela
deve ser efetiva no instante da concepcao, e nao no do nascimento. Os as
trólogos continuam a operar como se estivessem na Babilonia. Todavia,
para se atualizarem, consideram a acao dos astros como sendo do tipo gra-
vitacional ou magnético. Bem; como disse antes, se existe apio astral, ela
deve-se verificar no instante da concepcao. Ora, os processos moleculares
que constituem o código genético, obedecem aos principios da teoria
quántica. Se a acao astral é do tipo gravitacional, devemos dizer que os as
trólogos sao totalmente ineptos para tirar conclusSes ai. Pois se sabe na
comunidade científica que ainda nao existe uma teoria física que associe a
teoria quántica com a teoria da gravitacao. Suponhamos agora que a apio
seja magnética. O fator "distancia" deve ser considerado, pois o campo
magnético produzido, digamos por Júpiter, devido á distancia, é muito in
ferior ao campo magnético da Térra. Isto quer dizer: se é o campo magné
tico que influencia a concepcao de Joaozinho, entao esse campo tem de
ser o do nosso planeta e nao o de Júpiter, que aqui tem um valor muito in
ferior ao do campo magnético terrestre.

Falei no fator "distancia". Isto se aplica também ao campo gravita


cional. A influencia das estrelas que estío a anos-luz distantes do sistema
solar, é insignificante, se comparada á influencia do campo gravitacional
produzida pela massa do pai de Joaozinho, próxima do óvulo fecundado,
mesmo alguns metros distante. Com respeito aos planetas com distancia de
minutos-luz ou horas-luz da Térra, os cálculos mostram que os campos gra-
vitacionais planetarios mais significantes sao os de Júpiter (por causa da sua
massa 320 vezes a massa da Térra) e Venus (por ser o planeta mais próxi
mo). Fazendo-se os cálculos numéricos para a maior aproximacao desses
planetas em relacao ao nosso, se chega á conclusao de que seus campos
gravitacionais aqui na Térra seriam da ordem de grandeza do campo gravi
tacional produzido pelo pai de Joaozinho a centímetros do zigoto do futu
ro herdeiro. Os campos gravitacionais dos outros planetas seriam bem mais
fracos que o do pai de Joaozinho. E o das estrelas a anos-luz distantes se
ria totalmente insignificante. Conseqüentemente os astrólogos deveriam
fazer horóscopos su bstitu indo os planetas e estrelas pelos corpos do pai,
da cama, da mesinha de cabeceira, da massa de concreto da laje do quarto,

296
ASTROLOGIA Á LUZ DA CIENCIA

etc. Os campos gravitacionais desses objetos, de si com valor numérico


muito baixos, sao muitíssimo superiores aos campos gravitacionais locáis
produzidos pelos muito distantes planetas e incrivelmente distantes estre-
las. Como vemos, os astrólogos, ao insistirem na influenciados astros, estío
vivendo antes do sáculo XVII, quando nao havia o mínimo conhecimento
das distancias planetarias estelares. Os astrólogos, se quisessem ser um pou-
co mais científicos, teriam de conhecer o instante da concepcao de Bel-
droegas, o quarto em que seu óvulo foi fecundado, a distribuicao de mas-
sas perto do óvulo, tais como a massa das pessoas, dos objetos caseicos,
das paredes, da I aje, das vigas, etc. Os horóscopos deixariam de ser celestes
para ser terrestres. Como terrestres, e muito terrestres, seriam as explica-
coes para o futuro enriquecimento do Dr. Beldroegas em sua "carreira"
política. Assim, pois, nao pode haver leis da astrologia, ou seja: nao existe
ciencia astrológica. Esta nao passa de fabulosa impostura de homens
alheios á comunidade científica, obra de mestres em fraude e mistificapao.

3.2. Paradoxal Persistencia

Apesar de todas as demonstracoes científicas em contrario, verifica


se que a sociedade contemporánea continua a procurar assiduamente os
arautos da astrologia. Por qué? Quero aqui emitir urna reflexao:

"0 número de náscios é infinito", diz o Eclesiastes (1,15 —Vg). Isto


significa que as pessoas de bom senso serao sempre minoritarias. Portante
nao nos surpreendemos se em nossos dias, apesar dos progressos da ciencia
e da tecnología, o povoem sua maioria é propenso a acreditar em charla-
taes. 0 físico americano Wheeler se lamentava de existir nos Estados Uni
dos apenas dois mil astrónomos contra vinte mil astrólogos.

Na última e deprimente campanha eleitoral para a presidencia desta


República, vimos como varios dos muitos candidatos andaram consultan
do gurús e videntes. Há pouco tempo, a imprensa noticiou declaracoes de
pessoa da área govemamental, no sentido de ter feito oferendas a ídolo de
seita africana. Nao só em "república de opereta" a crendice entre políticos
aparece. Há alguns anos, a imprensa noticiou que na Casa Branca sen/icos de
astrólogos eram solicitados. Na "Nomenklatura" soviética os poderosos do
Kremlin também apelavam para gurús e sensitivos da adivinhacao.*

* A respeito do contraste de nossa época, em que a astrologia e sofucoes


mágicas pululan) num contexto de cientificismo dito "ateu", escreve o Pe.
Paul-Eugéne Charbonneau:
"0 homem, pretendiendo ser totalmente autónomo e, poressa razao,
negando qualquer vínculo com o Absoluto, acaba por se precipitar em cu/-

297
10 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

4. CONCLUSÁO

Nesta análise histórico-crítica procurei evidenciar a origem dos postu


lados fundamentáis da astrologia situados ñas religioes gentílicas e no pen-
samento filosófico de homens como Platao e Aristóteles. O imanentismo
do divino no mundo astronómico e as falsas Física e Astronomía de Pla
tao, máxime de Aristóteles, infestaram o pensamento das ciencias naturais
ao longo dos sáculos. Mostrei que, com base nesses postulados, nao pode
existir urna ciencia da astrologia, o que significa a impossibilidade de ver-
dadeiras previsoes astrológicas. 0 fato histórico da contestado da Física
aristotélica e as críticas lúcidas de Nicolau de Oresme, no sáculo XIV, en-
fraqueceram no meio universitario o prestigio dos astrólogos, sendo que a
Revolucao Científica do séc. XVII desferiu um golpe mortal na astrologia:
deu-se a queda definitiva do primeiro postulado, o da distincao entre ma
teria terrestre e materia celeste, gracas á teoría da gravitacao e á Física de
Newton. Mostrei como a Astronomía, a Física e a Biología tornam impos-
síveis e absurdos os horóscopos.

A astrologia subsiste até hoje por razoes moráis e psicológicas. Os ar


gumentos científicos e de bom senso contra a astrologia sao abundantes, e,
nao obstante, a astrología tem exercido um fascínio ¡nacredítável sobre
poderosos e multidoes. Quero aqui apresentar fatos recentes contestadores
das reivindicacoes dos astrólogos.

continuacao da pág. 9

tos substitutivos que o mais desenfreado dos espirites supersticiosos enco


raja, provoca, promove e defende. Quando Garaudy afirma que nao é
o ateísmo que caracteriza nossa época, mas antes a supersticao, tem toda a
razio. A prova disso está no pulular infra-racional dos ocultismos, das pa
rapsicologías, das astro/ogias, dos espiritismos, dos cultos mistagógicos,
etc. Tantas panacéias que pretendem salvar o homem do absurdo. Este é
tao virulento, ameaca tao profundamente o ser humano que contra ele
todos os recursos parecem ser bons" (O Homem á Procura de Deus, Ed.
Loyola 1984, pp. 248s).

A nota 109 da mesma página observa: "Um duplo fenómeno mana a


nossa civilizacao, sobretudo nestes últimos anos: o renascimento do misti
cismo religioso e o renascimento das ciencias ocultas. Existe indubitavef-
mente o que Edgar Morin, após muitos outros, assinala como urna persis
tencia e ressurgéncia, porexemplo, da astrologia".
Estas observacoes poem em foco o problema: o homem que perdeu
a fé em Deus, cria inconscientemente seus deuses, nos quais deposita a
sua fé. (Nota do Editor).

298
ASTROLOGIA Á LUZ DA CIENCIA U.

Andrew Fraknoi, da "Astronomical Society of the Pacific",14 nos re


lata investigares estatfsticas realizadas nestes últimos anos, que negam
a existencia de nexos causáis entre os astros e os fatos humanos. Vejamos
algumas:

Os astrólogos afirmam, com base nos signos astrológicos, que podem


prever a compatibilidade ou a incompatibilidade entre pessoas. O psicólo
go Bernard Silverman, da Universidade do Estado de Michigan, analisou
as datas de nascimento de 2.978 casáis em vias de casamento e outros
478 a caminho do divorcio. Ele comparou as predicoes astrológicas com
os dados reais e nao achou conf¡rmacSo.

O físico John McGervey, da "Case Western Reserve University",


analisou aniversarios e biografías de 6.000 políticos e 17.000 dentistas,
a fim de ver se estas profissoes se agrupavam em torno de certos signos,
conforme as predicSes dos astrólogos. McGervey verificou que ambos os
grupos se distribuiam em torno dos signos, de modo completamente
aleatorio.

O estatístico francés Michel Gauquelin enviou o horóscopo de um


dos piores assassinos da Franca a 150 pessoas, perguntando como elas se
encaixavam no dito horóscopo, nao revelando obviamente a origem do
mesmo. Resultado: 94% das pessoas se reconheciam ai descritas.

Os astrónomos Roger Culver e* Philip lanna analisaram 3.000 predi-


c5es astrológicas publicadas por conhecidos astrólogos e organizacoes
astrológicas durante cinco anos. Essas predicoes se referiam a persona-
gens famosos, como artistas de cinema e políticos. Os astrónomos verifi-
caram que apenas 10% das previsoes podiam ser aceitas. Tal resultado po
día ser obtido por mero palpite de bom senso. Se 90% das predicóes astro
lógicas nao se realizam, isto é sinal evidente de que tais predicóes nao obe-
decem a alguma lei de causa-efeito.

Os fatos estatístícos analísados nestes últimos anos confirmam a ana-


lise teórica que aprésente i: nao existem leis da astrologia; nao existe urna
teoría lógico-causal que possa fazer da astrologia urna ciencia e, por isso,
suas previsoes sao pura mistificacao.

REFERENCIAS

1. Rene Labat. La Másopotamie, ¡n Histoire Genérale des Sciences. Pres-


ses Universitaires de France. Vol. I. 1956.

2. J.A. Wheeler. O laboratorio contra a fraude e a mistificacao. O Estado


de Sao Paulo, 29-7-1979.

299
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

3. Aristóteles. Física. LVII. 1,241b;2,243a.

4. Platao. As Leis, Vil, 822; Timeu,37.

5. Aristóteles. Tratado do Céu, /, 9; I, 10; II, 1; II, 7.

6. Aristóteles. Metafísica, Livro Teta.

7. Taciano. Discurso contra os Gregos.

8. Tertuliano. Da Idolatría, IX.

9. S. Gregorio Nazianzeno. Em Louvordo Irmao Cesário.

10. S. Cirilo de Jerusalém. Sobre a Penitencia.

71. Johannes Quasten. tbid.

12. S. Joao Crisóstomo. Homilía 75 sobre o Evangelho de Sao Mateus.

13. Sto. Agostinho. Confissoes, L. Vil

14. Andrew Franknoi. Your Astrology Defense Kit. Sky and Telescope,
78, 146(1989).

* * *

QUANDO TUDO FALTA E É GRANDE DEMAIS A AGONÍA,


ENTRA NA IGREJA, QUIETINHA, E CONTEMPLA A MAE DE
DEUS, MARÍA. SEJA O QUE FOR QUE SOFRAMOS, SEJAM QUAIS
SOFREM NOSSOS AIS, SEMPRE QUE OS FILHOS SOFREM, A MAE
AÍNDA SOFREMAIS.
OLHA AQUELA QUE ESTA ALI, SEM QUEIXA E SEM ESPERAN-
CA. ESPERANDO. COMO POBRE QUE ENCONTRA OUTRO MAIS
POBRE,
E FICAM CALADOS A SE OLHAR MUTUAMENTE...

(Paúl Claudel)

300
Ciencia e Ética dialogam:

PESSOA: COMO IDENTIFICA-LA?

Em síntese: Há quem identifique a pessoa humana com as atividades


do raciocinio, da consciéncia de si e da ordem ética. Em conseqüéncia
nem todo ser humano seria pessoa, pois há quem, dentro da especie huma
na, se mostré inconsciente e incapaz de raciocinar (fetos, criancinhas, men-
tecaptos, moribundos); de outro lado, dizem, há animáis nao humanos
(chimpanzés, gorilas...) que emitem linguagem e parecem raciocinar. Tais
animáis hao de ser tidos como pessoas. Opróprio computador parece me
recer o status de pessoa por sua "inteligencia automática".

Tais teorías sao falsas, porque reduzem as pessoas aos fenómenos ou


ás suas atividades sensiveis. Deve-se levar em conta, porém, que tais ativi
dades hao de ter um sujeito ou um suporte permanente que seja o princi
pio das mesmas. Sem esse suporte nao seriam expressoes de um su/eito úni
co e uno.

Portanto o que faz a pessoa é o principio da racionalidade, da auto-


consciéncia, do senso moral ou, com outras palavras, a alma humana (espi
ritual); esta, unida ao corpo, produz um su/eito psicossomático que se
chama homem. O ser humano norma/mente manifestase como individuo
racional e autoconsciente, mas, mesmo quando nao se exprime assim, é
pessoa. Há, pois, sinonimia entre ser humano epessoa. Quanto aos animáis
antropomórficos, podem usar a linguagem dos surdo-mudos porque, guia
dos pelos instintos, sSo suscetfveis de certa aprendizagem mecánica; esses
. animáis, porém, nao raciocinam, nSo sao capazes de corrigir falhas de suas
operacoes instintivas nem de se rever e atualizar, progredindo no seu modo
de viver.

* * *

A nocao de pessoa e suas características está hoje muito em foco,


pois geralmente se reconhece que toda pessoa goza de dignidade e direitos,
merecendo ser respeitada. Este principio, porém, suscita a questao: mas,
afinal, quem é pessoa? Como identificar a pessoa? Classicamente se diz
que é pessoa todo ser humano, e somente o ser humano. Atualmente, po-

301
14 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

rém, há autores que afirmam que nem todos os seres humanos sao pessoas
e, vice-versa, varios seres nao-humanos safo pessoas.

É a esta problemática que se dedica rao as páginas seguintes, conside


rando: 1) as novas teorías; 2) a análise crítica das mesmas; 3) embriao hu
mano, pessoa e personalidade.

1. NOVAS TEORÍAS

Principalmente dois autores propoem as novas concepcoes, que passa-


mos a examinar:

1.1. O pensamento de H.T. Engelhardt

Para este autor, nao todos os seres humanos sao pessoas. Os fetos, as
enancas, os gravemente retardados mentáis e os individuos humanos em
coma e desengañados sao exemplos de seres humanos que nao sao pessoas.
Tais individuos podem ser tidos como membros da especie humana, mas
nao participam da vida ética (The Foundations of Bioethics. Oxford Uni-
versity Press, New York 1986; em traducSo italiana Manuale de Bioética,
II Saggiatore, Milano 1991, p. 126s). Doutro lado, certos sujeitos nao-hu
manos como os robos, que no futuro poderao ter inteligencia artificial e
consciéncia, podem ser tidos como pessoas, como sao pessoas algumas es
pecies de animáis (macacos antropomorfos e outros), sujeitos de direitos
civis.

Na base destas afirmacoes, está um principio filosófico: deve ser con


siderado pessoa quem mostra empíricamente possuir as características de
urna pessoa. Para H.T. Engelhardt tais características sao tres: a autocons-
ciencia, a racionalidade o senso moral (ao menos, em grau mínimo). Tais
características devem exercer-se ou devem ser averiguadas. Por conseguin-
te, se um ser humano nao dá demonstracSes de racionalidade e autocons--
ciencia, nao é pessoa. Donde se segué que nao sao pessoas os embrides, os
fetos, as enancas, os retardados mentáis, os andaos decrépitos e os doen-
tes em coma irreversível.

Disto se segué que tais individuos nao tém os direitos á inviolabiJida-


de e ao respe ito que tocam a urna pessoa Com certa benevolencia conside-
rem-se as criancas sadias, que, embora inconscientes, estao em via de se
tomar conscientes e pessoas, ao passo que urna crianca deficiente que nao
se poderá comportar de modo racional e consciente, nao tem direito á
vida.

302
. PESSOA: COMO IDENTIFICÁ-LA? 15

O criterio para tratar os seres humanos nao-pessoas é a utilidade que


podem ter para a sociedade. É, pois, a sociedade que decide se tais indivi
duos devem ou nao viver. No caso dos fetos e das enancas, sao os genitores
que avaliam se eles tém ou nao tém valor; nao raro sao estimados como fi-
Ihos e, por isto, os pais Ihes concedem o direiio de viver; podem, porém,
os genitores julgar que a existencia de um filho mongolóide é muito mais
trabalhosa do que compensadora; por isto é-lhes facultado tirar a vida des-
se filho.

Paralelamente a sociedade é quem avalia se há vantagem ou nao em


deixar viver os seres humanos deficientes, tendo em vista especialmente os
encargos sociais e económicos que a subsistencia desses individuos impor
ta; se é posto em xeque o bem-estar da sociedade, nao há por que entreter
a vida desses seres. Cf. H.T. Engelhardt, Manuale di Bioética pp. 138-140

A tal modo de pensar pode-se opor a objecao: privilegiam-se alguns


individuos - as pessoas - com detrimento dos outros. - Engelhardt res
ponde que nao há como evitar esta conclusSo, pois as pessoas sao os úni
cos seres capazes de refletir sobre o mundo e de dizer que coisas tém valor
e quais as que nao o tém, ao passo que as nao-pessoas nao tém capacidade
de definir o que seja o bem e o que melhor Ihes convém (ob. cit., pp.
128-130).

Praticamente, segundo Engelhardt, tornam-se lícitas operacoes ge ral-


mente tidas como ¡moráis: o uso de embrides para experimentacao médi
ca, o aborto, a eliminacao dos bebés deficientes, a fecundacao artificial em
todas as suas modalidades, a eutanasia ativa e passiva, o aproveitamento de
adultos mentalmente doentes para experimentacao clínica sem o consenti-
mento dos mesmos.

1.2. As idéias de P. Singer

No seu volume "Etica Pratica" (Ed. Liguori, Ñapóles 1989), P. Singer


define a pessoa como o ser que possui em alto grau os síntomas "indicati
vos de humanidade": consciéncia de si mesmo, autocontrole, senso do fu
turo, senso do passado, capacidade de relacionar-se, atencao aos outros,
común ¡cacao, curiosidade... Estes indicios podem reduzirse a dois: racio
nal ¡dade e consciéncia de si mesmo. Na base destes criterios, pode ser tido
como pessoa um individuo que nao pertenca a especie humana homo sa
piens, como também alguém dessa mesma especie (se nao manifesta racio-
nalidade e autoconsciéncia) nao é pessoa.

Exemplificando: sao pessoas o chimpanzé, o gorila, a baleia, o delfim,


o porco, o cao, o gato, porque tém linguagem e sao capazes de "pensar";

303
16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

ao contrario, os homens mentalmente retardados nao sao pessoas. Por con


seguí nte, nao se deve crerque a vida dos membros da nossa especie humana
tem mais valor do que a vida dos de outras especies. É mais grave matar
um chimpanzé sadio do que um ser humano marcadamente deficiente; ver
ob. cit. p. 102.

A P. Singer tem sido feita a objecao: os chimpanzés e gorilas nao tém


linguagem para exprimir conceitos. A isto responde o pensador, dizendo
que tais animáis nao podem reproduzir a linguagem humana porque Ihes
falta o aparelho bucal correspondente; podem, porém, aprender a lingua
gem do sinais utilizada pelos surdo-mudos. Escreve Singer:

"A chimpanzé chamada Washoe compreende quase 350 sinais


diferentes e é capaz de usar cornetamente cerca de 150. Combina os sinais
para formar breves frases. No tocante á consciéncia de si mesma, Washoe
nao hesita, ao ver a sua própria imagem no espelho, em responder á per-
gunta 'Quem é?', dizendo: 'Sou eu, Washoe'. Também usa sinais que expri
men) as suas intencoes referentes ao futuro" ^Etica Pratica, p. 99).

Acrescenta Singer que os sussurros e os chiados das baleias e dos del-


fins sao "urna forma sofisticada de comunicarlo, que poderia um dia ser
reconhecida como linguagem" (ibd., p. 100).

A estes argumentos voltaremos quando tracarmos a crítica da teoría


de Singer.

Disto se seguem as conclusSes já apregoadas por Engelhardt: sao líci


tos o infanticidio, o aborto, a eliminacao dos bebés defeituosos e dos men-
tecaptos irreversíveis:

"Visto que o feto nao é umapessoa, nenhum feto pode ter pretensao
á vida de urna pessoa. Ademáis, é muito improvável que fetos de menos de
18 semanas sejam capazes de sentir algo, dado o insuficiente desenvolvi-
mento do seu sistema nervoso. Em conseqüéncia um aborto nesse perío
do de tempo interrompe urna existencia destituida de valor intrínseco"
(ob. cit, p. 122).

Na base do pensamento de Engelhardt e Singer acham-se utilitarismo


e hedonismo: o valor máximo da vida consiste em levar ao auge o pra
zer e reduzir ao mínimo a dor. A vida vale a pena de ser vivida na medida
em que o vívente senté o prazer. Por isto urna vida incapaz de sentir prazer
nao tem valor e nao merece consideracao. Se tal vida provoca dor ao sujei-
to ou a outros, é justo suprimi-la; justo, portanto, matar todas as enancas
que sejam causa de sofrimento para os seus genitores (cf. ob. cit., p. 135).

304
PESSOA: COMO IDENTIFICA-LA? 17

Exposto sumariamente o pensamento de Engelhardt e Singer, procu


remos avaliá-lo.

2. QUE DIZER?

As conseqüéncias a que levam os principios dos dois autores citados,


podem causar espanto: o robó merecería o status de pessoa, ao passo que o
ser humano deficiente mental em estado grave e a crianca onerosa para seus
pais nao o mereceriam.

Poderia isso estar certo?

— Usando da razao (sem recurso á fé), dizemos que nao.

— E por que nao?

— O erro consiste em definir a pessoa pelos seus atos (pelas suas ex-
pressoes ou os síntomas), em vez de a definir pelo substrato subjacente a
esses atos (substrato que torna possíveis tais atos). Com efeito, a conscién-
cia de si próprio e a racionalidade estao fundadas sobre algo de permanen
te, que subsiste mesmo quando os respectivos atos ainda nao ocorrem ou
já ocorrem. Se a pessoa consiste em atos de autoconsciéncia e racionalida
de, dever-se-ia dizer que quem dorme, enquanto dorme, nao é pessoa; o
bébado, que perde a capacidade de raciocinar, nao seria pessoa enquanto
bébado.

Em última análise, a concepcao de Engelhardt e Singer se deriva do


empirismo e do fenomenismo de David Hume (t 1776), segundo o qual o
homem é um leque de percepcoes (ou de atos psicológicos) destituidas de
um fio que garanta a sua contínuidade ou destituidas de um suporte do
qual procedam.

Segundo este principio, Engelhardt e Singer verificam que alguns se


res possuem a consciéncia de si mesmos e outros nSo, mas nao vao além;
nao indagam por que alguns seres humanos mostram-se autoconsc¡entes e
racionáis, enquanto outros nao aparecem como tais. Ficam na observacao
dos fenómenos, e nao procuram a origem ou as causas do que observam.
Para eles, só existe o que aparece, ou o fenómeno acessivel á experiencia
dos sentidos.

Na verdade, porém, a racionalidade e autoconsciéncia süo sinais da


¡dentidade ou da esséncia do individuo; por esses sinais podemos e deve-
mos penetrar até o ámago do ser humano. Com outras palavras: esses

305
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

síntomas ou essas atividades tém um sujeito que as explica e que nao se


identifica simplesmente com as suas atividades. Tal sujeito ou suporte é o
que nos chamamos pessoa.

é tendencia da filosofia contemporánea identificar a pessoa com os


seus atos, como faz, por exemplo, Jean-Paul Sartre: "O homem nao é se-
nao aquilo que ele faz". Em conseqüéncia, muitos querem identificar o
homem com o exercício da sua liberdade ou o da sua autoconsciéncia. —
Ora isto é falso, porque identifica o sujeito com as suas manifestacoes,
quando na verdade pode haver um auténtico sujeito altamente qualificado
sem as manifestacSes correspondentes á sua dignidade.

Se nao se distinguem o principio permanente de atividades e as ativi


dades mesmas, o sujeito se dissolve em seus atos; estes perdem o seu fio
condutor ou o seu principio unificador; em conseqüéncia nao se pode
falar de pessoa.

Prossigamos o nosso racioci'nio: se a pessoa nao é a atividade da auto


consciéncia e da racionalidade, mas é o principio permanente donde fluem
essas atividades, compreendemos que, para que alguém seja pessoa, nao é
necessário que exerca aqui e agora tais atividades, mas basta que tenha a
possibilidade de as exercer. Tal exercício ocorrerá desde que sejam postas
as condicoes para tanto. Geralmente essas condicoes existem, permitindo
á pessoa explicitar suas capacidades de raciocinio e autoconsciéncia. Mas
podem nao existir tais condicoes: é o que acontece no caso das crianci-
nhas, que tém todas as faculdades típicas de uma pessoa, mas aínda em
brionarias ou nao plenamente desenvolvidas; é também o caso dos adultos
que sofrem lesoes do cerebro ou lesoes do organismo que impedem a ple
na manifestacao de sua racionalidade e sua autoconsciéncia. Tais indivi
duos (traumatizados por um desastre automobilístico, uma infeccao, uma
doenca...) conservam seu estatuto de pessoas, na medida em que subsiste
o principio permanente donde fluem as suas atividades típicas coibidas
por agentes extrínsecos.

3. COMO ENTENDER TAL PRINCIPIO PERMANENTE?

Os atos de racionalidade e autoconsciéncia sao atos que ultrapassam


os limites da materia. Com efeito; pelo raciocinio o individuo chega a fór
mulas abstratas un ¡versáis, definicoes de esséncia... Tomando consciéncia
de si mesmo, o individuo reflete sobre o seu próprio seré o seu agir, o que
de novo significa ir além do concreto e material. Donde se segué que
o principio do qual procedem tais atividades imateriais ou espirituais, é
um principio ¡material ou espiritual. A pessoa é, pois, um ser psicossomáti-
co; além da sua corporeidade, possui uma psyché espiritual, que Ihe permi-

306
PESSOA:COMO IDENTIFICÁ-LA? ]9

te realizar seus atos típicos. A pessoa, que é racional, autoconsciente e li-


vre, 6 também aquele sujeito que come, bebe, senté, anda...

4. QUEM É PESSOA?

Na base destas reflexoes, podemos responder á pergunta inicial: quem


é pessoa? - É pessoa todo sujeito que, por sua estrutura ffsica e mental, é
capaz de realizar atos de autoconsciéncia, racional idade e liberdade, mes-
mo que nao efetue tais atos em virtude de algum impedimento alheio á sua
natureza e á sua estrutura.

Mais: dado que a autoconsciéncia, a racionalidade e a liberdade sao


características da especie humana, afirmamos que sao pessoas todos os in
dividuos da especie humana, independentemente das condicóes em que
nesta ou naquela fase de vida se encontrem. Por consegu inte, rejeite-se a dis-
tincao entre seres humanos e pessoas, pois há sinonimia entre estas duas
expressoes.

Faz-se mister, porém, distinguir entre pessoa e personalidade. Pessoa


é a personalidade ainda em formacao, que chegará ao seu pleno desenvolvi-
mento mediante bons hábitos. Personalidade é a pessoa que atingiu ou
quase atingiu a sua plena medida ou estatura íntima. Este termo ideal é di
fícil de ser obtido, mas nao está fora do alcance do ser humano.

Isto quer dizer que o conceito de pessoa é dinámico e nao pode ser
identificado plenamente com este ou aquele segmento de seu desenvol
vimiento.

Quanto ao argumento segundo o qual os animáis antropomórficos


tém a linguagem, ao menos, dos surdo-mudos, deve-se dizer o seguinte:
o chimpanzé e o gorila, tendo urna estrutura cerebral aperfeicoada, pos-
suem urna capacidade de imitar assaz elevada; em conseqüéncia, podem
ser "educados" para realizar funcoes que tém (ou parecem ter) semelhan-
ca com as funcoes propriamente humanas; além disto, sao dotados da
chamada "estimativa natural" (ou faculdade do instinto), mediante a qual
o animal apreende o que é útil e o que é nocivo para si; aprende também
certas artes e as recorda, tornando-se capaz de se orientar dentro do seu
ámbito de vida. Isto explica que possa aprender e utilizar cerros sinais de
comúnicacao. Notemos, alias, que a estimativa ou o instinto é faculdade
altamente aperfeicoada nos animáis irracionais, permitindo-lhes, porexem-
pío, fabricar os favos de mel da abelha, as galerías das formigas, as teias das
aranhas...; todavia é faculdade cega, que nao se dá conta dos porqués do
seu agir, de modo que nunca corrige alguma falha imprevista nem empre-
ende alguma facanha para progredir.

307
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Observemos ainda que os chimpanzés e gorilas, dotados da sua "lin-


guagem", s3o incapazes de exercer atos de inteligencia propriamente dita:
incapazes de prever urna finalidade e adotar os meios adequados, incapazes
de formular definicoes, de usar de liberdade de arbitrio, de autocohtrole e
autodominio; sao determinados a escolher aquilo que o seu instinto pede;
nao sao capazes de autoconsciéncia ou de tomar consciéncia daquilo que
sao e daquilo que fazem.

Somente o homem é apto a fazer progressos, a corrigir e melhorar seu


comportamento; somente o homem possui senso ético ou a consciéncia do
bem e do mal; somente o homem pode escrever sua historia... Os animáis
¡nfra-humanos, como se sabe, comportam-se hoje como há milhares de
anos, sem que déem sinais de avancos técnicos. A razio disto é que Ihes
falta o principio vital (alma) espiritual que caracteriza o homem; por isto
nao se podem abrir a novos horizontes, mas estao fechados nos limites da
materia e do instinto cegó. Daí dizermos que nao sao pessoas, ao passo
que o ser humano, por sua própria constituicap psicossomática, é pessoa.

5. E O EMBRIAO HUMANO?

Em vista da prática do aborto e das experiencias da Engenharia Gené


tica, existe especial interesse em saber se o embriao — e o próprio feto —
humano é pessoa.

Para responder á pergunta, levem-se em conta dois principios:

1) Últimamente os estudos da formacao do zigoto mostram que, logo


após a fecundacao do óvulo pelo espermatozoide, tem inicio um novo sis
tema vital. Este contém, como se fosse a memoria de um computador, um
projeto de ser bem definido com a "¡nformacao" necessária para a gradual
realizacao de tal projeto; nesse novo ser, por menor que seja, se encontra
toda a riqueza morfológica da nova criatura.

2) O exame do desenvolvimento do embriao unicelular manifesta


que, a partir do embriao unicelular, através de etapas sucessivas bem deli
neadas, se chega ao organismo completo. Este desenvolvimento é caracte
rizado por tres propriedades biológicas:

— coordenado: as atividades das moléculas e células guiadas pela in-


formacao contida no zigoto convergem para a produelo de um organismo
uno e único constituido por milhoes de células;

— continuidade: o novo ciclo vital, que comeca com a fecundacao do


óvulo, procede sem interrupcao, desde que as condicSes pré-requisitas se-

308
PESSOA: COMO IDENTIFÍCALA?

jam preenchidas. é sempre o mesmo individuo que vai adquirindo a sua


forma definitiva;

— gradualidade: a formacao do organismo se faz pela passagem de


formas mais simples a formas sempre mais complexas. Esta leí da graduali
dade implica que o embriao, a partir do estado unicelular, mantenha perma
nentemente a sua identidade e individualidade através de todo o processo.

A nova célula humana é, pois, um novo individuo humano que inicia


o seu próprio ciclo vital e, suposto o ambiente adequado, gradualmente se
desenvolve, atualizando suas potencialidades segundo um plano uno e con
tinuo.

Disto se segué que o embriao nao é mera potencialidade capaz de tor-


nar-se um ser humano, como sao o óvulo e o espermatozoide, quando se
parados, mas é um novo individuo vivo, que tem sua identidade em si
mesmo. Nao é urna virtualidade ou urna potencial idade de ser humano,
mas é auténtico ser humano, que se desenvolve segundo um programa in
terno até tornar-se o embriao um homem completamente desenvolvido.

Conseqüentemente, se o embriao jé é um ser humano com sua identi


dade própria, é também urna pessoa humana e merece ser tratado como
tal. Exclua-se qualquer tipo de manipulacao, de experimentacao e de pes
quisa do embriao que tenha finalidades industriáis, farmacéuticas ou mes
mo cientificas. A diferenca entre o embriao e o homem plenamente desen
volvido é a de tamanho, tamanho que supoe o tempo adequado para a
maturacao. O tempo, porém, nao muda a identidade dos seres.

Este artigo vem a ser urna adaptacao do Editorial de La Civiltá Cat-


tolica, 14/12/1992, n? 3420, pp. 547-559, com o título "Chi é persona?
Persona Umana e Bioética".

* * *

CURSOS POR CORRESPONDENCIA

S. Escritura, Iniciacao Teológica, Teología Moral, Historia da Igreja,


Liturgia, sobre Ocultismo, Parábolas e Páginas Dif icéis do Evangelho, Dou-
trina Social da Igreja, Novissimos (Escatologia), Diálogo Ecuménico.

Pedidos de informacoes e encomendas sejam dirigidos á Escola "Ma-


ter Ecclesiae", Caixa Postal 1362,20001-970, Rio (RJ).

309
Abortar ou nao?

A VIDA DA MÁE OU A DO FILHO?

Em síntese: Duas mulheres heroicas na Italia, Gianna Beretta Mofle e


Carla Levati Ardenghi, optaram por nao se tratar de cáncer a fim de nao
pre/udicar a vida da enanca que elas traziam em seu seio; ambas morreram,
vítimas de tal opcao. A opiniao pública tem criticado essas atitudes,
/u/gando estar ai subjacente um falso conceito de maternidade; a muiher
seria simplesmente a reprodutora, que devería sacrificarse em qualquerhi-
pótese, para gerar filhos. — Ora tal nao é o modo de ver cristao: as duas
mulheres poderiam ter licitamente escolhido o tratamento do cáncer, aín
da que este acarretasse, como efeito secundario, a perda do feto. Nao o
quiseram, porém, por amor ao filho, amor que só pode dignificar a mu-
Iher, levando-a á imitacao de Cristo, que morreu por todos. A maternida
de humana está longe de ser urna funcao meramente biológica; e/a partici
pa da espiritualidade que existe em toda muiher, e, se esta é católica, par
ticipa da obra redentora de Cristo, como diz Sao Paulo em 1Tm 2,15. O
testemunho de Gianna e Carla é um benéfico despertar de consciéncias
neste mundo em que o amor gratuito e benévolo é cada vez mais raro,
neste mundo em que a violencia e a morte marcam profundamente o rit
mo da sociedade.

* * *

Nos últimos tempos tem estado em foco o caso de maes gestantes


postas na iminéncia de se sacrificar para nao perder o filho. Duas se-
nhoras italianas aceitaram o sacrificio heroico, provocando os comentarios
desfavoráveis e favoráveis da opiniao pública. Na Bosnia, o S. Padre diri-
giu um apelo ás gestantes estupradas para que nao abortassem, o que tam-
bém suscitou protestos da parte de jornal¡stas e outros profissionais.

Tencionamos abordar o assunto, detendo-nos especialmente ñas figu


ras de Gianna Beretta Mol le e Carla Levati Ardenghi, heroicas personali
dades, que foram injustamente criticadas precisamente por causa do seu
heroísmo.

310
MÁEOUFILHO? 23

1. AS DUAS HEROÍNAS ITALIANAS

1.1. Gianna Beretta Molle

Médica pediatra, Gianna, aos 40 anos de idade em 1962, estava no


inicio da gravidez de seu quarto filho, quando soube estar cancerosa; era-
Ihe indicada a extracáo do útero grávido como tratamento da molestia.
Recusou, porém, a cirurgia, que removería o órgao doente, com a crianca,
e escreveu ao seu médico: "Se tiver de optar, nao hesitarei. Exijo que a
crianca seja salva".

A gestacao foi levada adiante até o momento em que se pode reali


zar a operacao cesariana. O feto nasceu recebendo o no me de Gianna
Emmanuela, que hoje é médica como a mae. Acontece, porém, que, uma
semana após o nascimento da filha, Gianna Beretta Molle veio a falecer
nao diretamente de cáncer, mas de pe r¡ton ite decorrente da intervencSo
cirúrgica necessária para o parto.

O S. Padre Joao Paulo II em 1992 beatificou Gianna Beretta Molle,


reconhecendo assim a heroicidade das virtudes dessa muí he r. O Postulador
da Causa de Gianna observou que "o sacrificio consciente da mae pelo fi
lho que deve nascer, é apenas o gesto conclusivo de toda uma vida católica
coerente, simples e generosa". Com efeito; a facanha heroica da mae no
final da sua vida foi o coroamento de toda uma existencia fiel e dedicada
ao Senhor.

Nao obstante, houve quem criticasse a atitude de Gianna e o gesto


de Joao Paulo II, como se pode depreender do artigo "Apuros de Santo
Novo" de VEJA, 06/01/1993.

1.2. Carla Levati

Muito mais recente é o caso de Carla Levati Ardenghi, casada com


Valerio Ardenghi, natural de Albano Sant'Alessandro (Bergamo). Tinha
um filho, Ricardo, hoje com dez anos de idade, quando, há tres anos, foi
vítima de melanoma ou tumor maligno de prognósticos sombríos. Foi
¡mediatamente operada, de tal modo que se sentia bem,- por isto julgou
poder ter outro filho. Carla, de fato, concebeu, mas em dezembro de 1992
comecou a sentir fortes dores na coluna, síntomas de que a metástese ata
cara a espinha dorsal. O tratamento proposto foi a quimioterapia; esta, po
rém, poria em grave risco a vida da crianca. Por isto, de acordó com seu
marido, Carla resolveu nao aceitar tratamento algum, até que Ihe nascesse
o segundo filho. Aos 26 de Janeiro de 1993 foi submetida a operacao cesa
riana; mas faleceu oito horas depois do nascimento de Stefano, seu segun
do filho. Tinha 28 anos de idade. Infelizmente a própria crianca pouco so-
breviveu á míe, pois aos 4 de fevereiro de 1993 também faleceu.

311
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Carla Levati era humilde senhora; teria podido tratar-se, mesmo com
risco de vida para o filho. Com efeito, a Teologia Moral ensina que é líci
to realizar urna acao que tenha duplo efeito — um bom, o outro mau —
desde que

- o efeito bom nlo decorra do mau, mas seja diretamente atingido;

- o efeito mau nio seja intencionado ou desojado, mas apenas tole


rado, como conseqüéncia inevitável de urna acao que, como tal, nao é má;

- o efeito bom compense, por sua importancia, o efeito mau;

- nao haja outro recurso para obter o efeito bom.

Ora no caso de Carla Levati, como também no de Gianna Beretta


Molle, o tratamento do cáncer seria urna acao boa, visando á cura da pa
ciente; o efeito mau seria a perda da crianca, efeito nao intencionado, mas
apenas tolerado. A histerectomia ou a quimioterapia naoseriam aplicadas
para matar a crianca, mas para curar a mué; seriam indicadas independen-
temente do fato de haver ou nao urna gravidez em curso.

Carla e Gianna, porém, nao quiseram atender a si mesmas, valendo-se


licitamente dos recursos da medicina, para nao fazer a enanca correr o
risco de perder a vida. Tal gesto é plenamente cristao, pois o Senhor Jesús
no Evangelho ensina: "Nao há maior amor do que o daquele que dá a vida
por seus amigos" (Jo 15, 12s). Ao que Sao Joao acrescenta: "Nisto conhe-
cemos o Amor; Ele deu a sua vida por nos; por isto devemos também nos
dar a vida por nossos irmaos" (Uo 3,16). A atitude das duas mies que se
sacrificaram, significa a seqüela fiel de Jesús Cristo.

Além desta dimensao crista, muito positiva, a conduta das duas se-
nhoras tem profundo valor humano. Ambas quiseram viver a matemidade
no seu sentido mais elevado de amor que dá a vida e se entrega para que
haja vida. A matemidade é um processo de dar a vida que nao pode deixar
de ser doloroso; ná*o há de ser exercida como urna funcao meramente ra
cional ou cerebrina, mas, sim, como algo que procede da "inteligencia do
coracio"; o coraclo tem suas razoes que a razio ignora; nao raro essas ra-
zSes podem parecer paradoxais, mas na verdade inspiram-se em magnanimi-
dade e generosidade que ultrapassam o frío cálculo da razio. A atitude das
duas muiheres assinaladas vem a ser um referencial para todo ser humano
que queira viver realmente o amor.

Embora os dois casos, heroicos como foram, merecam a admiracao


da sociedade, tal nao foi a reacá"o de muitos setores da opiniao pública. A

312
MÁEOU FILHO? ?5

seguir, referiremos alguns comentarios de jomalistas da Italia relativos ao


gesto de Carla Levati.

2. A IMPRENSA E CARLA LEVATI

No jornal II Messagero, de 29/01/93, A. Bevilacqua escreve:

"O heroísmo chega muitas vezes ás raías do fanatismo... Devo decla


rar o meu pleno desacordó frente a tal episodio. Foi um sacrificio em fa
vor da vida? Sim. Um ato heroico em pro! de urna criatura que nascia?
Sim. Todavía, a meu ver, embora se/a desagradável, um egoísmo se maní-
festou, egoísmo de natureza materna, distorcido por urna deformagao an
gustiada da esperanca e por convicgoes religiosas exageradas até o fana
tismo".

Em La Repubblica, de 29/01/93, escreve Camilla Cederna:

"Eu me insurjo, sim, eu me insurjo profundamente contra a 'moral'


que muitos querem deduzir dessa historia... Mas quem pode dizer o que
aquela pobre menina pensava?... Talvez julgasse que iría para o paraíso ou
que a declarariam Santa. Sendo portadora de um tumor, devia resignarse
a abortar. Mas somos loucos? Ela coiocou no mundo um fi/ho órfao. Pare-
ce-me um sacrificio inútil, erróneo; morrer para deíxar nascer um fetozi-
nho que talvez nao tenha condicdes de sobreviven E coisa tao terrivei co
mo querer dará luz com sessenta anos de idade. Nisto há ignorancia, retar
do cultural, um desejo de martirio que nao posso entender".

Mais dura ainda foi Dacia Maraini em entrevista ao mesmo jornal La


Repubblica de 29/01/93:

"Nao se fale de sublime sacrificio... A renuncia de Carla Levati repro-


duz a concepcao arcaica segundo a qual a tarefa da mulher é a reproducao,
mesmo ás cusías da vida própria. É inquietante observar como resiste for-
temente essa perigosa mitología, que remonta aos primordios da civiliza-
gao ocidental, grega e romana. A razio de ser e existir da mulher estaría
na sua capacidade de garantir a prole, isto é, o futuro da humanidade. Evi
dentemente ainda há pessoas inf/uenciáveis por feiticos desse género. Res-
peito as decisoes individuáis. Talvez Carla quisesse terum filho a qualquer
prego. Talvez levasse urna vida infeliz ou tivesse baixa consideracao de si
mesma. Nao nos interessa explorar as motívagoes secretas que a levaram a
rejeitar o tratamento e a por no mundo um filho órfao".

313
26 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

A antropóloga Ida Magli também protestou no mesmo jornal e na


mesma data:

"Quanto barulho, quanta exaltacao\ Mais urna vez a pressao social di


ta o significado dos acontecimentos. Mais urna vez tenta incutir no ánimo
das mulheres a conviccap de que o único valor para a mulher é a mater-
nidade".

A deputada Alessandra Mussolini, do Movimento Social Italiano, pro-


fessou nao querer julgar a opcao de Carla Levati, mas acrescentou:

"Todavía creio que querer ter um filho a qualquer prego é ato de ex


tremo egoísmo. A senhora de Bergamo, Carla Levati, já nao tinha um fi
lho? Agora acontece que teve outro, mas incapacitado de gozar dos cuida
dos maternos. A verdade é que deveríamos ter um pouco mais de norma-
lidade ao passo que, segundo me parece, caminhamos para urna sociedade
disposta a premiar sempre mais as excecoes e as aberracoes" fL'Unitá,
29/01/93).

Em suma, verifica-se que os comentarios tacharam o gesto de Carla


Levati de "egoísmo" (A. Bevilacqua), "extremo egoísmo" (A. Mussolini),
"sacrificio inútil, erróneo, fruto de ignorancia e de retardo cultural" (C.
Caderna), "compensacao de quem levava vida infeliz e tinha baixa consi-
deracao de si mesma" (D. Maraini).

3. QUE DIZER?

Proporemos tres observacoes.

3.1. Aberracao: onde?

A aberracao nao está no gesto de Carla e de Gianna, mas, sim, nos pa


receres emitidos a respeito. Dir-se-ia que as pessoas que assim seexprimi-
ram, sao incapazes de compreender que o amor é querer bem ao outro — e
nao servir-se do outro —, querer bem a ponto de realizar grandes sacrifi
cios em favor do outro. Quem sustenta urna visao da vida centrada sobre
seu próprio prazer e seus interesses, urna visao egoísta, nao pode entender
as atitudes altruistas de seus semelhantes. Seria para désejar, porém, que,
mesmo que nao entendam gestos de magnanimidade rara, os comentadores
saibam guardar respeito e nao os condenar como deformacao psíquica.

Em compensacao, podemos comunicar que, aos 30/01/93, vinte ca


sáis de diferentes países, reunidos em Roma para participar de urna Reu-

314
MÁEOU FILHO? 27

niao Plenária do Pontificio Conselho para a Familia, escreveram uma carta


ao marido de Carla Levati, em que diziam:

"O testemunho heroico de amor é vida prestado por Carla nos tocou
no mais profundo do coracao. £ um exemplo luminoso para as familias
cristas do mundo inteiro nestes tempos dificéis, nos quais sao obscureci
dos os valores da matemidade.

Julgamos que Carla representa um modelo, porque nela vemos uma


mulher casada, como nos, que deu a vida por seu filho, e pedimos a Deus
queira derramar a sua graca, mediante o testemunho de Carla, sobre todas
as familias do mundo".

3.2. O conceito de matemidade

Os críticos do gesto de C. Levati quiseram basear sua censura num ri


dículo conceito de matemidade atribuido a essa senhora: Carla teria con
cebido a matemidade como mera funcao reprodutora a servico da especie
humana, funcao de índole física apenas ou até animalesca, em nada distin
ta da matemidade no mundo animal. Tal seria uma concepcao arcaica, mi
tológica, incompatível com o feminismo contemporáneo. Ida Magli afirma
que a matemidade foi durante muitos sáculos um trágico destino das mu-
Iheres: "Até o fim do sáculo XIX as mulheres eram sempre obrigadas a
morrer em lugar dos filhos, desde que houvesse que optar pela vida da mae
ou a da prole... Até a década de 1960 quem definia qual dos dois sobrevi-
veria era o pai". - Porconseguinte, a matemidade seria um trágico destino
da mulher encarregada da funcao reprodutora.

A propósito devemos dizer que o Cristianismo sempre distinguiu a


matemidade humana da matemidade meramente animal. O prototipo da
Mae para o cristao é a Santa Mae de Deus, cuja funcao foi certamente cola
borar na obra da Redencao; toda mae crista continua o papel de María a
seu modo; ela gera filhos chamados á vida eterna, realizando no seu lar
uma "igreja doméstica"; Sao Paulo chega a ver no exercício da matemida
de o caminho de salvacao da mulher: "A mulher será salva pela matemida
de, desde que, com modestia, permaneca na fé, no amor e na santidade"
(1Tm2, 15).

Por certo, a matemidade nao é única via de salvacao da mulher;


existe também a da virgindade consagrada a Deus. Como quer que seja, a
vocacao ao matrimonio está longe de condenar a mulher á funcao de re
produtora e de submeté-la, por isto, a trágico destino. Na verdade, a ma
temidade nao é fato meramente camal ou fisiológico, mas é também uma
realidade espiritual; é amor que se exprime camalmente e que eleva a car
ne a significar valores humanos muito superiores aos valores meramente

315
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

animáis. A maternidade, portante, dignifica a mulher e nao a reduz a me


ro instrumento destinado á reproducao da especie.

Inegavelmente a grande dignidade de ser mae, como qualquer outra


dignidade, pode colocar a pessoa em situacoes dif icéis e exigentes, com
apelos ao sacrificio. Aceitar tais desafios com nobreza e coragem é a plena
realizacáo da muIher-mSe. Para que isto aconteca, a grapa de Deus nao fal
ta á pessoa interessada, incutindo-lhe aquela concepcSo de amor que tem
seu prototipo em Jesús Cristo.

Num mundo como o nosso, impregnado de interesses individualistas


e egocéntricos, movido pelo anseio do prazer, especialmente no setor da
sexualidade instintiva e cega (em muitos casos), ressoa de modo muito
significativo o sacrificio de Gianna e de Carla; o seu amor altruista e puro
fez algo que surpreendeu o mundo e pode despertar as consciéncias para
o sentido do auténtico amor. Esse altruismo ultrapassa os limites de um
episodio de familia para assumir a Índole de urna "santa novidade" para a
sociedade contemporánea.

3.3. A morte de Stefano

O filhinho de Carla — Stefano — nao sobreviveu senao poucos dias


após a morte de sua mae. Neste fato, particularmente, baseou-se a critica
de que o gesto de Carla foi tolo, inútil e desarrazoado.

Respondemos que a grandeza de urna atitude ética nao pode ser ava-
liada simplesmente a partir do sucesso visível; mesmo que um sacrificio
ditado pelo amor nao atinja o objetivo colimado, tal sacrificio conserva
seu pleno valor.

Nem se diga que o gesto de Carla foi inútil. Veio a ser um brado em
favor da vida num mundo em que a violencia e a morte tém dominado em
varias regioes, instaurando a cultura da morte; sejam recordados os doloro
sos episodios ocorridos na Bosnia (tragedia para a qual nao se vé fim), as
guerras fratricidas em países da África, as guerras e guerrilhas do Oriente
Medio, os confutes entre hindúístas e muculmanos na India, aaprovacao
de urna lei em favor da eutanasia direta na Holanda (aos 10/02/93), a po
lítica abortista do governo B. Clinton nos Estados Unidos... O gesto da
modesta mulher Carla Levati, como também o de Gianna Beretta Mol le,
sao sinais que podem e devem avivar a opiniao pública para que tente
promover outro tipo de comportamento social; matar por paixao e egoís
mo nao leva á felicidade, ao passo que a vivencia do amor que pretende
salvar o próximo será penhor de dias melhores.

316
MÁEOUFILHO? 29

Aos olhos dos incrédulos, a Cruz de Cristo será sempre loucura e


escándalo como diz S3o Paulo (1Cor 1,18.23). Por conseguinte, nao nos
surpreende a incompreensao de muitos frente ao caso de Carla Levati e
Gianna Beretta Molle. Mas continua o Apostólo dizendo que oque é lou
cura aos olhos dos homensé sabedoria aos olhos de Deus (1Cor 1,25).
Essa sabedoria de Deus é, nao raro, revelada aos pequeninos e humildes,
como foi Carla Levati, para que proporcionen! aos sabios e poderosos a
ocasüo de repensar sobre o sentido da vida e da morte, do sofrimento
e do amor.

Este artigo muito deve ao Editorial "Una testimonianza per la vita"


de La Civiltá Cattolica, n? 3425, 06/03/1993, pp. 417-423.

* * *

EUTANASIA E DISTANÁSIA

A respeito de eutanasia, a Moral Católica (e também a Medicina) distingue entre


eutanasia positiva e eutanasia negativa. A primeira é a elimina?ao consciente e volunta
ria da vida do paciente mediante injecSo ou coisa semelhante; merece reprovacao, pois
é usurpacao de direito que nao toca ao hornern. A eutanasia indireta consiste na sus-
pensao dos meios de subsistencia; estes podem ser ordinarios (soro, alimentacao, san-
gue...) e extraordinarios. Suspender os meios ordinarios nao é lícito pelo mesmo moti
vo. Quanto aos extraordinarios, se nao há proporcao entre a aparelhagem aplicada e os
resultados nulos ou quase nulos obtidos, é lícito desligar os aparelhos, conforme Decía-
racáo da Congregacao para a Ooutrina da Fé datada de 5/5/1980.

A patavra distanásia tem duplo sentido. Etimológicamente falando, distanásia se


ria a morte dolorosa, visto que o prefixo grego dys significa algo de mau (dispepsia,
disritmia, disfuncao...). Ora nao é lícito deixar um paciente morrer sem procurar aliviar
os seus sofrimentos mediante analgésicos (ainda que estés redundem em abreviacfo da
vida do enfermo). Parece, porém, que distanásia, na linguagem médica atual, significa
a desistencia de reanimar um paciente (ONR ou NTBR); tal desistencia é lícita, se en
tendida nos termos atrás indicados: nao aplicacao de aparato caro e penoso sem resul
tados correspondentes. A obstinacao terapéutica, que priva o paciente do reconforto
dos seus, sem que haja sólida esperance de alguma melhora, nao se ¡mpoe a conscjéncia
moral, pois privilegia os aspectos mecánicos e técnicos em detrimento de valores hu
manos propriamente ditos.

317
Zelo Pastoral e Equilibrio:

'O QUE É PRECISO SABER SOBRE A


RENOVAQÁO CARISMÁTICA"

por D. Antonio Afonso de Miranda

Em símese: O Sr. Bispo de Taubaté publicou um l'tvro simpático á


Renovacao Carismática, no qual expoe os frutos positivos que tem produ-
zido, como também os desvíos e exageros a que está sujeita. Fala com
franqueza do perigo de se confundírem estados emocionáis com dons do
Espirito Santo. É preciso ha/a, da parte dos Bispos e sacerdotes, assistén-
cía mais assídua aos grupos de oracao, a fim de que, evitando fainas dou-
trinarías e moráis, possam continuar a ser núcleos de urna Igreja viva, vol-
tada para o Transcendental e o sen/ico aos irmaos, ponto de atracao de
fiéis afastados e tibios e foco de afervoramento dos mais piedosos.

* * *

0 Sr. Bispo de Taubaté, D. Antonio Afonso de Miranda, acaba de pu


blicar um pequeño livro sobre a Renovacao Carismática, seus frutos e des
víos.1 É opúsculo equilibrado, que com estima considera a Renovacao Ca
rismática e aponta resultados valiosos como também fainas que podem
prejudicar o seu futuro. É, pois, o zelo pastoral e o desejo de preservar a
Renovacao Carismática que inspira o autor. Visto que se trata de explana-
coes muito judiciosas, publicaremos abaixo urna síntese das principáis pá
ginas da obra em foco.

1. OS PORQUÉS DO QUESTIONAMENTO

Sao variadas as denominacoes que o fenómeno carismático tem re-


cebido: Renovacao Carismática Católica, Experiencia do Espirito Santo,

1 O que é preciso saber sobre a Renovacao Carismática. Ed. Santuario,


Rúa Pe. Claro Monteiro 342, 12570-000 Aparecida (SP), 125 x 180 mm,
62 pp.

318
RENOVAgÁO CARISMÁTICA: QUE DIZER?

Oracao Carismática, Renovado Espiritual Católica Carismática, Renova-


cao no Espirito Santo...

Logo de inicio é preciso distinguir a Renovacao Carismática dentro


da Igreja Católica e a Renovacao Carismática Pentecostal ou Protestan
te. Esta última professa os principios doutrinários do protestantismo
(aversao a María SS., recusa do primado de Pedro, rejeicao do sacramento
da Eucaristía... ), de modo que a confusao entre o movimento católico e
o protestante gera polémicas e ansiedades nos me ios católicos. Parece que
alguns grupos católicos se deixaram influenciar pelo Pentecostalismo pro
testante, entregándose a exageras ou desvíos doutrináríos. Por outrapar
te, crentes pentecostais foram aceitos em grupos católicos de oracao, e
levaram para estes certas ¡nterpretacoes da Biblia nao condizentes com o
ensino da Igreja Católica: assím alguns carismáticos católicos puseram-se a
combater o culto á Vírgem Santíssima e aos Santos; comecaram a profes
sa r urna "Igreja Carismática" teológicamente diluida, ¡nsensível ao Magis
terio. 0 Batismo no Espirito Santo foi excessivamente valorizado, como se
desse origem a urna classe privilegiada de cristaos, portadores de carismas
únicos - dons de linguas e de curas; assim se constituiría a verdadeira Igre
ja, cujo único Mestre seria o Espirito Santo, propulsor direto e intimo de
cada cristao. A meditacao da Palavra de Deus e a oracao cederiam, em
grande parte, á euforia de louvores, aleluias, "Viva Jesús".

Tais proposicoes sao heréticas. *

Nao há dúvida de que a Igreja de Cristo é, por sua natureza mesma,


carismática ou vivificada por carismas (dons) do Espirito Santo. Em todos
os tempos nela brilharam os carismas da oracao intensa, da caridade ope
rante, do zelo apostólico, da contemplacao mistica, como também, em al
guns Santos, os dons de milagres, de curas e de profecía. Sobretudo a Igre
ja teve sempre os carismas essenciais do sacerdocio, da vida consagrada, do
Magisterio pontificio e episcopal, a atividade exuberante de teólogos e
doutores e a multiforme atuacao dos leigos.

Disto se segué que a Renovacao Carismática ou a Oracao Carismática


nao é estranha nem esdrúxula na Igreja. Pode e deve ser aceita dentro de
urna linha pastoral bem orientada.

O Documento de Puebla assim se expressou:

"Os carismas nunca estiveram ausentes da Igreja. Paulo VI expressou


sua complacencia para com a Renovacao espiritual que aparece nos meios
e lugares mais diversos e que leva á oracao de alegría, á uniao íntima com
Deus, é fidelidade ao Senhor e a urna profunda comunhao de almas. Do

319
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

mesmo modo procederán) varias Conferencias Episcopais. Contado esta


Renovacao exige dos pastores bom senso, oríentacao e discernimento, para
que se evitem exageros e desvíos perígosos" (n?207).

2. OS FRUTOS DA RENOVACÁO CARISMATICA

A Renovado Carismática tem dado frutos excelentes, que podem


correr o perigo de deterioracao por falta de assisténcia. Ei-los:

1) A consciéncia cada vez mais viva da presenca e da ac§o do Espirito


Santo na Igreja e no coracao de cada fiel.

Ter consciéncia da acao do Espirito e saboreá-la é fundamental na


Igreja. A profundeza do misterio da Igreja está aqui. Quando o cristao per
mite que o Espirito nele desenvolva sua vida, a Igreja toma novo sentido
no fiel; Ela nasce de fato em seu coracao.

É neste sentido que se pode falar de "batismo no Espirito Santo",


expressao muito usual nos meios carismáticos. Sem dúvida, todo cristao
foi batizado no Espirito, quando recebeu o sacramento do Batismo na in
fancia. Mas poucos fiéis tomam consciéncia da vida nova que o Batismo
Ihes trouxe. Os encontros da Renovacao Carismática tém conseguido des
pertar esta consciéncia, constituindo-se como verdadeiro "Batismo no Es
pirito" para os conscientizados.

Fora desta interpretacao, o "Batismo no Espirito Santo" é algo de


ambiguo, sujeito a mal-entendidos e a erros doutrinários.

2) Como fruto dessa consciéncia, tem-se avivado nos fiéis o gosto pe


la oracao no e pelo Espirito Santo.

Na realidade observa-se que a oracao, nos grupos carismáticos, apare


ce em proporcoes e modalidades menos usuais em outros grupos: assim a
oracao de louvor, nao simplesmente de pedidos; a oracao espontánea, nao
a partir de fórmulas escritas, a oracao pessoal e comunitaria; a oracao ale
gre, que se prolonga por horas, e nSo afasta, mas atrai grande número de.
pessoas.

Jólo Paulo II verifica o fato na sua Encíclica Oominum et Vivifi


cantem:

"Nestes últimos anos vai crescendo também o número de pessoas


que, em movimentos e grupos cada vez mais desenvolvidos, poem a oracao
em prímeiro lugar e nela procuram a renovacao da vida espiritual" (n?65).

320
RENOVAQÁO CARISMÁTICA: QUE DIZER? 33

3) Os grupos de oracá*o tém oferecido aos que estao afastados da Igre


ja a oportunidade de um reencontró com Deus mediante o exercício da
prece e a vivencia da fraternidade. Os grupos de oracao apresentam aos
que estao longe e impressionados pelo secularismo de nossos dias, urna fa
ce da Igreja voltada para o Transcendental e para a procura da intimidade
com Deus — valores estes que em muitos lugares tém sido sufocados pela
preocupacao com problemas de ordem material.

4) Registra-se outrossim renovado amor pela Palavra de Deus consig


nada na Biblia. Os fiéis passam a ler as Escrituras com freqüéncia e mesmo
a saboreá-la, ciernes de que é palavra consignada pelo Espirito Santo. O
Concilio do Vaticano II lembrou a todos os fiéis que a leitura das Divinas
Escritu ras há de ser assidua e acompanhada de oracao, a fim de que se estabe-
leca o coloquio entre Deus e o homem (Constituicao Dei Verbum n?25).

5) As pessoas mais conscientizadas pela Renovacá*o Carismática tém


mostrado grande disponibilidade para o apostolado. A catequese, a pasto
ral dos enfemos e a dos encarcerados tém-se dinamizado com a participa-
cao de agentes muito dedicados.

6) Dos grupos de oracao tém provindo nao poucas vocacoes ao sacer


docio e á Vida Religiosa. Também se tém fortalecido os grupos de jovens,
perseverando na sua ded¡cacao á Igreja e á vida sacramental, quando prepa
rados pela Renovacao Carismática.

Outros varios beneficios se poderiam apontar como frutos dos grupos


de oracao. Já estes granjeiam, da parte dos observadores sinceros, grande
estima para a Renovacao Carismática. — Todavía nao se pode deixarde le
var em conta certos desvíos; conscientes destes, os fiéis os evitarao muito
decididamente.

3. DESVÍOS E EQUÍVOCOS

Os desvíos e equívocos no Movimento Carismático sao expl¡cavéis e


naturais. Resultam do fato de que a grapa de Deus é recebida dentro de
moldes humanos, que podem, ás vezes, dificultar a acao do Espirito. A
graca nao modifica ¡mediatamente as tendencias da natureza. Por isto,
com razio observou o Cardeal Joseph Ratzinger: "Como toda realidade
humana, também a Renovacao Carismática fica exposta a equívocos, a
mal-entendidos e exageras. Mas seria nocivo considerar apenas os perigos e
nao o dom que nosé oferecido pelo Espirito Santo" (citado em A Renova
cao Espiritual Católica Carismática. Ed. Loyola, p. 31).

321
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Quais seriam esses exageras e desvíos?

1) O mais grave é o fato de que alguns participantes acreditam, talvez


inconscientemente, que, movidos pelo Espirito Santo, tém todo o conhe-
cimento necessário e aprofundado da fé. As vezes, alguns presumem ser as
únicas pessoas que receberam o Espirito Santo de modo a formar um gru
po elitista dentro da Igreja.

2) Em conseqüéncia, nao poucos dispensam o estudo da doutrina;


outros créem que encontram todo o saber religioso nos textos sagrados l¡-
dos de modo subjetivo; por isto também há os que eufóricamente se jul-
gam habilitados a falar amplamente sobre Teología. Assim o "dom da pro
fecía" é exercido com desvíos doutrinários, que podem ser funestos á co-
munídade.

0 Papa Joao Paulo II, na sua Exortacao sobre Catequese Hoje, fa-
lando de grupos de oracao como focos importantes de catequese, chamava
a atencáo dos respectivos dirigentes: "Nunca permitáis, custe o que custar,
que a esses grupos falte um estudo serio da doutrina crista. Sem isto, eles
correriam o risco — e tal perigo infelizmente tem-se verificado muitas ve
zes — de decepcionar a própria Igreja" (n? 47).

3) O desvio fundamental que elva a presumir saber muito, suscita ou-


tras graves conseqüéncias, apontadas pelos Bispos latino-americanos reuni
dos em La Ceja (Colombia) em setembro de 1987:

"Concentrarse únicamente em determinados carísmas, nao valorizar


debidamente a riqueza sacramental, interpretar as Sagradas Escrituras se
gundo um criterio fundamentalista,* que, em atgumas ocasioes, desconhe-
ce o devido entendimento dado pelo Magisterio hierárquico, menosprezar
a verdadeira devogao mariana e aceitar criterios e afirmacoes protestantes
equivocados" (citado em A Renovacao Espiritual Católica Carismática,
p. 33).

Está claro que estas falhas nao sao generalizadas, mas ocorreram, e
podem ocorrer aqui e ali.

1 Chamase "fundamentalismo" a tendencia a interpretar a S. Escritura


cegamente, ao pé da letra, sem levar em conta os matizes de expressSo
existentes em toda finguagem, e também no linguajar bíblico. Parece o
fundamentalismo ser expressSo de fidelidade, quando na verdade se fecha
ao auténtico sentido do texto sagrado. (Nota do Redator).

322
RENOVAgÁOCARISMÁTICA:QUE DIZER? 35

4) O criterio fundamental ista suscita outros desvíos: a crenca na pos-


sessao diabólica como algo de freqüente - o que provoca o desejo de apli
car o carisma do exorcismo em qualquer situacao problemática; os outros
carismas, como o de curas (com imposicao das maos) e o de línguas, sao
também ocorrentes com freqüéncia que parece mais doentia do que opor
tuna. Verdade é que os adeptos de dons extraordinarios em profusao se
baseiam no texto de Me 16,17, em que Jesús promete:

"Os sinais que acompanharao aqueles que acreditaren), sao estes: ex-
pulsarao demonios em meu nome, falarao novas Ifnguas; se pegarem ser-
pentes ou beberem algum veneno, nao sofrerao nenhum mal; quando coló-
carem as maos sobre os doentes, estes ficario curados".

Este texto nao deve ser interpretado como fundamento para a genera-
lizacao de prodigios; exprime sonriente a promessa feita aos primeiros
evangelizad ores nos meios pagaos e arautos da Divindade de Jesús Cristo.
Sabemos que no decorrer da historia da evangelizacao, através dos sáculos,
tais milagres nunca foram necessários sinais de Deus para autenticar o tra-
balho de seus missionários.

5) Acontece também que em alguns encontros carismáticos sao acó-


Ihidos crentes pentecostais e pessoas de psiquismo doentio. Estas últimas,
movidas por emocoes súbitas, tomamnao raro a atitude de individuos pos-
suidos por espíritos malignos e manifestam histeria ou síntomas mórbidos.
O dom das línguas é entao confundido com o falar confuso de quem está
sob o impacto de emocoes. Quanto aos crentes, influenciam os irmaos na
interpretacao subjetiva de textos bíblicos e na recusa do Magisterio ecle
siástico, o que leva alguns católicos a falsa ñoclo de ecumenismo ou até ao
abandono da Igreja.

6) Os Bispos da Provincia Eclesiástica de Aparecida arrolaram aínda


outros desvíos:

"Muitas pessoas buscam na ñenovacao Carísmática urna experiencia


exagerada de Deus e de seus dons. Há os que se angustiam e desesperam
por nao conseguirem os carismas que almejam com sofreguidao. Sentem-se
interiorizados diante da ausencia dos sinais que aguardam, diante do silen
cio de Deus... Convém saber que os dons de Deus, os carismas se destinam,
antes de tudo, ao bem comum da comunidade, e Ele os distribuí quando,
como, onde e a quem quiser. Ninguém presuma obter os dons de Deus em
proveito próprio e como se fossem urna conquista. Este ponto deve fícar
bem esclarecido" fRenovacao Carísmática. Orientacoes e Normas Pastorais
dos Bispos da Provincia Eclesiástica de Aparecida, pp. 7s).

323
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Destes tatos negativos depreende-se a necessidade de q.e a Igreja


acompanhe com carinho e ¡nteresse os grupos de oracao. Sentem-se, por
vezes, desassistidos. Nao se corrigem os erros pelo abandono dos que er-
ram. Os sacerdotes e pastores de almas tém ai' fecundo campo de at¡vida-
des.

Passemos agora a outro aspecto da questao.

4. O RAZOÁVEL E O DOENTIO

Já foi dito que a grapa de Deus nao dispensa o respectivo fundamen


to humano ou psíquico. Alias, toda atividade humana é impregnada do
psiquismo, de emocoes que impressionam, mais ou menos fortemente, a
pessoa. Ocorre, portanto, que na ñenovacao Carismática pessoas bem in
tencionadas, se tém índole fortemente emotiva, podem impressionar-se e
chegar a crer que proceda do Espirito Santo o que é produto das próprias
emocoes ou imaginacóes. Há entao falta de discernimento e passa-se do
razoável para o doentio. Este perigo nao é de hoje. Em muitas épocas da
Igreja existiram "visionarios", de modo que o Magisterio da Igreja sempre
se mostrou cauteloso frente a muitas "aparícoes" e "visoes" de Cristo ou
dos Santos. Poucas aparicoes, como as do S. Coracao de Jesús em Paray-
Le-Monial a S. Margarida-Maria Alacoque, as de Nossa Senhora em Lour
des e em Fátima... sao aceitas pela Igreja nao como revelacoes a que se de-
va um ato de fé, mas como manifestacoes que nada tém de suspeito, de
doentio, sendo os "videntes" pessoas honestas e merecedoras de crédito; o
conteúdo das "revelacoes" foi tido como ortodoxo ou condizente com a
fé crista. Fica a criterio de cada fiel aceitar ou nao tais fenómenos extraor
dinarios; a Igreja reconhece a validade do culto a Nossa Senhora aparecida
em Lourdes, em Fátima..., mas nao o impoe.

As ilusoes a respeito de fenómenos extraordinarios, como, por exem-


plo, certos carismas do Espirito Santo, podem acontecer com facilidade,
especialmente em pessoas que tenham urna certa propensao para superes-
timar esses fenómenos; aguardam-nos sofregamente, a ponto de imaginar
que os receberam, quando na verdade apenas manifestam sintomas de sua
ansiedade e expectativa.

Como discernir até onde vai o auténtico fenómeno carismático e on


de comeca o doentio?

- Via de regra, quando as pessoas proclamam fenómenos milagrosos


em massa e com enorme freqüéncia, pode-se supor que ai há i I usa o. Os mi-
lagres sao fatos extraordinarios; nao sao acontecimentos em serie, aos

324
RENOVAQÁOCARISMÁTICA:QUE DIZER? 37

quais todos possam ou devam aspirar. Por isto nao devem ser tidos como
fenómenos carismáticos as curas de tudo quanto é "doenca" em favor de
todas as pessoas que as pedem, até por telefone... Isto é ¡rrazoável. Quem
julga ser o intermediario de tais milagres, ainda que os atribua a Jesús,
acha-se em condicoes de exaltacá*o doentia.

Exemplo muito significativo é citado por D. Antonio Afonso de


Miranda:

"Certa vez urna senhora do Movimento Carismátlco Católico velo di-


zer-me que ¡é havia realizado mais de mil casos de cura de cáncer. Nao
conseguí, por mais que me esforcasse, demové-la de tal conviccao. Fácil
concluir que essa senhora era vi tima de um processo psíquico doentio.

Para se ver até onde podem ir as ilusoes emocionáis, registro mais


um caso. Urna mulher, declarada cancerosa pelos médicos, fot levada a um
grupo de oracao. Impuseram-lhe as mios, fizeram 'oracao de cura', como
costumam dizer. Ela sentiu alivio considerável, certamente sob o impulso
de sugestao. Urna semana depois, diziam-me os componentes do grupo
(entre eles um médico): 'Ela está radicalmente curada... Desapareceu com
pletamente o cáncer'.

Cerca de vinte dias depois, quando me encontré! com seu marido, ele
me disse: 'Aceito a vontade de Deus. Ela foi sepultada ontem'.

Julgo que se equiparem a este tipo de ilusao os casos em que todo


um ¡menso auditorio se poe, debaixo de insinuante exortacao de um co
ordenador, a 'orar em línguas', num como explodir de algaravia.

Nao é isto razoável. Creio tratarse, no caso, apenas de um fenómeno


de psicología de massa" fob. cit., p. 25).

Nao se podem negar os dons de cura e de glossolalia mencionados no


Novo Testamento (cf. At 2, 4.6; 1Cor 12, 10; 14,2.30). Foram muito fre-
qüentes no inicio do Cristianismo a fim de despertar a fé nos gentios (cf.
1Cor 14, 22), mas nao sao fenómenos generalizados em toda a historia da
Igreja. Com o decorrer do tempo, foram raneando; Santa Teresa de Ávila e
Sao Joao da Cruz no século XVI nao os mencionam. Em nossos dias o Es
pirito Santo pode suscitar os mesmos dons onde e como Ihe apraza. Mas é
preciso que os fiéis se acauteiem contra as ilusoes e os disturbios psíqui
cos. O próprio Sao Paulo já advertía os corintios: "Se numa assembléia da
Igreja inteira todos falarem línguas, e se entrarem homens simples ou in
fléis, nao dirijo que estáis loucos?" (1Cor 14, 23).

Diga-se ainda breve palavra sobre

325
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

5. OS CARISMAS

O carisma pode ser tido como um dom gratuito de Deus ordenado á


edif¡cacao da común¡dade crista. O Concilio do Vaticano II menciona os
carismas sem referir os aspectos extraordinarios dos mesmos; reconhece
que sao "multiformes os carismas dos leigos, dos modestos aos mais eleva
dos, e os presbíteros devem descobri-los com senso de fé e incentivá-los
com entusiasmo" (Presbyterorum Ordinis n? 9).

Alguns carismas sao essenciais e imprescindíveis á estrutura da Igre-


ja. Outros sao extraordinarios, conferidos a alguns de seus membros.
Procuremos enumerar uns e outros.

5.1. Dons essenciais á vida da Igreja

Sao dons sem os quais a Igreja nao pode ría subsistir; nao poderia con
tinuar a obra salvadora de Cristo na qualidade de "sacramento do mun
do".

Desses dons essenciais, alguns sao dados globalmente a todos os fiéis,


e outros sao concedidos especialmente a alguns individuos.

5.1.1. Dons concedidos globalmente a todos os fiéis

1) O senso da fé, sensus fidei; sao como que antenas para identificar e
captar as verdades da fé;

2) o dom da grapa: participacao da vida trinitaria, común nao íntima


com o próprio Deus;

3} o sacerdocio comum, pelo qual todos podem cultuar a Deus e ofe-


recer-lhe as suas dádivas;

4) a funcao profética e regia, pela qual todo cristao pode anunciar


Cristo (dom profético) e colaborar com Cristo na construcao do Reino de
Deus (dom regio);

5) a caridade (ágape), o mais sublime dos carismas, como incute Sao


Paulo (1Cor 13,13).

Esses dons derivam-se do Batismo e da Crisma e. por isto, sao essen


ciais a todos os fiéis.

326
RENOVACÁO CARISMATICA: QUE DIZER?

5.1.2. Carismas essenciais concedidos a alguns fiéis

Em virtude de vocacSo especial, o Espirito Santo con fere, por vía


sacramental, tres dons ou carismas também essenciais e indispensáveis á
Igreja:

1) o Episcopado, que encerra a plenitude dos dons do Espirito em


vista da santificarlo, para ser distribuidos gradualmente na Igreja;

2) o Presbiterato ou sacerdocio especifico, que é uma participacao


maior no carisma santificador dado em plenitude aos Bispos;

3) o Diaconato, participacao menor no carisma santificador.

Esses tres carismas sao inerentes a uma consagracao definitiva de ho-


mens a servico do povo, para manter nele a santidade e os carismas essen
ciais a todos os batizados.

4) Pode-se acrescentar o carisma da consagracao religiosa sob o trí


plice voto de pobreza, castidade e obediencia, é sinal sublime de santidade
e servico sob a acao do Senhor, que a Igreja sempre teve em privilegiada
consideracao.

5.2. Carismas extraordinarios concedidos a alguns fiéis

Além dos carismas essenciais até aqui mencionados, o Espirito pode


dar, e dá, esporádicamente a alguns membros da Igreja dons extraordina
rios, que se destinam a edificar os fiéis e converter os infiéis. Eis os prin
cipáis:

1) O dom dos milagres. É raramente concedido. Narra-se, porém, que


o tiveram S. Antonio de Pádua, S. Joao Bosco, S. Bento de Núrsia... I ri
el u ¡-se sob este título o carisma das curas físicas e o das curas espirituais
(o dom de curar de vicios e más tendencias).

2) O dom das línguas e o da interpretacao das mesmas. é menciona


do pelo Apostólo, que julga necessário haver a interpretacao das línguas
extraordinarias para que a comunidade se possa edificar: "Aquele que fala
em línguas, deve poder interpretá-las... Numa assembléia prefiro dizer cin
co palavras com a minha inteligencia para instruir também os outros, a
dizer dez mil palavras em línguas" (1Cor 14, 13.19). A glossolalia (como é
chamada técnicamente) parece ter gerado confusoes na comunidade de
Corinto a tal ponto que Sao Paulo fez a seu respeito serias advertencias
(cf. 1Cor 14, 22s).

327
40 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

É de notar que já no sécuio IV Sao Joao Crisóstomo (+407) nao sabia


explicar o que fosse tal carisma, pois caira em desuso.

3) Os dons de iluminacáo interior, de discernimento espiritual e de


éxtase na oracao. Também podem ser tidos como raros se consideramos
a sua exigua freqüéncia na vida dos Santos.

Os dons extraordinarios estao na linha dos milagres. Serviam (e ser-


vem) mais para edificar e converter do que para a construpao cotidiana e
ordinaria do Reino de Deus (com excecao do dom do discernimento).

6. CONCLUSÁO

Acabamos de apresentar em poucas páginas o conteúdo do livro de


D. Antonio Afonso de Miranda. Em suma, é favorável á Renovacao Caris-
mática; precisamente para garantir a sua persistencia incólume na Igreja e
evitar que se deteriore, o autor aponta tanto os frutos benéficos quanto os
desvíos da Renovacao Carismática. Estes sao compreensi'veis, já que o ser
humano vibra sob a acao da graca, mas nem sempre de maneira consentá-
nea com o Espirito. A fim de impedir exageras e deturpacoes dos grupos
de oracao, é claro que se requer, da parte dos pastores, urna assisténcia
assídua e benévola, disposta a promover o que é bom, afastando o que seja
falho ñas expressoes dos orantes.

Congratulamo-nos com D. Antonio A. de Miranda pelo valioso servi-


co que, com o seu estudo, prestou á Renovacao Carismática e á Igreja.

• * *

"O QUE ME IMPRESSIONOU EM JESÚS, É ESSE PROGRAMA DE


IR SEMPRE A FRENTE, DE TAL MODO QUE SE PODERIA DIZER
QUE O ELEMENTO ESTÁVEL DO CRISTIANISMO É O DE NUNCA
PARAR".
(Henri Bergson)

"CRISTO MOSTRA AO HOMEM UMA PERFEICAO IMPOSSlVEL


DE SER ATINGIDA, MAS A QUAL ELE ASPIRA DO FUNDO DO SEU
CORAQÁO. É MOSTRADO AO HOMEM UM IDEAL, DO QUAL O HO
MEM PODERÁ SEMPRE MEDIR A DISTANCIA QUE O SEPARA. A
DOUTRINA DE CRISTO SE PARECE COM UM HOMEM QUE TRAZ
UMA LANTERNA DIANTE DE SI NA PONTA DE UMA VARA MAIS
OU MENOS LONGA: A LUZ ESTA SEMPRE DIANTE DELE E LHE
REVELA A TODO MOMENTO UM ESPACO NOVO QUE ELA ILUMI
NA E QUE VAI CAMINHANDO COM ELE".
(LeaoTolstoi)

328
Onde fica a

COMUNIDADE IDEAL?

Em sfntese: O presente artigo tem por centro urna página do escritor


luterano Dietrich Bonhoeffer, que morreu em 1944 num campo de concen-
tracao. Este autor faz ponderacoes inspiradas por fé profunda a respeito
de comunidades cristas e, em particular, a respeito da Igreja. Embora o
conceito luterano de Igreja nao se/a equivalente ao católico, o que está di
to por Bonhoeffer é plenamente válido: a comunidade da Igreja é divino-
humana; Deus vem aos homens mediante os homens. Quem sonha com
urna comunidade angelical ou destituida de criaturas frágeis, sujeitas ao
pecado, ilude-se e foge do plano de Deus; vivera numa utopia, que Deus
nao qu'er. O autor insiste muito na necessidade de se dissiparem tais so-
nhos, em favor de urna adesao firme e fiel ao dom de Deus, que é a conti-
nuagao do misterio da Encarnacao ou do Deus velado pela face do homem.

■k * *

É normal que, ao ¡ngressar em alguma comunidade religiosa, todo


cristao deseje ver encamada a realizacao de seu ideal ou urna comunidade
perfeita. Na verdade, porém, toda comunidade existente na vida presente
ainda está a caminho da perfeicao; incluí muitos elementos de grande va
lor ou pessoas altamente respeitáveis, mas compreende também membros
marcados pelas limitacoes humanas e deficientes. Isto nao surpreende, da
do que o próprio Apostólo Sao Paulo exclamava: "Realmente nao consi
go entender o que faco, pois nao pratico o que quero, mas faco o que de
testo... 0 querer o bem está ao meu alcance, nao, porém, o praticá-lo.
Com efeito, nao faco o bem que eu quero, mas cometo o mal que nao
quero" (Rm 7,15-19).

A fraqueza humana acompanha sempre a caminhada de todos neste


mundo Daí a necessidade de que o cristao, ao mesmo tempo que susten
ta seu ideal e peleja para o atingir, esteja munido de fé viva, a fim de nao
fugir da vía certa. Diz o mesmo Apostólo tres vezes: "O justo vive da fé
(Rm 1,17; Gl 3, 11; Hb 10, 38, referindo-se sempre a Hab 2, 4).

329
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

A exgiéncia de fé, para quem ¡ngressa numa comunidade religiosa ou


nela vive,1 é proposta por autores católicos e também por Dietrich Bon-
hoeffer, pastor luterano morto em campo de concentrac§o em 1944. Es
te autor escreveu a respeito palavras lúcidas e fortes, que passamos a tradu-
zir, cientes de que tal depoimento tem grande peso:

"Querer mais do que aquilo que Cristo estabeleceu entre nos, nao é
desejar uma'fraternidade crista; 6, antes, ir a procura de nao sei quais expe
riencias comunitarias inéditas, que pensamos encontrar na Igreja, porque
nao as encontramos albures; é introduzir na comunidade crista o turbulen
to fermento dos nossos desejos. É aquí que a fraternidade dos fiéis corre
os mais graves perigos. E isto, na maioria dos casos, desde os primeiros
días: a intoxicacao por dentro, provocada pela confusao entre fraternidade
crista e um sonho de comunidade piedosa,... pela mistura de nostalgia co
munitaria que todo homem religioso traz dentro de si, com a rea/idade de
índole espiritual que a fraternidade em Cristo implica. Ora é da máxima
importancia tomar consciéncia, desde o inicio, de que a fraternidade cris
ta nao é um ideal humano, mas urna realidade dada por Deus, e... de que
esta realidade é de índole espiritual, e nao de índole psíquica."1

Sao incontáveis as comunidades cristas que pereceram por terem vivi


do de urna ¡magem quimérica da Igreja. Porcerto, é inevitável que um cris-
tao serio, ao entrar numa vida de comunidade, leve consigo um ideal preci
so do que ela deve ser, e tente realizá-lo. Mas é graca de Deus que esse tipo
de sonhos se/a sempe dissipado. Para que Deus nos possa dar a conhecer
a comunidade crista auténtica, é preciso mesmo que sejamos decepciona
dos, decepcionados pelos outros e decepcionados por nos mesmos. Em sua
graca, Deus nao nos permite viver, aínda que por poucas semanas apenas,
na Igreja dos nossos sonhos, nessa atmosfera de experiencias benfazejas e
de exa/tacao piedosa, que nos embriaga. Pois Deus nao é um Deus de emo-
coes sentimentais, mas um Deus de verdade. Eisporque somente a comu
nidade que nao receia a decepgao que inevitavelmente ela experimentará to
mando consciéncia de todas as suas taras, poderá comegar a ser tal como
Deus a quer e afcangar pela fé a promessa que Ihe é feita. Mais vale para o
conjunto dos fiéis, e para o fiel em particular, que essa decepgao se realize
quanto antes. Querer a todo prego evité-la e pretender agarrarse a urna

1 Essa comunidade pode ser a própria Igreja como tal; pode também ser
urna instituigao de vida religiosa existente dentro da Igreja.
2 O autor aqui alude á distingao, feita por Sao Paulo, entre o homem psí
quico (psychikós) e o espiritual (pneumatikós);c¿ 1Cor2,14s. Psíquico é
aquele que se orienta únicamente por principios e normas de índole natu
ral, racional, meramente humana. Ao contrario, pneumatikós é aquele que
tem em si o Espirito fpneumal de Deus e é por Ele orientado segundo cri
terios de fé e de índole transcendental.

330
COMUNIDADE IDEAL? 43

imagem quimérica da Igreja, destinada, sem dúvida, a se 'desinchar', é


construir sobre areia e condenarse, cedo ou tarde, a desfalecer.
Devemos persuadir-nos bem de que, transferidos para dentro da
comunidade crista, nossos sonhos de comunhao humana, quaisquer que
sejam, sao um perigo público e devem ser dissipados sob pena de morte
para a Igreja. Aquele que prefere o seu sonho á realidade, tornase um sa-
botador da comunidade, aínda que suas intencoes se/'am, segundo efe, per-
feitamente respeitáveis e sinceras.

Deus odeia o sonho piedoso, pois este faz de nos seres duros e pre
tensiosos. Leva-nos a exigir o impossfvel de Deus, dos outros e de nos mes-
mos. Em nome do nosso sonho, colocamos condicoes á Igreja e erguemo-
nos em juízes de nossos irmaos e do próprío Deus. Nossa presenca tornase
para todos como que urna censura permanente. Assemelhamo-nos a pes-
soas que pensam que poderao finalmente fundar urna auténtica comunida
de crista e exigem que cada qual compartilhe a imagem que elas conce-
bem. E, quando as coisas nao vao como quiséramos, ameacamos recusar
nossa colaboracao, prestes a proclamar que a Igreja desmorona quando ve
mos nosso sonho dissiparse. Comecamos a acusar nossos irmaos; depois
acusamos a Deus e, a seguir, em desespero de causa, é contra nos mesmos
que se volta a nossa amargura. As coisas sao muito diferentes quando nos
compreendemos que Deus mesmo já colocou o único fundamento sobre o
qual se pode estabelecer a nossa comunidade e que, antes de qualquer ini
ciativa da nossa parte, Ele nos uniu num só corpo ao conjunto dos fiéis
por Jesús Cristo; pois entao aceitamos unir-nos a e/es, já nao com as nossas
exigencias, mas com coracoes gratos e dispostos a receber" (De la Vie
Communautaire, pp. 21-23, extraído do livro de Fierre Miquel: La Voie
Monastique. Bellefontaine 1986, pp. 53-55).

COMENTARIO
1) As palavras do autor lembram, em última análise, que a Igreja nao
é urna sociedade meramente humana, mas um sacramento, um dom de
Deus revestido de humanidade. Daí a necessidade de nao se julgar a Igreja
segundo criterios meramente naturais. Assim como o Filho de Deus, em
sua Encarnacao, realizou obras admiráveis, mas também escandalizou,
porque nem sempre correspondía á expectativa dos homens piedosos de
seu tempo (cf. Me 2, 15-3,6; Mt 27,42s; Le 7,22s), também a Igreja tem
em seu favor facanhas em prol da evangelizado e da cultura, mas carrega
os traeos da realidade humana que a integra. Bonhoeffer admoesta: "Que
rer mais do que aquilo que o Cristo estabaleceu entre nos nao é desejar
urna fraternidade crista, mas ir á procura de..."

Os cristaos sempre foram tentados a imaginar urna Igreja de Santos


apenas, com exclusao dos pecadores; tal foi o caso de Tertuliano (+220

331
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

aproximadamente), dos donatistas (séculos IV-V) no Norte da África, e


de outros mu itos, que acabaram caindo na heresia e no cisma. S. Agosti-
nho Ihes lembrava a parábola do joio e do trigo (cf. Mt 13, 24-30. 36-
43): os servidores do patrio do campo que re m arrancar o joio logo que
aparece no campo, mas o patrio Ihes responde que nao o facam; o joio
deve créscer juntamente com o trigo até o fim dos tempos; somente entao
serao separados o joio e o trigo; a presenca do joio pode ser salutar, de
modo que querer arrancá-lo prematuramente pode implicar daño para o
trigo...
2) Por isto Bonhoeffer julga que é oportuno que o Senhor se encarre-
gue de dissipar qualquer ilusao subjetiva dos seus fiéis e os eduque na fé
para que possam apreender melhor o dom de Deus. "Deus nao é um Deus
de emocoes sentimentais, mas um Deus de verdade". Sim; a fé nem sem-
pre coincide com os sentimentos espontáneos e ¡maturos da pessoa. Os
autores místicos falam freqüentemente da noite dos sentidos e da noite
da fé; felizes aqueles que sabem atravessar a noite, certos de que após a
noite vém o dia e a plena luz!
3) Quem nao aceita o dom de Deus encarnado, mas o quer "a seu
modo subjetivo", pode tornar-se um "sabotador" da comunidade, urna
pessoa permanentemente crítica, infeliz e portadora de mal-estar para as
outras. Chega a criticar o próprio Deus e em lugar algum encontra repou-
so. Ao contrario, quem, movido pela fé, diz Sim ao dom de Deus, sabe es
tar unido a todos os fiéis no Corpo de Cristo prolongado, onde certamente
o Senhor I he faz chegar as suas grapas. Para tanto, requer-se também hu-
mildade,... humildade que nao é acovardamento nem capitulapao, masé a
única atitude digna da criatura diante da grandeza de Deus, que a quer
enriquecer.
4) O que estas reflexoes sugerem, nao é um conformismo mediocre,
"achatado", mas é o reconhecimento do designio de Deus, que quer vir a
nos de maneira soberana e ser reconhecido pela fé. Esta visao de fé tran
quila é plenamente compatível com a demanda da utopia que o Sermlo da
Montanha (Mt 5-7) recomenda aos discípulos de Cristo. Estes sao incita
dos a procurar ser perfeitos como o Pai celeste é perfeito (cf. Mt 5, 48);
incitados a se ultrapassar constantemente na procurada santidade, devem
saber oportunamente dar a face esquerda a quem os esbofeteia na direita,
a veste a quem deseje levar a túnica, caminhar duas milhas a quem os
obrigar a andar urna milha (cf. Mt 5,39-42). Isto quer dizer que os verda-
deiros discípulos de Cristo nunca se dao por satisfeitos na procura da per-
feicao pessoal ou na obra de sua santif¡cacao, mas vivem da fé, sem perce-
ber o fruto de seus esforcos, crendo que a fidelidade Ihes valere a coroa da
vida eterna, prometida pelo Senhor aos servidores bons e perseverantes.
Ver dois textos famosos do pé da pág. 328 deste fascículo.
Estévao Bettencourt O.S.B.

332
LIVROS EM ESTANTE

Deus e o Misterio do Tempo, por Henrí Boulad. TraducSo de Bar


bara Theoto Lamben. - Ed. Loyota, Sao Pauto 1992, 210x145mm,
157 pp.

0 autor é um /esu/'ta egipcio, que estudou na Franca, no Líbano e


nos Estados Unidos. Trabalhou em favelas, entre leprosos e doentes, além
de participar de profetos educacionais pioneiros. O presente iivro origina
se de palestras proferidas pelo autor, que merece o cognome de "Profeta
do Otimismo".

Escreve sobre o tempo, utilizando dados científicos (como os da teo


ría da relatividade) e propondo reflexoes de ordem filosófica e teológica
assaz profundas e valiosas. No Sumario do Iivro lemos os títulos de seus
sete capítulos: "Existem muitos tempos diferentes, A profundidade do
presente, A eternidade no coracao do tempo, A Sabedoría do Tempo, 0
passado continua, A Redencao do Tempo, Tudo é Graca".

Boulad narra varios fatos de sua experiencia e ilustra seus dizeres


com lendas e proverbios do Oriente, que dio sabor muito agradável a
urna temática em si ardua e árida.

Em síntese, o autor, que em última análise fala como cristao, quer


chamar a atencao para o valor do tempo, apregóando urna vivencia inten
sa e consciente do mesmo. Isto nao implica em cair em estafa; muito ao
contrario, o autor sabe relatívizar a corrida dos homens ao encalco de bens
transitorios, e esmerase por mostrar como o tempo está prenhe de eterni
dade, de tal modo que é preciso preenché-lo com valores correspondentes
ou que persistam por todo o sempre. — O tempo que alguém possa ter mal
vivido até boje, é posto sob a luz da graca redentora, de sorte a suscitar no
leitor fiel um olhar de confianca e otimismo sobre o futuro.

Digno espécimen do Iivro é o trecho que se lé ás pp. 19s:

"Existe urna saudapao em árabe: 'Allah yetavwvel omrak. Que Deus


prolongue sua vida! 'Contudo eu nao Ihes desejaria urna longa longa vida

333
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

se ¡sso significare apenas urna vida prolongada; eu Ihes desojaría urna vida,
o mais possível plena de satisfago interior. Alguns momentos vividos in
tensamente valem mais do que cem anos inúteis e desperd¡9ados. Nao é a
duracao, mas a qualidade que dá significado á vida.

Nao me interessa saber quantos anos vocé tem, porque conheco al


guns anciaos que sao tío argutos quanto jovens de vinte anos, e jovens de
vinte anos que agem como se tivessem oitenta anos, é o ánimo que deter
mina a nossa idade.

Gostaria de acrescentar alguns pensamentos que anotei no Líbano


em 1962:

'Nao é tempo que nos falta, falta-nos ánimo'. Nunca afirme nao ter
tempo. Em geral, sao as pessoas mais ocupadas que arranjam tempo para
outras tarefas, e as que tém mais tempo de lazer que se recusara, quando
Ihes pedimos que facam alguma coisa. Nao nos falta tempo, falta-nos
ánimo.

'O tempo verdadeiro nao é o do relógio ou do calendario, mas o


tempo da consciéncia'. Podemos ter quatro meses de ferias que valham
quarenta anos porque proporcionam experiencias tao ricas e intensas que,
em um verao, vivemos toda urna vida. Para outras pessoas, esses quatro
meses valem menos de quatro horas, porque foram um tempo vazio, de
mera ausencia. O tempo verdadeiro nao é o do relógio ou do calendario,
mas o tempo da consciéncia".

O livro merece grande apeco, pois, inegavelmente, lé-lo com vagar e


atencao "relaxa" a mente e reergue os ánimos.

A guisa de complemento, seja aqui transcrita outra interessante


seccao do livro:

"Certo dia um homem de negocios dirigíase ao trabalho, quando


viu um beduino sentado debaixo de urna palmeira da cidade, descansan
do e sonhando, como muita gente faz no Egito. Parou e perguntou:

- Que faz ai?


Respondeu o beduino:
- Como vé, estou sonhando, descansando...
- Sabe, poderla ganhar dinheiro se trabalhasse.
- E que faria com o dinheiro?
- Se ganhasse dinheiro, podería abrir um escritorio.
-Edaf?

334
LIVROS EM ESTANTE 47

— Daí poderia ganhar mais dinheiro e abrir urna fábrica.


-Edaí?
— Ai poderia ter urna bela casa de campo,
-ótimol Edaí?
— Ainda teria dinheiro para guardar no Banco.
-Sim. Edaí?
— Aipoderia sentar-se e descansar.
— Mas é isso que estou fazendo neste momento".

(Henri Boulad, Deus e o Misterio do Tempo. Ed. Loyola 1992, p. 65).

Os Sacramentos da Fé, por Cario Rocchetta. — Ed. Paulinas, Sao


Paulo 1991, 135x21 Omm, 453 pp.

O autor centra o seu livroem torno do conceito de "maravifhas de


Deus", conceito que na Biblia designa os fettos salvíficos do Senhor desde
o Antigo Testamento. Os sacramentos sao apresentados como ritos que
atualizam essas "maravilhas de Deus" em favor do seu povo até ho/e. Após
o Concilio de Trento (1545-1563), os teólogos se preocuparam muito
com a apologética, para responder aos protestantes. No sáculo XX, porém,
o interesse da Teología volta-se mais para a riqueza doutrinaría da S. Escri
tura, da Tradicao patrística e da Liturgia; poe em evidencia o fio condutor
da historia da salvacao: Deus fala aos homens e Ihes comunica os seus dons
mediante sinais sensiveis, que tém seu prototipo no éxodo do Egito (1240
a.C); a primeira Páscoa é penhor da Páscoa na plenitude dos tempos;por
esta última o próprío Deus se dé á humanidade como novo Adao, que con
tinua sua obra através dos tempos mediante a Igreja e os sete sacramentos,
que o Espirito Santo vivifica. Ele que é o Dom por excelencia.

0 livro vem a ser urna obra interdisciplinar, em que a Escritura, a Teo


logía Sistemática e a Liturgia se entretacam para oferecer ao leitor urna
notável e proficua sintese dos sacramentos em geral e de cada um dos sete
sacramentos em particular.

De Olhos Abortos para a Realidade, volume III, por Freí Paulo Aveli-
no de Assis. Centro Bíblico Católico, Caixa Postal 50500, CEP 03095-970,
Sao Paulo (SP), 225x 160 mm, 64 pp.

Este livro vem a ser um caloroso apelo missíonário dirigido aos fiéis
católicos. Em trinta breves capítulos, destinados a reunioes ñas paróquias
e comunidades religiosas, o autor apresenta dados estatisticos, textos dos
Papas e sabias ponderacdes que evidenciam a urgencia de novo empenho
pela transmissao da Boa-Nova: "De cada tres habitantes do mundo, dois

335
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

ainda nao conhecem Cristo" (Joao Paulo II). Observa o mesmo Pontífice:
"Povos nao cristaos crescem em populacao. E assim aumenta continua
mente o número de pessoas que ignoram... que Cristo é o Redentor" (En
cíclica Redemptoris Missio, n? 40). Acrescenta Frei Paulo: "Se cada ano
a Igreja conseguir converter 2.000.000 (o que agora ainda nao está conse-
guindo) em trínta anos conseguirá converter 60.000.000. Nesses trinta
anos terao nascido mais de 1.800.000 novos nao cristaos agnósticos, des
cremes, ateus, nao católicos" (p. 20). Estes dados despertam vivamente a
consciéncia católica para o seu dever expresso porJesús varias vezes, especi
almente no seu ato de despedida: "Ensinai a todos os povos" (Mt28, 19);
"Anunciai o Evangelho a toda criatura" (Me 16,15). Para que isto possa
acontecer, o autor explana o papel das escolas católicas, dos Seminarios,
dos meios de comunicacao social... Com referencia és escolas católicas cha
ma a atencao para o enorme investimento de dinheiro que exigem e o exi
guo aproveitamento desse meio para formar bons católicos, zelosos arau-
tos da mensagem; cf. pp. 28s. "Cristo detesta os momos, que nao querem
nada com nada (Ap 3, 16)" (p. 44).

Frei Paulo nao esquece o valor decisivo da oracao..., oracao missioná-


ria. Ha/a, pois, sempre o Momento da Oracao e... a Oracao do Momento
(pp. 48s). Pois, sem a graca de Deus, sao inúteis todos os esforcos de men-
sageiros e catequistas.

0 livro será valioso instrumento para fomentar grupos de ref/exao e


promover a Nova Evangelizacao, muito apregoada por Joao Paulo II.

0 Centro Bíblico Catequético de Sao Paulo publica outros livros,


oportunos para a preparacao da Crisma, a Catequese em geral, a Liturgia, a
leitura da Biblia... Serio Citéis aos nossos catequistas e ao povo de Deus na
sua totalidade.
E.B.

POR QUE NAO.. . ?

Por que nao sou protestante? Por que nSo sou espirita? Por que nao
sou ateu? Porque nSo sou macom? Por que nao sou Rosa-Cruz? Porque sou
católico? 0 fenómeno religioso: sim ou nao? Jesús, Deus e Homem? A
Ressurreicao de Jesús: FiccSo ou realidade? Os Milagres de Jesús: Historia
ou mito? Jesús sabia que era Deus? Os novos movimentos religiosos. Por
que nao sou Testemunha de Jeová? Por que nao sou Johrei?... Seicho-no-
ié? 0 Estado do Vaticano.

Opúsculos de fácil leitura. Pedidos á Escola "MaLr Ecéllfsiáe14**' -


Caixa Postal 1362,20001-970 ■ Rio ( 'J)
Preco unitario: Cr$ 30.000,00

336
Álbum com 110 págs. coloridas (30 x 23), texto histórico expli
cativo documentado, de autoría de D. Mateus Rocha O.S.B.
— Em 5 línguas, volume separado (portugués, espanhol, fran
cés, inglés e alemao).

Atende-se pelo Reembolso Postal


Preco sujeito a alteracao.

A SAIR:

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DO RIO DE JANEIRO

1590- 1990

Em Comemorapao do IV Centenario de sua Fundagao

440 páginas (30 x 23) de uma obra ricamente policromada


Texto histórico documentado por D. Mateus Rocha OSB

É a crónica corrida e compacta da construclo do Mosteiro, da sua


igreja e das obras de arte nele comidas. Resume as mais diversas contri-
buicóes que, durante sáculos, formaram o patrimonio da Ordem Benediti-
na na provmcia do Rio de Janeiro.

Palavras do renomado arquiteto Lucio Costa:

"Esse mosteiro — este monumento - é, sem dúvida, a áncora da ci-


dade do Rio de Janeiro. — Em boa hora o intelectual e fotógrafo Humber
to Moraes Franceschi que já nos deu a obra-prima "O Ofi'cio da Prata",
resolveu fazer, com o pleno apoio do engenheiro-Abade D. Inácio Barbosa
Accioly (falecido a 26 de maio de 1992) — impecável dono da esa — este
definitivo inventario visual, velho sonrio de D. Clemente da Silva Nigra."

De D. Abade Inácio Barbosa Accioly:

"Hoje o Mosteiro é realmente a áncora da cidade do Rio de Janeiro.


É igualmente foco de luz ardente que, sem qualquer ostentacáo ilumina to
dos aqueles que aqui vivem, que aqui vém louvar o Senhor, ou que aqui
encontram alimento para a chama misteriosa de sua fé — pois o Mosteiro
nao é um simples monumento ou um museu, mas uma casa viva a irradiar
a presenca de Deus."

Oa mesma obra, álbum com 110 págs. (30 x 23) somante sobra a IGREJA OE SAO
BENTO. em S volumes seprados ñas linguas portuguesa, espanhola. francesa. Inglesa a
alema.

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