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Capa

Capa original do livro em impresso

Cetim Vermelho

© Copyright 1996-2009 by Osair de Sousa.


All Rights Reserved. This story may not be reproduced in any form or distributed without the author's
explicit written permission.
Email the author. mailto:osairdisousa@yahoo.com.br
Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,
O maior desejo de Cícero Romão era dormir naquela cama. Não sozinho,
é bom deixar claro, mas com Mariana. Era imensa, redonda e com lençol de
cetim vermelho, sem contar o fantástico labirinto de espelhos que multiplicava
tudo naquele quarto. “Essa gente tem bom gosto”, pensava enquanto criava
em sua imaginação, que era um baú de fertilidade erótica, as maiores loucuras
de amor com sua amada. Aquilo parecia, para ele, ter sido feito na medida
para uma gata como Mariana, que era todas as mulheres em uma. “Isso aqui é
o verdadeiro Paraíso para a minha Eva”.
De vez em quando surgia em sua mente uma pequena dúvida, própria dos
que acalentam desejos quase impossíveis: será que ela iria gostar? Achava que
sim. “Mariana gosta de vermelho”, dizia a si mesmo. Ela era, na sua
compreensão, a verdadeira mulher, fêmea de fazer qualquer homem se mais
homem e, “mulher assim”, repetia em pensamento, “é fogosa, adora cores
fortes e sensuais”; aquela cor passara a ligá-lo ao anseio de possuí-la a
qualquer custo. “Nossa primeira vez vai ser aqui”, sentenciou.
Ainda estava nítido nas lembranças de Cícero o reencontro com Mariana,
quinze anos depois que se mudara da sua cidade natal. Ela estava vestida com
uma saia vermelho-sangue, justa, curta, revelando as pernas mais belas que já
vira, embora o seu julgamento não possa ser considerado como de uma lúcida
imparcialidade.
Lembrava, ainda, que estava com os cabelos trançados, batom rosa-choque
e um top jeans que revelavam seios fartos que o deixara quase sem fôlego e o
fez redescobrir dentro de si um reprimido amor adolescente. Para ele, ali
estava a razão do seu existir, o motivo de ainda estar solteiro aos 32 anos de
idade.
Só não ficou mais feliz ao revê-la porque se encontrava de braços dados com
Reginaldo. Tinha se casado com um de seus amigos de infância. Pediu perdão
a Deus e ao padre Cícero, seu padrinho, pela desmedida inveja que sentira de
Naldo.
O vermelho passou a ser, desde então, a sua cor preferida. Dele e, por
dedução própria, de Mariana também. Trocou o fusca branco por um
vermelho; passou a torcer para todo o time “rubro-qualquer-coisa”.
Aquela cama ficou associada à Mariana desde o dia em que estivera
naquela suíte executiva do Delírio Motel para fazer reparos no sistema
hidráulico, imaginou-a ali, ao seu lado. Ficaria olhando seu corpo moreno por
todos os ângulos naquele mundo de espelhos. Imaginava que seria perfeito
para a primeira noite deles. Ele sabia que, com Mariana esparramada no cetim
vermelho, à sua disposição, a amaria de todas as formas de que já fora capaz
de imaginar. Proporcionaria-lhe prazeres nunca antes imaginados por ela.

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“Quem sabe não estou perto de realizar esse meu sonho?”, pensou com uma
esperança consoladora.
Passados quatro anos daquele reencontro, e ainda distante de qualquer
contanto com Mariana, ela e o marido vieram morar numa casa amarela em
frente à de Cícero Romão. No início ficou mais desolado que satisfeito, afinal
saberia, mesmo involuntariamente, que todas as noites em que olhasse para
aquela casa veria o “outro” desfrutando da mulher de sua vida. Porém e para o
seu consolo, teria a oportunidade de vê-la com mais freqüência.
Os fatos se desenrolaram de uma forma que o fez achar que essa
vizinhança havia sido um golpe de sorte. Por terem sido amigos na
adolescência, o casal continuamente o convidava para visitá-lo. Qualquer
acontecimento era motivo de se reunirem: aniversários, Natal, Ano Novo, tudo
valia uma confraternização dos “conterrâneos”.
Cícero, apesar de agora achar que estava solteiro por causa de sua amada
Mariana, na verdade não conseguia se imaginar como um ser monogâmico.
Tinha várias e renovadas namoradas, mas nunca as levava para a sua casa
desde que a sua deusa e o sacana do Reginaldo foram morar na mesma rua.
Conscientemente, como parte de seu ainda indefinido plano de conquista,
queria que Mariana pensasse que ele era um ser solitário e carente. Com essa
tática, esperava despertar a compaixão de Mariana e, “nunca se sabe”, talvez
ela pudesse num momento de altruísmo sexual, desejar consolá-lo. A sua
cobiça daquele corpo, ainda imune aos seus caprichos, levava-o a estes tipos
de deliro.
A oportunidade tão esperada chegou num domingo, quando fora almoçar
na residência do casal. Enquanto esperavam a comida ficar pronta, ficaram
bebendo cerveja e ouvindo discos da coleção de musica sertaneja. Falaram
sobre o jogo da tarde e discutiram sobre quem ganharia a partida. Reginaldo
era torcedor do alviverde time do Goiás e, Cícero, que num momento em que
já sabemos, passou a torcer pelo alvirrubro Vila Nova, como seria de esperar,
não chegaram a um acordo.
O almoço terminou quase na hora da partida e, como o convidado não era
de ir a estádios, Reginaldo, para um total e indisfarçável espanto de Cícero,
pediu-lhe que fizesse companhia à esposa enquanto iria, com mais alguns
amigos de trabalho assistir ao jogo. Não a queria solitária numa tarde de
domingo. Com uma explosão de alegria interna, concordou com a “tarefa”.
Ele e Mariana continuaram a beber e a relembrar episódios do tempo em que
moravam no interior. Ela usava short de jeans e uma camiseta sem mangas de
um candidato a deputado. Cícero sentia calafrios pelo corpo ao ver os
movimentos sensuais daqueles seios, livres de sutiã (e do marido), sob um
tecido tão fino e insinuante. Tinha dificuldades de acompanhar a conversa
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com a coerência necessária. Some-se a isto o fato de já terem bebido bastante
cerveja.
Mariana levantou-se para colocar um outro cd para tocar, enquanto Cícero foi
até a cozinha buscar mais uma garrafa gelada. Viu que era a última. Enquanto
a abria, achou que se queria finalmente realizar o seu louco desejo, a hora era
aquela. Só não sabia como começar o ataque, pois além da ansiedade, ela não
abria nenhuma brecha. Voltou para a sala e anunciou que era a última “cerva”
que havia na geladeira.
“Agora que tá ficando bom?”, ela disse dengosa, fazendo biquinho. “Eu
morro”, pensou Cícero com o coração descompassado. Não pensou duas vezes
e a convidou para irem à sua casa, “onde devia ter ainda, umas quatro
garrafas”. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, falou que Reginaldo
poderia demorar. “É só deixar um bilhete dizendo que fomos pra lá”. Para seu
espanto, ela concordou. “Mas antes vamos terminar essa aqui e, depois eu vou
tomar um banho rápido, tá bem?”.
Claro que estava tudo bem. Mariana cantava, acompanhando a música que
saía das caixas de som, com olhos fechados, cheia de emoção etílica. Cícero,
de boca aberta, a olhava fascinado, contendo um ataque desesperado de
paixão libidinosa.
Ouvindo o barulho da água que caía do chuveiro e imaginando-a embaixo
sem aquela roupa “indesejável”, não resistiu. Como a velha porta do banheiro
tinha algumas frestas, aproximou-se sem fazer barulho e pôde vê-la,
finalmente, melhor do que sempre a via em seus sonhos e pensamentos.
Nuazinha, como nasceu. Como nasceu, não: era uma linda mulher de corpo
moreno e bem feito, com seios empinados e púbis de pêlos negros e
abundantes. Sentia o sexo arder, pulsando acelerado ao ritmo do coração. Teve
que se conter, com muita dificuldade, para não arrombar a porta. Alisou-se
sobre a calça, suou frio e quase se masturbou - não o fez por ter sido um
banho rápido. Logo estava caído na poltrona, de pernas bambas, trêmulas.
Foram para a sua casa. Ela estava com aquela saia que usava no dia em que
se reencontraram. “Isso é um sinal”, pensou satisfeito. A blusa de malha
revelava que ela não tinha colocado sutiã. “Meu Deus... É hoje! É hoje...”. Já
acomodados, com os copos cheios, música no microsystem, Mariana,
convidou-o para dançar. “Ela também tá querendo”, pensou cheio de
entusiasmo e tesão. Mas não conseguiu se levantar; as pernas trêmulas,
somadas à grande quantidade de bebida, não o obedeciam. “Não sei dançar”,
mentiu.
Mariana não se fez de rogada e ficou dançando sozinha, sorrindo,
irradiando felicidade. Cícero contou a ela o trabalho que tinha feito no Delírio
Motel. Ela perguntou-lhe como era o quarto. Contou com detalhes, sem
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esquecer de dar ênfase à colcha que forrava a imensa cama e aos espelhos.
Tomou fôlego e coragem para dizer que achava que aquilo tudo combinava
com ela. Principalmente a colcha de cetim vermelho. "É lindo aquele quarto,
cê iria adorar", disse, "se... se você quiser... posso te levar lá para ver".
Ela nada disse. Continuou a dançar sorrindo. Depois de algum tempo
falou: "E como é que a gente iria? Todo mundo conhece seu carro
vermelho...", falou. “Meu Deus, ela estava topando!” Sentiu o coração na boca
e uma indesejável falta de ar. "Vamos de táxi...", voltou a dizer, com
dificuldade.
Ela ficou pensativa, por instantes que lhe pareceram eternos. Olhou-o nos
olhos, parando de dançar e Cícero vendo um olhar de gata no cio, se remexeu
na poltrona. Não suportou o suspense: "Vamos Mariana, cê nunca mais vai
esquecer!".
A música chegou ao final. Ela pediu mais uma cerveja e ele, meio
cambaleante, foi buscar. Voltou com copos limpos e os encheu. Entregou um
para Mariana que já estava sentada e meditativa.
Aproximou-se dela e ao levar as mãos em direção aos seus cabelos, ela se
esquivou e disse que ainda estava pensando. Passado alguns “eternos”
instantes ela disse: "Acho que não vou não”. “Mas porquê?”. Havia desespero
e incredulidade na voz de Cícero. “Cê vai adorar, mesmo!...”.
Ela o olhou com certa tristeza e disse: “é que eu não gosto de vermelho... E
tenho alergia a cetim”.
Cícero não desistiu, ainda, dos seus sonhos com Mariana. “Ela ainda vai
terminar percebendo o quanto a desejo, o quanto de prazer posso lhe dar”.
Contudo, desde esse dia ele passou, também, a ter verdadeira aversão por
cetim e pelo vermelho.
Vamos ser justo com Mariana e solidário com Cícero: cetim vermelho é, na
verdade, uma peça de um tremendo mal gosto!

A Mulher do Ministro

A pessoa que ligou disse que era do gabinete da Presidência. Nice, uma
eficiente secretária apressou-se a repassar a ligação. Ele impostou a voz e
limpou um fio imaginário no paletó.
-Pois, não? Deputado Sandro Albuquerque falando...
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-Oi, deputado... Como vai?
-Desculpe... Quem está falando? Não é da Presidência?
- Não, nobre deputado... Eu acho que é bem melhor que qualquer
presidência.
- É mesmo? Qual o seu nome? Trabalha aqui no Congresso?
- Não, mas vi você no restaurante do Senado, na semana passada... Não o
conhecia de perto. Gostei... E pode me chamar de Mara.
- E posso saber o que fazia no restaurante do senado, Mara? – aquela
conversa, estranha, fora do comum, estava agradando ao deputado Sandro,
num dia especialmente chato e repleto de reuniões improdutivas. Uma maluca
inteligente, com uma voz sensual e cheia de promessas, era um bom pretexto
para quebrar a rotina.
- Tinha até lá para encontrar um velho amigo, de Santa Catarina -. A voz
era melodiosa, parecia até apresentadora de telejornal da Globo.
- E qual o motivo da ligação, senhora?
- Dispenso o “senhora”, deputado...
- Dispenso o “deputado”, Mara...
- Ótimo. Acho que estamos na direção correta. Voltarei a ligar, Sandro.
Avise à sua secretária... Assim não preciso dizer que é do gabinete de
Presidência, não é?
- Não vai dizer o motivo da ligação, Mara?
-...Puro desejo de conhecê-lo melhor. Mas teremos tempo... Ou não?
- Claro. Ligue, sim. Estarei aguardando.

Voltou a ligar outras vezes. Deixou escapar de propósito que era casada,
mas gostava de variar um pouco. Duas semanas depois, marcaram um almoço
para que ele a conhecesse. O deputado não se empolgara nem um pouco com
esse acontecimento. Estava casado há pouco tempo com Luciana, sobrinha de
um senador de Alagoas e ainda se encontrava na fase do homem apaixonado e
fiel. O simples fato de marcar um almoço com uma estranha e sedutora
mulher, dera-lhe um certo remorso, daqueles que só recém-casados têm.
Desmarcou o encontro.
- Estou num período de muito trabalho, votações da reforma, entende?
Vamos esperar a poeira baixar, aí podemos ficar mais à vontade.
Mara não voltou a ligar. O deputado, ocasionalmente lembrava-se da
mulher misteriosa e sentia um vago arrependimento de tê-la despachado.
Numa noite, sozinho em seu apartamento funcional, sonhou com uma bela
mulher que o beijava e se esfregava sinuosamente por todo o seu corpo com
extrema sensualidade. "Olha só o que você perdeu... Só penso em você, só
queria você por uma noite...", dizia-lhe no sonho. Acordou com o toque
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insistente do telefone. Pensou, entre preocupado e ansioso, que pudesse ser
ela. Não era. Fora uma ligação da secretária do ministro da Agricultura. “Até
que não foi um sonho ruim”, pensou, enquanto se levantava para mais um dia
de uma agenda lotada.
Ao final da tarde, uma surpresa.
- A senhora Mara na linha. O senhor fala com ela?
Pensou por alguns instantes e sorriu o sorriso do macho gostoso. Não era
um ato involuntário – realmente era sincero com o seu narcisismo.
- Falo. Pode passar... Alô! Como vai a minha misteriosa sedutora?
- Bem. Estou ligando para saber se já está tudo limpo por aí e, também,
para reiterar o meu convite para um almoço...
- Como assim, “limpo por aqui?...”
- A poeira ainda não baixou?
- Ah! Entendi... Baixou um pouco. Podemos marcar para qualquer dia
desta semana, você é quem manda...
Estava resolvido a saber se ela valia um remorso. Não já invadia até os
seus sonhos? Luciana estava na praia com a família dela. Não teria com o que
se preocupar. Motivos e desculpas não lhe faltavam. “Tô precisando de um
pouco de adrenalina sexual, mesmo”.
Mara, a senhora Negrini, sugeriu o Gerônimo, um restaurante freqüentado
pela High-Society de Brasília. Sandro percebeu que ela queria jogar no seu
campo. Para ele estava tudo bem, ela é quem convidava.
"Acho que sou um pouquinho mais velha que você..." Havia dito essa frase
como se pedisse, antecipadamente, desculpas caso não o agradasse. O
deputado não se importava com essa coisa de mulher “um pouco mais velha”.
Para ele, experiência era um aditivo altamente excitante. Na verdade ficou
ainda mais curioso depois dessa informação. Imaginou que ela devia ter uns
36, 38 anos. Ele, com 34 bem vividos, disse-lhe adorar que fosse assim, o que,
de certa forma, a tranqüilizou.
Perguntas e respostas importantes:
- Como vou saber quem é você?
- Estarei sentada numa das mesas do fundo, vestido azul-turquesa...
- Como é o seu cabelo? (Não era tão importante assim, mas...).
- Curto, liso, corte chanel e ruivo. Mas eu te conheço, não é? Quando você
entrar, acenarei discretamente.
Tudo certo para o dia seguinte. À noite, ligou para Luciana. Disse estar
com saudades e que a amava. Por que resolveu ligar e dizer isso, ele não
soube ao certo, mas que disse a verdade, isso disse. Encontrava-se num
período de tranqüilidade conjugal, curtindo essa nova fase da vida. Luciana

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era quase tudo o que esperava de uma mulher: inteligente, alegre, com um
corpinho maravilhoso de falsa magra, uma fera ávida e prazerosa na cama.
Sandro Albuquerque dizia sempre, a si mesmo, que nascera com muita
sorte. A mulher idealizada, emprego bom e bem remunerado, com grandes
oportunidades de negócios altamente lucrativos; cantadas e mais cantadas de
belas mulheres, que lhe envaideciam, mas não o apeteciam tanto assim.
É claro que antes do casamento não tivera sido tão comportado como
estava sendo nos últimos tempos. Mas hoje em dia, sim. Sim, até a rica e
divorciada senhora Negrini passar essa inusitada e original cantada que
despertou, afinal, o lobo hibernado.
É bem verdade que ele idealizava a típica senhora Mara Negrini: “de
família rica, casa-se com outro do metiêr, tem filhos, passa as horas vagas, que
são todas, em academias, para manter o corpinho sempre em forma e, é claro,
paranóica por dietas. Tempos depois, o maridão descobre que tem outra
paixão e vai morar junto com um antigo colega de faculdade. Divorciam-se.
Ela começa a dar para os amigos dele e, ele, só para o amigo”.
Tudo isso lhe vinha à mente na manhã que antecipava o almoço. “Deve
estar em jejum há muito tempo”, e isso, também, era-lhe excitante. Luciana já
está fora há quase quinze dias, conseqüentemente, não se agüentava mais em
sua libido reprimida.
Chegou ao meio-dia e meia. Olhou para as mesas situadas nos fundos do
restaurante, que estavam desocupadas. “Bem, como toda boa mulher, está
atrasada”. Sentou-se e pediu um conhaque, pronto para esperar. Olhava, num
estado de ansiosa curiosidade, ora para as mesas ocupadas, ora para a porta de
entrada. O coração acelerou: acabava de entrar uma balzaquiana gatíssima que
olhou em sua direção com um maravilhoso sorriso. Mas, era loura. Xingou
mentalmente olhando para o relógio. A loura foi para uma mesa onde estava
um casal de meia-idade. Tentou se acalmar; pediu outro conhaque e o
saboreou vagarosamente.
Toca o celular. Era a sua secretária, apavorada, avisando que seu amigo
ministro tinha sido fritado. “Logo agora, no horário do almoço?” Bom, não
havia hora melhor...
Deixou algum dinheiro em cima da mesa e saiu apressado para o
Ministério. A queda de seu amigo iria afetar de forma considerável a sua conta
bancária e, lógico, a dele também. O restante do dia foi um enorme corre-
corre. Conseguiu chegar ao final da noite estropiado, mal conseguindo ficar de
pé. Não havia nada que pudesse ser feito, a não ser um discurso veemente
contra "a insensata e injusta atitude do presidente, a quem sempre tenho
prestado todo o meu apoio, com entusiasmo e abnegação, pelo bem do nosso
amado país".
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Somente no outro dia lembrou-se de Mara, a senhora Negrini, que não deu
sinal de vida, senão dois dias depois, num breve e patético telefonema.
-Você foi surpreendentemente deselegante. Deixar-me sozinha,
esperando... Francamente, não esperava isso de você... Adeus! - Desligou
antes que ele pudesse me explicar. Ficara furiosa de verdade e, Sandro sentiu-
se com um amargo gosto de derrota, de frustração.
Conhecia o novo ministro só de nome. Sócrates Macedo. Precisava pensar
em um modo de me aproximar dele. Poderíamos fazer bons negócios juntos.
Convidado, foi à sua concorrida posse. Viu o ministro sorridente e garboso ao
lado da esposa, recebendo os cumprimentos, sendo apresentado aos
convidados. O deputado Sandro Albuquerque apertou-lhe a mão
vigorosamente, desejando sucesso frente à nova empreitada e colocando seu
mandato e a sua experiência inteiramente à disposição de sua excelência, “a
qualquer hora”. O ministro agradeceu, sempre com o ensaiado sorriso na face,
e o apresentou à esposa.
- Minha adorável esposa, Mara Negrini Macedo, senhor deputado.
- Tenho a impressão de conhecê-lo, senhor... - Sorria. A beleza de Mara era
a mais estonteante e maravilhosa que já tinha visto - simplesmente um
monumento, apesar daquele sorriso, que lhe dirigia, estar impregnado de um
cinismo que o deputado foi obrigado a suportar...
“Pelo bem desta Nação” – consolou-se.

O Ciúme

Um dia, Jussara se saiu com essa:


- Já me cansei de ficar ouvindo que você tem um caso...
- Quem tá dizendo?
- Isso não vem ao caso.
- Se estão dizendo que tenho um caso, isso vem ao caso, sim!
- Não vem, não! Além do mais, essas coisas ninguém diz, a gente
simplesmente ouve.
Olhava-o nos olhos, encostada na porta do banheiro, enquanto ele, com a
cara cheia de espuma, fazia a barba. Falava com a naturalidade de quem
comenta algo banal do seu cotidiano prosaico.

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- Que tipo de caso e com quem? - Perguntou, abrindo a torneira sobre o
barbeador.
- Isso eu também gostaria de saber. Ontem mesmo ouvi comentários, por
acaso, na festa da Maria Júlia. Estava com cinco uísques na cabeça, não deu
pra ouvir muita coisa. Só ouvi falarem que "o João Augusto está dando
bandeira com essa nova namoradinha".
- Querida, aquele uísque deve ser do Paraguai, senão você não teria ouvido
algo tão falso. Você acredita que eu esteja realmente com um caso?
- Por que não? Tem gosto pra tudo, João.
- Disso eu sei... Há muito tempo, desde que me apaixonei por você...
- Cretino! Você tem ou não tem um caso novo por aí?
- Nem novo, nem velho. Agora, processos para resolver, no escritório, eu
tenho muitos, tanto novos como velhos. E é disso que eu tiro a grana que você
gasta sem piedade...
- Gasto para ficar mais bonita pra você, mas parece que isso não está
adiantando muito, já que você tá de caso com alguma dessas garotinhas
magricelas e insossas...
- Chega, Jussara. Essa conversa não vai levar a lugar nenhum, além de
estragar o meu dia que, por sinal, começa muito mal! E vê se faz alguma coisa
de útil – me arranja uma toalha limpa, vai!
Jussara jogou-lhe a toalha que trazia nas mãos. Ficou calada, com uma
expressão de raiva contida. Ele enxugou o rosto e examinou a imagem no
espelho, sem tomar conhecimento da esposa. Voltou para o quarto e a deixou
ali na porta, indo direto ao armário escolher uma camisa e uma gravata, tarefa
que se mostrou complicada, já que pensava, aborrecido no quanto Jussara
estava sendo eficiente e cheia de imaginação naquele quesito de infidelidade.
“Injusta. Isso mesmo, ela é bastante injusta comigo. Logo eu que me
comporto, nesse casamento de merda, com uma lealdade canina”. Escolhidas
as peças, caminhou até o espelho para terminar de se vestir. Jussara voltou
com o telefone estendido para ele, ainda com rugas de mulher magoada.
- É o Marcelo.
Pegou o aparelho. Falava e ouvia, enquanto alisava o rosto com a palma da
mão ainda úmida de loção pós-barba. Teria que viajar logo após o almoço,
ficou sabendo. Marcelo o estava enviando para Manaus, em caráter de
urgência, para fazer auditoria em uma empresa daquela cidade. Comentou o
assunto com Jussara.
- Quanto tempo vai ficar?
- Não sei, talvez uma semana...
- Vai sozinho? - Havia ironia em sua voz.
- Não, querida, vou com uma loura que você conhece: a bicha do Eduardo.
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- Aposto que sua namoradinha vai pegar o vôo seguinte pra te encontrar
livre e solto na floresta...
- Querida, dá pra encerrar esse assunto? Eu não tenho nenhuma
namoradinha ou coisa semelhante. Portanto, vou sozinho, numa viagem de
trabalho solicitada por meu chefe, tá bem?!
- Chefe que por sinal é um galinha, né? Deve te acobertar nos seus rolos...
Solidariedade masculina, que eu conheço bem!
- Aí, que saco! O que eu fiz pra merecer isso? Me diga, Ju, já dei algum
motivo pra desconfiar de mim, já? Diz alguma coisa concreta, diz algum
nome... OU então pára de me aporrinhar!
- Não tou te aporrinhando. Estou é cansada de ouvir todo mundo
comentando...
- Francamente, querida, depois de dez anos de casada você começar a ter
ciúmes... O café está servido?
- Já... Como sempre – fez cara de choro. - Não é ciúme, não. Só espero ser
informada, com antecedência, se não estiver sendo o suficiente para você. Não
nasci com chifres e quero morrer assim.
João Augusto esboçou um sorriso. Achava ridículo ela acreditar que ele
poderia ter outra. Com trinta e nove anos, Jussara era uma mulher bonita,
desejável e ardente. Como ele não era muito exigente em matéria de sexo –
tinha mais tesão no intrigado jogo do Direito -, Jussara era muito mais do que
ele poderia querer. Às vezes até achava que não a satisfazia completamente
em sua insaciável libido, mas ela nunca reclamava. Assim, ia levando a vida
tal qual planejara: uma mulher bela, um possante carro importado, uma
excelente e confortável casa e um emprego numa importante firma de
advocacia, sua maior paixão. Na firma, foi falar com o chefe e amigo.
- Então, qual é o problema que temos que resolver?
- Coisa corriqueira. Nesta pasta estão todos os documentos que você vai
precisar para se familiarizar com o caso. Acho que em cinco dias você vai
resolver o assunto. Me liga e me deixe bem informado sobre o desenrolar dos
fatos.
- Tá. Pode ficar tranqüilo que vou tentar fazer um bom trabalho.
- Sei disso, confio em você meu chapa, por isso o escolhi. Mas você parece
meio aborrecido... Se quiser escalo outro pra fazer esse trabalho.
- Não, claro que não. Você sabe que eu gosto de desafios... O problema é
Jussara que deu agora pra ter crises de ciúmes, dá pra acreditar?
- A Jussara?... Vem cá, João, tá pulando a cerca, amigo? Se tá comendo
fora tem que fazer direitinho...
-... Claro que não, Marcelo, pô, cara, você me conhece! Não sei de onde
ela tirou essa idéia, além disso ela nunca foi de ter essas crises de ciúmes...
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Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,
Mulher é bicho difícil de entender, bem diferente do Código Civil.
- Mas o negócio não é entender, João, o negócio é usufruir, meu amigo.
Aproveita a viagem e usufrua as selvas trópicas das manauaras, mulheres com
uma maravilhosa ecologia! Você vai ver que é muito melhor do que qualquer
obra do direito...
- Não, obrigado pela dica, mas só pretendo mesmo é fazer o meu trabalho.
Não tenho coragem de fazer isso com a Ju, aliás, não preciso mais do que ela.
E você a conhece, Marcelo; além de uma bela mulher, é carinhosa,
apaixonada, nunca me deu motivos pra desconfiança. Tenho um bom
casamento.
- Realmente é uma grande mulher e, você, João, um raro exemplar de
monogamia. Um exemplar que eu pensava que já estava extinto. Eu, por
exemplo, ainda não encontrei mulher que me fizesse nem ao menos considerar
essa hipótese. Coisa que eu acho que nunca vai acontecer... Tantas mulheres
boas, cheirosas e lindas por aí que eu chego até achar que é um pecado ficar
com uma só...

À caminho do aeroporto, rememorando os acontecimentos daquela manhã,


percebeu que Jussara estava muito mudada. Não era só a repentina e
inesperada cena de ciúme, não. Era algo mais sutil, que não captava bem e,
muito menos, conseguia imaginar quando começou essa presumida mudança,
nem exatamente qual era. Mas alguma coisa estava fora da ordem estabelecida
naquela relação. "Deve ser a pré-menopausa", sentenciou para si mesmo, com
o intuito de encerrar o episódio e se concentrar nos documentos que teria que
estudar durante o vôo. "Vou dar mais atenção a ela, quem sabe levá-la pra
fazer um cruzeiro nas Bahamas? É isso. É uma boa idéia", concluiu.
Final da tarde. Em sua casa, Jussara com uma incontida ansiedade, discou
um número. Aguardou alguns instantes e sentiu-se aliviada ao ouvir a voz do
outro lado da linha.
- Oi, sou eu... Morrendo de saudades.
- Oi, minha princesa. Eu também.
- Você me deixa maluca, gatinho... Mas estou com medo... Dá pra
entender? Medo e tremendo de desejo?
- O desejo eu entendo, também tou assim... Mas medo... Medo de quê, meu
amor?
- Não sei explicar bem. O João é irritantemente fiel... Fiz até uma cena de
ciúmes pra ver se ele dava alguma bandeira... Pra desencargo de consciência,
entende? Mas ele realmente só pensa em trabalho...
-...E muito pouco em você, né?
- Acho que eu sou muito fogosa e ele muito morno... Quê que eu faço?
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- Olha, querida, eu sou suspeito pra responder a esta pergunta. Você sabe
que eu, mais que ninguém, quero me queimar nesse fogo. Ainda mais agora
que a gente tem uma semana inteira só pra nós dois...
- Ai, que droga! Minha consciência está pesando uma tonelada, meu
amor...
- Eu te entendo, querida. Confesso que também não estou muito à vontade
com a situação... Não depois da conversa que tive com ele. O João te ama de
verdade e acho que jamais tocou em outra mulher depois que te conheceu.
- E agora?
- Bom, talvez possamos consertar as coisas...
- Como?...
- Você gosta mesmo dele?
- Claro que gosto, você sabe que eu gosto, mas eu preciso de sexo, muito
sexo... Do tipo que você sabe fazer tão bem...
- Quem sabe uma mudança de clima possa ser a solução!? Cinco dias em
Manaus com o João, uma conversa franca... E muito guaraná em pó!
- Ir pra Manaus?...
- Sim, porque não? E não se preocupe que eu arranjo tudo... Afinal arranjei
essa viagem pra ele, não foi?
Desligou prometendo pensar na oferta. Talvez o cretino e querido João
Augusto só precisasse de um incentivo seu... Isso mesmo, quem sabe?

Equívocos

Encontrou Reginaldo no shopping, depois de quase um ano sem se verem.


Fizeram uma festa de cumprimentos, com aperto de mãos, abraços, sorrisos e
frases curtas do tipo "há quanto tempo, hem?", "Cê sumiu, cara!", "Poxa, que
bom te ver!", "E aí?" Foram tomar uns chopes para comemorar o reencontro.
Reginaldo colocou a sacola que trazia na mão em cima de uma cadeira vazia.
Sentaram-se.
- E aí, o que cê anda fazendo, cara!
- Trabalhando, trabalhando, Naldo! E você?
- Vivendo a vida como Deus quer...
- Fazendo compras? - Perguntou Zé Mário olhando para as sacolas.
- É. Gastando um pouco... Comprei umas lingeries maravilhosas, quer ver?
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Zé Mário estatelou os olhos, involuntariamente, ao mesmo tempo em que
segurava de Reginaldo.
- Não! Guarda isso aí, cara.
- Qual é amigo? São só uma calcinhas!
Acreditava em tudo: no presidente, no Maluf, em duendes, fadas... Mas
que o Reginaldo pudesse virar bicha, jamais. Da turma era o galinha de maior
e incontestável sucesso. Desconfia até que já tivera um caso com sua mulher
quando ainda eram namorados. Reginaldo percebeu o ar apalermado, meio
estado de choque, do amigo.
- Quê que foi, Zé, tá sentindo alguma coisa... Não está se sentindo bem?
- Eu?, bem... Eu tô bem, sim, mas... Lingerie, Naldo?... Você comprando
calcinhas?!
- Hum, hum! Amanhã é aniversário da Tininha. Ela adora calcinhas vermelhas
e pretas e, cê precisa ver, fica sensacional em seu corpinho moreno.
Suspirou aliviado, discretamente, para que ele não desconfiasse do que havia
pensado. Afinal, todo mulherengo que se preze é também um machista
empedernido e, sendo assim, poderia romper com aquela amizade de toda uma
vida. Deus existe, pensou. Não suportaria ver o seu grande e por tanto tempo
ausente amigo rodando bolsa por aí. Brincou, satisfeito em ver que ele era
ainda o mesmo velho Reginaldo.
- Bem, Naldo, precisar ver eu não preciso, mas se você faz questão...
- Aqui, ó! - Esticou o dedo médio em sua direção. Riram.
Reginaldo perguntou pelo casamento do amigo, não sem antes desfiar um
rosário de adjetivos qualificativos sobre Tininha.
- Porra, Naldo, parece que desta fez você se amarrou de verdade, hem?
Também estava passando da hora... Nunca se casou?
- Não, jamais. Meu currículo está limpinho nesse quesito, agora também
estou mudado, sou outro. A Tininha me fez ver a vida por outro ângulo, deu
um novo colorido, um sabor que nunca havia experimentado antes na minha
vida...
Quinze chopes, novos abraços, recordações dos “bons tempos” e promessa
de se encontrarem na festa de aniversário da Tininha.
- Você vai ser meu convidado especial, cê sabe disso, cê sempre foi um
amigo especial.
- Vai ser um prazer, meu caro! Vamos entortar os chifres de cachaça!
- Então, sexta. Não esquece. Nós vamos te esperar... Vou até abrir uma
cachaça de Minas que venho guardando pra ocasiões especiais, hem!?
- Tá legal, pode contar comigo, então eu deixaria passar a oportunidade de
conhecer a sua Tininha? Ela deve ser muito especial, mesmo, pra fazer você
mudar desse jeito.
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- Sou outro, amigo! Sou outro e por culpa do meu adorado amor... O amor
faz a gente ficar besta e que besta feliz eu sou, Zé! E Cê vai gostar de
conhecer a Tininha. Gente fina tá ali.
- Vou levar a Kátia, tudo bem?
- Claro... Mas, conselho de amigo: vai tá assim de amigas da Tininha.
Colegas do teatro... Ou você acabou virando um daqueles chatos e
intoleráveis maridos politicamente corretos?
- Bem, eu me viro de vez em quando com umas amiguinhas de trabalhos...
Sabe como é, né? Pra dar um tempero na vida de casado. Mas é sério que as
amigas dela são assim...?
- Sério! “Assim” e muito mais!
- Bom, então não vou levar churrasco pra banquete, né? Vou solteiro, meu
amigo e vou te mostrar que ainda estou em forma, batendo o meu bolão e
fazendo um gol atrás do outro. Deixa comigo!
Sexta-feira. Zé Mário explica para a esposa:
- Lembra do velho Naldo, não lembra? Claro que lembra... Acho que até
mais do eu imagino.
- O que eu lembro é que era colecionador de mulher... E, nem vem com
cinismo, porque comigo ele ficou só na vontade. Nesse corpinho aqui ele
nunca botou a mão, não! Agora, das festas dele eu já ouvi falar... Verdadeiras
surubas.
- Eu já te falei, meu bem, ele tá mudado. O homem não é mais o mesmo,
apaixonado de fazer dó. Só pensa na mulher, só fala dela e, pelo que eu
percebi, logo vamos ser convidados pra ser padrinhos de casamento! Escreve
o que tou falando...
- Então não tem problema se eu for nessa festa...
- Não é bem uma festa não, Kátia, é só uma reunião de reencontro de
amigos da faculdade – Clube do Bolinha. Se não fosse eu te levava, como
sempre levo a todo lugar que eu vou...
- Zé Mário, não vem me aprontar, hem? Cê sabe que comigo é diferente, se
eu levo uma, dou duas...
- Quê isso, amor, deu pra desconfiar de seu maridinho? Fica tranqüila que
mulher pra mim é só você, ou acha que eu teria coragem de te trair?
- Olha, vai pra sua festa e não vamos entrar nesse assunto, não. É perigoso,
né?
- Kátia, querida, você é um amor!... O amor de minha vida... Dá um
beijinho, vai!...

Chegou na casa do Reginaldo às dez horas, com um buquê de rosas


vermelhas para a aniversariante e uma garrafa de Johnny Walker, rótulo
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vermelho. Escutou o barulho de vozes, risos e música, antes mesmo de apertar
a campainha. Sorriu satisfeito e feliz. A noite prometia ser inesquecível, como
nos velhos tempos.
Reginaldo abriu a porta com um enorme sorriso de felicidade estampado
na face.
- Velho Zé! Você veio mesmo, amigão.
Novos tampinhas nas costas, sorrisos sob o barulho que escapava pela
porta aberta.
- Vem, entra que eu vou te apresentar pra Tininha. Não repara a confusão, o
pessoal tá tomando desde às seis. Vem!
Pressentiu que havia alguma coisa de errado no ambiente, mas não deu
bola, “esses artistas são gente esquisita mesmo”. Chegaram ao lado, um garoto
moreno, de mais ou menos vinte anos, cabelos longos, calça de couro, repleto
de maquiagem e um "jeito curioso", analisou Zé Mário. - Tininha, esse é o
meu velho e adorado amigo de quem te falei, Zé Mário. Zé Mário, Tininha -
apontou para o rapaz que continuava ao seu lado, cheio de gestos afetados.
- P-r-a-z-e-r, meu bem... ó, não acredito que essas rosas m-a-r-a-v-i-I-h-o-s-a-s
sejam para mim!
Zé Mário, num gesto automático e sem tirar os olhos da figura à sua frente,
entregou o buquê.
- Então, Zé, velho camarada, essa maravilha, cheirosinha e adorada, aqui,
foi quem deu um novo sentido pra minha vida! Vem, fica à vontade que a casa
é sua!
- T...Ten... Tenho que pegar... mais um... negócio a... ali no carro... Só um
instante.
Saiu, desajeitado, quase correndo em direção ao veículo. Reginaldo estava
tão feliz ao lado da sua adorável Tininha que nem percebeu um carro sair
cantando pneus noite adentro, levando um Zé Mário pálido, dizendo para si
mesmo incessantemente: i don't believe... I don't believe...

Divina

- Existecoisa pior que uma bem prometida e não realizada transa? Existe?
Vai, me diz se existe. Fala pra mim.

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- Não, não existe. Mas quem sabe? A gente é tão ignorante quando a
matéria é Mulher. Êita bicho mais tinhoso é mulher!
Antenor discordou com um balanço de cabeça, levando o copo de pinga à
boca. Engoliu tudo num único trago, fez uma careta, estalou a língua e voltou
ao assunto.
- Ocê pode ser ignorante nesse assunto, Arlindão, que mulher mesmo cê
não conhece, desculpa a franqueza, mas não eu. Desse bicho eu conheço e
muito. Semana passada até fiz uma lista de todas as que eu já papei. Sabe
quanta? Noventa e seis. A começar pela Lurdes, empregada lá de casa, quando
eu tinha treze anos... Já te contei?
- Já, Antenor, já contou umas cem veiz.
Falou com cara de ofendido pela insinuação de não conhecer mulher.
"Como não, se já ia fazer, em novembro, oito anos de casado? Só por que era
só uma? Ora, era só uma, mas era bastante mulher, a Divina".
Arlindo pediu mais uma cachaça e outra cerveja, “uma loura no ponto,
Washington”. Arrotou, se remexeu na cadeira de metal, ajeitando o corpo
magro, há mais de quatro horas sentado, e ficou olhando Antenor abrir uma
nova carteira de cigarros. "Esse sujeito acha que é mais home que os outros só
porque come todas. Ele é que num sabe que a Divina vale por cem mulher...e
eu, meu Deus, tenho que valê por cem home".
- Como tava dizendo, tesão recolhida é brabo!
Antenor voltou a falar do que vinha falando há mais de uma hora. Estava
verdadeiramente invocado com o fora que levara de Gildete.
- Olha que era uma morena de ancas maravilhosas, soberbas. E o sorriso?
Ah! Dentes perfeitos, lábios carnudos... Aquilo devia chupar que é uma
beleza!
Conhecera Gildete na Pecuária. Usava uma calça de couro sintético preta,
colada ao corpo, chapéu e botas. Assistiram ao rodeio, comeram
churrasquinho e maçã do amor. Beberam na barraca do Rio Grande do Sul até
quase ao amanhecer. Antenor a colocou no seu Monza verde-abacate com
intenções de terminar a farra numa bela cama com aquela mulher. No
caminho, colocara uma fita do Leandro e Leonardo e passara a chamá-la de
benzinho, fofa e chuchu. A mão, nada dissimulada, pousou em suas coxas e,
pouco a pouco, foi subindo. Gildete ficara imóvel, calada, revirando os olhos.
“Cê vai ver, fofinha, o presentinho que tá guardadinho pro cê. Cê vai adorar
passar a mãozinha nele... Ele tá louquinho de tesão... Pega aqui, vai! Vê como
ele tá... Tudo por sua causa, meu benzinho!”.
O monólogo erótico narcisista de Antenor foi bruscamente interrompido
por um gemido de Gildete, seguido de uma golfada espetacular de cerveja,
batida de maracujá, churrasquinho e maçãs do amor. Gildete acertara o alvo e
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tudo o que ingerira naquela noite foi cair bem no colo de Antenor, que ficara
pasmo. Nunca vira ninguém vomitar com aquela pujança e classe. “Meu Deus,
o que é isso!?”. Freou o carro assustado. “Acho que acabei de ejacular”,
Gildete falou, com a voz pastosa e sofrida.
- Sabe duma coisa, Arlindo... Conto só pra ocê que é meu amigo do peito.
Passei mais de mês cevando aquela infeliz... Até mandei rosa pra ela! Um
monte de rosa. Falei pro cara lá: quero que cê junte um montão de rosa
vermelha e embrulha que eu vô levá pra mulher mais linda e gostosa de
Goiânia... O cara, Arlindo... Cé precisava vê, ficou babando de inveja...
Arlindo levantou-se para ir ao banheiro. "Esse Antenor... Dá até vontade de
rir, acha que já papou as melhor mulher da cidade... Mulher que nada! Mulher
mesmo é a Divina. Aquela, sim, dá gosto de vê gemê na cama. Home que
deitá com a Divina, num qué mais sabê de outra... Ela é todas mulher numa
só... Só que isso ele nunca vai ficá sabendo. Divina é mulher direita, dona de
casa e se sair do trilho eu quebro na porrada... Ela sabe disso".
Voltou assobiando e feliz. Antenor, com o queixo apoiado nas mãos,
cotovelos sobre a mesa, tinha o olhar distante. Procurava alcançar Gildete em
algum lugar e acabar de vez com aquele sofrimento de frustração.
- Cê vê, meu amigo. Depois daquela noite da Pecuária, que por sinal
acabou muito mal... Tive que deixar a maldita num ponto de táxi, que cismou
de não me deixar levar ela até na sua casa... E o meu carro não é qualquer
carro, não... Um Monza! A gostosa ficou dois dias sem dá notícia. Depois
ligô... Ela tava ou não tava querendo?... Me ligou, Arlindão!
Arlindo teve pena do Antenor. Eram colegas de trabalho e o considerava
um bom companheiro de copo. Saíam às vezes da gráfica do jornal, às duas da
manhã, e ficavam até quase o amanhecer, bebericando umas no Bar Salomão.
Tinha vontade de convidar o amigo para um churrasco em sua casa, mas com
a fama que tinha, seria o mesmo que levar a raposa para cuidar das galinhas.
"Podia acabá em morte. Ele que pode cantá quantas mulher quiser, mas mexê
com a Divina... Deus o livre disso!”.
- Sabe o que é pior, Arlindo, meu camarada... Ela dizia que era casada, por
isso não podia me vê... Só quando o marido estivesse trabalhando... Porra,
Gildetizinha, eu falei, eu também trabalho... E meu tesão é bem maior por
mulher casada, por que cê num vem experimentá, gostosa?
- Dá um cigarro aí, Antenor. Esse buteco de merda num tem nem cigarro
pra vendê!
Antenor entregou o maço quase vazio para o amigo e, meio cambaleante,
saiu para ir ao banheiro. Tentou assobiar uma música do Wando que estava
tocando no rádio do bar, sem tirar Gildete do pensamento. Tropeçou no pé de
uma mesa, derrubou duas cadeiras vazias e, de leva, uma garrafa de cerveja e
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dois copos, que caíram no colo de um negro corpulento, chamado Jorjão, que
estava vestido de terno branco, e da loira oxigenada que o acompanhava.
Ambos levantaram de um pulo, numa sincronia olímpica.
- Aí, meu, a barriga num tá deixando vê onde cê põe os pés, não?
Jorjão, em pé, parecia ter dois metros de altura, no mínimo. A loura só
conseguia emitir algumas frases que mais pareciam uns guinchados.
-Ah, meu Deus! Minha nova saia da C&A... Minha roupa... Amor, olha só
o que esse viado fez!?
Antenor, caído de gatão, olhava tudo sem entender bulhufas. Só entendia
que seria muito perigoso se levantar.
- Filho duma quenga safada e puta! (ele entendia que era preciso ser bem
redundante), levanta daí que vou te ensiná a olhá pur´onde anda...
E a loira:
- Minha roupa, aí... Custou uma nota... Tá no rotativo, inda nem paguei!...
Antenor começou a balbuciar algumas desculpas, enquanto era levantado a
contragosto por Jorjão. olhou na direção de Arlindo com expressão de pavor.
O seu amigo demorou a entender o estava ocorrendo e ao atinar aos fatos
esbugalhou os olhos. Arlindo entendeu que o amigo precisava de sua ajuda,
antes de virar sucata de carne. Pensou rápido para quem estava com todas na
cabeça.
Foi até a mesa onde o sinistro tinha ocorrido e se postou ao lado de Jorjão
e Antenor, que fora levantado no ar, preso pela gola da camisa. Estava mais
vermelho do que um pimentão, e não podia ser diferente. O rosto banhado de
suor, de olhos fechados, parecia estar se despedindo da vida.
- Devagar aí, cidadão!
Arlindo falou grosso, empertigando as costas, exibindo rapidamente e
solenemente a carteira da Gráfica da Assembléia.
- Polícia! Solta o camarada! Que cê pensa que tá fazendo? Anda, solta o
home!
Jorjão largou Antenor lentamente, como uma caça faminta é obrigada a
largar a presa. Pensou duas vezes se não seria melhor quebrar logo a cara do
sujeito e ir preso. O gosto seria melhor. Antenor, cambaleante de susto (a
bebedeira totalmente curada), afastou-se para bem longe.
- Olha só o que aquele sujeitinho fez no meu terno e na roupa da minha
gata! Ele acabou com nossa noite, né, Laurinha?!
- Foi só um acidente – disse Arlindo. - Acidentes acontecem... Ninguém
planeja e é bem melhor terminar a noite em casa do que detrás das grades.
Arlindo, já totalmente seguro de sua farsa, partia para o exagero:
- Fica frio, negão, senão te levo em cana!

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Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,
Antenor olhava de um para outro, temendo o rumo da conversa. Arlindo
virou-se para ele.
- Companheiro, vou te acompanhar até sua casa, cê num tá em condições
de ficar na rua, não. Deu um tapa no peito de Jorjão.
- Cuida da loura, cara. Ela deve de ficar bem melhor sem essa roupa
molhada...
Antenor esperava por Arlindo na esquina. Depois de pagar a conta, o falso
policial encontrou-o ainda assustado. Saíram andando calados. De repente,
começaram a rir. Soltaram verdadeiras gargalhadas, de lágrima correr, por
quase dez minutos, sem dizer uma única palavra.
Por fim, Antenor, com certa dificuldade, entre espasmos de riso, conseguiu
falar.
- Arlindão, meu amigo, cê salvou minha vida! Vô ficá te devendo esta pro
resta dos meus dias. Brigado, companheirão... Que cê qué que eu faça por
você?... Vai, é só pedi... Faço o que ocê quisé.
- Faz, mesmo?
- Como existe Deus no céu!
- Bom, primeiro, pára de falar nessa maldita Gildete... E, segundo, vamo lá
em casa procê cumê um maria-isabel que só a Divina, minha mulher, é capaz
de fazer neste mundo!
Chegaram à casa de Arlindo. As luzes estavam apagadas e não se ouvia um
único som. Eram quase quatro horas da manhã. Arlindo bateu forte na porta da
sala, gritando.
- Divina!... Acorda mulher, que hoje tô arretado!
- Arlindo, é melhor eu voltar amanhã...
- Não!.. Divina! Abre se não eu quebro nos coices essa maldita porta!
Subitamente a porta foi aberta por uma Divina de expressão sonolenta.
Quando viu os dois, o olhar se transformou e, no instante seguinte, já se
encontravam totalmente desperta. Antenor nem percebeu, ele próprio, dizer
espantado:
- Gildete, quê que cê tá fazendo aqui?!!

A Vizinha de Cima

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Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,
Ele estava, como de costume, ouvindo música. Sempre os mesmos discos.
Um do Chico e outros dois do Caetano. Parou de ler por alguns momentos e
ficou ouvindo a melodiosa e inconfundível voz do Caetano:
"Não me venha falar
Da malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor
E a delícia de ser o que é”...
Sara o beijara com volúpia. Claro que estava com meia garrafa de uísque
na cabeça. Claro, também, que estava a fim de um amasso: tesão de meses. No
day after, a ressaca tradicional, assim como a moral, foi enorme. Na manhã
seguinte ele ligou-lhe por volta das onze da manhã:
- Oi, tudo bem com você?
- Oi, bom-dia... Tudo bem, fora o mal-estar... Ainda dizem que uísque bom
não dá ressaca!
Silêncio. Sara ficou sem saber o que dizer. Vergonha, talvez, mal o
conhecia. Há uns seis meses mudou-se para o apartamento acima do dele.
Conversaram umas duas ou três vezes, como bons vizinhos. Nada mais.
- Posso fazer alguma coisa?
- Não, não é necessário, vai passar, logo...
- Você me surpreendeu, ontem...
Sara sabia que ele não iria deixar de tocar na ferida. Ainda bem que
telefonara, assim, não iria ver a minha cara e não preciso encarar a sua. E
agora? O que é que eu digo agora?...
- Como assim?...
- Ora... Na escada... Ontem... Não me diga que não se lembra.
- Não vai me dizer que eu caí da escada ontem à noite. Meu Deus, que
vexame!
- Não, você não, caiu... Eu é que quase caí das pernas.
Silêncio. Merda! Deve estar pensando que eu sou uma... Uma
ninfomaníaca desvairada. Logo com meu vizinho. Tanto homem por aí... Bem,
nem tanto assim. Mas que tem, tem! Pra falar a verdade, ele é um tesão. Não
se pode desprezar... Mas é vizinho: como vou encará-lo agora? Será que
alguém viu a gente?... Foda-se...
- Oi! Você ainda está aí?
...Tou, claro... É só que... A cabeça, entende? Acho que preciso de uma
aspirina.
- Eu tenho aqui, quer que eu leve?
- Não!... Obrigada, eu tenho algumas... Desculpe.
- Tudo bem, depois eu ligo. É melhor tomar e deitar mais um pouco. Você
vai acordar melhor.
- Tá. Tchau!
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Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,
Passei quase uma semana me escondendo dele. Mesmo sabendo que dia
menos dia iríamos nos encontrar. De qualquer modo, a tática era essa: não me
lembrava de nada que aconteceu na festa depois de certa hora. Essa é infalível.
Sempre foi, dizem.
Na sexta seguinte, nos encontramos casualmente. Estava com Gustavo.
Tínhamos ido à sua casa e lá fizemos o que vínhamos fazendo há quase seis
meses: transar. Fez-me chegar ao orgasmo quatro vezes. Senti-me aliviada do
tesão recolhido que já sentia e que meu vizinho só tinha feito aumentar.
Fomos, depois, procurar um bar para beber alguma coisa. Ele estava lá.
Senti uma desagradável palpitação. Estava com uma mulata bem mais velha
que eu. Devia ter uns trinta anos e, difícil dizer isso, era linda. Mundo
pequeno esse de Goiânia. Tentei me esconder, abaixando a cabeça. Já tinha me
visto e eu estava me comportando como uma idiota. Droga!
Gustavo, como era de seu feitio, falava de si e de seus dissabores com a
profissão de mecânico. Não percebeu a situação e o quanto eu estava
perturbada. Se percebesse iria querer partir para a porrada (usando o seu
linguajar).
O sacana alisava a mulata e sorria. De vez em quando ficava com aquele olhar
idiota de peixe morto... Sorria para mim também. Fiz de conta que não vi.
Homens: all fellows.
- Vamos embora! - Levantei-me abruptamente.
- O quê?
- Embora, se mandar, let's go home!
- Bom... Pelo menos deixa eu pagar a conta.
Vou abrir um parêntese para falar um pouco de Gustavo e da nossa relação.
Foi com ele a minha primeira experiência sexual. Dezessete anos e uma libido
quase incontrolável, queria que o primeiro fosse um homem de verdade.
Consertava meu carro enquanto eu fantasiava a gente na cama. Era musculoso
e tinha um sorriso meio travesso.
- Você precisa trocar o óleo...
- Como?
- O óleo do motor. Tá passando da hora de fazer a troca.
- Eu... Acho que eu também...
- Como?
- Transar. Acho que está passando da hora...Meu Deus, como é que eu
arranjara coragem pra dizer isso?
Sorriu o seu sorriso sapeca.
- Moro aqui mesmo, nos fundos. Sete horas tou livre... E te esperando.
Não posso dizer que tenha sido lá grande coisa, não, a primeira vez. Grande
coisa ele tinha, me assustou. Mas gostei e vez em quando ainda vou até seu
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Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,
barracão no fundo da oficina, como fiz nesta sexta. Nunca falamos em
namoro. Nunca me procurou, eu é que faço isso. Excita-me esse
comportamento meio chulo, com pessoas que não são do meu mundo e
namorar um desses mauricinhos que me rodeiam nem passa pela minha
cabeça. Emoção marginal... Nem sei se freud explicaria.
Fechando o parêntese, Gustavo ficou grilado.
-A mimadinha gozou, bebeu, se irritou, quer ir embora e o resto que se
dane, não é?
- Não enche o saco, cara!
Deixei-o em casa. Subi ao apartamento, fiz um sanduíche e fui comendo
devagar entre goles de Coca e pensamentos desordenados, confusos. Sentia
falta da escola. Faltava uma semana ainda para recomeçarem as aulas. Desisti
de tentar pensar alguma coisa coerente. Peguei um livro do Gide, estirei-me
no sofá e, com um esforço enorme, comecei a ler.
Meu tesudo vizinho chegou por volta de uma da manhã. O Chico começou
a cantar, baixinho:
"Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela acredita
Tem um olho sempre a me olhar
Outro que evita..."
A campainha toca logo depois. Nem olhei pelo olho mágico. Abri a porta.
- Entra.
- Boa-noite...
- Pela hora, deve-se dizer bom-dia.
- Perdão, mas como vi luzes acesas, achei que não iria incomodar...
- Tudo bem. Eu é que peço desculpas. Senta aí...
Pensei em perguntar quem era a mulata do bar. Contive-me. O melhor
mesmo é fazer de conta que nem percebi. Lançou-me um olhar avaliador de
cima em baixo e sorriu de um modo sedutor. Ele é charmoso, sem dúvida.
Percebi que o olhava de um modo lascivo, meio sacana. Droga! Que culpa
tenho eu de não saber controlar meus instintos de mulher? Tenho de parar de
me auto-recriminar.
- Quem era seu amigo?
- Namorado... Quer dizer: acho que é meu namorado. Por quê?
- Nada, não. Só que eu fiquei... Fiquei pensando que ele é um bocado velho
para você.
- Ele tem só 42 anos. Além do mais, é ótimo conviver com uma pessoa
mais velha. A gente aprende muita coisa... - Não resisti e alfinetei: como um
cara tão culto como você adquiriu esse preconceito?... E você, quantos anos
tem?
- Eu? Tenho 39 e não é preconceito não... É, acho que é... Ciúme.
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- Ciúme... E o que mais?
- O que você tá querendo...
Não completou a frase, mudando rapidamente de assunto.
- Bom, você tem alguma coisa para beber?
- Desculpa. Não sou uma boa anfitriã.
Enquanto fui buscar uma bebida, fiquei pensando que seria uma boa
namorar esse cara. Não estava mais agüentando as grosserias do meu
suburbano mecânico e um vizinho desses não se encontra em qualquer
condomínio, não. Mas é a mulata ou eu. Se me quiser, tem que ser assim.
Entreguei-lhe o copo.
- Por que você desapareceu, depois da festa lá em casa? Andei querendo te
ver.
- É mesmo? Não sumi, não... Aliás, a festa foi ótima, embora eu não me
lembre bem do final. Há muito não tomava um porre como aquele...
- Não se lembra... Quando fui trazê-la em casa?
- Não... Você veio comigo?
- Não se lembra de nada, mesmo?
Lembrar não é a mesma coisa que estar vivenciando, mas... Aquela noite
foi demais. Relembrando o que senti na cama com Gustavo, no início da noite
de hoje, não sinto nem a metade da excitação, ao relembrar aquela sexta-feira,
de fogo, na escada, com meu adorável vizinho, os dois no maior fogo (vale o
trocadilho).
O silêncio em que ele ficou, depois da última frase, me deixou incomodada. O
silêncio sempre deixa um vácuo dentro de mim. Levantei e liguei o som.
Voltei a me sentar. Continuava pensativo, me fitando.
- Posso te confessar uma coisa? - Me olhou profundamente. Contraí as
coxas de forma involuntária.
- Diz - Olhei-o da mesma forma, melhor, olhei-o como uma onça no cio,
pronta para dar o bote.
- Foi um equívoco, minha sedutora vizinha.
- Como assim, equívoco?
- Não me olhe desta forma, por favor... Seu namorado não iria gostar nem
um pouco.
- Você não quer explicar melhor?
- Noutro dia qualquer a gente volta a conversar. Preciso ficar só e pensar.
Tchau!
Saiu apressado e, pude perceber, um pouco triste também.
Lá se vão dois meses. Nunca mais me procurou. Estou sozinha, estudando
muito e, é lógico, pensando nele. Não tenho pressa. Logo vou fazer uma festa
e meu vizinho de cima vai ser o principal convidado.
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Enquanto isso vou escutando os discos que ele põe para tocar, como tem
feito quase todos os dias à noite, no apartamento acima do meu. Sempre Chico
e Caetano:
"Você sabe explicar
você sabe entender tudo bem
Você é, você quer, você tem
Você diz a verdade
E a verdade é seu dom de iludir..."

Uma Prima de Primeira

Eram primos e moravam na mesma casa. Ele, divorciado há dois meses.


Ela, solteira, tinha como passatempo encher sua paciência. Uma relação, diria
Mascarenhas, tipicamente freudiana.
- Me conta: como é sua nova namorada?
- Quem te disse que tenho uma nova namorada?
- Eu sei.
- Como "eu sei"? Não entendi.
- Sua mãe me disse.
Foi procurar a mãe e a encontrou fazendo as unhas com Neide, a manicure
e confidente das mulheres da casa.
- De onde a senhora tirou esta história de uma nova namorada?
- Como?...
- A Indiara me contou...
- Ah! sei... Você não vai me dizer que aquilo que vi ontem à noite, dentro
do carro, não é namoro?!
- Não acredito que a senhora esteja me espionando, mãe!... Aquela não é,
nunca foi e nunca será a minha namorada... É a advogada que está cuidando
do meu divórcio... Uma amiga do Toninho.
- Meu Deus, o Toninho tem sorte em ter um amigo como você, Miro!
- Mãe, não é nada disso que está pensando... Estávamos só conversando
sobre a separação...
- Olha, vai contar pro padre e deixa a Neide fechar a boca e terminar de
fazer as minhas unhas, tá bem?
Neide baixou os olhos, fechou a boca e continuou o seu trabalho, não sem
antes olhar disfarçadamente a saída furiosa de Miro.
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No outro dia, Indiara foi até o quarto do primo. Bateu levemente na porta e
entrou. Deixou de lado o livro que estava lendo.
- Não acredito que você esteja namorando a namorada do Toninho!
- Merda!
- Grosso!
- Se você ficar escutando minha mãe, vai ficar...
- Não foi a titia, foi a Neide quem me contou!
- Olha aqui, Indiara: não estou namorando nenhuma namorada de nenhum
Toninho, nem a de qualquer outra pessoa, entendeu? Estou só e de saco cheio
com mulheres que só vivem para me atormentar a vida. Agora, vê se fecha
essa porta e dá o fora, ok?
-...Como assim, só?
- Estou sozinho, e muito bem por sinal. Só não estou melhor porque tive a
maldita idéia de vir morar aqui...
- Não precisa falar assim comigo...
- Dá o fora!
Mais tarde foi procurá-la. Achou que tinha sido muito grosso e que devia
tentar melhorar a relação dos dois. Para isso, precisava primeiro se desculpar,
depois conversariam mais seriamente. Encontrou-a tomando banho de sol.
- Oi, a água está fria?
- Não, por quê? - Miro ignorou o mau humor.
- Vim te pedir desculpas... Você não tem culpa das coisas que estão
acontecendo comigo... Ainda é uma criança, um dia vai entender estas coisas...
- Tudo bem... Mas não sou criança, tenho dezessete anos, quase dezoito!
Levantou-se sem olhar para o primo e saiu andando de forma provocativa em
direção à piscina. Ajeitou a parte de trás da calcinha do biquíni e mergulhou.
Miro suspirou: "Eu lavo as mãos".
"Ela tem o dom de me perturbar, só pode ser... Aquele corpo que saiu
caminhando e voou para a água não era, de forma alguma, de uma menina".
Estava deitado, insone, com a imagem de Indiara na cabeça e os pensamentos
desordenados. "Por que ela vive me atormentando com perguntas
embaraçosas? Será que ainda vou conseguir entendê-la?... Tudo bem que ela
não é mais uma criança, mas é minha prima... Droga, maldita hora que voltei
pra cá".
Saiu de manhã, antes que os outros acordassem. Voltou de madrugada, meio
de fogo e angustiado. Tomou um banho frio e, quando saía do banheiro,
encontrou-a sentada em sua cama. Estava com um roupão rosa, amarrado na
cintura.
- Quê que você tá fazendo aqui?
- Estava sem sono... Vim conversar.
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- Tudo bem, acho que nós precisamos mesmo conversar, mas hoje não...
Amanhã. Vai dormir que já passa das duas da manhã -. Sentou-se no lado
oposto da cama, esfregando os cabelos molhados com a toalha.
Sem sair do lugar, Indiara abriu o roupão e o deixou cair no chão, expondo o
seu belo corpo bronzeado, totalmente nu. Ela ficou olhando-o, parada, com as
mãos caídas ao lado das coxas. Miro ficou paralisado, com aquela bela visão.
Deixou a toalha cair e, somente depois, conseguiu piscar.
- Pelo amor de Deus, o que é isso, Indiara?
- Isso? - Apontou para o próprio corpo -. Isso é uma mulher, tá lembrado?
Miro deu a volta em torno da cama e a abraçou, sentindo aquela pele macia
e adolescente se arrepiar com o seu toque. Queria raciocinar, não fazer o que
considerava uma loucura, mas era todo desejo. Indiara, depois de um breve
tempo, se desvencilhou de seus braços, colocou o roupão e foi até a porta,
onde ficou parada observando Miro em toda a sua excitação.
- Quero que você me faça sentir uma mulher... Só que...
- Só o quê?
- Só... Só depois que você terminar com a namorada do Toninho.
- Droga, Indiara... Olha aqui: o Toninho é bicha, tá entendendo? Não tem
namorada, não!... Ele namora é com um amigo de faculdade, um outro
homem.
- Não acredito!...
- É verdade, juro!
- Então você tá namorando o namorado do Toninho?!... A minha tia sabe
que o filho dela é um... Um gay?
No dia seguinte deixou a casa da mãe. Dizem que está vivendo em um
mosteiro Beneditino no Paraná, onde se aperfeiçoa em canto Gregoriano e faz
penitências. Dizem, ainda, que é feliz...

A Espera

Quarta-feira, onze e quarenta da noite. O relógio parece não funcionar. O


telefone, minha única ligação com Eliana, permanece mudo, como que
ignorando a minha aflição. É somente uma ansiedade James Dean, digo a mim
mesmo. Ela vai ligar, como tem feito nestes cinco últimos meses, às quartas.
Faltam somente nove minutos... Eternos.
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Melhor esquecer o relógio. Muito melhor recordar sua voz deliciosamente
sensual e as loucuras que me diz ao telefone. Na semana passada, estava
chovendo quando me ligou. "Que bom se a gente estivesse juntos agora",
disse, "iria tirar toda a roupa, peça por peça, debaixo dessa chuva e você iria
bebendo a água que escorresse pelo meu corpo". “Me dá seu endereço que
vou aí agora e podemos fazer muito mais, bem mais...”.
Eliana nunca me diz onde mora, apesar da minha insistência. Nem mesmo
sei se o seu nome é esse mesmo, com o qual se apresentou.Tudo o que sei foi
ela quem me disse ao telefone. Morena, falsa magra, bundinha arrebitada e
seios médios. Desse jeito até parece encomenda.
Não pode se encontrar comigo. "Marido ciumento", me falou. Disse que
nos encontramos pela primeira vez em Goiás velho, na procissão do fogaréu.
A nossa ida a Goiás, naquela Semana Santa, tinha sido realmente um fogaréu
geral, tenho que admitir. Mas, meu Deus, quantas tentativas já fiz para me
lembrar de alguém parecido com a sua descrição, que pudesse estar lá
naqueles dias. Éramos tantos. Uma turma grande. Júlia, minha irmã por parte
de pai, é a única mais ou menos com esse perfil, mas não é casada, não tem
filhos e está com apenas dezessete anos. Clarice, cunhada do Vladimir, que
conheci logo que chegamos, não pode ser. É branca...
O telefone! Corro o mais que posso, tropeço, derrubo alguma coisa no
caminho entre a janela e a mesa do telefone. Acho que é o abajur de Cancun
da Rita, minha última mulher. Respirei fundo. Atendi. Era engano.
Meia-noite e cinco. Eliana nunca deixa de ligar no horário. Preciso convencê-
la a deixar que ao menos a veja, mesmo que seja de longe. Não entendo tanta
precaução. Afinal, foi ela quem me ligou pela primeira vez... Todas as vezes,
melhor dizendo. Logo de cara disse estar apaixonada. "Fiquei toda molhada
quando peguei em sua mão, lá em Goiás", disse. "Foi como ser você estivesse
todinho dentro de mim. Tesão ao primeiro toque, ou paixão mesmo, não sei
dizer ao certo". Sacana. Deixa-me todo excitado, em ponto de ebulição, e
depois desliga dizendo que a gente ainda vai fazer tudo aquilo que me diz.
"Preciso tomar coragem..." Quando? "Não sei. Espera. Você espera?"
Agora só pode ser a minha adorável sacaninha. Calma. Vou deixar tocar
três vezes. Um. Dois... Pronto! Alô...?!
Era Afonso. Notícia nada boa. Um amigo de colégio de Júlia capotou o
carro. Ela estava junto. Tranqüilizou-me, dizendo que estavam no hospital,
mas que parecia não ser nada sério. Melhor, pensei, assim posso esperar um
pouco mais, depois vou até lá. Engraçado, estava justamente pensando em
Júlia, agora há pouco. E Eliana? Por que ainda não ligou? Meia-noite e vinte e
cinco...

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Duas da manhã. Afonso volta a ligar. Júlia acabara de morrer.
Sofri muito a sua morte. Ela era minha única irmã, filha do segundo
casamento de meu pai. Gostava de passear comigo, viajar. Era uma menina
linda e meio tímida. Vivia apegada a mim. Talvez por eu ser seu irmão mais
velho, pode ser... O que sei é que neste último mês fiquei meio atordoado.
Havia até me esquecido de Eliana. Nem ela se lembrou de mim. Nunca mais
ligou. Outra perda irreparável, percebo agora.

Editado por Osair às 3:55 AM Deixe seu recado:

Sem Fantasia

Queria ver Sandra novamente. Liguei no seu trabalho, pelo sexto dia
consecutivo. Estava, finalmente. Combinamos de ela ir à minha casa. "Nove
horas tá bom?" Estava mais do que ótimo.
Ela é gerente de uma empresa de telemarketing. Nos conhecemos no mês
passado, na festa de aniversário da Helena, minha ex-mulher. Foram amigas
de faculdade. Helena me convidara com uma desculpa... "Afinal, você é o pai
de meus filhos, temos de nos relacionar bem". Queria que eu conhecesse seu
novo namorado, não tive dúvidas. Era simpático e calvo, uma associação,
aliás, bastante comum. Me apresentou ao cara, depois a Sandra.
"Se foram amigas de faculdade, por que não nos conhecemos antes?"
Passou dez anos viajando, depois de formada, como relações públicas de uma
indústria de cosméticos. Depois de ouvir a clássica frase: "Então, você é o ex
da Leninha, hem!?" e ser avaliado discretamente, combinamos de tomar um
chope "qualquer dia desses".
Me ligou na segunda, logo de manhã. Eu tinha planos de ligar no final da
tarde. Emancipação e antecipação parecem ser o lema das mulheres
"modernas". Elas, quando estão a fim, não perdem tempo, o que eu acho
muito bom, embora alguns amigos digam que assim "perde a graça". Saímos
logo após o expediente, como recém-conhecidos, e terminamos a noite como
namorados, de uma forma assim meio implícita. O apartamento de Sandra é
aconchegante e, como se não bastasse, tem cheio de fêmea. Foi lá, entre
móveis de notável bom gosto e uma cama macia como sua pele, que tive o
prazer de desnudá-la calmamente. Estava sedenta de sexo. Eu, idem.
"Há muito tempo eu não gozava tão gostoso assim", disse, enquanto
fumava um cigarro. Das mulheres que conheci, e não foram poucas, Sandra
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foi a que mais me excitou, fisicamente e em imaginação. Nessa noite, se deu
inteira, não poupando gemidos, gritos e frases picantes, sem ser vulgar. Mas
não foi somente sexo. Passamos o restante da noite conversando, rindo e
ouvindo música. Era inteligente e alegre. Falou do marido, de quem estava
separada há seis meses. Era lobista em Brasília. O negócio dele era só
negócios. "Não quero mais me prender a ninguém que não me tenha em
primeiro lugar". Perguntou do meu casamento. "Não deu certo, depois de um
certo tempo: nada mais". Helena certamente já tinha dado a minha ficha. Só
não sei se era a parte boa ou a ruim. Quando saí, pela manhã, brincou: "Pensei
que todos os arquitetos fossem bichas, mas agora sei que só alguns é que são".
A categoria me deve uma.
Passei o restante da semana pensando nela e em nosso encontro. Me
contive o máximo que pude para não lhe telefonar e dizer que estava
apaixonado. Esperei que me ligasse, mas não deu sinal de vida.
No final de semana saí com minha secretária, a Maria Cláudia. Fomos até
Caldas Novas. A única coisa boa que aconteceu foi ter podido descansar e
tomar uma sauna. No resto, brochei geral. O pensamento estava sempre em
Sandra. Desci do apartamento para dar uma volta, na noite de sábado, e não
resisti: liguei em sua casa. Ninguém atendeu. Voltamos no domingo à tarde,
calados e frustrados. Maria Cláudia não fez nenhum comentário, como boa
secretária que é.
A vida não é lá muito fácil para um descasado de 35 anos de idade. A
situação financeira regular e o status profissional ajudam, em se tratando de
namoradas. É claro que um pouco de simpatia pessoal é fundamental, e isso,
modéstia às favas, eu até que tenho. Mas a vida, no dia-a-dia, é bem mais
complicada. Exemplo: almoço com cliente que faz questão de levar a esposa
ou a amante a tiracolo. É preciso ter alguém disponível para essas ocasiões, o
que nem sempre se consegue. Aí é que entra a Maria Cláudia, boa secretária e
amante sensual. Não nos amamos, nem namoramos. Tudo acontece de forma
mais ou menos espontânea. É uma relação sem cobranças, embora eu perceba
um dissimulado ciúme quando ela recebe telefonema de alguma de minhas
inúmeras e fugazes namoradas. Às vezes não entendo certas mulheres, como
Maria Cláudia, por exemplo, que aceita esse tipo de situação. No seu lugar,
jamais aceitaria.
Difícil, também, quando se está solteiro, é ficar em casa à noite, sem
programa, querendo companhia. Nessas horas não se encontra ninguém. A
gente passa a agenda de A a Z, inutilmente. Quando isso acontece, fico
bebendo meu uísque doze anos, ouvindo um bom jazz e pensando na vida,
como estou fazendo agora. Tem o lado bom também, não posso ficar
reclamando. Nesta situação em que vivo hoje, a liberdade é bem maior,
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embora em alguns momentos não saiba o que fazer dela. Paciência. E
crianças? Criança é um ser adorável quando está em um porta-retratos em
cima do criado-mudo. Ainda bem que Helena fez questão de fica com a
guarda de nossos filhos, embora eu os ame. Quando a saudade aperta, ligo
para eles e saímos fazendo um tour pelos shoppings. Tomamos sorvete,
pegamos um cinema e, ocasionalmente, fazemos compras. Depois os levo de
volta à casa da mãe, que lá eles estão muito bem e felizes.
Um descasado de 35 anos sofre, mas tem a possibilidade de ter várias
namoradas. Variar é ótimo. Durante os quatro anos em que fiquei casado, me
sentia entediado a maior parte do tempo. Fidelidade ao pé da letra é algo
asfixiante, opressivo mesmo. Eu sentia inveja dos meus amigos, que faziam
questão de exibir para mim as suas "últimas aquisições". Não nasci, confesso,
para a monogamia. Posso até vir a mudar de idéia, mas percebo que é coisa
muito remota. Segurei o quanto pude o casamento.
Helena percebia como eu me sentia, é uma mulher legal. "Vamos acabar
nos separando, dia menos dia. Por que não agora?" Topei. Na verdade, acho
que se casou comigo só para sair da casa dos pais. Nunca houve amor de
verdade, mas uma amizade em que a compatibilidade de valores era muito
forte. Hoje sei que fizemos a coisa certa.
Na última semana, esses pensamentos vêm me atormentado. Pode ser a
crise dos quarenta, antecipada. Tenho pensado até em fazer análise, porém não
sei se conseguiria me expor, ainda que fosse para um profissional. O problema
maior é que me sinto meio cafajeste, quando o assunto é mulher, embora elas
sejam o motivo de tudo o que faço na vida. Uma delas me disse, certa vez, que
eu tinha um que de Nélson Rodrigues. Pode ser...
Atualmente, Sandra é quem vem fazendo a minha cabeça. Melhor:
desfazendo. Só saímos àquela vez e foi o suficiente para me deixar
macambúzio e com a idéia fixa de nos encontrarmos de novo. Será por causa
dela, esse estado de espírito meio pra baixo? Depois da frustrante viagem com
a Maria Cláudia, iniciei a semana disposto a encontrá-la o mais breve
possível. Liguei na sua casa e no seu trabalho, inúmeras vezes, sem obter
sucesso. Não havia chegado, tinha acabado de sair ou estava em reuniões
intermináveis. Deixava recados, não dava retorno. Cheguei a ponto de ligar
para a Helena procurando saber se tinha notícias dela. "Sandra não é para o
seu bico, cara!" Helena sabe, de vez em quando, ser desagradável.
Agora estou tão ansioso quanto um adolescente que vai transar pela
primeira vez. Fiz umas arrumações no apartamento, tentando deixar com a
melhor aparência possível. Comprei flores, joguei um spray com fragrância de
flores silvestres em todas as dependências e coloquei uma meia luz no quarto.
Por fim, encomendei um delicioso jantar italiano. O lobista de Brasília só
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pode ser veado. Essa mulher é simplesmente maravilhosa, uma amante de
primeira, linda, inteligente, sedutora, alegre, independente... Perfeita! Às
nove, começaria a matar todos os meus desejos. E os dela, naturalmente.
"Você está divina, minha adorável Sandrinha! Pensei que não a veria
mais". Disse que teve uma semana conturbada com problemas na empresa e
na família. Ela é muito mais sensual do que eu imaginava. Estava
simplesmente irresistível num vestido de noite decotado, deixando todo o colo
e parte dos seios à mostra. Elogiou o apartamento: "Era o que eu esperava de
um bom arquiteto". Coloquei um CD do Phill Colins, para dar mais clima, e
suavemente a abracei por trás. "Você tá me deixando maluco, Sandrinha!"
Virou-se para mim, sorriu como uma garotinha levada e se afastou, indo
sentar-se numa cadeira próxima ao hall. Naquele instante não tive dúvidas:
estava mesmo apaixonado.
"De quem é o quadro à sua direita?" Era um Siron. "Não consigo gostar do
seu estilo", disse. Percebi que ela estava sem saber o que dizer e pouco à
vontade. "Vou tomar um drinque. O que você quer para beber?" Não queria
nada, só uma água tônica. Busquei as bebidas e ficamos nos olhando por
alguns instantes, sentados frente a frente. "Posso servir o jantar agora, se você
desejar..."
Levantou-se, foi até a janela. Olhou a cidade iluminada por suas luzes
artificiais e pela lua, sem responder. Era uma noite linda. Noite feita para o
amor.
"Não vou poder ficar... desculpe". Acho que seu embaraço, pela minha cara de
espanto e decepção, foi maior do que por ter sido forçada a dizer que não
poderia ficar. Falou que iria a uma boate com o seu patrão, que ciceroneava
um cônsul espanhol e a esposa. Inacreditável! Lembrei-me da Maria Cláudia e
uma raiva incontrolável tomou conta de mim. Sandra me olhou com olhos que
demonstravam uma enorme tristeza. Tentei me controlar, enquanto ela ia até a
uma mesa no canto da sala, onde tinha deixado sua bolsa. Pegou-a. Fiquei
parado, olhando. Aproximou-se de mim, me deu um beijo na face e foi
embora.
O CD do Phill Colins chegou ao final. Fiquei olhando a porta por onde Sandra
saíra há pouco. Fui até a mesa, tirei uma flor champagne do ramalhete e a
olhei distraidamente, pensando no delicioso mistério das mulheres. Devagar a
raiva desapareceu e consegui até sorrir. Liguei para a Maria Cláudia.
Passamos uma noite sensacional na cama, sob uma meia luz, depois, é óbvio,
de um apetitoso jantar italiano.

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Cama de Gato

Laurinda de Assis Jesus, vendedora da Avon, tem um amante que trabalha


no Fórum. O marido, Antoniel Jesus de Almeida, taxista, também tem uma
amante, que não trabalha de jeito nenhum.
Laurinda começou com suas relações extraconjugais quando desconfiou
que Antoniel passara a comer fora. Em princípio, como acontece nesses casos
(a História tem provado), pensou em matá-lo enquanto estivesse dormindo.
Analisou as implicações de tal ato extremado e achou que o melhor mesmo
seria matar a puta da rival. Mas, percebendo que não tinha coragem suficiente,
resolveu chorar. Chorou uma semana inteira, se achando a mais infeliz das
criaturas sob o céu do planalto central. Depois, saiu de casa e foi procurar um
advogado, padrinho de casamento e amigo de infância de Antoniel. Iria se
separar, "era o que devia ter pensado logo de início, porque aquele veado não
merecia uma só gota de minhas lágrimas".
Foi procurá-lo na Defensória Pública, seguindo conselho de dona Rosa,
sua vizinha, avó do rábula e benzedeira: "Benzeção não cura sem-vergonhice,
minha filha. Procura meu neto, doutor Clarismar, que é homem de bem,
padrinho desse infeliz matrimônio e advogado de família, faz a separação e
enxota esse sujeito da sua casa, que ele não merece uma mulher honesta e
trabalhadeira como ocê é".
O doutor Clarismar, que entende do ramo, que não sabe nem contar
quantos casos de alta traição já tinha visto e ouvido nesses vinte anos de sua
honrada profissão, depois de ouvir a triste sina de Laurinda Almeida de Jesus,
deu-lhe um conselho bem diferente daquele que ela tinha ouvido de dona
Rosa.
...É tanta aporrinhação, são tantos papéis e depois a senhora sozinha,
malvista pela vizinhança (que nem todo mundo é como a minha santa avó,
dona Rosa Benzedeira) e, no final das contas, a senhora ainda vai deixá-lo
livre e desimpedido, que é o que ele quer. Olhe que eu conheço os homens,
sou um deles, é claro que com fineza de caráter.
Laurinda ficou encantada com a retórica do doutor Clarismar,
principalmente quando ele disse que tinha fineza de caráter. Palavreado de
gente fina, de gente importante. Via-o poucas vezes e nunca tiveram
oportunidade de conversar a sós.
...O que melhor a senhora faz é arranjar outro. Não um outro qualquer, mas
alguém à altura da beleza, pujança e inteligência que a senhora tem. Antes que
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fique escandalizada, saiba que as pessoas ricas desta nossa amada cidade,
quando são traídas no sagrado matrimônio, simplesmente arranjam outro. É,
além de uma doce vingança, um lenitivo ao amor próprio, maculado por quem
não merece o amor que lhe dedicamos... Digo isso com sofrimento n'alma,
pois o Antoniel é como se fosse um irmão para mim.
Laurinda Almeida de Jesus passou os dias de todo um mês pensando no
doutor Clarismar e no que ele tinha falado. Principalmente, como tinha lhe
falado. Até esqueceu a mágoa de ser chifrada por Antoniel, um canalha de
primeira. Nem mesmo o recusou quando ele a procurou na cama, dias depois.
Enquanto o marido se servia de seu corpo bem feito e conservado, apesar dos
trinta e sete anos de idade, seu espírito vagava. Pensava nos conselhos do
doutor Clarismar e imaginava a cara do Antoniel quando soubesse que ela
tinha outro homem. Sorriu feliz, ante tal pensamento, enquanto ele gozava.
Antoniel ficou feliz em vê-la sorrir. Afinal, era ou não era bom de cama?
No dia seguinte, já decidida e sem saber por onde começar, foi procurar o
advogado, com a desculpa de vender-lhe uns perfumes para a sua senhora.
Queria que ele lhe desse alguns conselhos. Nunca tivera outro homem em sua
sofrida vida, a não ser o marido, seu primeiro namorado. Teria coragem de
dizer que estava disposta a arranjar um amante, mas não sabia como proceder?
Iria ver...
Para surpresa de Laurinda Almeida de Jesus, o doutor Clarismar não tinha
mais uma senhora. Era divorciado. Mas, compreensivelmente humano,
resolveu o dilema de Laurinda. Colocou-se à sua inteira disposição. Para que
pudessem conversar mais à vontade, convidou-a para um happy hour no bar
Smithpiroska, na sexta-feira.
Alguns dias depois, e não poderia ser diferente, considerando a lábia do
rábula doutor Clarismar, Laurinda Almeida de Jesus se encontrava em estado
de graça e absolutamente convencida de que era a mais feliz das viventes
sobre o chão do cerrado.
Antoniel percebeu que a sua dileta companheira, na pobreza ou na riqueza,
estava mais zelosa, vestindo-se com mais esmero, gastando a sua suada
comissão da Avon em lingeries ousadas e de cores quentes. Não lhe
aporrinhava mais, fosse qual fosse a hora que chegasse em casa. Achou,
depois de muito pensar, que caso com outro Laurinda Almeida de Jesus não
tinha. Por sua esposa, na saúde ou na doença, punha a mão no fogo.
Comentou, para desencargo de consciência, essa suspeita "infundada”, é claro,
com sua bela e desocupada amante.
- Não quero falar daquela mulher, meu macho gostoso. Deixa de cisma que
aquilo é mulher à moda antiga. Mulher de um homem só... E pelo que tou

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vendo, você é mais do que ela merece... Esquece ela e vem pôr o seu táxi na
minha garagem, vem!
Antoniel esqueceu. Gozou e foi trabalhar, se sentindo o melhor e mais
macho dos homens que dirigiam pela cidade. Tocou a campainha. Ela abriu a
porta.
- O seu taxista já foi para o batente?
- Já. Cadê minha grana?
- Calma, chuchuzinho.
- Até hoje não consigo entender por que cê paga pra eu ser mulher do
Antoniel...
- Existem razões que só algumas razões conhecem, minha flor. Doutor
Clarismar fez um cheque e entregou a ela. Fez menção de sair, pensou um
pouco e falou:
- Vem cá!
Puxou-a pela mão, rumo ao quarto, enquanto dizia:
- Vem sentar na minha toga... Você vai gostar mais que do velho taxímetro.

Sexo Frágil

Somente quando o elevador fechou a porta é que reparei o quanto era


simpática e bem feita de corpo. Disse-lhe: "Oi, você é a nova moradora do
oitocentos e dois?" Respondeu que sim, de uma forma tímida, ajeitando os
cabelos louros e lisos.
- Muito prazer, meu nome é Carlos Miguel. Moro no novecentos e dois...
Me contive para não dizer: "Moro em cima de você", o que seria uma
piadinha sem criatividade alguma, além de maldosa. Pegou levemente na mão
que lhe estendia. Tinha os dedos finos, longos e macios.
- Prazer... Juliana -. A voz, baixa e rouca, fez meu coração ensaiar uma
ligeira taquicardia. É sempre assim: mulheres especiais fazem com que eu me
descontrole. É terrível essa minha fragilidade masculina.
O elevador parou no quarto andar. Juliana ficou calada, se afastando para o
lado, dando passagem a três garotos, com uniformes do Flamengo.
Entraram fazendo uma alta e infernal confusão de conversas, quebrando o
silêncio constrangedor, próprio dos elevadores.

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Desceu no oitavo, dizendo "boa-noite" e olhando-me rapidamente, antes
que a porta se fechasse. Desci no nono, com uma marca de bola na perna
direita da calça, deixando os flamenguistas comemorando um hipotético gol.
"Ótimo", pensei, "o condomínio está melhorando sensivelmente. Juliana...
Gatíssima! Agora vamos nos encontrar várias vezes e aí... Bem, e aí... Se ela
for casada?... O porteiro há muito está merecendo uma gorjeta e, quem sabe,
pode me dar algumas informações... Isso é fácil de resolver".
Coloquei o CD do Eagles para tocar, e fui tomar um banho. O interfone
tocou com insistência. Saí do banho e fui atender, aborrecido. Detestava ser
interrompido no meu ritual sob o chuveiro, mas podia ser uma visita
importante.
- Oi...
- Peça para subir. Diz que a porta está destrancada e que ela pode entrar.
Ah!... Aroldo, me lembre de falar com você mais tarde, tá certo?
Ana Maria estava deslumbrante, com uma minissaia prata e uma blusa
preta generosamente decotada. Levantou-se e veio ao meu encontro assim que
entrei na sala. Beijou-me no rosto, pedindo desculpas por ter aparecido sem
avisar.
- Fiquei aliviada em te encontrar aqui. Você quase não pára em casa, não é?
Liguei várias vezes.
Estava a caminho da festa de despedida de solteira de uma amiga de
trabalho e não gostava da idéia de ter que ir sozinha. Convidou-me. Fomos em
seu carro e, durante todo o trajeto, me contou as suas últimas desventuras
amorosas. Incrível como Ana Maria muda de parceiro. Estamos na metade do
ano e lá se foi o terceiro. Eu, por exemplo, seu primo predileto, faço parte da
lista dos seus ex-namorados do ano passado. Desde então, virei o seu
confidente e parceiro nas fases entre o último e o próximo.
A festa estava uma loucura. Música alta, luzes piscando, penumbra,
maconha, cocaína, pessoas nuas na piscina e bebidas para todos os gostos.
Ana Maria desapareceu. Pouco tempo depois, encontrei-a dependurada no
pescoço de um cara doidão e musculoso. Fiquei rodando feito barata tonta
sem saber aonde ir. Não conhecia ninguém. Acendi um cigarro e fui em
direção à piscina, com o pensamento na minha nova vizinha. Era o tipo de
mulher com quem eu me casaria. Aliás, já estou me cansando dessa minha
vida de solteiro...
Ela chegou sem que eu percebesse, interrompendo meus pensamentos
transviados.
- Olá! Você parece que tá meio perdido.

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- Oi... É, acho que estou um pouco perdido, mesmo. Tinha um lindo e
constante sorriso nos lábios, cabelos ondulados e curtos, pele morena e um
olhar penetrante.
- Não bebe nada?
- Acabei de tomar um uísque, obrigado.
- Meu nome é Nara, e o seu?
- Carlos Miguel. Olha, Nara, como eu estou meio perdido, gostaria de
algumas informações... Você poderia me fornecê-las?
- Com prazer! Pode dizer.
- Bom... Gostaria de saber se você tem namorado e se, caso não tenha,
toparia fugir dessa zorra... Deu uma gostosa gargalhada, chamou o garçom,
colocou na bandeja o copo que tinha na mão e me encarou, desta vez, sem
sorrir.
-Acabei de perder o namorado para uma maluca que resolveu tomar uísque em
seu pau. Eu topo, vamos dar o fora deste lugar.
Deduzi que a "maluca" só podia ser a Ana Maria. Já tinha sido usado de
"copo" várias vezes, para o seu drinque.
Ficamos rodando pela cidade, falando de nossas vidas como se fôssemos
velhos amigos, até quase o amanhecer. Era uma mulher sensacional. O seu
olhar seguro e felino fez meu coração disparar "ene" vezes. Com relutância
deixou-me em casa, não sem antes marcarmos um novo encontro para o dia
seguinte. Deitei-me, demorando a dormir, pensando o quanto era um sujeito
de sorte. Pela primeira vez na vida, senti que estava realmente apaixonado e, o
mais interessante, nem chegamos a nos beijar.
Acordei por volta das nove horas com o telefonema de minha secretária
avisando-me de uma reunião com a diretoria da empresa. Passei o dia todo
olhando para o relógio e, assim que me desocupei, no final da tarde, saí
correndo para casa. Tinha encomendado um jantar delicioso para receber
Nara, e esperava que tudo saísse perfeito. Acho que vamos formar um casal
perfeito.
Aroldo me viu entrar no hall cantarolando e sorriu. Acenei para ele pensando:
"Aroldo bem que tá merecendo uma gorjeta boa. Farei isso, no final do mês".

Happy Hour

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Mal terminou de fechar a braguilha para atender ao celular. Encostou-se na
parede azulejada, perto da pia. Telefone no ouvido, mirava-se no espelho. Os
outros fregueses entravam esbaforidos e a saiam aliviados. Havia muito
movimento. Não notava ninguém.
- Alô, Reginaldo?...
- Sim... Querida, é você?
- Onde cê, tá Reginaldo?
- Tô com o pessoal do trabalho, meu bem...
-...Com quem?
- Você conhece, querida. O Fausto, o Otavinho... Todo mundo – ajeitou o
cabelo com a mão desocupada. Avaliou o resultado mexendo com a cabeça,
olhos fitos no espelho.
- Deixa eu falar com o Otavinho, então... Não confio em você, Reginaldo e
você sabe disso.
-...Não, não dá pra falar com ele agora, meu bem...
- Mas você não disse que está com ele? Ele está ou não está, Reginaldo?
- Está, está aqui, sim... Não aqui, aqui mesmo... É... Ele está no bar
comigo, já te falei, mas eu tô falando do banheiro...
- Tudo bem, Reginaldo, mas se eu descobrir que você tá mentindo pra mim
eu te mato!
- Tá legal, amor, pode matar. Mas você tem que confiar em mim, cê sabe
que eu te amo...
- Eu também te amo, apesar do carma de galheira... Vou dormir, volta logo,
hem!?
- ...Tudo bem! Não precisa ficar acordada, daqui a pouco tô indo embora...
Beijos, tchau!

Ele, ao desligar:

Fez uma última avaliação no cabelo e saiu. Parou na porta do banheiro,


pensativo. Desligou o celular, retirando a bateria. Caminhou em direção à
mesa e constatou que estava meio bêbado. Sentou-se à mesa.
- Você demorou, tá se sentindo bem?
- Tô ótimo, coração... Com você eu tô sempre melhor.
- Por que cê demorou, então?
- Tava falando com o Otavinho no celular.

Ela, ao desligar:

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Pôs o fone no gancho, se aconchegando, com um longo e prazeroso
suspiro, debaixo dos lençóis. Com a cabeça descoberta, ficou olhando-o
enquanto ele saía do banheiro, enrolado em uma toalha. Sorriu-lhe, abrindo os
braços num gesto mais do que convidativo.
- Acho que quero mais: tô queimando!
- Eu também, minha gata fogosa!... Mas, cê num acha que tá na hora do
Reginaldo chegar?
- Liguei pra ele... Disse que está numa reunião chata e que não tem hora de
acabar.
- O Reginaldo em reunião? Com quem?
- Com você, meu garanhão... Pelo menos, foi o que ele me disse.

A procura

Elisa saiu da piscina exausta. Nadara por mais de meia hora, com braçadas
vigorosas, de um lado a outro, os vinte e cinco metros, ininterruptamente.
Enxugou-se com a toalha rosa que colocara na cadeira sob um guarda-sol, que
naquela hora, às quatro da manhã, não tinha nenhuma utilidade. Sentiu-se
melhor, respirando profundamente o ar da madrugada fresca de março. As
luzes que iluminavam a piscina refletiam-se na casa em penumbra. A essa
hora, todos dormiam. Estava sozinha, observou. Nada, ninguém, tinha
consciência de sua existência. Somente o céu, repleto de estrelas,
testemunhava a sua solidão e angústia.
Começara a noite no bar do Castro's, às dez horas, onde encontrara Lídia e
Norton Villa. Bebiam uísque com água gaseificada e gelo. Pedira um.
O bar repleto e a animação das pessoas estavam em desacordo com o seu
estado de espírito. Esperava conversar com Jaime naquela noite, e o lugar
mais provável para encontrá-lo seria aquele local. Suspirou resignada e tentou
relaxar para o que poderia ser uma longa espera.
Há uma semana não via Jaime. Não dera notícias desde o último sábado,
quando aparecera em sua casa e lhe dissera tudo aquilo que desde então a
angustiava. Elisa sabia que chegara ao limiar de mudanças em sua vida. Era o
momento de começar a tomar decisões e isso, descobriu, implicava ganhar e
perder.

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Em seus dezoito anos de idade, perder era algo abstrato e distante. Preço de
ser filha única de um pecuarista bem sucedido? Ou acontecia isso com todos,
independente de classe social? Chegara o momento da colheita de dúvidas
asfixiantes. Chegara o momento de assumir a direção de sua vida e constatava
não estar apta para isso. Esquecera de se habilitar devidamente.
Presa em sua introspecção, Elisa não conseguia entrar no ritmo e no tempo de
Norton e de Lídia, que riam de banalidades que diziam por puro divertimento.
Eram, nessa noite, o oposto da amiga, que percebiam estar com um astral
abaixo de zero.
Foi ao banheiro. Parada em frente ao espelho, observou o rosto maquiado
de tristeza. Tinha consciência de sua beleza, embora isso fosse para ela algo
natural como existir. Mas, ao que parecia, para Jaime a sua beleza era a razão
de seu amor. Afinal, não vivia dizendo que quando a viu pela primeira vez
imaginou estar vendo uma atriz de cinema, um modelo fotográfico? Há alguns
dias, dissera: "Quando vi aquela coisinha linda na minha frente, disse a mim
mesmo que ela tinha que ser minha. Você não ficou feliz de o destino ter feito
nossos caminhos se cruzarem? Vamos nos casar e deixar todos os meus
amigos com inveja..."
Passou a mão, úmida de água, levemente no rosto, tendo o cuidado de não
manchar a pintura dos olhos. Saiu de seu devaneio, assustada, sentindo que
alguém, por trás, lhe passara a mão nos seios. Era uma mulher, quase da sua
idade, com um sorriso cínico estampado no rosto.
- O cara te deu o fora, gatinha? Posso te consolar. Você vai gostar...
Elisa saiu do banheiro apressada, reprimindo uma vontade quase incontrolável
de chorar. Parou um instante, respirando fundo para reencontrar um pouco do
equilíbrio emocional. "O melhor seria sair daqui. Estou péssima", pensou.
Olhou em volta, mesa por mesa, numa última esperança de que Jaime já
estivesse ali. Viu uma figura solitária numa mesa no canto oposto, onde
estivera sentada, parecida com ele. Caminhou naquela direção. Aproximou-se
e, já bem perto, viu que se enganara. Era outra pessoa. Parecia com o
namorado, com a diferença de estar vestido com roupas esportivas e bem
coloridas. Jaime vivia de terno. Só conseguia vestir algo mais informal
quando estava na fazenda.
Elisa virava-se para retornar à mesa de seus amigos quando ele a
cumprimentou.
- Olá!
- Oi. Desculpa, te confundi com outra pessoa, com licença...
- Espera! Não gostaria de sentar um pouco aqui, comigo? Vamos dividir as
nossas tristezas - falara com um jeito tão espontâneo que deixou Elisa indecisa
-Vem, senta uns minutinhos...
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- Por que você diz "dividir nossas tristezas"? - Elisa perguntou.
- Via você daqui - apontou na direção da mesa onde Norton e Lídia
estavam.
Ficaram calados por um breve instante.
- Qual o seu nome?
- Elisa... E o seu?
- Alan.
Elisa percebeu algo diferente no jeito de ser de Alan. Observou-o melhor e
sorriu intimamente ao descobrir que, por um breve instante, tivesse achado
que ele a estaria paquerando. "Sem dúvida alguma, ele é bicha", pensou.
- E você, por que tá aqui sozinho com esse ar de cãozinho abandonado? -
Elisa perguntou.
- Raison d' état - brincou.
Riram. Elisa voltou a observá-lo. Era bonito. Os olhos diziam poemas a
quem os visse de perto. Era uma criatura que impressionava pela força que
emanava de seu próprio interior. Mas era humano como qualquer um e parecia
sofrer. Resolveu conhecê-lo melhor.
- Vamos sair daqui, Alan?
Andaram, no carro de Elisa, por mais de uma hora pela cidade,
conversando sobre o trabalho e a vida de Alan. Era artista plástico. Morara em
Paris durante quatro anos, e estudara em boas escolas de arte. Vivera oito anos
no Rio. Apaixonara-se por um rapaz que morava em Goiânia, e viera parar
aqui, com tintas e pincéis nas mãos. O caso com o rapaz durara menos de um
ano, mas sentiu-se totalmente integrado à cidade e ficou. Estivera namorando,
por último, um garoto de vinte anos de idade. A família dele descobrira e o
obrigara a ir para a casa da avó, em Roma. Ele havia escrito e falava da
saudade que sentia de Alan. Falara até em suicídio.
- Affaire d'amour. Tout lasse, tout casse, tout passe...
Pararam numa boate na avenida T-9. Beberam mais que dançaram.
Encontraram alguns poucos conhecidos e às duas da manhã saíram. Elisa
queria conhecer o atelier de Alan. Estava com o ânimo ligeiramente
melhorado.
Se jogou num enorme divã desbotado e manchado de tintas, enquanto Alan
ia buscar bebida na cozinha. Era um estúdio pequeno, mas com o aconchego e
o intimismo próprios dos artistas. As paredes estavam forradas de telas num
estilo que lembrava a Elisa a Art Nouveau. Gostou daquele lugar.
- Uísque, pra variar - Alan entregou-lhe um copo.
- Vende muito? - Elisa fez um gesto com a mão esquerda em direção aos
quadros.

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- O suficiente... E você? Quem é o sacana que tá fazendo você sofrer
assim?
- Ah, Alan! Tinha até me esquecido que tou numa enrascada legal.
- Esqueceu, mas não resolveu, minha querida. Resolve à tout vapeur o que
tá te aporrinhando e cai na vida, garota! - Alan se soltara mais, sentindo-se à
vontade com Elisa -. Vê o meu caso: se aquela coisinha fofa que eu adoro se
suicidar, como diz na carta (que Deus o livre disso), vai provar, à mon avis,
que não passava de um tolo e fraco. Vou continuar pintando minhas telas,
bebendo um bom uísque e namorando sans peur et sans reproche. Só a morte é
que não tem solução, meu anjo. E não pense que eu não estou preocupado.
Hoje você me viu naquele bar com o peso de uma vida em meus ombros. O
tempo vai me ajudar a encontrar a solução... Ou trazê-la.
- Jaime é um cara legal... ...Mas?
- Não sei... Ele quer casar ainda este ano... Não, não é isso. A verdade é
que ele é um porco chauvinista. Isso é o que ele é - Elisa se calou por um
instante, pensativa -. Mas... eu o amo. Não sei o que é que eu faço... Me dá
mais um pouco desse uísque.
- Mon petit, não acha que já bebeu o suficiente?
- O que é o suficiente, meu caro Alan?
- Bravo! - Voltou à cozinha e trouxe a garrafa, já pela metade.
Elisa pegou o copo que lhe era oferecido e ficou bebendo em pequenos
goles, de forma automática, com o pensamento na última conversa que tivera
com Jaime. Ele lhe falara de uma forma que, a Elisa, foi quase como um
ultimato. Queria que marcassem o casamento para o fim de agosto, ou seja,
dentro de seis meses. Outro desejo seu era de que ela deixasse a faculdade
para assumir a direção da casa e cuidar dos filhos que iriam ter, "dois ou três",
depois resolveriam. A resposta de Elisa fora uma gargalhada histérica para, em
seguida, mandá-lo embora. Saíra correndo, fugindo de tudo e de todos, em alta
velocidade, em seu carro. Voltara à noite e, desde então, não vira Jaime.
Os pais repreenderam a sua atitude, o que fez com que se isolasse de todos.
Sentira falta de Jaime. Dois dias depois, começara a procurá-lo, sem obter
sucesso. Queria conversar, ver se podiam entrar num acordo. Agora estava ali,
na casa de um cara que mal conhecia, de fogo e tentando imaginar o que mais
seria a vida. Jaime se transformara, com o tempo, em sua âncora. Seu primeiro
e único namorado. Saía somente com ele, com os amigos dele - os seus
podiam ser contados nos dedos. Amigos de escola, às vezes se viam,
conversavam e nada mais. A exceção era Lídia, a amiga de infância. Mas não
podia contar com ela para falar da sua angústia. Os problemas, para ela, eram
de sua total e inteira exclusividade.

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O melhor seria deixar Jaime... E aí? Como iria fazer para recomeçar, ou
até, talvez, começar uma nova vida?
- Encontrou a solução? - Era Alan, que a tirava de seu devaneio.
- Alan, o que eu posso esperar da vida?
- Nada. Você tem que buscar, ir à luta. Provavelmente vai levar mil
porradas, mas vai sobreviver e depois rir de algumas dessas porradas. Só
assim, vai ter chances de construir seu próprio caminho, sua própria
felicidade. Eu já passei por milhares de obstáculos, preconceitos, mon petit.
Sobrevivi e posso dizer que, no frigir dos ovos, tenho sido feliz. A sua vida
está apenas começando. Ouse, este é o melhor conselho que posso te dar. Mas
como eu não sou padre, minha querida, fecho a boca. Definitivamente.
- Você é um chato! Vou embora.
- Fica com um cartão meu e me liga pra gente fazer um auê, qualquer dia
desses.
- Tá legal... Onde pus as chaves?
Elisa chegara em casa pior do que saíra. Deixou o carro na garagem e se
dirigiu lentamente para o pátio onde ficava a piscina. Tirara a roupa e, nua,
pulou na água.
Vagava pelas estrelas, depois de tanto nadar. Precisava colocar um ponto
final naquela relação, mas tinha medo. Medo de não conseguir seguir sozinha,
sem a presença de Jaime. Quatro anos de namoro. Desde os quatorze, com um
cara doze anos mais velho. Mas o que ele pedira era muito além daquilo que
achava que poderia dar. Não sabia ao certo, mas, com certeza, tinha um lugar
e um papel no mundo e, definitivamente, não era o da perfeita dona de casa.
Não queria ser o modelo de esposa, como sua mãe, que arrancava elogios de
todos os homens da família a seu pai. Ele soubera escolher, diziam.
Levantou-se, vestiu a roupa e foi para o quarto. Em cima da cama encontrou
um pacote e um bilhete. Abriu o embrulho sem demonstrar interesse. Era uma
fotografia emoldurada, onde ela estava abraçada com Jaime, sob a Torre
Eiffel. Fora tirada no ano passado. Leu o bilhete: "Estive aqui e não te
encontrei. Voltei porque te quero muito e estou lhe perdoando pela suas
atitudes infantis. Breve você será uma senhora casada e isso vai mudar. Esta
foto é um presente para colocarmos em cima do criado-mudo de nossa cama.
Guarde-a com carinho. Beijo do seu futuro esposo, Jaime Serafim
Albuquerque".
Jogou-se de costas na cama e sorriu. Olhou para o telefone, hesitante.
Pegou-o e discou.
- Alan? É Elisa.
-... - Desculpa, sei que não é hora... Queria só te perguntar uma coisa...
-... - Você se incomodaria de me alugar um canto no seu atelier?
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-...
- Me decidi... Jaime que arranje outra chocadeira.
-... - Isso mesmo, meu amigo... Vamos viver!

Vermes e Eclipse

Ofereceu-me o copo de vinho, contorcendo sensualmente o corpo, cabeça


encostada em meus joelhos. Recusei. Cansado como estava, beber me
colocaria a nocaute. Praça cheia, conversas, reggae e muito calor.
- Eu tô no subterrâneo. Adoro estar no subterrâneo, sob a terra, na terra dos
vermes. Não é legal?
Disse que sim. "Subterrâneos da Liberdade", falei, sem entender por que
Jorge Amado veio baixar nesse terreiro, ou melhor, nessa nossa velha praça
Universitária de guerra.
- Você já viveu no esgoto? É uma sensação indescritível!
- É, eu andei algumas vezes...
Veio-me à memória o tempo de criança, não muito remoto, quando,
juntamente com alguns amigos, entrávamos em uma boca-de-lobo próxima à
igreja católica da Vila Redenção e, engatinhando, descíamos pela tubulação de
águas pluviais até desembocar perto da nascente do córrego Botafogo. Era
simplesmente horrível a travessia daquele trecho de quinhentos metros. O ar
quente e fétido, quase sem oxigênio, dava-nos a sensação de um percurso bem
maior. Mas, éramos destemidos aventureiros sob a terra. E a maior
recompensa dessa desvairada ação infantil era respirar o ar puro da mata ainda
intocada do Jardim Botânico, quando saíamos da tubulação. A sensação de
medo, inconfessável, que todos sentíamos, era substituída por um arfar
profundo e uma expressão de poder. "Os vermes é que sabem viver... no
esgoto", concluí.
- Ser verme é o maior lance. Eu sou um verme - Sara repetiu.
- Os vermes é que sabem viver... - disse.
- É, eles é que são felizes...
Claro que ela estava falando essas coisas no sentido figurado, pelo menos
entendi que o fora. Sara estava feliz, curtindo uma noite junto aos amigos,
bebendo vinho branco, ouvindo, cantando e dançando o reggae. Disse estar
feliz, também, de me reencontrar, depois de tanto tempo. Sara era, naquela
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noite de eclipse total da lua, o último do século, um verme em paz naquele
esgoto de sensações e juventude new-hippie-mix.
Eu, um estranho verme, cansado de um dia exaustivo de trabalho, deitei-
me em um dos bancos de concreto e fiquei saboreando o eclipse, numa
viagem particular. A lua foi totalmente coberta pela sombra da terra. Sara,
deitada com a cabeça em meu colo, suspirou com satisfação.
Dois vermes, de subterrâneos distintos, enroscados, sob um luar tênue,
opaco, embriagados de uma lucidez duvidosa, lutavam para estar em sincronia
com os seus momentos.

Editado por Osair às 3:42 AM Deixe seu recado:

Intenções

Ela me disse que era bailarina. Usava roupas soltas e graciosas, como seus
gestos. Fala macia e sorriso amplo. Fomos apresentados por Eliane, uma
modelo com quem trabalhei umas fotos de moda.
- Se tenho uma frustração na vida, é essa.
- Qual?
- De não saber dançar.
- Começa... Sempre é tempo, não?
- Quem sabe, um dia te procure pra me dar algumas aulas?
- Qual o teu signo? – Perguntou.
- Peixes, ascendente em Touro.
- Ah... - Sorriu, me olhando de uma maneira que me fez ficar encabulado.
Desde os quinze anos não tinha mais esse tipo de reação.
- É tão grave assim?
- Não, eu gosto. Você é um sonhador, um romântico... Posso conhecer seu
estúdio?... Dá licença, eu volto.
Alguém a chamara. Fiquei dando voltas pela galeria, bebendo lentamente o
meu vinho. Olho um quadro desinteressadamente. "Poxa, que garota!",
suspiro involuntariamente.
Tinha saído de casa com a finalidade de encontrar alguém com quem
pudesse passar a noite. Estava carente de uma boa transa. Há dois meses eu
tinha terminado uma relação de dez anos. Foram dois meses só de trabalho e
muito uísque. Não estava preparado para levar um fora. A casa ficou vazia

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sem Alexandra, eu fiquei vazio. Precisava recuperar a auto-estima. Vi o
convite para o vernissage em cima da mesa, liguei para Eliane e fomos.
Logo que chegamos, fui apresentado a Roberta. Eliane foi para uma roda
onde estava o namorado e alguns amigos. "Acho que essa bailarina é a pessoa
de que estou precisando", concluo, esperançoso.
Procuro-a na multidão, demorando a encontrá-la. Está no mezanino
conversando com um casal. Mais uma pessoa chega à roda. Volto a caminhar,
fazendo, de forma automática, a via-sacra, quadro a quadro.
- Oi!
Lúcia, uma ex.
- Oi, tudo bem?
- Tudo bem... Você aqui, que surpresa!
Me dá um beijo em cada face, segura em meu braço. Passa um garçom,
pego uma taça de vinho para ela e outra para mim. Conta sua vida atual.
Namorado novo, gente fina, bem mais velho que ela.
- A nossa relação foi dez, mas, tou adorando a experiência com Onofre.
Cara vivido, atencioso...
"E cheio da grana", penso eu com maldade. Olho para o mezanino e ela
não está lá. Finjo interesse na conversa de Lúcia, não escutando uma só
palavra. Olho sobre os seus ombros e a vejo caminhando em nossa direção.
- Ele é suplente de deputado. Cê precisa conhecer. Tem ótimas influências
em Brasília.
- É mesmo?
- Sério. Ontem ele me contou...
Volto a olhar e não a vejo mais. Dissimuladamente, procuro-a em todo
canto. "Deve ter ido ao banheiro". Volto a prestar atenção no monólogo de
Lúcia.
- Você não acha que ele tem razão?
- Como?
- O Onofre. Ele tem ou não tem razão em votar com os pecuaristas?
- Tem, claro...
- Oi! -Acena para um cara de cavanhaque e óculos escuros -. Dá licença,
querido.
Fico sozinho novamente. Paro em frente a um quadro surrealista. Uma
mulher e um homem, ao menos é o que me parece, dentro de uma cabala,
tendo ao fundo um deserto cheio de esqueletos de animais. Parecem estar
transando.
- Gosta? - Reconheço a voz. A minha (pretensa) bailarina.
-...Oi. Não, me deprime. E você, o que está achando desses trabalhos?

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- Coincidentemente, também não faz meu gênero. O impressionismo é o
meu limite.
- Então, que tal conhecer meu estúdio e tomar um vinho de verdade?
- Acho uma ótima sugestão.
No carro, a caminho de minha casa, resolvo adiantar os acontecimentos.
- Você acredita em paixão à primeira vista?
-Acredito, claro. Todo sentimento abrupto, repentino, é algo sincero. Só
que nós, nem sempre, os interpretamos de forma correta. Você, por exemplo,
vai dizer que sentiu essa paixão logo que me foi apresentado...
- E?..
- Mas não é paixão!
- O que é, então?
- Tesão. Você está carente e quer transar e eu fui a escolhida, porque você
se sentiu atraído por mim. Só que atração não é paixão. Concorda?
- Concordo. Como você sabe da minha carência?
- Não sei. Apenas deduzi.
- Nesse caso, posso concluir que você também quer transar comigo, não?
Você aceitou o meu convite...
- Não... Aceitei um convite para conhecer o seu estúdio e tomar um bom
vinho e, também, porque te achei um cara legal. Não encontrei outra
alternativa: tive que ser um cara legal. Bebemos, rimos e conversamos até
quase o amanhecer. Depois, a levei para casa.
Resumindo: comecei a aprender dançar.

Lua de Agosto

A estrada estava deserta. O ar parado e carregado de fumaça de queimadas


fazia um dueto com o silêncio daquela tarde quente do mês de agosto.
Natanael se sentia sufocado dentro do carro, apesar de as janelas estarem
todas abertas. O sol doía-lhe nos olhos. Se maldisse por ter esquecido os
óculos escuros. Esperava. Mais meia hora naquele local, poderia enlouquecer,
achava. A todo instante corria os olhos pelas redondezas, à procura de uma
única sombra onde pudesse se refugiar daquela sauna em que se transformara
o carro. Só havia cerrado e pasto impregnado de cupinzeiros. De vez em
quando, um latido distante quebrava a monotonia daquela espera.
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Não entendia por que uma transação de drogas pudesse demorar tanto
tempo. Jorginho e Lamê haviam-no deixado naquele local há pelo menos uma
hora, seguindo pelo cerrado até desaparecerem por entre a serra, que se
elevava impávida contra o céu, há mais ou menos um quilômetro do local
onde o carro ficara parado. Natanael acendeu o último cigarro da carteira,
remexendo-se no banco dianteiro do Opala. Fechou os olhos, como se
quisesse, com isso, fazer o tempo fluir com menos lentidão. A cabeça
começava a latejar no ritmo de seu coração, fazendo aumentar a angústia e a
ansiedade que se acumulavam minuto a minuto. Haviam-no prevenido que
não saísse de perto do carro, para o caso de surgir algum imprevisto, poderia
ligá-lo e seguir em frente sem despertar suspeitas. A espera, para Natanael, era
sinônimo de sujeição, manipulação do seu próprio tempo por outra pessoa;
esperar, para Natanael, era desesperar-se.
A região tinha uma beleza grandiosa, isso ele admitia, embora o clima
daquela época do ano e a situação em que se encontrava fossem o inverso. A
Serra dos Pirineus possuía a vegetação amarelada, sem perder, contudo, a
majestade e a magia que emanavam de suas rochas milenares. Natanael a
conhecera cinco anos antes, quando veio com vários amigos de cursinho para
participar da Festa do Morro, que acontecia, todos os anos, na lua cheia do
mês de julho. Beleza, frio, vastidão, sexo e alucinação estavam associados à
imagem da serra e à cidade de Pirenópolis. Ali, naquele ano, sua vida tomara
outro rumo com a descoberta de sensações até então desconhecidas.
Agora vivia o inverso. Procurou automaticamente o maço de cigarros e se
lembrou que tinha acabado. Olhou o relógio e resolveu descer do carro para
esticar um pouco as pernas, que já estavam meio dormentes pelo longo tempo
sentado. Uma nuvem cobriu o sol por alguns instantes, dando-lhe esperanças
de que o tempo poderia, agora, melhorar. Logo desapareceu, deixando,
generosa, todo o sol para Natanael. As nuvens não entendem de gente.
Natanael chutou os pneus do carro, agradecendo a gentileza. Sentou-se no
barranco da beira da estrada e deixou o olhar vagar pelo horizonte, que, nessa
estação, era de cor cinza. O azul voltaria quando retornassem as chuvas de
outubro. O pensamento voltou à Festa do Morro. Estavam em cinco num
Maverick V-8, preto e, até então, aos 17 anos, não conhecia Pirenópolis. Por
isso, se sentia mais ansioso que os outros durante toda a viagem. Negrucho
dirigia, tendo ao seu lado a namorada, uma nissei, chamada por ele de Kiko
San. No banco traseiro, Luciano, Mauro e Natanael. Chegaram ao entardecer e
se dirigiram para a Serra dos Pirineus. Subiram por vinte minutos numa
estreita estrada encascalhada, até ao sopé de um pequeno morro, com cerca de
quinze metros de altura. No cume ficava uma pequena capela, ladeada por um
estreito promontório. Armaram as barracas entre as dezenas que já estavam
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ali. Havia entre as pessoas, todas jovens, um movimento frenético e alegre.
Natanael observara que a maioria tinha um figurino hippie. Gostou
imediatamente de tudo aquilo. Parecia-lhe que o sonho hippie resistia e que
John Lennon se equivocara. The dream live.
Alguém tocava um violão numa roda mais afastada. Terminaram de armar
as barracas quando a lua estava surgindo, imensa, no horizonte distante,
clareado pela luz amarela que desprendia. Para Natanael, era o maior show da
terra e era a lua que dava. Sentiu-se grato pela vida... Não percebeu quanto
tempo ficou olhando-a, parado como se estivesse hipnotizado. Vagou por
alguns instantes em meio à vegetação cheia de pequenas rochas e retornou ao
acampamento. A sua turma tinha formado uma roda e Luciano tocava, numa
flauta de bambu, músicas latino-americanas. Alguém deu a idéia de chamar o
pessoal do violão. A festa se animou ainda mais. Natanael tomou seu segundo
copo de vinho e logo começou a cantar, deixando a timidez de lado.
- Oi! Cê num tem um baseado aí, não? - Era uma menina de uns dezoito
anos que se aproximara por trás de Natanael.
- Oi. Não tenho, não... - Notou que era linda, vestia uma saia cigana, tinha
cabelos negros e compridos e um jeito dengoso de falar -. Mas posso ver se
arranjo um pra gente.
Natanael era virgem em se tratando de drogas. Sexo experimentara
algumas vezes, com prostitutas da casa da Tia Linca, que ficava num bairro
próximo de onde morava. Já pensara experimentar maconha, mas faltará-lhe
coragem. Agora estava disposto, não sabia se devido ao vinho ou à garota que
lhe faria companhia numa viagem que ele ainda desconhecia. Foi até onde
estava Negrucho, que comandava a roda, distribuindo bebidas e cantando.
- Negrucho... - Chamou baixinho, tocando-o com a mão.
- Aí, grande Natan! Vai de vinho ou cerva?
- Vinho - estendeu o copo -, e mais alguma coisa.
- Como é que é?
- O seguinte: tem uma gata aí que tá a fim de dar uns pegas num baseado.
Descola um pra gente... Tô querendo... Experimentar também.
- Natan, grande Natan! Cê nunca quis fumar um bêise, quê que aconteceu?
Tá apaixonado, cara?
Negrucho se divertia com o embaraço de Natanael. Tinha vinte e cinco
anos e era o mais velho da turma da sala de aula do cursinho. Negro
simpático, falador e alegre, estava sempre ligado. Tirou um baseado já
preparado e o passou para Natanael.
- Juízo, grande Natan... E traça a gata, falou?
Saíram para um canto isolado. A lua já estava no alto e clareava todo o
caminho. Sentaram juntos em uma pedra. Natanael entregou-lhe o baseado.
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- Acende aí.
- Cê tem fogo?
- Tenho - tirou o fósforo do bolso e lhe entregou.
- Qual o seu nome?
- Ita. Quer dizer pedra, em tupi-guarani. E o seu?... não diz não, espera aí!
-. Acendeu o baseado, tragou profundamente, tapando o nariz com as mãos.
Soltou a fumaça e repetiu a tragada. Natanael olhava atentamente para fazer
igual. Já tinha visto inúmeras vezes aqueles gestos, feitos pelos amigos, e
agora tinha receio de não consegui-lo. Olhava também para Ita, a mulher, e a
achava cada vez mais sensual e desejável.
- Toma - passou-lhe o baseado.
Fez como Ita fizera e engasgou-se. Tossiu, tomou fôlego e repetiu.
Fumaram em silêncio até a última tragada. Ao longe, ouviam as vozes e a
música do acampamento.
Ita começou a cantar:
"Eu conheço bem a fonte que desce daquele monte ainda que seja de
noite... Nessa fonte tá escondida o segredo desta vida ainda que seja de
noite...”.
- Adoro Raul - disse -. Ele tem lucidez em sua loucura e diz coisas que tem
tudo a ver com a gente... Eu fui num show dele no festival de Águas Claras.
Foi bacana à beça. Maluco lúcido e lúdico... Não quero saber o seu nome,
cara...
- Por quê? - Natanael olhou-a. A sua voz parecia-lhe vir de longe, às vezes,
de dentro de sua própria cabeça. Encolheu um pouco, sentindo mais o frio da
altitude. Tomou o restante do vinho que havia no copo. Ita tomou-lhe as mãos.
- Cê tem uma aura boa. Parece um anjo... vou te chamar de Gabriel... o
anjo do bem. Posso te beijar? Hã...? Posso?
- Pode...
Ita beijou-o levemente nos lábios, afastou a cabeça, olhando-o nos olhos.
Natanael, cada vez mais com frio, sentia-se tremer por dentro. Os sons do
acampamento pareciam-lhe que se extinguiam, para em seguida voltar. Por
alguns momentos não conseguia saber onde estava, com o céu claro de lua e
estrelas a envolvê-lo.
- Vou buscar mais vinho pra gente, cê quer? Perguntou a Ita, que deitara de
costas no meio do capim, não sentindo os pedregulhos sob o corpo.
- Quero... Traz mais um fuminho também, anjo Gabriel, que eu vou dar
uma volta naquela estrela azul e te trazer uma luz estrelar...
Natanael saiu andando sem sentir o chão, sem rumo certo. Num momento
de lucidez procurou o local onde tinham estacionado o Maverick. Não o viu.
Continuou a caminhar sentindo-se numa geleira. Depois de alguns minutos
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viu o carro, ao lado de um arbusto retorcido que parecia uma escultura
surrealista. Encostou-se no pára-lama dianteiro, o mundo rodando. Abaixou
um pouco a cabeça e vomitou.
Aquela noite tinha demorado a passar, recordava. Dormira no carro com
todo o conforto que um automóvel pode oferecer para quem precisa de um
bom sono, ou seja, nenhum.
Voltou de suas recordações devido ao barulho de uma motocicleta que
vinha em sua direção, levantando uma nuvem de poeira vermelha. Xingou
baixinho, sentindo a irritação voltar-lhe. Entrou rapidamente no Opala e
fechou os vidros. Conseguiu imaginar o que sentia um bolo quando num
forno. Suava por todos os poros. Começou a pensar em ir embora dali e deixar
Jorginho e Lamê com suas transações baratas. Não tinha nada a ver com
aquilo. Detestava encrencas e aquela parecia ser uma das boas. Entrara de
gaiato.
Sentia a boca seca. Percebeu que há mais de duas horas não tomava nenhum
líquido. Todas as cervejas que tomara no caminho saíra pelos poros. Olhou em
volta, na esperança de encontrar algo que pudesse matar a sede. Nada. Abriu o
porta-luvas: uma edição de bolso do Novo Testamento, todo empoeirado,
papéis imprestáveis que sempre se guardam para não usar em ocasião alguma,
chaves, parafusos, balas de menta e um pequeno embrulho em papel alumínio.
Pegou o embrulho e verificou que era um tablete de maconha. Cheirou: era da
boa.
Lá fora a poeira já baixara. Saiu do carro, voltou a olhar pela região à sua
volta. Ninguém. Nem sinal dos dois malucos com quem se metera. Tomou
uma decisão: sairia pelo lado do pasto para procurar algum córrego onde
pudesse se refrescar e beber um pouco de água. Se eles retornassem enquanto
estivesse fora, que esperassem. Enfiou as chaves do carro e o tablete de
maconha no bolso e saiu andando com decisão.
Alguns minutos depois avistou uma depressão no terreno e se dirigiu
rapidamente para lá. Devia ser um córrego, pois já conseguia ver a copa de
árvores que formavam um cinturão verde rumo à serra. Sentiu-se mais
aliviado. Aliviado como ficara quando acordara no dia seguinte à Festa do
Morro, vivo, com uma ressaca administrável. Ou quase.
A experiência com aquele baseado fora simplesmente horrível. Só depois
de muito tempo e incontáveis copos de água gelada, conseguiu recordar
alguns detalhes da noite passada. Luciano disse-lhe que nunca é aconselhável
misturar bebida alcoólica com fumo, principalmente na primeira vez. Natanael
só achava que era um pouco tarde para o conselho. Desceram da serra por
volta do meio-dia, num silêncio que denotava todo o arrependimento pelos

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excessos, que somente aquelas ressacas que fazem a pessoa nunca mais beber
e ainda por cima virar protestante, com Bíblia e tudo, podem fazer.
Natanael boiava preguiçosamente nas águas frias e relaxantes do rio da
Almas, perto da ponte de madeira. Totalmente refeito, pensava agora em Ita.
Garota maluca e apaixonante. Achara-a maravilhosamente bela. Adorava
cabelos compridos e pele morena. Tivera sua oportunidade e não soubera
aproveitar. Se maldisse por ter fumado e bebido tanto. Saiu da água e se
dirigiu ao bar. Pediu uma cerveja, que tomou vagarosamente, enquanto
pensava nos compromissos que teria no dia seguinte. Segunda-feira não
perdoa, massacra. Daí a pouco teriam que pegar a estrada.
- Arcanjo Gabriel, salve! - demorou um pouco a sintonizar a pessoa que o
cumprimentava. Era Ita -. Conseguiu sobreviver às emoções, anjo bom?
- Olá... Pensei que não a veria mais. Senta e toma um copo comigo.
- Legal, vou aceitar... Como pode achar que não me veria mais? E a
conjunção dos astros? Sabia que eles articulam por nós? - falava quase sem
respirar, com um sorriso constante no rosto Cê não acredita!
- Não entendo nada de astros, tenho de confessar que sou leigo no assunto -
Natanael colocou cerveja no copo de ambos. Olhou-a no rosto: parecia ter
mais que os dezoito anos que pensara que tinha quando a vira na festa, vinte e
dois, talvez... Estava apaixonado, não tinha dúvida.
- Estou feliz de te ver de novo. Gabriel! Eu já disse que você tem uma aura
de muita luz? Disse?... Então está dito outra vez... Onde cê foi ontem, depois
que me deixou em companhia da estrela azul? Pensei que fosse voltar...
- Desculpa te fazer esperar, é... que eu... me senti mal -. Ficou irritado por
ter gaguejado. Isso normalmente não lhe acontecia.
- Tudo bem - Ita olhava-o nos olhos -. Guardei a luz azul que busquei na
estrela pra você. Depois te entrego.
-É mesmo? Onde você a guardou? - Natanael tinha um sorriso feliz no
rosto.
Ita aproximou o rosto do seu e disse baixinho:
- Dentro de mim - mudou rapidamente de assunto -. Vamos dar uma ida na
pedreira? Tô a fim de uma ducha de água corrente.
- Vamos. Espera um pouco aqui. Desta vez eu volto, vou só arranjar um
carro pra gente ir...
- Vamos no meu. Tá logo ali, depois da ponte.
A água da cachoeira caía com força no corpo de ambos e Natanael
agradecia por ela estar gelada: excitado, só ali, debaixo daquele jato cristalino,
sua ereção não era maior. Ita tirara a parte de cima do biquíni com uma
naturalidade que o deixara embaraçado. Era o preço de ter dezessete anos e,
ainda por cima, estar apaixonado. Como dizer a Ita que queria fazer amor com
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ela? Olhava o corpo bem feito ao seu lado, fechava os olhos imaginando-o
sem a parte de baixo do biquíni e sentia um tremor da cabeça aos pés. Saiu
correndo da água e deitou-se sob a sombra de uma castanheira. Tinha que
arranjar jeito e coragem para lhe dizer que a desejava. Não poderia deixar
passar mais essa oportunidade. Talvez nem a visse mais. Voltaria a Goiânia ao
anoitecer e à sua rotina de trabalho e aos estudos... E a Juliana. Havia até
esquecido de Juliana.
Estavam namorando há três meses e a adorava... Mas nunca sentira por ela
esse desejo avassalador que sentia agora por uma desconhecida. Não transara
ainda com Juliana, embora já tivessem tido várias oportunidades. Chegaram
perto algumas vezes, mas acabavam ficando no toque das mãos e bocas nos
sexos ardentes de ambos. Ah! Deixa Juliana em Goiânia, que a ela pertence o
seu querer bem...
Ita veio caminhando alegre e sensual em sua direção. Sentou-se ao seu
lado, alisando os cabelos; os mamilos duros pelo frio da cachoeira. Era demais
para Natanael. Procurava o que falar e não saía nada de sua boca, embora ela
permanecesse meio aberta.
- E aí, anjo Gabriel, diz alguma coisa e não fica me olhando assim, que é
feio - Ita brincou.
- Alguma coisa... por exemplo? - Idiota, pensei.
- Não sentiu algo diferente quando estava debaixo da cachoeira?
- Claro... muita coisa. Ainda tou sentindo...
- É a purificação da água corrente - Ita disse Quando estou me sentindo
com energias baixas ou negativas, me recomponho com água corrente... nem
precisa ser de cachoeira, basta que seja corrente.
- E você tava se sentindo assim... meio down?
- Não. Hoje o motivo é outro - Ita falava com um ar solene -. Precisava me
purificar para te dar a luz azul. Ela vai te proteger e te mostrar o caminho que
você tem que seguir para cumprir seu destino. Fui escolhida para esta tarefa
pelas forças que movem o mundo...
Natanael a olhava, mudo, imaginando se ela teria tomado ácido, se estava
ligada. Não conseguia entender o que Ita lhe dizia.
- E como é que você vai me dar essa... luz? Ita virou em sua direção, com
uma meiguice angelical.
- Vem! - Agarrou-o pela mão e saiu em direção às pedras que formavam
labirintos à margem do rio das Mortes. Pararam em um local isolado, próximo
a uma mata. Ita soltou a mão de Natanael e, olhando-o, tirou a parte de baixo
do biquíni. Natanael ficou estático, entre o fascínio e o susto. Sentiu o pênis
endurecer, fora de controle.
- Você é linda...-foi tudo que conseguiu dizer.
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- Não posso te entregar a luz azul da estrela. Você é que vai ter que buscá-
la... ela está em mim, guardada pra você.
- Como... como vou buscá-la... em você?
Ita deitou-se numa grande pedra lisa, estendeu os braços para Natanael.
- Eu já disse: ela está dentro de mim... me penetre e pega ela pra você,
Gabriel. Vem... Natanael ajoelhou-se ao lado de Ita e beijou-a. Foi um beijo
doce e demorado. Tirou com uma das mãos o calção, enquanto a outra afagava
o seio esquerdo de Ita, que começara a gemer baixinho. Deitou em cima de
seu corpo quente, voltando a beijá-la, desta vez com sofreguidão adolescente.
Os cinco sentidos de Natanael se transformaram em um único: o sentido
animal, que, por instinto, se fundia à fêmea, num encaixe perfeito de corpos
que se complementam. Amaram-se até quando a tarde começava a dar lugar à
noite, feito amantes que há muito não se viam. Natanael sabia que, depois
dessa tarde, estava transposto o istmo entre a adolescência e a vida adulta e
que, agora, estava pronto para a vida. Um ciclo se encerrara, outro tinha-se
iniciado.
O barulho de água correndo entre pedras o fez voltar outra vez de suas
recordações. Sorriu ao ver o córrego cristalino no meio de uma rala mata
ciliar. Sombra e água fresca: era tudo o que mais precisava naquele momento.
Tirou a roupa atabalhoadamente e entrou na água.
- Estou me recompondo, minha adorável Ita! Estou me purificando...
recompondo minhas energias, ouviu? Você tinha razão... tinha razão, minha
feiticeira amada!- Gritava com toda a força de seus pulmões, pulando,
jogando água para todos os lados. Ficou por mais de dez minutos ali, bebendo
alguns goles daquela água, de vez em quando.
Refeito da euforia, sentou-se numa pedra debaixo de uma árvore, sentindo
o vento refrescante em seu corpo molhado. Tirou o pacote que havia colocado
no bolso da calça e enrolou um baseado. Fumou lentamente, se achando
merecedor de todo o tempo do mundo para gozar esse momento de calma e
bem-estar. Nem se lembrou de Jorginho ou Lamê. Antes, viajava na lembrança
de Juliana. Pretendiam casar-se tão logo terminassem a faculdade, portanto
dali a um ano. Cinco anos de namoro... o que fazia, nessa hora, a meiga
Juliana? Não sabia onde ele estava, com certeza. Era injusto com a pessoa que
amava e com quem pretendia viver muitos anos junto... não injusto, mas
mentiroso mesmo, e a compreensão disso dava-lhe vergonha de si mesmo. Ela
jamais imaginaria que o namorado, com quem se dava até pelo avesso, ou
quase, fosse um usuário de drogas leves... leves, mas drogas. Os amigos do
Partidão também ignoravam essa outra face... será por isso que amava tanto a
lua? Também tinha seu lado oculto.

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Em pensamento, pedia perdão a Juliana, que talvez não o compreendesse,
caso lhe contasse que adorava um baseado... Seria uma atitude que a magoaria
profundamente, seria decepção... decepção, pois o admirava, com sua
capacidade de liderança, com sua atitude ousada de ser um vanguardista
inteligente, de estar à frente de atos como a luta pela anistia, quando
comandou segmentos do movimento estudantil com competência... mas, o que
mudava, em seu jeito de ser, um simples baseado?... Ou seria o que ele
representava? E o que ele representava? Marginalidade, submundo. Traição à
causa socialista?... Preconceitos... merda! Em que se metera? Onde estão os
dois malditos traficantezinhos? Tinha muito o que fazer em Goiânia e estava
refém de um jogo sujo que não queria e nem sabia jogar... E o frio, aquele
maldito frio que sempre sentia quando fumava unzinho, desde a primeira vez,
há cinco anos, aqui mesmo em Pirenópolis... Ita. Nunca mais a vira, porém
nunca a esquecera. Ela representava o seu lado louco, de viver a vida sem
regras, sem compromissos imbecis, de não dar satisfações a não ser ao seu
próprio eu... Desvairado. Não era assim, com essa natureza sem
responsabilidades... Percebia em lampejos de lucidez. Isso aflorava porque
estava ligado... Não havia outra explicação.
Ouviu gritos. Levantou-se e prestou atenção aos sons que chegavam até ele.
Tiros... Natanael não entendia o que podia estar acontecendo, no estado em
que se encontrava. Voltou a sentar-se na pedra fria, sem perceber que estava
anoitecendo. Imaginou-se perdido, olhando para os lados, não reconhecendo
onde estava. As mãos estavam trêmulas. O frio insuportável pelo corpo e a
sensação de irrealidade começaram a lhe dar um pavor de estar ficando louco
ou morrendo. Saiu correndo sem rumo, como se quisesse, assim, espantar a
angústia e o desespero. Correu entre mato e pedras até cair. Levantou-se e
continuou desesperado em busca do nada, parando somente quando,
totalmente sem forças, se viu numa mata cerrada. Rodou em volta de si
mesmo, com as mãos na cabeça, respirando com dificuldade. Caiu de joelhos
para em seguida se deitar no terreno forrado de cascalho, não sentindo nada, a
não ser a própria pulsação acelerada.
Ita estava ao seu lado. O que mais queria desta vida estava acontecendo.
Sentiu uma felicidade de que não se achava merecedor. Ela abaixou-se e o
beijou ternamente na boca, com aquele sorriso maravilhoso estampado no
rosto. Ficaram abraçados por um eterno momento, o corpo quente de Ita
trazendo-lhe profundas recordações do útero materno.
- Vem, arcanjo Gabriel!
Saíram andando de mãos entrelaçadas, noite adentro, até chegarem ao
cume da Serra dos. Pirineus. O céu estava estrelado e uma brisa mansa e
sensual assoprava em seus rostos irradiados de paz.
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- Gabriel, você está desprezando a sua própria natureza, sabia? - Ita disse,
com uma voz tranqüilizadora.
- Ita, eu não entendo nada dessas coisas esotéricas que você diz... Cë sabe
disso.
-Nem é preciso. Simplesmente vaiem busca da sua felicidade, junto
àqueles que te amam e precisam de você. Cê sabe o seu lugar no mundo.
Ficaram em silêncio absorvendo a imensidão do planalto que se descortinava
à frente dos dois, iluminado pela lua cheia.
- Como é que eu vou fazer com estas inverdades que fazem com que eu
tenha uma vida aberta e outra oculta? Isso me faz mal, Ita.
- Se te faz mal, acabe com essa parte da vida. Olhe dentro de você: lá está
seu verdadeiro caráter. Agora preciso ir, arcanjo Gabriel.
- Cê vai me deixar aqui sozinho? - Natanael perguntou.
- Anjo bom, você não está só. Lembra daquela luz? Ela está com você, te
protegendo. Olhe pra cima.
Natanael olhou a imensidão do céu claro de agosto e sentiu uma lágrima
em seus olhos... Acordou com um facho de luz da lua em seu rosto, que
penetrara a mata fechada por uma fresta nas altas copas das árvores. Sorriu.
Eram duas e vinte da manhã e imaginou em quanto tempo chegaria a
Pirenópolis, andando. Quem sabe ao amanhecer? Tinha todo o tempo que
quisesse. Afinal, já era sábado. E, que melhor programa existe, para um fim de
semana, além de tomar um gostoso banho gelado de cachoeira em Piri? Tudo
o que tinha a fazer em Goiânia que esperasse. Ligaria para a namorada.
- Juliana vai adorar - disse alto, enquanto caminhava pelas trilhas
iluminadas pela lua, que refletia uma luz levemente azulada.

Goiânia, de janeiro a outubro de 1996

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Goiânia, Goiás, Brazil - 1996,

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