Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mito x filosofia
A civilização grega desenvolveu-se na Peninsula Balcânica, a mais oriental do sul da Europa, rodeada de
numerosas ilhas. Seu relevo montanhoso facilitou a formação de grupos humanos isolados e autônomos, como de
fato foram as cidades-estados (as polis).
A pouca fertilidade do solo acidentado foi compensada pela presença de ótimos portos naturais. Assim, os
gregos puderam desenvol ver com segurança a navegação, que possibilitou o crescimento do comércio e,
conseqüentemente, a riqueza crescente das cidades-estados.
O aumento populacional levou à procura de terras férteis e à criação de muitas colônias nas regiões
mediterrâneas. A fiscalização e a proteção dessas colônias eram tarefa da frota grega.
Nos séculos VI eVa.C, as polis conheceram o apogeu econômico, político e cultural. Foi exatamente nesse
período glorioso que surgiu na cultura grega o confronto entre mito e filosofia.
Tanto o mito quanto a filosofia são formas que o homem utiliza para explicar o mundo. São explicações que
visam responder aos questionamentos sobre o sentido da vida, o surgimento do universo e do homem, assim
como justificar as normas que garantem a vida em comunidade. Ao buscar essas explicações, seja pela linguagem
do mito, seja pela linguagem filosófica, o homem está tentando organizar sua cultura.
A Autoridade do mito
O mito é uma história religiosa revelada com autoridade supostamente indiscutível. O passado é descrito
como as tradições que não admitem nenhuma crítica: "É assim, porque foi dito que é assim". O texto a seguir nos
fala um pouco sobre isso.
"O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar
no começo do Tempo, ab-initio ('desde o início'). Mas contar uma história sagrada eqüivale a
revelar um Mistério, porque as personagens do mito não são seres humanos: são Deuses ou
Heróis civilizadores, e por esta razão as suas gesta Cações memoráveis') constituem
Mistérios: o homem não poderia conhecê-los se lhos não revelassem. O mito é, pois, a
história do que se passou in illo tempore ('naquele tempo'), a narração daquilo que os Deuses
ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. 'Dizer' um mito é proclamar o que se
passou ab origine ('desde a origem'). Uma vez 'dito', quer dizer, revelado, o mito torna-se
verdade apodítica: funda a verdade absoluta. 'É assim, porque foi dito que é assim', declaram
os Eskimo netsilik ('tribo de esquimós') a fim de justificarem a validade da sua história
sagrada e de suas tradições religiosas. "
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 107-8.
Durante um longo período da história grega, a mitologia constituiu a fonte exclusiva de explicação para a
existência do homem e a organização do mundo. As interpretações imaginárias criadas por ela foram adquirindo
autoridade pelo fato de serem antigas. As divindades constituíam os personagens que, pelas divergências, intrigas,
amizades e desejo de justiça, explicavam tanto a natureza humana como os resultados das guerras e os valores
culturais. Nesse sentido, a linguagem do mito esconde interesses de classes e pode ser manipulada por aqueles
que detêm o poder. Ela impõe comportamentos morais à comunidade e uma hierarquia de punições para aqueles
que não os seguem.
Em virtude do desenvolvimento e dos contatos culturais com outros povos, decorrentes do comércio e da
navegação, os gregos cultos sentiram necessidade de Qcontrar uma linguagem mais universal e rigorosa para
justificar o universo e as próprias instituições. O mito parecia-lhes, cada vez mais, uma forma de expressão
regional, particular, uma cristalização de interesses locais. Em síntese, o mito já não satisfazia às necessidades
culturais da época.
Surgiu, então, a linguagem filosófica, trazendo novos conceitos culturais, baseadas na razão, para tentar
substituir as criações míticas.
A tensão estava estabelecida. De um lado, os conservadores queriam manter o sistema explicativo do
mito, muito mais popular e eficaz para preservar seus privilégios. De outro, os filósofos, desejosos de mudança,
rejeitavam as explicações míticas e eram favoráveis às reivindicações dos membros das classes emergentes (os
artesãos e os comerciantes), democratizando assim o sistema político.
A tensão entre mito e filosofia começa mas não termina na Grécia antiga. Ela perpassa a história
ocidental e continua de alguma forma até hoje.
Filosofar é, basicamente, admirar a realidade tal qual ela existe; é saber contemplá-la sem projetar nela
temores míticos e crenças fantasiosas. Enfim, filosofar é ver o relâmpago como fenômeno natural, não como
vingança ou ameaça divina; é ver o mar simplesmente como mar, a montanha como montanha, as estrelas como
estrelas, a seca como seca, os fatos sociais e políticos como resultado das relações humanas. Durante o período
mítico, a natureza era vista pelas lentes das crenças. Com a filosofia, a natureza é despida de interpretações
culturais, podendo manifestar-se com autonomia e por suas próprias leis. O filósofo deixa a natureza falar por si
mesma. Por isso, a filosofia não é privilégio de uma casta, não depende de livros sagrados, não é uma doutrina
oculta e dispensa ritos de iniciação ou penitências rigorosas. Essa nova maneira de lidar com a realidade foi o inicio
da filosofia, que até hoje, 26 séculos depois, procura libertar o homem das crenças e temores desumanizantes.
Com a evolução da filosofia, o modo de conhecer diretamente o mundo tornou-se um enorme problema,
muito mais complexo do que os primeiros filósofos podiam imaginar.
O novo conceito de responsabilidade
Graças à filosofia, os valores fundados na razão passam a orientar a vida das
pessoas, individualmente e em comunidade. Nos séculos VI e V a.C, os pensadores
gregos começam a tomar consciência de que os bons e maus resultados da
organização da cidade dependem das relações sociais. A política, a economia e a
moral são construções humanas. Descobre-se aos poucos que a verdade liberta o
homem.
Por isso, a busca e o estudo da verdade passam a ser a ocupação
importante da época. Tudo é discutido, avaliado e comparado sob a luz de critérios
racionais e argumentações lógicas. Tradições milenares que sustentavam as
monarquias começam a ser questionadas e desmontadas em poucas palavras; autoridades religiosas veneradas
durante séculos são colocadas em xeque com poucos argumentos; com rápidas análises, demonstram-se a
fragilidade e a improcedência das narrativas míticas. Enfim, o filosofar desestabiliza, mexe com as estruturas
sociais e políticas vigentes e convida o cidadão a construir uma nova sociedade. A nova sociedade só poderia vingar
com a democratização da verdade. A verdade filosófica deveria ser socialmente cultivada. Assim, a praça torna-se o lugar
público das discussões, onde os mestres se defrontam e os cidadãos participam, onde todos procuram aprimorar o
conhecimento do universo. Para divulgar a verdade, surgem os primeiros livros colocados à venda na praça da
cidade.
A verdade implica ter de orientar a própria vida e a da cidade não mais pelo mito, que é algo de regional e
limitado, mas pela verdade universal. Logo, ao filósofo urge modificar as leis míticas, conformando-as à verdade. O
filósofo é o cidadão mais ativo na promoção das mudanças sociais e políticas.
Qual foi o fundamento de todas as conquistas sociais no Ocidente senão essa verdade responsável?
Filosofar é preciso
A civilização ocidental não pode ser compreendida sem a filosofia. Com efeito, foi
com a filosofia que a cultura grega influenciou nossa forma de pensar e de questionar tanto
a natureza quanto o ser humano e as divindades. Com a filosofia, surgiu a noção de
cidadania, de Estado, de ciência.
O exemplo dos filósofos gregos nos deixou uma grande lição: nunca se conformar
com as estruturas existentes como se fossem as únicas possíveis. De fato, não houve
época em que não tivéssemos filósofos buscando a verdade e combatendo a ignorância, o
obscurantismo, a dominação do homem pelo homem, as guerras e outros atos irracionais
que infelicitam a humanidade. Filosofar é preciso para participar criativamente da luta pela
humanização.
Fonte: VV.AA. Para Filosofar. São Paulo: Scipione, 2007.p. 13-18
ROTEIRO DE ESTUDOS
As perguntas a seguir referem-se aos principais tópicos desta ficha. Elas podem ajudá-lo(a) a estudar e rever
todo o conteúdo apresentado. Ao respondê-las, você estará analisando e sintetizando as idéias expostas.
1. Sintetize a noção de filosofia que você adquiriu pela leitura desta ficha.
2. Consulte um dicionário de sua preferência e verifique os significados da palavra mito. Depois compare-os
com o que você estudou.
3. Descreva em poucas linhas o que existe de semelhante e de diferente entre mito e filosofia.
4. Por que o novo conceito de verdade criado pelos filósofos gregos não precisava da aprovação das
autoridades?
5. Ver a seca como seca e o raio como raio é um avanço ou um recuo do conhecimento? Perde-se a dimensão
poética da realidade? 0 homem se priva dos sentimentos e das paixões?
6. Quem é o culpado quando a política e a economia de um país vão mal? São castigos divinos?
8. No Brasil, país de enormes desigualdades econômicas, que relação existe entre filosofia e cidadania?