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Josep Mª Pascual Esteve

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA:
CONSTRUÇÃO COLETIVA DO
DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES
Josep Mª Pascual Esteve

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA:
CONSTRUÇÃO COLETIVA DO
DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES

Tradução: João Carlos Vitor Garcia

Belo Horizonte, 2009


Esteve, Josep Mª Pascual.
Governança democrática: construção coletiva do
desenvolvimento das cidades / Josep Mª Pascual Esteve;
tradução: João Carlos Vitor Garcia. – Juiz de Fora: Editora UFJF,
2009.

200 p.: il.

ISBN: 978-85-7672-027-0

1. Democracia. 2. Política social. 3. Cidadania.


4. Desenvolvimento social. I. Garcia, João Carlos Vitor. II. Título.

CDU 321.7

Copyright © 2009 by Josep Mª Pascual Esteve

Tradução: João Carlos Vitor Garcia

Projeto gráfico e Capa: Espaço Nove Ltda.

Editoração: Espaço Nove Ltda.

Fotos capa: Jacqueline Nicácio Silveira

Revisão: Adriana Benoni

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por


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Gildo Marçal Brandão Marisa Bittar Willame Jansen
Gilson Leão Martin Cézar Feijó Willis Santiago Guerra Filho
Gilvan Cavalcanti Michel Zaidan Zander Navarro
Agradeço às pessoas e entidades que
promoveram a edição brasileira, em espe-
cial à Fundação Astrojildo Pereira e a João
Carlos Vitor Garcia, pela tradução e adap-
tação do texto.  E minha especial gratidão
pelos comentários e correções do texto ori-
ginal feitos por Júlia Pascual.
Sumário

Prefácio..................................................................................11
Apresentação..........................................................................15
Introdução à edição brasileira..................................................19
Introdução..............................................................................23

1. Governança: Uma nova arte de governar............................ 27


Ideias Principais......................................................................27
Governança: descentralização, participação e colaboração
com a sociedade civil..............................................................28
A governança democrática é mais do que uma dimensão
da ação de governo ...............................................................32
Os modos de governar na democracia: Burocrático,
Gerencial e Governança...........................................................37
A governança é a arte de governar própria do governo
relacional emergente...............................................................43
A governança é o modo de governar da sociedade do
conhecimento.........................................................................55

2. Governança Democrática: Construção coletiva do


desenvolvimento humano.................................................. 59
Ideias Principais .....................................................................59
A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento
humano..................................................................................60
A governança exige e precisa de democracia............................62
A coesão social é o motor do desenvolvimento econômico e
social......................................................................................63
A coesão social é o principal objetivo da governança................66
A gestão relacional é a modalidade de gestão característica
da governança........................................................................70
A gestão relacional se assenta em um conjunto de técnicas e
instrumentos...........................................................................73
Para desenvolver-se, a governança precisa ter êxitos eleitorais
visíveis....................................................................................78
3. O Governo Relacional e a Governança se assentam
nas mudanças sociais e na emergência da
sociedade-rede.................................................................. 81
Ideias Principais......................................................................81
Nova desigualdade social e nova visão da pobreza...................84
A individualização das relações sociais e a geração de
capital social...........................................................................86
Risco e vulnerabilidade social..................................................90
Imigração: identidade e multiculturalidade..............................92
Mudanças na família...............................................................94
A cidade à medida das mulheres.............................................96
Uma nova visão do tempo e do espaço....................................99
A centralidade dos valores na organização social....................100
A globalização do social........................................................102
Mudanças nas formas de prestação e gestão dos serviços de
bem-estar social....................................................................107
Conclusão: da gerência à governança.....................................108

4. A revalorização da política no Governo Relacional............ 111


Ideias Principais....................................................................111
O governo provedor e a crise da política local........................112
A democracia é básica para o desenvolvimento econômico
na sociedade-rede.................................................................114
O governo relacional necessita de qualidade democrática.......117
A política democrática como capacidade de representação.....118
Um novo papel para o eleito local.........................................119

5. A liderança do político eleito na governança.................... 121


Ideias principais....................................................................121
Capacidade de visualizar os interesses e habilidades da
cidadania..............................................................................122
Uma nova visão do poder.....................................................125
A liderança representativa é relacional...................................126
A liderança representativa é capacitadora..............................128
A distinção entre política e gerência.......................................129
A liderança estabelecida através da direção política e
moral...................................................................................132
O representante político é o principal agente de mudança......134
A nova tarefa: tornar visível o apoio social às políticas............135

6. Fundamentos para liderar a coesão social a partir


do governo local.............................................................. 137
Ideias Principais....................................................................137
Os 7 pilares para a liderança política.....................................139
O envolvimento do governo local..........................................142
Antecipar-se e canalizar situações de conflito.........................146
O apoio necessário à liderança relacional ..............................149

7. Perfil político para a liderança representativa na


governança: Valores, habilidades e atributos.................... 151
Ideias Principais....................................................................151
Os valores que sustentam a liderança representativa...............152
Habilidades ou aptidões do perfil político para a prática da
governança...........................................................................155
Principais atributos para a prática da governança...................158

8. Os Governos Locais: Protagonistas na era da governança.. 161


Ideias Principais....................................................................161
As condições de êxito do nível local.......................................162
A prefeitura como organizador coletivo.................................163
O Poder Local: riqueza dos países e regiões............................165
Os municípios autoinsuficientes.............................................166
A crescente importância dos governos intermunicipais . .........167

9. A Governança do Bem-Estar Social................................... 169


Ideias Principais....................................................................169
O Bem-Estar Social: vanguarda da governança.......................170
A reestruturação da gestão dos serviços públicos do
bem-estar social....................................................................173
A visão do conjunto da oferta de serviços do território...........177
A qualidade das redes: as marcas de garantia.........................180
A contratação externa para a gestão de serviços com base
no desenvolvimento comunitário...........................................182
A gestão de redes e a participação cidadã..............................185
A participação como envolvimento da cidadania na
construção da cidade............................................................188
O apoio social às estratégias e políticas..................................192
A organização municipal necessária para a governança
democrática..........................................................................194

Referências selecionadas...................................................... 197


1. Bibliografia.......................................................................198
2. Links eletrônicos...............................................................199
Prefácio

Qual é o lugar da cidade nas sociedades globalizadas? Como


produzir cidades democráticas e como democratizar a convivência
nas cidades? Buscando responder estas e outras perguntas, este
livro, de autoria do celebrado intelectual Josep Ma Pascual Esteve,
aborda um tema, e um problema, da maior relevância para a po-
lítica contemporânea: o da governança democrática das cidades.
O autor parte de um referencial analítico que explicita e distin-
gue os conceitos de governabilidade, governança e bom governo
(p. 25); ainda discute os temas: governança burocrática, gerencial
e relacional. Apresenta três modelos de governação: burocrático,
gerencial e governança (p. 36). Pascual afirma que: a governança
é o modo de governar próprio do governo-rede ou relacional, que é
adequado à nova sociedade em rede, também denominada sociedade
do conhecimento (p. 37). A partir daí, o autor propõe-se o desafio
de pensar as conexões e disjunções entre as cidades e os espaços
político-administrativos cada vez mais ampliados, que deságuam,
hoje, em instituições supranacionais cujo exemplo mais acabado
é o da União Europeia.
Há algumas décadas, em trabalho magistral, Norberto Bobbio
referiu-se à demanda crescente por democracia em um contex-
to cada vez mais adverso para a sua efetivação: sociedades com-
plexas, de grandes números, atravessadas por clivagens as mais
diversas ­– étnicas, religiosas, linguísticas, socioeconômicas, etc.
Essas reflexões ganham corpo com o avanço da globalização e a
multiplicação de organizações multilaterais, instituições suprana-
cionais e a superação das barreiras nacionais para o livre trânsito
de pessoas, ideias e mercadorias.
O livro Governança Democrática: Construção Coletiva do Desen-
volvimento das Cidades refere-se à importância das cidades para a
construção de uma globalização mais integradora, em que as cidades

Prefácio 11
formam uma rede de nós urbanos, a partir da qual se tecem intera-
ções entre os diferentes atores nos diversos patamares em que se
organiza a convivência democrática como as cidades, os países, as
organizações multilaterais, as instituições supranacionais. … “as
cidades são a riqueza das nações e (…) a era infoglobal se assenta em
um sistema mundial de cidades” (p. 165).
Pascual Esteve afirma que a finalidade da governança demo-
crática é o desenvolvimento humano, traduzido como democra-
cia, equidade social e desenvolvimento econômico. E ressalta a
importância da coesão social, considerada pele estudioso como o
principal objetivo da governança democrática.
Enfrenta, para isso, o espinhoso tema relativo ao como fazer,
o autor apresenta um conjunto extenso de ferramentas já disponí-
veis para a operacionalização da governança democrática: os pla-
nos estratégicos; a negociação relacional dos conflitos públicos; as
técnicas de mediação; as técnicas de participação cidadã e apoio
social às políticas públicas; os métodos e as técnicas de gestão de
projetos em rede; a gestão da cultura empreendedora e cívica da
cidadania; o coaching para a liderança relacional; as técnicas de
construção de consensos; o enfoque abrangente nas ciências so-
ciais e a direção sistêmica por objetivos (p. 78).
Vale, no entanto, mencionar que Pascual enfatiza que não se
trata de uma questão apenas ou eminentemente técnica: a dimen-
são política da governança democrática emerge com o tratamento
dos temas da participação cidadã, da representação política, ainda
com a necessidade de estabelecimento de sinergia entre ambas. A
respeito, afirma o autor:
Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a visão
de uma gestão pública distante das preocupações e demandas dos
cidadãos (…). A democracia na nova cidade significa descentralização
de competências e recursos para os governos locais, para que eles pos-
sam (…) inaugurar uma nova forma de governar baseada na gestão
de redes cidadãs (p. 90).

12 Prefácio
Crítico do modo gerencial de governar, Pascual propõe sua
substituição pela gestão relacional ou das interdependências próprias
da governança (p. 108), na qual a liderança representativa deve
ser relacional e capacitadora, e não dominadora, e na qual fica
clara a distinção entre os papéis do político e do gerente. Em suas
palavras:
Hoje a governança se encontra em uma etapa ascendente, deslo-
cando o caduco modo gerencial de governar que (…), comportou ­– e,
sobretudo, sua permanência ainda comporta ­– grandes déficits nas
duas grandes dimensões da democracia: a qualidade da representação
do eleito e a participação e colaboração cidadã na gestão da cidade
(p. 170).
Por contraste, na governança democrática, o gerente deveria
preocupar-se com uma gestão eficiente, isto é, com a produtividade;
porém uma produtividade posta a serviço do cumprimento de obje-
tivos sociais, cuja identificação tenha sido liderada pelo representante
eleito (p. 131).
Em instigante coincidência, o nosso atual modelo de gestão
em Minas Gerais já antecipa esta metodologia, vez que nossa
maior obsessão é, exatamente, pela eficiência e pelos resultados,
em favor da sociedade e dos cidadãos, por meio de políticas pú-
blicas urdidas em comum com os setores representativos das for-
ças sociais. Poderíamos, assim, ousar afirmar que, em certas cir-
cunstâncias, a prática preconizada por Pascual Esteve encontra-se
já vigente em nossas Minas Gerais.
Boa leitura!

Antonio Augusto Junho Anastasia


Vice-Governador de Minas Gerais

Prefácio 13
Apresentação

O leitor atento poderá chegar ao final deste livro com a sen-


sação de que suas teses e propostas estão a uma distância imen-
surável da realidade brasileira. Um sentimento semelhante ao de
um amigo meu, ao ler os originais, cuja identidade não cabe aqui
revelar: “Aproveitei a parada de carnaval para finalizar a leitura do
livro... Muito avançado para nós, pobres brasileiros encalacrados
com os... [partidos] da vida... Deu um certo desalento, confesso.
Na fase da vida em que estou, muito pouca esperança me resta
de que algo venha a mudar aqui, no meu tempo. Sou mais pessi-
mista que você, ou talvez menos idealista. Não enxerguei, em ne-
nhuma linha, a mais tênue característica ou valores que os nossos
políticos possam [ter para], um dia que eu possa ver, agir com tal
grandeza ou compromisso.”
Tamanha descrença, certamente resultado de uma leitura cui-
dadosa, não é de todo exagerada à primeira vista. Seja pelas ins-
tigantes reflexões a respeito das transformações hoje em curso no
mundo e seus desdobramentos na cultura política ou pelas cate-
góricas afirmações que faz sobre a necessidade de mudanças de
posicionamento dos governos perante a sociedade, o trabalho de
Josep Ma Pascual Esteve não deixa o leitor indiferente. Ele tem cla-
reza e força suficientes para fustigar as práticas de governo esta-
belecidas – segundo Pascual, já corroídas pelo tempo – e mostrar
o árduo caminho a percorrer se quisermos ajustá-las às exigências
da chamada sociedade do conhecimento. Vem daí, pois, o natural
abatimento inicial, que pode ser atribuído mais propriamente à
enormidade da tarefa a ser conduzida do que a qualquer outra
impossibilidade estrutural ou moral da sociedade brasileira.
Sim, porque o livro é um contundente chamamento à ação
e traz o entusiasmo e a autoconfiança de quem sabe aonde quer
chegar. Sua energia se concentra na proposta de fortalecimento

Apresentação 15
dos governos das cidades, para que possam enfrentar as dificul-
dades mais importantes e os obstáculos mais comuns encontrados
na gestão das demandas cidadãs. Examina em detalhes como os
desafios, que dificultam a conquista dos resultados esperados, po-
dem arranhar a sua legitimidade democrática e fragilizar o apoio
da cidadania às políticas públicas. A tese que defende localiza tais
dificuldades no tipo de relação estabelecida entre governo local e
cidadania, em que o primeiro aparece quase que exclusivamente
como provedor de serviços e gestor dos recursos públicos.
Pascual desenvolve o argumento de que esse modo de gover-
nar – identificado na sua forma mais avançada com a introdução
de práticas gerenciais do setor privado na esfera pública – precisa
ser superado. Não apenas porque os recursos públicos são e serão
cada vez mais insuficientes para atender as crescentes e comple-
xas demandas da população, mas também porque as transforma-
ções que ocorrem hoje na sociedade – em suas bases econômicas,
sociais, políticas e tecnológicas – criam as condições necessárias
para o surgimento de um novo tipo de governo, denominado
pelo autor de governo relacional. Neste, as funções burocráticas
e, principalmente, as gerenciais não desaparecem, mas perdem
importância relativa diante da concepção de que na sociedade-
rede cabe aos governos reposicionarem-se para gerir interdepen-
dências – assim como as principais redes sociais – e melhorar a
capacidade de organização e ação da sociedade a fim de alcançar
o desenvolvimento humano.
Nessa perspectiva, o gerente perde posição para o político.
Ganha relevância o capital político local, formado pela equipe
de governo, para articular socialmente o município e influir po-
sitivamente no desenvolvimento da cidade. Em outras palavras,
impõe-se a revalorização da política ante a gestão e a importância
da liderança representativa para organizar a ação do conjunto da
sociedade com base em objetivos democraticamente comparti-
lhados.

16 Apresentação
Não é preciso muito esforço ou conhecimento especializado
para reconhecer que em nosso país há enormes dificuldades para
implantação, com sucesso, até mesmo do modo gerencial de go-
verno, ou que os nossos governos locais muito raramente têm sido
dinamizadores do desenvolvimento das cidades. Daí a relevância
da reflexão sobre os caminhos alternativos a serem percorridos,
um enfrentamento que se traduz na necessária construção de uma
nova cultura política diante das grandes transformações em curso
no mundo e seus impactos no país.
Esse percurso passa, indiscutivelmente, não apenas pelo for-
talecimento da capacidade institucional dos municípios, mas tam-
bém pelo aumento da capacidade pessoal dos políticos eleitos
com a responsabilidade de governar. Deles será cada vez mais
demandado o domínio dos principais instrumentos técnicos e
pessoais do trabalho político necessários à gestão estratégica e
ao exercício da liderança. Afinal, a política democrática ocupará
crescente importância na sociedade-rede como pré-requisito para
a conquista de patamares de qualidade de vida mais elevados
para todos.
Nesse sentido, o livro é bastante instigante e útil, especialmen-
te para os políticos e técnicos que atuam na administração dos
municípios. Desenvolve de maneira concreta e detalhada uma
nova perspectiva da atuação dos governos locais, em que a ci-
dade é considerada uma construção coletiva e o governo local o
dinamizador e organizador da capacidade de ação da sociedade.
Examina em profundidade temas relevantes como a participação
e envolvimento cidadão, o planejamento estratégico urbano, a
gestão de projetos em rede e a gestão para uma cultura empre-
endedora. E, sobretudo, apresenta com firmeza a opção pela
qualidade do meio ambiente, pelos valores que devem presidir o
desenvolvimento e pela radical melhoria da qualidade da demo-
cracia local.

Apresentação 17
Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento
das cidades traz à reflexão, portanto, referências teóricas e propo-
sições práticas inovadoras em um campo da política democrática
brasileira cujo acúmulo é ainda muito pequeno. A expectativa é
que sua circulação possa contribuir para uma pauta de discussão
tão importante quanto a necessidade de revalorização da política
e da sua centralidade para o desenvolvimento do país e das nos-
sas cidades. Enfim, apresenta uma contribuição abrangente que
perpassa, desde a renovação da nossa velha arquitetura gover-
namental e dos mecanismos de participação da sociedade civil
nas políticas públicas, até a mais apaixonada defesa de valores
democráticos fundamentais como liberdade, coesão social e res-
peito aos direitos humanos, em uma sociedade sempre mais in-
terdependente.

João Carlos Vitor Garcia


Fundação Astrojildo Pereira

18 Apresentação
Introdução à edição brasileira

Os conceitos nas ciências sociais e políticas nem sempre têm o


mesmo significado para todas as escolas e autores: poder, classe
social, sociedade civil, capital social, etc. Isto também ocorre nas
ciências físicas, como no caso da incerteza quântica ou mesmo do
conceito de relatividade, o que pode dificultar tanto a compre-
ensão dos fenômenos como a organização da ação que tenham
tais conceitos em conta. Esta é uma dificuldade que não se pode
evitar, dados os distintos contextos socioculturais em que são usa-
dos ou seus significados em idiomas diversos. Portanto, é preciso
explicitar os conceitos que se utilizam e diferenciá-los de outros
usos, em especial dos que têm um significante ou significado con-
trário. Este é o caso do conceito de governança, que é utilizado
em alguns meios intelectuais e políticos como modo de governar
corporativo, que diminui a importância da democracia e do papel
da política, ou seja, em sentido completamente antagônico do
utilizado neste livro. Por esta razão, é importante explicitar o con-
ceito de governança neste prólogo.
O que se entende por governança? Como assinala Renate Mayntz
em um trabalho que reúne os distintos significados do conceito,
por governança se entende, desde os anos 90, uma nova maneira
de governar, diferente do modelo hierárquico, um modo mais cor-
porativo em que os atores estatais e não estatais – e, em geral, a
sociedade civil – participam em redes públicas e privadas.1 Desde
aquela década, tem aumentado o consenso no sentido de que a
eficácia e legitimidade da atuação do governo fundamentam-se
na qualidade da interação entre os distintos níveis de governos
e entre os governos e as organizações empresariais, sociais e a
cidadania em geral. Governança é, portanto, uma nova forma de

1 Ver “New challenges to governance theory”, European University Institute, The Robert
Schuman Centre Florence – Jean Monnet Chair Papers nº 50 (1998).

Introdução à edição brasileira 19


governar própria da sociedade-rede, é o modo de governar para
fazer frente à crescente complexidade e diversidade das socieda-
des contemporâneas, que se caracterizam pela interação de uma
pluralidade de atores, relações horizontais, pela participação da
sociedade no governo e sua responsabilidade de fazer frente aos
desafios socialmente colocados.
Este conceito foi intencionalmente mal interpretado por alguns
setores, que consideraram que a governança permite um certo
“relaxamento” das funções do governo democrático e prioriza as
relações entre o governo e as grandes corporações empresariais e
institucionais em detrimento das relações com a cidadania em ge-
ral, produzindo, deste modo, o aviltamento dos valores públicos
e da própria política. Esta concepção é própria tanto dos neocon-
servadores, que buscam a dominação da sociedade através dos
grandes interesses corporativos, como dos críticos que vão a seu
reboque e tão somente invertem seus argumentos, sem, contudo,
serem capazes de encontrar uma estratégia própria. Seja como for,
é preciso diferenciar-se desta concepção e, para isso, é necessário
entender o uso do conceito de governança que se faz neste livro
como governança democrática.
O que é governança democrática? O movimento de cidades e re-
giões denominado AERYC (América-Europa de Regiões e Cidades),
que promove a governança democrática como sendo o modo de
governar cidades mais adequado à sociedade contemporânea, a
define como “uma nova arte de governar os territórios (o modo
de governar próprio do governo relacional), cujo objeto é a ca-
pacidade de organização e ação da sociedade, através da gestão
relacional ou de redes, tendo como finalidade o desenvolvimento
humano”.2 Em outras palavras, não se trata apenas de gerir as re-
lações e interdependências dos atores e setores da cidadania que
interagem em determinada situação ou diante de desafios sociais

2 Ver www.aeryc.org

20 Introdução à edição brasileira


que nos propomos a enfrentar, mas de fazer isso em função dos
valores do desenvolvimento humano.3 Governança democrática
favorece a condução do desenvolvimento econômico e tecnoló-
gico em função dos valores de equidade social, coesão territorial,
sustentabilidade, ética e ampliação e aprofundamento da demo-
cracia e da participação política.
A governança democrática, de acordo com o conceito que
adotamos, caracteriza-se por:
• O envolvimento da cidadania na solução dos desafios sociais.
Uma boa governança necessita de uma cidadania ativa e
comprometida com a coisa pública, isto é, a de todos e
de todas. Por isso, é preciso que existam canais de parti-
cipação e de responsabilidade de todos, porque a cidade
é uma construção coletiva cujo resultado depende das
ações e interações de todos os cidadãos.
• O fortalecimento dos valores cívicos e públicos. O progresso
e a capacidade de inovação de uma cidade dependem
da densidade e diversidade das interações de toda a po-
pulação. Os valores de respeito, convivência, confiança,
solidariedade e colaboração são essenciais para construir
a cidade de todos e de todas. Governança democrática é
uma opção por valores cívicos e democráticos.
• A revalorização da política democrática e do papel do go-
verno representativo. A governança representa uma mu-
dança no papel do governo em relação à sociedade. O
governo não aparece simplesmente como provedor de
recursos ou de serviços, mas fundamentalmente como
representante da cidade, de suas necessidades e desa-
fios. O governo não apenas dispõe de competências,
mas também de incumbências. A ele cabe tudo o que
preocupa a cidadania e por isso, ele assume o papel de

3 Como definidos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Introdução à edição brasileira 21


estruturador da capacidade de organização e ação da
cidade, além das relações entre os distintos níveis de go-
verno. Portanto, na governança democrática o papel do
governo como representante da cidadania adquire maior
importância do que nas etapas de governos anteriores.
• A construção compartilhada do fortalecimento do interesse
geral. Na governança, o interesse geral não é atribuído
a um grupo de funcionários ou de políticos. O interesse
geral é uma construção coletiva que deve ser liderada
pelos políticos eleitos como representantes da cidadania,
a partir das necessidades e interesses legítimos de todos
os setores cidadãos. Governança democrática significa
uma ação de governo específica para que todas as neces-
sidades e desafios dos cidadãos estejam presentes tanto
na deliberação, como no desdobramento das políticas e,
muito especialmente, dos setores mais vulneráveis.
• A transparência e a prestação de contas são também con-
dições essenciais da governança democrática. Sem elas
dificilmente o governo da cidade poderá articular os dis-
tintos atores em uma ação comum com apoio e envolvi-
mento da cidadania.
Consequentemente, a governança democrática exige e neces-
sita de democracia. Seu desdobramento significa não só o apro-
fundamento nos aspectos da representação da cidadania como da
participação cidadã na construção de uma cidade voltada para o
desenvolvimento humano.

Josep Mª Pascual Esteve

22 Introdução à edição brasileira


Introdução
Este livro discute a importância da política para promover a
coesão social nas cidades e nos municípios. Em especial, pretende
mostrar o valor que a liderança política representa para a constru-
ção coletiva de cidades com maior inclusão social.
A política democrática está sofrendo uma crise de legitimida-
de, não por ser incapaz de resolver os seus problemas, mas porque
a maioria dos políticos não pode enxergá-los.4 Neste sentido, para
contribuir com o entendimento de aspectos desta questão através
da reavaliação da política e da figura do político como elementos
essenciais para o desenvolvimento humano, o livro trata de um
novo enfoque da relação entre o governo local e a cidadania; de
uma nova arte de governar denominada governança democrática,
em cuja base se acha a gestão relacional ou a gestão das interde-
pendências nas interações sociais.
O trabalho examina uma nova arte de governar e gerir os terri-
tórios, que se assenta nas mudanças em curso na nossa sociedade
e nas transformações que levaram à superação das formas de go-
vernar centradas na prestação e na gestão de recursos e serviços.
Tais transformações são analisadas, principalmente, nos seus as-
pectos sociais e em relação com o modo de governar e de enten-
der a política, como são os casos das políticas de bem-estar social
e da liderança política necessária para articular iniciativas cidadãs
de coesão e inclusão social.
Além de analítico, o livro é fundamentalmente propositivo e
destinado aos políticos e técnicos que atuam na administração dos
municípios, assim como àqueles que prestam serviços aos gover-
nos locais. Sua leitura, entretanto, pode ser útil a todos os que se
interessam pelo conjunto dos temas de âmbito local. As propostas

4 A. Einstein já havia observado que “os problemas importantes que enfrentamos não po-
dem ser resolvidos com o mesmo enfoque do pensamento que tínhamos quando os cria-
mos.” O especialista em grandes organizações J. Gardner observou, nos anos 60 do século
XX, que “a maioria das organizações doentes desenvolveram uma cegueira funcional em
relação aos seus próprios defeitos. Não sofrem por não poder resolver seus próprios proble-
mas, mas por não poder vê-los.”

24 Introdução
apresentadas têm por base a análise da evolução da sociedade e
da crise da maneira de governar e de entender a política e, espe-
cialmente, do papel do político. Por isso, descreve as característi-
cas da nova liderança política e dos apoios e suportes técnicos e
organizacionais que a liderança relacional requer.
Uma vez que um dos seus objetivos é servir como ferramenta
para os políticos com responsabilidades de governo, e como es-
tes, geralmente, são pessoas muito envolvidas e empenhadas nas
tarefas do dia a dia e com pouco tempo para a leitura, concebe-
mos os capítulos de tal modo que a sua leitura seja inteligível em
si mesma, não sendo necessária, embora desejável, a leitura dos
capítulos antecedentes ou posteriores. Pela mesma razão, além de
elaborarmos um índice detalhado, enfatizamos no início de cada
capítulo as ideias-chave.
O primeiro capítulo, intitulado “Governança: Uma nova arte de
governar”, introduz e explicita as diferenças entre os conceitos de
governabilidade, governança e bom governo. É um capítulo ana-
lítico e conceitual, cujo objetivo é distinguir os principais tipos de
governo e modos de governar observados nos regimes democrá-
ticos. A conclusão é que o governo relacional, através do modo de
governar denominado governança democrática, em cuja base está a
gestão relacional ou a gestão das interdependências entre agentes e
setores da cidadania, é o governo que corresponde à sociedade do
conhecimento ou sociedade-rede.
O segundo capítulo, “Governança Democrática: Construção
coletiva do desenvolvimento humano”, discute a finalidade e as
características distintivas da governança e da gestão relacional
como arte de governar. O terceiro capítulo identifica e descreve as
grandes mudanças sociais em curso nas nossas cidades e municí-
pios e que hoje estão moldando as novas agendas políticas.
O capítulo seguinte descreve a crise política que as mudanças
sociais têm provocado no modo de governar denominado “ge-
rencialismo”, que esteve em voga até o final da década de 90.

Introdução 25
Por outro lado, é reforçado o papel da democracia – entendida,
sobretudo, como eleição e representação –, tanto como valor e
fim quanto como meio para o desenvolvimento social contempo-
râneo. Também é analisado o novo papel do político eleito como
uma das chaves para a qualidade democrática.
O quinto capítulo identifica as principais características da lide-
rança relacional ou representativa, que aparece como o principal
agente da mudança direcionada para o desenvolvimento humano.
No sexto capítulo, com base em uma definição de coesão social,
em consonância com os programas URBAL da União Europeia, são
tratados os pontos-chave para que o governo local possa liderar a
coesão social de seu território e o apoio técnico de que precisa.
O capítulo seguinte descreve o perfil do político necessário
para poder liderar as cidades inclusivas, bem como as principais
habilidades e capacidades requeridas.
No oitavo capítulo são identificadas as razões por que os go-
vernos locais assumem um papel mais importante na sociedade-
rede, assim como a importância dos governos intermunicipais. No
nono e último capítulo, intitulado “A Governança do Bem-Estar
Social”, é examinada a reestruturação da gestão dos serviços pú-
blicos do bem-estar social na era da governança. Em particular,
são identificados os desafios da provisão de recursos e da gestão
dos serviços por parte das prefeituras e como eles devem ser abor-
dados.
O livro é complementado por uma bibliografia e alguns links
eletrônicos para quem quiser se aprofundar no tema.

26 Introdução
1. Governança:
Uma nova arte de governar

Ideias Principais
1. Governança Democrática é: descentralização, participação e
colaboração com a sociedade civil.

2. A Governança Democrática é mais do que uma dimensão de


cooperação ou participação na ação de governo: é uma nova
arte de governar.

3. Os modos de governar na democracia são: Burocrático, Ge-


rencial e Governança.
Governança: descentralização, participação
e colaboração com a sociedade civil
A governança é um conceito que está se estendendo ampla-
mente na Europa, especialmente após a publicação pela União
Europeia, em 2001, do Livro Branco sobre Governança Europeia,
elaborado pela Comissão Europeia e dirigido por J. Vignon.5
O fato de que tenha sido a Comissão Europeia, que promoveu o
conceito de governança como uma forma de governar baseada na
horizontalidade e no acordo, está relacionado, precisamente, com
a prática deste governo supranacional, que tem que articular os
interesses dos diferentes governos dos Estados-nação. Mas o que o
relatório trata é da incorporação dos governos regionais e governos
locais, além da sociedade civil, na construção da Europa.
R. Mayntz, J. Prats e o próprio Vignon, em textos posteriores
ao relatório europeu, têm definido a governança como uma nova
arte de governar na democracia. J. Prats6 assinala que, apesar dos
diferentes significados do conceito de governança, nos últimos
anos está ocorrendo na Europa um amplo acordo para considerar
a governança como um novo modo de governar. Isto porque vem
se constatando, gradualmente, que a eficácia e a legitimidade dos
governos democráticos baseiam-se cada vez mais na qualidade da
interação entre eles e as organizações empresariais e sociais, bem
como em uma boa gestão das relações entre os diferentes níveis
de governo.

5 No citado Livro Branco, o conceito de governança está associado a cinco princípios fun-
damentais: abertura, participação, responsabilidade, eficácia e coerência. Princípios que
visam a reforçar as relações da UE com a sociedade civil e uma maior utilização das capa-
cidades dos agentes locais e regionais para lançar as bases para uma definição clara dos
objetivos políticos da UE e estabelecer os papéis e as responsabilidades de cada instituição.
Governança está diretamente associada a uma aposta do governo na descentralização, par-
ticipação cidadã e colaboração com a sociedade civil.
6 J. Prats, “Gobernabilidad democrática para el desarrollo humano: Marco conceptual y
analítico” em Instituciones y Desarrollo nº 10, 2001, pp. 103 a 148.

28 Governança: uma nova arte de governar


A palavra governança7 é frequentemente utilizada, de modo
pouco preciso, como sinônimo de governabilidade ou de bom
governo. Governança é uma nova arte de governar que tem na
gestão das interdependências entre os atores seu principal instru-
mento de governo. A governança gera as relações entre os atores
para tomar decisões sobre a cidade e desenvolver projetos com-
plexos com a colaboração interinstitucional, público-privada ou
envolvimento dos cidadãos. É, portanto, um termo não qualifica-
tivo no sentido de que se refere a um mecanismo de gestão go-
vernamental. Bom governo, sim, é como se pode classificar a ação
de um governo através de sua forma de governar. Esta forma de
governar pode ser a governança, de modo que poderíamos falar
de “boa governança” (como também de “má governança”), mas
também pode ser o modo de classificar qualquer outra forma de
governar diferente da governança, como a gerencial ou a burocrá-
tica. Por governança se entende, em sentido restrito, a aceitação
e o cumprimento de regulamentos, processos institucionais e de
resolução de conflitos, bem como de políticas do setor público
por parte da sociedade civil e, em particular, dos seus principais
atores. Ingovernabilidade é, por outro lado, a desobediência ci-
vil, incapacidade dos mecanismos institucionais para resolver os
conflitos sociais, não aceitação das regras do jogo institucional.
A governabilidade é um atributo ou classificação de uma situa-
ção social e, em qualquer caso, pode ser um resultado das ações
de governo, de um bom governo, de uma boa governança, ou
de outro modo de governo bem exercido em uma determinada
situação. Mas é importante não confundir um atributo ou um re-
sultado com o modo objetivo de governar.

7 O vocábulo governança ainda não está inserido no dicionário do Instituto de Estudos Ca-
talães, mas seu uso foi autorizado como uma tradução de “governance”, em 2001. Ele foi,
entretanto, incluído, em 2001, no Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola com
uma definição muito genérica, mas de forma correta. Governança é definida como “a arte
ou o modo de governar que se propõe como objetivo alcançar o desenvolvimento econô-
mico, social e institucional sustentável, promovendo um equilíbrio saudável entre Estado,
sociedade civil e economia de mercado.”

Governança: uma nova arte de governar 29


Em algumas ocasiões, governança também tem sido equipa-
rada a uma concepção anterior do termo político inglês “gover-
nance”, que se referia ao impacto da gestão das políticas e dos
recursos do setor público no desenvolvimento de uma sociedade
ou território. Por exemplo, a Comunidade Autônoma da Cantábria
tem um excelente sistema de indicadores para medir o impacto da
ação governamental em sua comunidade.
Também não podemos confundir governança democrática
com a dimensão relacional, ou seja, com a colaboração e a parti-
cipação da sociedade civil no modelo de governo atualmente do-
minante, o denominado governo provedor ou gestor de recursos
e serviços. Ela é uma nova maneira de governar que implica uma
nova forma de compreensão da política e do papel do político.
R. Gomà e I. Blanco assinalam que entender a governança
como uma arte de governar que se baseia em um sistema de par-
ticipação e colaboração e atores significa também reconhecer a
complexidade como elemento intrínseco do processo político, o
que situa os poderes públicos em uma nova posição nos processos
de governo. E para assumir esse novo posicionamento a adminis-
tração precisa exercer novos papéis e dispor de novos instrumen-
tos.8
Para J. Subirats, a importância da governança tem tamanho
e peso que as diferenças entre as comunidades derivam de sua
capacidade de avançar na governança e, concretamente, da capa-
cidade de suas instituições representativas disporem de um proje-
to de futuro compartilhado e das cumplicidades que este projeto
possa gerar no conjunto da cidadania.9

8 I. Blanco e R. Gomà, “Gobiernos locales y redes: retos e innovaciones”. Instituto de Gobier-


no y Políticas Públicas, 2002.
9 Ver J. Subirats, “¿Qué Gestión Pública para qué Sociedad? Una mirada prospectiva sobre el
ejercicio de la gestión pública en las sociedades europeas actuales”. Instituto de Gobierno y
Políticas Públicas. UAB, 2003.

30 Governança: uma nova arte de governar


Enfim, é muito frequente confundir, na ação de um governo, a
governança com a dimensão relacional de participação cidadã ou
de cooperação, seja esta público-privada ou interinstitucional, e
não percebê-la como um novo modo de governar. Por esta razão,
é preciso que vejamos o tema com um pouco mais de cuidado
neste capítulo e, especialmente, no seguinte.
Argumenta-se, de modo cada vez mais frequente por parte dos
especialistas em ciências sociais e políticas, particularmente, que o
envolvimento da cidadania é fundamental para que um governo
atue e realize serviços em função das necessidades e desafios dos
cidadãos e, desse modo, desenvolva uma gestão de qualidade.
Também se aponta, de modo perfeitamente compatível com a
afirmação anterior, que a participação cidadã é uma garantia para
a melhoria da qualidade democrática de uma administração.
Por outro lado, dada a insuficiência de recursos públicos para
fazer frente às necessidades sociais, bem como o fato de que a
sociedade atual é cada vez mais interdependente, considera-se
que são gerados mais espaços de interação, como é o caso de de-
senvolvimento de projetos, em que são necessárias a colaboração
institucional e a cooperação pública e privada. Portanto, concluísse
que esta dimensão da gestão das interdependências será um tema
de grande desenvolvimento por parte dos governos, especialmen-
te dos governos locais. Ou seja, tanto do ponto de vista partici-
pativo como da colaboração entre atores, a governança será a
dimensão da gestão governamental à qual teremos que dar mais
atenção a partir de agora.
Em minha opinião, essas afirmações estão corretas, mas são
insuficientes porque tratam a governança simplesmente como
mais uma dimensão de governo, e não como uma nova arte de
governar ou modo de governar que tem na dimensão relacional
(isto é, na colaboração interinstitucional e público-privada e no
envolvimento da cidadania) a sua principal prioridade e o eixo
estruturante da ação de governo.

Governança: uma nova arte de governar 31


A governança democrática é mais do que
uma dimensão da ação de governo
Para melhor caracterizar a governança como uma nova arte
(modo) de governar e para diferenciá-la de outras maneiras, creio
ser adequado distinguir, por um lado, os governos-tipo ou modelos de
governo que se salientam pela relação principal que estabelecem com
a cidadania; e esta relação do governo com a cidadania leva a uma
articulação específica das diversas funções de governo.
Por outro lado, fazemos distinção entre os modos de governar
ou modelos de governação,10 que constituem a maneira pela qual
o governo exerce sua ação. Eles se definem fundamentalmente
pelas finalidades que buscam alcançar, os valores e princípios em
que baseiam suas funções, o tipo de gestão específico que de-
senvolvem para atingir seus objetivos, bem como a “função” que
atribuem aos políticos, aos profissionais da administração e à ci-
dadania na forma de governar.
Com frequência se confundem os modelos de governo com os mo-
dos de governar ou modelos de governação11 porque, como parece
razoável, a cada governo deveria corresponder um jeito de gover-
nar específico. Mas, como teremos oportunidade de aprofundar,
isto nem sempre foi assim, o que tem causado muitos problemas.
Em particular, no modelo ou paradigma de governo provedor e

10 Governação é usado no mesmo sentido como definido pelo Dicionário da Real Academia
da Língua Espanhola: “Ação e efeito de governar/exercício do governo.” Compreendemos,
naturalmente, por governo um “conjunto de organizações e indivíduos que dirigem um
território e as funções que eles desempenham”. Assim, modelos de governação ou formas
de governar são modelos de exercer a ação governamental.
11 Quando se fala tanto de modelos de governação ou de governos-tipo se utiliza a metodo-
logia do tipo ideal de Max Weber, que a define como: “Construção mental para analisar
um fenômeno histórico ou social em que se elegem e enfatizam determinados aspectos do
fenômeno. O objetivo da construção de tipos ideais é o de servir como base de comparação
na análise dos fenômenos históricos e sociais concretos, uma vez que torna possível mostrar
a proximidade ou afastamento deles em relação ao tipo ideal (puro). Ver M. Weber, Concei-
tos sociológicos fundamentais, edição de J. Abellán. Madri: Alianza Ed., 2006, p.180.

32 Governança: uma nova arte de governar


gestor, ao qual corresponderam dois modos de governar ou mo-
delos de governação: o burocrático e o gerencial. O modelo de
governação pode ser implementado tanto por governos suprana-
cionais, quanto por nacionais, regionais ou locais.
Para entender melhor esta tríplice diferenciação começaremos
pelo mais simples ou básico, isto é, pelas funções e dimensões de
toda ação de governo territorial em relação à sociedade.
Existem três grandes funções ou dimensões básicas da ação
de qualquer governo territorial em relação à sociedade: a função
legal ou normativa para regular a atividade da sociedade civil,
mas também política; a função provedora e gestora (direta ou
indireta) de serviços à comunidade; e uma terceira, que podemos
chamar relacional – que inclui todas as atividades relacionadas à
participação cidadã, aos acordos e cooperação com a sociedade
civil e também com outras administrações.
A função legal e normativa (L) é, por exemplo, dar cumprimen-
to a uma norma urbanística, de ordenamento do uso do solo,
de vigilância sanitária, de mobilidade, etc. O cumprimento dessas
normas necessita, além dos órgãos jurídico, administrativo e de
fiscalização, de alguns serviços de polícia municipal, limpeza e
coleta de lixo, etc.
Portanto, encontramos uma segunda dimensão ou função de
gestão de serviços (G), que foi ampliada na Espanha, sobretudo a
partir dos anos 80, com os serviços sociais, desportivos, culturais,
educacionais, de saúde, promoção do emprego, desenvolvimento
econômico, etc., ou seja, com recursos e serviços não apenas asso-
ciados ao desempenho da sua competência e função reguladora,
mas também destinados a gerar proteção ou bem-estar público.
A terceira função, que temos denominado relacional (R), abrange
as questões de consulta, diálogo, participação, parceria e coopera-
ção com a sociedade civil, principalmente, e também com outras
instituições, sejam elas nacionais ou internacionais.

Governança: uma nova arte de governar 33


Os modelos de governo ou governo-tipo – ou, ainda, se preferi-
rem, paradigmas de governo12 – são definidos pelo tipo de relacio-
namento que se estabelece entre governo e cidadania. Ou seja, pela
principal finalidade (e não só) que se atribui à ação de um governo
para proporcionar à sociedade, tanto a garantia da ordem legal, o
bem-estar a partir da provisão de recursos quanto a melhoria da
capacidade de organização e ação de uma sociedade.
Todos os tipos de governo desenvolvem as três dimensões ou
funções de governo, mas em cada tipologia ou modelo de gover-
no existe uma função principal ou prioritária distinta, que desem-
penha um papel estruturante em relação às outras duas.
Assim, identificamos três governos-tipo na democracia ou mo-
delos de governo territorial: governo racional ou jurídico, governo
provedor e gestor, também chamado protetor, e governo relacional.
O governo racional-legal tem por finalidade velar ou garantir o
funcionamento do mercado e a sociedade sob ideologia liberal;
a função predominante é normativa e legal. As outras funções ou
dimensões têm um papel secundário. O esquema básico de articu-
lação das funções do governo racional-legal é o seguinte:

Esquema I: Articulação das funções básicas do


governo racional-legal

L
Legal

G R
Provedor e Gestor Relacional

12 Deve-se o uso do termo paradigma no âmbito científico ao historiador e filósofo da ciência


Thomas Khun, que o introduziu no seu livro clássico A estrutura das revoluções científicas.
Nele, paradigma é definido como “uma constelação de realizações – conceitos, valores,
técnicas etc.” – compartilhadas por uma comunidade científica e usadas por ela para definir
problemas e soluções legítimas.

34 Governança: uma nova arte de governar


O governo protetor ou provedor e gestor tem como finalidade
principal a proteção social e o bem-estar; sua função predominan-
te é a prestação e gestão de serviços, a qual pode ser realizada di-
retamente pelo governo ou organismo público, ou ser contratada
externamente. O esquema é o seguinte:

Esquema II: Articulação das funções do governo provedor


e gestor

G
Provedor e Gestor

L R
Legal Relacional

O governo relacional ou promotor é o governo próprio da


sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Sua finalidade é
melhorar a capacidade de organização de uma sociedade e gerir
as principais redes sociais para o desenvolvimento humano. Sua
principal função estruturante é a relacional. O esquema é o se-
guinte:

Esquema III: Articulação das funções básicas do governo


relacional

R
Relacional

L G
Legal Provedor e Gestor

Para exercer a ação governamental baseada na relação princi-


pal que se estabelece entre o governo e a cidadania, isto é, com

Governança: uma nova arte de governar 35


base na função que tem o papel principal ou estruturador das de-
mais, os governos desenvolvem maneiras diferentes ou modelos
de governação ou modos de governar. Isto é, um governo-tipo
atua através de um modelo de governação.
Por modelo de governação ou modo de governar, entenderei
propriamente o enfoque com que um governo assume e exerce seu
papel em relação à sociedade civil ou, o que quer dizer o mesmo, o
tipo de atuação através da qual um governo torna efetiva a articula-
ção e coordenação das três funções e dimensões do governo.
O modelo de governação inclui a finalidade e os valores que
presidem a ação, o tipo de gestão característica da maneira de
governar e os perfis do político e do profissional da administração.
Identificaremos, seguindo a classificação feita por J. Prats, em um
recente e excelente trabalho, três modelos de governação: buro-
crático, gerencial e governança.13

Esquema IV: Articulação das funções, modelos de governo


e de governação

Funções Legal, Provisão e Gestão,


básicas Relacional

Modelos de governo Articulação funções básicas


ou (Relação do Governo
Governo-Tipo com a cidadania)

Modelos de Governação - Valores


(modos de governar) - Gestão: técnicas
- “Papéis”: político,
cidadania, administrador

13 J. Prats, “La Construcción Social de la Gobernanza” em Vidal J. M. Beltrán e J. Prats, Gober-


nanza. Diálogo Euro-Iberoamericano. Madri: INAP, 2005, pp. 21-78.

36 Governança: uma nova arte de governar


Portanto, a governança não é a dimensão ou a função rela-
cional da atuação de um governo, mas o modo de governar es-
pecífico do governo relacional, que assim se caracteriza porque
a função relacional assume o papel principal e estruturador das
ações de governo.
A governança, portanto, vai implicar, de uma forma concreta,
na reestruturação global da maneira de governar de um governo
local. Na governança existem as dimensões da gestão de recursos
e da função normativo-legal, mas estas se reestruturam a partir da
priorização da função relacional do governo, isto é, da participa-
ção cidadã, da cooperação com a sociedade civil e da colaboração
intergovernamental.
É por isso que dizemos que a governança é o modo de go-
vernar próprio do governo-rede ou relacional, que é o adequado
à nova sociedade em rede, também denominada sociedade do
conhecimento.

Os modos de governar na democracia:


Burocrático, Gerencial e Governança
Iremos começar por uma breve descrição dos vários modos de
governar, ou modelos de governação, para depois descrever, na
seção seguinte, os governos-tipo que põem em prática tais mo-
delos.
O modo burocrático. Tem por objetivo garantir o cumprimento
da lei e a igualdade jurídica de oportunidades dos cidadãos, com
a finalidade de contribuir com a regulação das condições de es-
tabilidade econômica e social, o desenvolvimento do Estado de
Direito e do livre mercado.
Este modo se desenvolve a partir dos Estados liberais e demo-
cráticos da metade dos anos 50 do século XIX e predomina até os
anos 80 do século XX. Os valores do governo são: respeito e sujei-

Governança: uma nova arte de governar 37


ção à lei, igualdade de todos os cidadãos perante a lei, autonomia
da sociedade civil para identificar o interesse geral e racionalidade
(adequação dos meios aos fins).
Para exercer a função de regulação e de segurança jurídica, a
administração se vale de uma categoria profissional: a burocra-
cia ou funcionalismo. Esses profissionais, para poder realizar seu
trabalho, requerem independência política, objetividade e impes-
soalidade do seu próprio trabalho, que deve ajustar-se à legisla-
ção em um contexto de racionalidade (adequação dos meios aos
fins). Para que possam cumprir sua missão, os funcionários são
protegidos legalmente e os postos de trabalho regulamentados.
Os valores que presidem a burocracia são os que acabamos de
apontar e que se diferenciam plenamente dos valores relaciona-
dos à economia, produtividade e eficiência que predominam no
modo gerencial. Entre os profissionais da burocracia predominam
as especialidades vinculadas ao Direito.
O político eleito com a responsabilidade de governar é o re-
presentante dos cidadãos para dar cumprimento às normas da so-
ciedade com a ajuda da burocracia que, por ter proteção especial,
impede o governante eleito de usar o poder para fins pessoais ou
partidários. Os políticos, com o apoio da burocracia, identificam e
gerenciam o interesse geral.
A cidadania, neste modo de governar, tem um papel inativo,
limitado praticamente à consulta. Tanto a cidadania como a ini-
ciativa privada e social são os que devem, através do mercado e
da livre iniciativa, alcançar o maior bem-estar possível através do
marco legal-regulador e garantidor da liberdade do mercado e da
ação social. O governo é o representante eleito da sociedade e em
seu nome exerce sua ação normativa e reguladora.
O tipo de gestão que se desenvolve neste modo de governar é
a gestão de procedimentos. Trata-se de estabelecer cuidadosamen-
te os processos e regulamentá-los. A tarefa do burocrata é seguir
os procedimentos e não assegurar resultados. Estes, se supõe, re-

38 Governança: uma nova arte de governar


sultarão do cumprimento da regulamentação estabelecida. Nisto,
não difere dos processos próprios do maquinismo industrial, dos
métodos tayloristas. A diferença com a produção de bens e ser-
viços reside em que seu posto de trabalho não é flexível e que os
processos da administração não estão organizados em função da
produtividade. Os serviços, para garantir a conformidade com os
regulamentos, são organizados por estes mesmos processos.
O modo gerencial de prestação e gestão de recursos públicos. Co-
meça nos anos 80, tem seu esplendor nos 90 e na atualidade
ainda é o modo dominante.
Os objetivos são a economia, a eficácia e a eficiência (os três
“E”) na prestação e gestão de serviços. Sua preocupação principal
é a produtividade na produção dos serviços e, em geral, do con-
junto da administração.
A gestão específica deste modo de governar é a gestão empre-
sarial dos serviços. Ou seja, realiza-se a prestação e gestão dos servi-
ços a partir da introdução (ou tentativa de introdução) do conjun-
to de técnicas, instrumentos e processos oriundos do mundo em-
presarial, e os principais profissionais dirigentes da administração
são buscados no mundo empresarial e, mais concretamente, no
mundo dos negócios. Assim, fala-se da terceirização de serviços,
gestão da qualidade orientada ao cliente-usuário, reengenharia
de processos, marketing de serviços, etc. Pretende-se orientar a
gestão para os resultados econômicos e de produtividade.
Acredita-se que a produtividade e os três “E”, acima mencio-
nados, devam ser os valores dominantes não apenas em função
dos serviços públicos, mas também do conjunto da administração;
e não poucas vezes se quis aplicar a reengenharia de processos,
própria da gestão de serviços, às funções governamentais destina-
das a assegurar os direitos da cidadania e às funções relacionais,
gerando não só colapsos de governabilidade, mas também impor-
tantes colapsos no funcionamento da democracia.

Governança: uma nova arte de governar 39


Entre os profissionais do governo há uma demanda de forma-
ção em economia, mas é dada prioridade, em especial, à forma-
ção nas escolas empresariais e de administração.
Dada a importância da gestão empresarial dos serviços neste
modo de governar, o papel do político eleito fica desfocado e se
confunde com o de gerente. Desponta e valoriza-se, especialmen-
te, o papel dos administradores ou gerentes, que assumem papéis
de maior relevância à custa dos políticos eleitos, saídos das fileiras
dos partidos políticos – ou acabam predominando os extratos ge-
renciais dos altos escalões da direção política.
A governança democrática. É um modo de governar que está
emergindo na atualidade como consequência da crise do governo
provedor e gestor de recursos e, em especial, pela obsolescência e
anomalias provocadas pelo modo gerencial.
Nas palavras de D. Inneraty, sua finalidade é “a colaboração
entre o governo e a sociedade civil para a regulação dos assuntos
coletivos com critérios de interesse público”.14
O que caracteriza a governança como modo de governar é
a gestão das interdependências, gestão relacional (ou de redes).
É um tipo de gestão específico que se baseia em um conjunto
de técnicas, instrumentos e processos para alcançar a construção
compartilhada do desenvolvimento humano em um território.
Os valores próprios da governança que a faz avançar como
modo de governar são: respeito, tolerância, participação, racio-
nalidade, confiança, compromisso e colaboração. Ou seja, a go-
vernança se baseia na gestão das interdependências, mas não é
igual à gestão relacional, sendo, na verdade, muito mais ampla.
Governança é uma ação de governo que tem múltiplas dimensões:
normativo-legal, provedora e de gestão de serviços; porém, ao ter
como seu principal objetivo a colaboração entre a sociedade civil

14 Ver D. Inneraty, El nuevo espacio público. Madri: Ed. Espasa – Calpe, 2006, p. 209.

40 Governança: uma nova arte de governar


e o governo para responder aos desafios sociais, é a gestão rela-
cional que assume a relevância e o papel estruturante de todas as
funções de governar. As funções legal e de gestão de serviços são
reestruturadas pela governança, de tal modo que as características
exigidas das mesmas serão diferentes das que adquiriram nos mo-
dos burocrático e gerencial.
A governança coincide com o modo gerencial em sua rejei-
ção ao governo hierárquico, mas, ao contrário dele, não vê no
mercado nem nas técnicas empresariais aplicadas à gestão gover-
namental a alternativa para os problemas e desafios sociais, iden-
tificando na própria sociedade a solução dos problemas. A tarefa
do governo é a de envolver os cidadãos na resolução dos seus
próprios problemas, cooperando com eles e melhorando a capa-
cidade coletiva de atuação. A governança também partilha com o
modo burocrático a ideia de legalidade, de controle público e da
necessidade de procedimentos administrativos, mas atribui gran-
de prioridade aos procedimentos informais de interação cidadã,
na qual intervém para mediar e facilitar a cooperação entre os
atores e setores da cidadania envolvidos.
Na governança, o político tem um papel de representante
eleito, mas diferentemente do modo burocrático, este papel é
muito relevante na sociedade devido ao fato de que atua como
aglutinador e organizador do interesse geral, a partir dos legítimos
interesses e desafios dos diferentes atores e setores da cidadania.
A cidadania e a iniciativa social e privada têm um papel mui-
to ativo. A tarefa do governo consiste em articular uma ampla
cooperação pública e privada, e uma intensa colaboração cidadã
no desenvolvimento humano. Ou seja, fortalecer e coordenar as
principais redes sociais em uma determinada direção.
Por sua vez, passa a ter mais valor um tipo de profissional
polivalente, que tem como funções a mediação e a negociação re-
lacional, em apoio aos políticos eleitos, dotado de amplos conhe-
cimentos na elaboração de estratégias e possuidor de um enfoque

Governança: uma nova arte de governar 41


abrangente das ciências sociais. Esta área das ciências sociais é
a que apresenta maior desenvolvimento na era da governança.
Prevê-se que, dada a complexidade e variedade das situações so-
ciais na governança, bem como a necessidade de amplos conheci-
mentos e novas técnicas, será necessária uma ampla terceirização
da assistência técnica e, mais particularmente, com entidades que
correspondem à classificação de “think tanks”.
No quadro I, são apresentadas de maneira resumida as ca-
racterísticas diferenciadoras dos distintos modos de governar, em
relação às suas principais variáveis.

QUADRO I: MODOS DE GOVERNAR NA DEMOCRACIA


Principais características

Modo de
Governar
Burocrático Gerencial Governança
Variáveis

Função ou
dimensão Prestação e Gestão
estruturante da Normativa / Legal Infraestruturas e Relacional
atividade do serviços
governo

Gestão de
redes sociais
Gestão Empresarial ou relacional
Tipo de gestão Gestão por
por produtividade (construção
predominante procedimentos
ou resultados coletiva do
desenvolvimento
humano)

Legalidade,
Economia Confiança
autonomia
Principais valores Eficácia Compromisso
sociedade civil.
Eficiência Colaboração
Neutralidade

42 Governança: uma nova arte de governar


Visão da Credibilidade e
Credibilidade e
qualidade no Satisfação do confiabilidade da
confiabilidade dos
exercício do cliente e usuário organização das
procedimentos
governo interdependências
Demandante- Demandante-ativo:
Peticionário
Papel do cidadão passivo: cliente ou cooperador e
Administrado
usuário corresponsável
Papel das Reivindicativo
Reivindicativo
associações e Reivindicativo contratado externo
contratado externo
empresas corresponsável
Líder da
Representante do construção social
Papel do político Eleito/gerente
eleitorado (organizador
coletivo)

Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J.


Prats (2005).

A governança é a arte de governar própria


do governo relacional emergente

Já vimos que existem três funções ou dimensões-chave da


ação de governo. A organização assimétrica destas funções-chave
e o seu desenvolvimento pela ação do governo deram lugar a dis-
tintos modos de governar. Nesta seção veremos os governos-tipo
ou modelos de governo que se configuraram nos distintos modos
específicos de governar.
A classificação dos tipos de governo que se configuraram de
maneira singular nos modos ou artes de governar, que proponho,
é a que tem como critério a relação principal que se estabelece ou
pretende estabelecer-se entre o governo territorial e a cidadania.
O resultado são três governos-tipo: o governo racional-legal, o
governo provedor e gestor, também denominado “protetor” ou

Governança: uma nova arte de governar 43


do “bem-estar”15 e o governo relacional ou governo em rede, que
também foi denominado “promotor” (J. Prats), “cooperador” ou
“capacitador” (D. Innerarity).

O governo racional-legal

O governo racional-legal corresponde à visão de governar an-


terior ao do Estado protetor ou do bem-estar. Nesta concepção a
função principal de um governo em relação à cidadania é garantir
as condições gerais para o bom funcionamento da economia de
mercado e do Estado de Direito. O governo tem um papel clara-
mente regulador.
A função principal e estruturante do governo é o cumprimento das
normas. Seu modo de governar específico é o que já se assinalou como
burocrático, que foi descrito magistralmente por Max Weber.16
O governo racional-legal, especialmente em seu nível local, ge-
rencia e presta diretamente serviços como segurança, limpeza, aten-
ção à população de rua (pessoas sem teto etc.). Mas esta é uma fun-
ção menor ou mesmo marginal, e sempre se justifica em relação ao
apoio destes serviços ao papel regulador ou como forma de estabe-
lecer garantias ao livre desenvolvimento das iniciativas das empresas
e cidadãos. A função do governo não é atuar de maneira ativa com
recursos públicos na economia, nem no apoio à igualdade de opor-
tunidades sociais ou redução da pobreza e da exclusão social.
Neste modelo existe a função relacional, que consiste em de-
senvolver a participação e o acordo da cidadania na elaboração
das normas legais, que o governo deverá fazer cumprir, e na apro-
vação prévia pelas câmaras municipais. Não se trata da partici-
pação na definição dos serviços e dos sistemas de qualidade na

15 Pretendo objetivar ao máximo a descrição e por isso não uso as palavras proteção e bem-
estar, por estarem envolvidas em disputas políticas e gerarem reações imediatas e pouco
críticas de apoio ou rejeição.
16 Max Weber o definiu como tipo de dominação racional-legal, descrito em seu famoso
Economía y Sociedad. Madri: F.C.E., 1929, pp. 170-217.

44 Governança: uma nova arte de governar


prestação de serviços próprias do governo gestor, muito menos
da participação cidadã e da colaboração público-privada para
transformar a cidade ou o território, em geral, na perspectiva do
desenvolvimento humano.
No governo racional-legal, a função relacional é muito redu-
zida; a cooperação cidadã, em não poucos casos concretos de go-
verno, fica circunscrita ao diálogo para alcançar a manutenção da
ordem pública.
As funções estruturadas deste governo, como a prestação de
serviços e a função relacional, são administradas pelo tipo de ges-
tão que já assinalamos como própria do modo burocrático: a ges-
tão por procedimentos.
Neste modelo racional-legal o papel do governo é subordina-
do sempre aos governos nacionais e regionais. A principal função
é normativa e reguladora e, neste aspecto, os governos locais são
necessariamente subordinados à legislação cujo cumprimento cor-
responde ao nível nacional ou federal ou similar, a qual, logica-
mente, não podem transgredir.
As alterações nesta forma de governo se originaram nos de-
sequilíbrios que o próprio mercado gera. A não intervenção dos
fundos públicos na economia e na coesão social levou ao agrava-
mento das desigualdades, à ampliação da pobreza e à instalação
de uma situação de conflito social permanente. O papel de garan-
tidor do cumprimento de uma legislação e de manutenção das
condições do mercado levou à percepção de que o governo é um
obstáculo e se opõe às reivindicações sociais dos mais desfavoreci-
dos (ainda que, em não poucos casos, esta atitude governamental
fosse uma vontade manifesta).

O governo provedor e gestor

O governo provedor e gestor – nascido nos anos 50 do século


XX e ainda hoje modelo de governo dominante – corresponde à
visão do que se denominou Estado do Bem-Estar Social.

Governança: uma nova arte de governar 45


O papel do governo provedor e gestor de recursos e serviços
se desenvolveu na Europa. Foi assumido no contexto da Guerra
Fria e da ameaça do denominado “bloco socialista dos países do
leste”, pela aplicação das teses de Keynes sobre a intervenção do
governo na economia, através do gasto público, e as propostas de
Beveridge sobre a ampliação da cobertura da seguridade social
para todos os cidadãos.
Os desafios do desenvolvimento econômico e as necessidades
sociais ou de bem-estar tornaram-se matéria de intervenção gover-
namental e os cidadãos se voltaram para todos os níveis de governo
na busca da satisfação de suas demandas e reivindicações sociais.
Neste paradigma, encontramos duas etapas definidas pelo
modo de governar que prevaleceu em cada período: o burocráti-
co e o gerencial.

A etapa burocrática
O modo burocrático, próprio do governo racional-legal, foi o
que se aplicou ao novo paradigma de governo a partir dos anos
50, e que se tornou hegemônico até os anos 80. Ele foi aplicado
com os mesmos valores e com a proteção jurídica dos funcioná-
rios públicos, porém agora já não era somente gerenciar algumas
poucas prestações e serviços ligados às funções de regulação, mas
também a prestação de serviços orientados à satisfação de neces-
sidades sociais, que estavam se convertendo na função principal e
prioritária dos governos.
Os políticos e profissionais da gestão pública não entenderam
que se encontravam ante um novo paradigma de governo, ou
seja, ante uma reestruturação da organização e funções do gover-
no, e agiram como se fosse tão somente uma ampliação da sua
atuação. Não tiveram a consciência de que era preciso governar
de um modo diferente.
Efetivamente, Max Weber, (que sem dúvida foi quem melhor
caracterizou o modelo racional-legal, ou modo burocrático de do-

46 Governança: uma nova arte de governar


minação) considerava que a burocracia era também um modo de
gerir os serviços e não apenas de garantir a legalidade, a indepen-
dência e a estabilidade do governo. Porém, era bastante conscien-
te das limitações de uma gerência ampla dos serviços por este tipo
de gestão. Neste sentido, Giddens17 nos recorda que o principal
argumento de Weber – contrário ao socialismo – era que este
significaria uma grande burocratização do Estado e, em particular,
do governo, que acabaria levando à ineficiência na gestão e à au-
tonomia da burocracia como grupo de poder, que faria o governo
funcionar em função de seus interesses e de grupos particulares,
como efetivamente ocorreu.
De fato, a gestão de recursos e serviços públicos exige econo-
mia, eficácia e eficiência (os denominados três “E”), que, como já
observado, não são valores próprios da burocracia, nem garan-
tidores de sua proteção como grupo profissional. A gestão buro-
crática aplicada à gestão de serviços foi e é altamente ineficiente,
provocou e ainda provoca significativas deseconomias que devem
ser sustentadas com mais carga fiscal para os cidadãos e, pior ain-
da, limita o alcance dos serviços públicos.
O paradigma do governo gestor, ao desenvolver-se com o
modo burocrático, trouxe com ele a necessidade de reforma per-
manente, desde o seu começo, para torná-lo mais eficiente. En-
tretanto, os distintos instrumentos de reforma – descentralização,
centros de controle, orçamentos-programas, etc. – inscreveram-se
no modo burocrático e no tipo de gestão que o caracteriza – a
gestão de procedimentos.

A etapa gerencial
O modo gerencial baseado na imitação da gestão das empre-
sas privadas recebe o nome de sua principal escola, o new mana-

17 A. Giddens, Política y Sociología en Max Weber. Madri: Ed. Alianza, 1976, pp. 76-82.

Governança: uma nova arte de governar 47


gement ou “nova gestão pública”.18 Pretende não apenas substi-
tuir o modo burocrático nos serviços voltados para satisfazer uma
necessidade social (serviços sociais, assistência médica, centros
culturais, equipamentos desportivos, etc.), como os que apoiam
diretamente o cumprimento de uma norma governamental (cole-
ta de lixo, serviços de limpeza, estacionamento e, inclusive, alguns
tão problemáticos como polícia, gestão urbana e segurança), pela
aposta na terceirização dos serviços públicos, pela criação de um
“mercado” ou “quase-mercado” de serviços públicos, pela gestão
orientada ao cliente ou usuário etc.
Considera-se que a produtividade e os três “E” antes mencio-
nados devem ser os valores dominantes, não apenas da função
da prestação e gestão de serviços, mas do conjunto da adminis-
tração.
Nesta etapa, a função relacional e participativa se desenvolve
mais que no modelo racional-legal, mas de forma sempre vincu-
lada e subordinada ao papel de provedor de recursos desempe-
nhado pelo governo. De fato, o modelo provedor e gestor teve
por base um acordo social através do qual o setor público propor-
cionou serviços e benefícios econômicos que constituem salário
indireto. Isso possibilitou a estabilidade dos rendimentos e dos
salários nas empresas privadas. A participação cidadã, por sua vez,
fica restrita ao âmbito das necessidades e no desenho das políti-
cas e serviços, não se traduzindo em compromisso de cooperação
para dar uma resposta coletiva aos desafios sociais.
Por outro lado, a concepção gerencial passa a incorporar não
apenas a gestão dos serviços financiados com recursos públicos,
mas também a prestação de serviços pelas empresas privadas e
iniciativas sociais. A justificativa desta incorporação se deu a partir
do argumento de que o governo teve seu peso relativo diminuído,

18 Os autores mais conhecidos desta escola, assim como seu principal livro, são D. Osborne e
T. Gaebler, La Reinvención del Gobierno. Barcelona: Ed. Paidós, 1995.

48 Governança: uma nova arte de governar


dadas as limitações do crescimento do gasto público para atender
as necessidades sociais. Na etapa gerencial, não apenas se consi-
dera a necessidade de incorporar novos atores sociais, e em espe-
cial as empresas, mas também prospera a ideia de que o governo
deve imitar o modelo de gestão empresarial. Em última instância,
o objetivo era dar maior destaque aos empresários e às empresas,
tanto na gestão e prestação de serviços como na iniciativa social,
como forma de suplementar a ação de governo, que somente se
entendia como prestador de serviços.
A adoção do modo gerencial no paradigma de governo prove-
dor e gestor, no entanto, tinha igualmente uma justificativa ética
baseada na necessidade de se evitar o desperdício do dinheiro
público e, sobretudo, de criar mais infraestrutura e serviços com
uma despesa pública que se constatava não poder crescer inde-
finidamente. A extensão dos três “E” para toda e qualquer ação
governamental, como uma cópia dos métodos empresariais das
multinacionais, aliada ao fato de se enxergar o cidadão como um
mero cliente ou usuário, em muitos casos, levou à desconside-
ração do conceito de serviço público e ao questionamento das
garantias legais e do respeito pelos direitos que a ação do governo
deve proporcionar, o que tem acontecido em muitos governos, e
não apenas na América Latina.
Neste caso, não apenas a prestação e gestão de benefícios
e serviços eram considerados dominantes, mas toda a ação de
governo. Considerava-se que o modo de governar deveria corres-
ponder aos valores empresariais da gestão de serviços. Desta ma-
neira foi favorecida a consolidação de uma concepção clientelista
da ação governamental e da política em geral, sobretudo onde os
valores democráticos estavam pouco consolidados.
Em suma, o enfoque que estamos expondo, de definir o mo-
delo de governo como uma maneira de abordar a articulação das
suas funções, leva a dizer que o lema do governo gestor poderia
ter sido burocracia o quanto for necessário, gestão eficiente o quanto

Governança: uma nova arte de governar 49


for possível e, certamente, teria tido menos efeitos perversos do
ponto de vista democrático.
No esquema gestor, as prefeituras têm um papel mais relevan-
te como prestadoras de serviços do que no modelo racional-legal,
porém secundário em relação aos governos nacionais e federais
ou similares; na maioria dos casos, os governos locais dependem
das competências e transferências de recursos dos outros níveis de
governo.

O governo-rede ou relacional

O governo relacional é aquele que tem por finalidade a cons-


trução do desenvolvimento humano de forma compartilhada com
a sociedade civil e cujo modo específico de governar é o que de-
nominamos governança democrática.
Como já assinalamos reiteradamente, sempre existiu a gover-
nança entendida, simplesmente, como gestão das interdependên-
cias ou das relações entre o governo e os atores e setores da cida-
dania. Isto, porém, de maneira altamente residual e condicionada
por outras funções e dimensões que serviram de eixo estruturador
da ação de governo.
A novidade, a mudança de paradigma, está no fato de que a
governança torna-se o modo próprio do governo relacional. E este
modo de governar, que se baseia e se estrutura a partir da gestão
relacional ou das interdependências, deixa de ser residual para
ser o modo principal ou estruturante do governo.
Hoje em dia, a cooperação entre atores, a participação e a co-
laboração da cidadania não são consideradas apenas uma dimen-
são emergente, mas uma função estrututurante da ação de governo
na sociedade do conhecimento ou sociedade-rede. Isto se deve,
fundamentalmente, à constatação de que existem cada vez mais
desafios e necessidades sociais que não podem ter resposta em uma
ação baseada no gasto público, por mais eficiente que seja a sua
gestão. O governo se vê, assim, diante da necessidade de propor a

50 Governança: uma nova arte de governar


melhoria da capacidade de organização e ação para que o conjunto
da sociedade enfrente os desafios e as necessidades crescentes que
condicionam o progresso humano.
Tal como na última fase do governo provedor, considera-se
necessário incorporar novos atores para a obtenção da melhoria
da qualidade de vida; porém, ao contrário da etapa gerencial, não
se trata de reduzir a relevância do governo democrático, mas lhe
atribuir um novo papel como organizador coletivo de uma ampla
ação social.
Neste contexto, a gestão relacional ou gestão das interdepen-
dências (ou de redes) passa a ser a base da nova ação de governo.
Portanto, o governo relacional deve realizar uma reestruturação
das funções de proteção legal de direitos, da gestão eficiente da
qualidade dos recursos e serviços para colocá-los em função da
construção coletiva do território, que tem na gestão relacional seu
principal, embora não único, instrumento.
Reestruturação significa mudança de orientação. A função re-
lacional se converte em estruturante (porque agora o objetivo do
governo relacional é a melhoria da capacidade de organização e
ação dos territórios) e aumenta sua complexidade e a magnitude
de seus objetivos, assim como os âmbitos em que se aplica. A
participação cidadã (elemento essencial da função relacional) é
agora, fundamentalmente, corresponsabilização e compromisso.
Por sua vez, a gestão de serviços na governança deve ser eficaz
e eficiente, mas não apenas do ponto de vista da redução dos
custos e da produtividade, sobretudo porque esta mesma gestão
deve incorporar uma melhoria no compromisso de ação comu-
nitária dos usuários e familiares envolvidos e contribuir para o
fortalecimento do tecido associativo do lugar em que se situa. Os
benefícios e serviços se integram e apoiam os processos de desen-
volvimento comunitário.
A função normativa e legal que, sem dúvida, deve ser exer-
cida por funcionários, deve adequar os procedimentos de con-

Governança: uma nova arte de governar 51


tratação externa de serviços às novas finalidades de eficácia e
contribuição ao desenvolvimento comunitário, assim como ao
fortalecimento e ampliação dos novos espaços da cidadania;
ou seja, frente aos espaços de deliberação e acordos entre go-
verno, atores, iniciativa social e movimentos sociais em geral,
o papel singular da função legal ou normativa em um governo
relacional será o de conceber os marcos institucionais regula-
dores, assim como os incentivos e restrições da atuação dos
atores e setores da cidadania para estimular, fortalecer e dar
estabilidade à ação coletiva em que os participantes procuram
maximizar suas expectativas no âmbito do interesse geral. Isto
é, ter em conta que o interesse geral é uma construção coletiva
da qual participam.
A seguir, veremos com mais detalhe, aplicada ao setor de bem-
estar social, a reestruturação das diferentes funções no governo
relacional e, especialmente, a orientação que recebem através do
seu modo de governar: a governança.
Neste modelo de governo é fundamental a proximidade às
interdependências dos atores para construir projetos coletivos
e promover uma cultura empreendedora e cívica na cidadania.
Por isso, o papel dos governos locais no sistema do conjunto
dos Estados-nação é claramente emergente e relevante. Também
o são os governos regionais, porém estes entendidos, cada vez
mais, como gestores das interdependências entre os distintos
municípios.
Como conclusão desta seção, é fundamental reter:
O governo relacional assume um papel renovado e uma centrali-
dade social na sociedade-rede, ao considerar-se a articulação social,
a melhoria da capacidade de organização e ação das sociedades,
uma responsabilidade pública democrática, com grande impacto no
desenvolvimento humano das cidades e regiões.
No quadro II é apresentado um resumo dos governos-tipo a
partir dos seus principais elementos distintivos.

52 Governança: uma nova arte de governar


QUADRO II: GOVERNOS-TIPO NA DEMOCRACIA
(relação entre governo e sociedade)

Governo-Tipo
Racional-legal Provedor e Gestor Relacional
Elementos
distintivos
Relação Regulador/ Provedor de Organizador
estruturante com normativo infraestruturas coletivo do
a sociedade civil e serviços desenvolvimento
Burocrático (1ª Governança
Modo de
Burocrático etapa) Gerencial (expectativa
governar
(2ª etapa) racional)
Papel do
município no Protagonista
modelo de Subordinado Secundário (expectativa
administração razoável)
nacional

Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J.


Prats (2005)

As vantagens ou desvantagens de se usar uma concepção ou


outra, desde que sejam rigorosas e se adaptem às regras da lógica,
dependerão da capacidade de previsão das mesmas.
A concepção que é apresentada acima, ao destacar como go-
verno-tipo o provedor, registrou um modo de governar adequado
a outro modelo de governo (racional-legal), porém totalmente
inadequado à nova relação estabelecida com a sociedade civil.
Isso nos serve de alerta para que, ao surgir o governo relacional,
não continuemos utilizando o modelo de governação gerencial
ou que a governança seja considerada, de maneira incorreta, sim-
plesmente como uma dimensão a mais deste modo de governar,
o que, sem dúvida, dificulta alcançar os objetivos do desenvolvi-
mento humano.

Governança: uma nova arte de governar 53


A confusão é real. Recentemente um conhecido autor, M. Sha-
piro19, chamou a atenção para o fato de que a perspectiva da
governança se desenvolve no âmbito da gestão pública através da
sua conexão com a escola da “nova gestão pública” e os perigos
que esta acarreta para a legitimidade democrática. Outro impor-
tante autor, Guy B. Peters, embora reposicione o tema e identifi-
que a governança como uma nova arte de governar distante do
modo gerencial, que proporciona um renovado papel ao governo
democrático, também aponta para o perigo de se associar a go-
vernança com a corrente que atribui ao governo um papel menor,
para dar mais importância a outros agentes, em especial aos eco-
nômicos.
Entender a governança como uma dimensão a mais do gover-
no provedor, e/ou geri-la através do modo gerencial, significaria
retardar o novo papel do governo como um organizador coletivo
e a valorização do governante eleito como representante da cida-
dania.
Por esta razão é que no quadro anterior foi colocado como
expectativa razoável que a governança seja o modo de governar
próprio do governo relacional na sociedade-rede ou sociedade do
conhecimento, por ser o mais adequado. Porém, mesmo que seja
o mais apropriado, isso não quer dizer que o seu desenvolvimento
esteja assegurado. Ainda mais quando temos o exemplo de que o
governo provedor se desenvolveu, numa primeira etapa, através
do modelo de governação próprio do governo racional-legal: o
modo burocrático.
Ainda que a governança comece a ser um paradigma com pro-
gressiva importância nas ciências sociais como arte de governar, é
incipiente e, em não poucos casos, se desenvolve no interior do

19 M. Shapiro “Un derecho administrativo sin límites: reflexiones sobre el gobierno y la gober-
nanza”. Em A. Cerrillo (coord); La Gobernanza hoy: 10 textos de referencia. Madri: Ministerio
de Administración Pública, Instituto Nacional de la Administración Pública, 2005, pp 203-
212.

54 Governança: uma nova arte de governar


modo gerencial de governar, confundindo-se com uma nova fór-
mula para dar maior relevância ao papel dos agentes econômicos.
O aparecimento da governança como prática de governo precisa
de êxitos bem conhecidos e de vitórias eleitorais para aqueles que
a implementarem. Para isto, são necessários métodos e técnicas
específicas e um novo tipo de liderança política, que é preciso
sistematizar e difundir.20 O predomínio do modo gerencial atrasa
e dificulta a inovação do modo de governar.
O governo local, por sua proximidade com as relações que
se estabelecem entre os atores no território, pode gerir melhor
a complexidade social. Mas isso tampouco significa que venha
a ocorrer, mas simplesmente que, de um ponto de vista racio-
nal, existem condições para que haja um incremento do papel
dos governos locais. Se vão conseguir ou não, vai depender, fun-
damentalmente, de sua ação prévia, de que sejam capazes de
abrir espaços como organizadores da coletividade, e dos êxitos
que alcancem no desenvolvimento humano nos territórios em que
abram os espaços mencionados.

A governança é o modo de governar da


sociedade do conhecimento
A denominada globalização, tal como a define o Fundo Mo-
netário Internacional, consiste em fluxos de informações, merca-
dorias, serviços e pessoas que cruzam os territórios e os fazem in-
terdependentes. Os fluxos são produzidos, distribuídos, recebidos
e consumidos fundamentalmente nas cidades e áreas metropolita-
nas. A economia e a sociedade globais se assentam no sistema de

20 Para isso, foi criado o movimento de governantes eleitos e profissionais, em 2003, voltado
para o desenvolvimento da governança, denominado América Europa de Regiões e Cida-
des, AERYC. Ver a página web www.aeryc.org

Governança: uma nova arte de governar 55


cidades. Os territórios se tornam mais interdependentes econômi-
ca, social e culturalmente.
A sociedade do conhecimento ou sociedade informacional, na
expressão conceitual de Castells, ao basear-se na inovação perma-
nente, favorece a especialização flexível nas empresas e entidades
sociais. Estas, para inovar, não podem fazê-lo em todos os aspec-
tos, necessitando fazê-lo naquilo que mais conhecem, em suas
melhores habilidades e capacidades. Este processo de inovação
requer a organização em rede das diferentes empresas, entida-
des e instituições para produzir bens e serviços. A capacidade de
articular as funções de pesquisa, formação, produção, comercia-
lização e distribuição é a chave para o desenvolvimento. A or-
ganização em rede e o uso das tecnologias de informação são,
segundo Castells,21 fatores centrais tanto para o desenvolvimento
econômico quanto para o social.
A sociedade do conhecimento se baseia em redes, na gestão
dos conhecimentos das pessoas nos departamentos, empresas,
entidades e organismos públicos. Ela posiciona os profissionais e
as equipes no topo dos processos produtivos. Na sociedade indus-
trial, o trabalhador era um apêndice da máquina; o importante
era o processo no qual se inseriam as pessoas. Contrariamente,
na sociedade do conhecimento, as tecnologias da informação e
os processos produtivos são desenhados para servirem de suporte
para que as pessoas e equipes possam gerar valor através da pro-
dução de conhecimentos. A densidade e qualidade das interações
entre departamentos e empresas são os principais fatores críticos
para a criatividade e inovação.
A principal vantagem econômica de um território é cada vez
mais a vantagem colaborativa. Neste sentido, a economia depen-
de da coesão social ou, para ser mais preciso, do capital social,
que foi definido por Putnam de uma maneira muito semelhante

21 Ver M. Castells, Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia, 2006, pp.151-193.

56 Governança: uma nova arte de governar


à capacidade de organização e ação: “O capital social refere-se ao
conjunto formado pela confiança social. Às normas e redes para
resolver os problemas comuns. As redes de compromisso cívico,
tais como associações de bairros, as federações desportivas e as
cooperativas, constituem uma forma essencial de capital social.
Quanto mais densas forem estas redes, mais possibilidades exis-
tirão de que os membros de uma comunidade cooperem para
obter um benefício comum.”22
Os indivíduos são cada vez menos autossuficientes. Por um
lado, aumentam sua autonomia em relação à família e às insti-
tuições sociais e políticas; por outro, suas necessidades são cada
vez mais crescentes e complexas e, para satisfazê-las, precisam de
uma grande amplitude de redes sociais.
A sociedade e a economia aparecem como uma construção
coletiva assentada em redes. Gerir a sociedade-rede é gerir as re-
lações, é desenvolver a governança.
A tarefa principal de um governo democrático consistirá em
promover o desenvolvimento humano no território a partir da
criação, fortalecimento e coordenação das redes econômicas, so-
ciais e culturais. Por isso é que, sem dúvida, a governança é o
modo mais adequado de governar.

22 R. D. Putnam, Making Democracy work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton
University Press, 1993, p.125.

Governança: uma nova arte de governar 57


2. Governança Democrática:
Construção coletiva do
desenvolvimento humano

Ideias Principais
1. A finalidade da governança democrática é o desenvolvimento
humano: democracia, equidade social, desenvolvimento eco-
nômico.

2. A governança como modo de governar exige e precisa de de-


mocracia.

3. A coesão social é o motor e não o resultado do desenvolvi-


mento.

4. A coesão social entendida como capacidade de organização e


ação é o principal objetivo da governança democrática.
Ao longo do presente livro serão tratadas mais detalhadamen-
te as características da governança e, em especial, sua aplicação
na área do bem-estar social. Ao chegar até este ponto, porém, me
atrevo a propor uma definição de governança democrática:
• A governança democrática é a arte de governar os terri-
tórios do novo governo relacional, próprio da sociedade
do conhecimento, cujo objeto é a capacidade de organi-
zação e ação de uma sociedade; seu principal meio é a
gestão relacional ou gestão das interdependências e sua
finalidade é o desenvolvimento humano.
Neste capítulo, comentarei os distintos aspectos desta defini-
ção, para uma maior compreensão.

A finalidade da governança democrática é


o desenvolvimento humano
Utilizo aqui o conceito de desenvolvimento humano adota-
do pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD). Ou seja, o desenvolvimento humano compreende não
somente o desenvolvimento econômico, mas também a redução
das desigualdades sociais, a sustentabilidade ambiental e o forta-
lecimento da democracia.
O desenvolvimento humano inclui os temas do chamado ca-
pital ético, isto é, os valores dos atores e da cidadania em espe-
cial – o capital social ou a capacidade de gerar tecido organizati-
vo empresarial e social para finalidades relacionadas com o bem
comum. Inclui objetivos de bom governo democrático, isto é,
relacionados ao aprofundamento da democracia, à participação
e deliberação cidadã, à reforma da administração pública, à co-
laboração intermunicipal e regional. Trata-se de um conceito de
desenvolvimento integral que inclui, naturalmente, critérios de
atuação e objetivos que serão referência para os diversos planos

60 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


setoriais e políticas públicas, em especial planos de ordenamen-
to territorial e, particularmente, urbanístico. O desenvolvimento
humano se apoia em um quadrilátero virtuoso: econômico, so-
cial, territorial-sustentável e democrático.
A opção pelo desenvolvimento humano é uma opção plu-
ralista. Não significa que todas as opções políticas coincidem
com as propostas eleitorais apresentadas à população. Claro que
o desenvolvimento humano implica que se leve em conta os
quatro fatores do desenvolvimento, mas as prioridades ou pesos
atribuídos a cada um deles nas políticas concretas é o que irá
distinguir as opções eleitorais.
Este conceito de desenvolvimento humano está relacionado
com a mudança de visão do desenvolvimento e do papel das pes-
soas nele, que a sociedade do conhecimento ou a sociedade-rede
incorpora. De fato, durante o pleno desenvolvimento da socieda-
de industrial, o homem (entendido como genérico de mulher e
homem) era considerado um apêndice da máquina. Sua produti-
vidade, multiplicada pela divisão do trabalho e pelas máquinas,
era o elemento-chave do desenvolvimento. Este, por sua vez, era
entendido em sua vertente mais restrita como crescimento econô-
mico, em cuja origem estavam os investimentos em infraestrutura
e grandes equipamentos. Já na sociedade do conhecimento, ao
ser este a principal fonte de valor agregado, as pessoas, as equipes
profissionais e a organização em rede das empresas atingem a sua
máxima relevância. A tecnologia – e, principalmente, as tecnolo-
gias da informação – se converte no suporte necessário para que
as pessoas e equipes produzam conhecimentos. Ao centrar-se nas
pessoas, o desenvolvimento e a visão que se tem dele se aproxi-
mam mais das múltiplas dimensões de suas necessidades e, por-
tanto, se tornam mais amplos. Por outro lado, o bem-estar já não
se encontra no governo (em sua oferta de serviços), mas está nas
pessoas. São elas que produzem bem-estar a partir de sua capaci-
dade de usar os serviços colocados à sua disposição.

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 61


A governança exige e precisa de
democracia
É possível entender a governança sem que a sua finalidade
seja o desenvolvimento humano, ou, ainda, pensar em uma go-
vernança não democrática?
Se entendermos a governança em sentido estrito, como uma
atividade especial do governo que busca a colaboração de atores
em um tema concreto, e não como uma forma habitual de go-
vernar, é possível entendê-la como não democrática, sempre que
os acordos entre o governo e os atores sejam realizados de costas
para os cidadãos e motivados por uma política clientelista. Ao
contrário, como modo de governar habitual, de um governo local
que busca melhorar a capacidade de organização e ação de uma
sociedade, se exige democracia, uma vez que se tornam necessá-
rias a liberdade de circulação das ideias e interesses, assim como
organizações abertas e flexíveis com as quais seja possível chegar
a acordos sobre interesses legítimos. Por outro lado, a governança
exige participação e envolvimento cidadãos. Dificilmente uma po-
lítica que não se baseie em valores democráticos e de desenvolvi-
mento humano poderá desenvolver-se através de amplos proces-
sos de compromisso social. Para outro tipo de objetivos prefere-se
que não haja luz nem taquígrafos.
De fato, e para evitar qualquer tipo de confusão ao denominar
o modo de governar próprio do governo relacional, utilizamos a
expressão governança democrática, conscientes de que se pode
usar a gestão de interdependências em um sentido contrário ao
desenvolvimento humano e aos próprios direitos humanos, ainda
que seja sempre como atividade isolada e não como modo habi-
tual de governar.
Na governança democrática, infelizmente, também podem
acontecer espaços de encontro clientelista, mas de maneira isola-
da, como em qualquer modo de governar. Porém, neste modo de

62 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


governar, por seu caráter aberto e participativo, é muito mais fácil
conhecer estas práticas clientelistas e, por isso mesmo, torna-se
mais difícil que aconteçam.

A coesão social é o motor do


desenvolvimento econômico e social
A coesão social foi tradicionalmente entendida como o de-
senvolvimento de políticas públicas e mecanismos de solidarie-
dade para o acesso da cidadania aos benefícios e serviços de
bem-estar financiados com fundos públicos. A coesão social,
portanto, era considerada como um resultado do desenvolvi-
mento econômico, entendido fundamentalmente como cresci-
mento da renda. Esta é básica para poder aumentar os impos-
tos e financiar os serviços públicos de saúde, serviços sociais,
educação, cultura, etc., que geram bem-estar social e educa-
ção. Neste esquema próprio do modelo de crescimento da
sociedade industrial, ao situar o desenvolvimento econômico
como principal prioridade, justificou-se a sua busca por qual-
quer meio, não somente suspendendo os direitos sociais, mas
também os direitos democráticos. O importante e fundamental
era que houvesse investimento, especialmente em infraestrutu-
ra, tecnologia e grandes equipamentos que incrementassem a
produtividade.
Na atualidade, o tema está passando por grandes transforma-
ções. O conceito de coesão social foi ampliado e, paralelamente
com o surgimento da sociedade-rede ou do conhecimento, a coe-
são social começa a ser entendida como um fator prévio ao desen-
volvimento econômico e social sustentado e sustentável. Vejamos
ambos os aspectos.
O escritório de coordenação do programa Eurosocial observa:
“De uma perspectiva individual, a coesão social supõe a existên-
cia de pessoas que se sentem parte de uma comunidade, partici-

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 63


pam ativamente em diversos âmbitos de decisão e são capazes de
exercer uma cidadania ativa.” 23 Acrescenta três novos elementos
à coesão social: sentimento de enraizamento, cidadania ativa e
participação social.
No mesmo sentido do programa mencionado, a organização
do governo britânico I&DEA24 define uma comunidade socialmen-
te coesa através de quatro características:
1. Tem uma visão e um sentimento de enraizamento com-
partilhado.
2. A diferença de circunstâncias, ambiente e culturas é va-
lorizada como um fato positivo.
3. Independentemente do seu ambiente, as pessoas têm
oportunidades de vida semelhantes.
4. Desenvolve relações fortes e positivas entre pessoas de
ambientes muito diversos, quer seja no trabalho, na es-
cola ou no bairro.
Neste ponto, e considerando que o programa Eurosocial e, em
especial, o I&DEA definem a coesão social pela qualidade, com-
plexidade e diversidade das relações entre os cidadãos e vizinhos,
antecipo uma tese: a coesão social, entendida como atributo de
relações sociais, deve ser considerada como fator-chave e desen-
cadeante do desenvolvimento humano. Isto é, mais do que resul-
tado da distribuição de renda ou acesso a equipamentos e servi-
ços financiados pelo desenvolvimento econômico anteriormente
ocorrido no território, defendo que é preciso existir coesão social
prévia, concebida como condição para que ocorra um desenvol-
vimento territorial endógeno, sustentável e sustentado no tempo.

23 Ver Fundación Internacional y para Iberoamérica de Administración y Políticas Públicas –


FIIAPP, Documento de discussão da Jornada “A coesão social: um desafio para a Europa e
América Latina”, 2007, p. 1.
24 Ver <http://www.idea-knowledge.gov.uk/>

64 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


De fato, como consequência do aparecimento da sociedade-
rede ou sociedade do conhecimento, que transformou tanto a
concepção do desenvolvimento econômico como a do desenvol-
vimento social, constatou-se que não são as infraestruturas que
geram o crescimento econômico e a renda. Estas impactam a so-
ciedade gerando produtividade e alto valor agregado apenas se
inseridas na organização de redes sociais e empresariais. Este novo
enfoque serviu para demonstrar a caducidade do ponto de vista
anterior, e pode-se mostrar que o fundamental e prioritário é con-
seguir o avanço da coesão social, entendida como capacidade de
organização e ação. Ao propiciar a utilização dos recursos físicos e
humanos disponíveis, ela é que é capaz de gerar atualmente, por
si mesma, não apenas um maior desenvolvimento da produtivi-
dade, e consequentemente da renda e dos serviços públicos, mas
do desenvolvimento humano em geral, uma vez que promover
a coesão de uma sociedade exige democracia e, naturalmente,
sustentabilidade, isto é, capacidade de regeneração dos recursos
do entorno territorial.
A melhoria da capacidade de organização é um valor intangí-
vel, com maior impacto no desenvolvimento humano.
Por desenvolvimento humano (econômico, social, cultural,
sustentável e democrático) de um território, na atualidade, se en-
tende, sobretudo, alcançar um diferencial entre o que uma so-
ciedade faz e o que é capaz de fazer em relação ao seu entorno
econômico e social. Pode-se objetar que esta definição é também
válida para outros períodos históricos, o que é absolutamente
certo. Entretanto, o predomínio do enfoque do pensamento da
sociedade industrial e dos governos gestores e provedores, que
atribuía o desenvolvimento econômico às infraestruturas e equi-
pamentos, dificultava visualizar outros fatores que atualmente
podemos identificar. Com as lentes da antiga concepção, não se
podia observar a amplitude dos fatores que geram o desenvolvi-
mento e, em especial, a importância da capacidade de transfor-
mação da própria sociedade. Como explicaria Einstein, é preciso

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 65


um novo enfoque para conseguir um avanço nas ciências, neste
caso, na teoria do desenvolvimento.
As infraestruturas, podemos afirmar claramente, são impor-
tantes para o desenvolvimento econômico, mas não são estrita-
mente necessárias e em absoluto suficientes. O desenvolvimento
depende da capacidade de organização e ação de uma sociedade.
Em outras palavras, da capacidade de articular seu potencial hu-
mano e o capital físico com a finalidade e objetivo de promover o
progresso de modo amplamente compartilhado. Do mesmo modo
que existe uma capacidade de organização adequada, é possível
identificar projetos de capital físico adequados para melhorar sua
competência e a geração de valor. O esquema é o seguinte:25

Desenvolvimento
territorial

Capital físico e Capacidade de


humano organização

A coesão social é o principal objetivo da


governança
As razões anteriores justificam que a capacidade de organi-
zação e ação de um território seja o objetivo principal do novo
modo de governar.
Pois bem. Quais são os fatores estruturantes da capacidade de
organização e ação ou, o que é o mesmo, da construção coletiva do

25 J. M. Pascual Esteve em La Gestión Estratégica de las Ciudades: Un Instrumento para Gobernar


las Ciudades en la Era Infoglobal. Sevilha: Junta de Andalucía, 2002.

66 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


desenvolvimento humano? No meu entendimento, hoje já pode-
mos identificar os seguintes fatores:26
• Existência de uma estratégia compartilhada entre os prin-
cipais atores. Uma estratégia integral e integradora com
claros compromissos de ação em permanente atualiza-
ção, centrada no bem-estar das pessoas e baseada nos
interesses dos principais atores.
• Um modelo de interação social entre os principais atores,
adequado:
✦✦ Aos desafios e exigências do desenvolvimento con-
temporâneo, que permita enfrentar os conflitos ine-
vitáveis com flexibilidade e confiança de chegar a
acordos com benefícios recíprocos.
✦✦ Às correlações de força ou equilíbrio de poder entre
eles.
✦✦ Às configurações mentais ou culturais que promovam
o respeito e o conhecimento recíproco e se orientem
à ação a partir de compromissos igualmente recípro-
cos.
O modelo de interação entre os agentes econômicos, so-
ciais e políticos é fundamental para a determinação da
estrutura produtiva de qualquer região ou país. A falta
de flexibilidade do modelo e a cooperação entre pou-
cos, através do qual se “submete” a maioria, produzem
insegurança e, com ela, a ausência de visão de médio
e longo prazos, assim como o uso de tecnologias que
utilizam pouco capital fixo. Um modelo aberto e flexível
favorece a confiança e a aposta empresarial e social, que
se traduz em um importante desenvolvimento econômi-
co e social.

26 Para uma explicação mais detalhada, ver J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernan-
za. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona (Área de Promoción Económica), 2007.

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 67


• A presença de redes de atores para o desenvolvimento de pro-
jetos-chave e complexos. Os projetos em rede permitem ar-
ticular os esforços de distintos atores públicos e privados,
ao serem capazes de combinar os diferentes interesses e
desafios de objetivos comuns e socialmente úteis.
A estratégia territorial exige o compromisso de ação por
parte dos principais atores do território para desenvolvê-
la. Porém, a partir de uma posição de atores entendidos
como organizações coerentes em si mesmas, com rela-
ções entre elas frequentemente conflitantes, é necessário
um processo de construção de redes até que os compro-
missos concretos de ação sejam alcançados. Isto a partir
de uma situação inicial distinta em cada território, até
que as relações entre os âmbitos público e privado, entre
administração e sociedade sejam situadas no terreno da
corresponsabilidade.
Este processo de melhoramento relacional27 deve ter um
tratamento coordenado, mas, logicamente, diferenciado
do processo de definição da estratégia territorial. O re-
sultado do processo é conseguir a identificação de uma
estratégia concreta com um compromisso claro de ação.
• Uma cultura de ação e compromisso cívico distanciada tanto
da cultura da satisfação quanto da queixa, do burocratis-
mo e do niilismo. A cultura de ação deve proporcionar:
✦✦ Um sentimento de enraizamento e identificação com
a cidade ou região. Dispor de um sentido coletivo
aberto, não fechado.
✦✦ Atitude aberta, tanto à inovação como à integração
social e cultural de novas pessoas e à inserção em

27 Ver a respeito X. Mendoza, “Las transformaciones del sector público en las sociedades
avanzadas: Del Estado del Bienestar al Estado Relacional”, Papeles de Formación de la Di-
putación de Barcelona (1996) e A. Vernis, “La relación público-privada en la provisión de
servicios sociales”, Papeles de Formación de la Diputación de Barcelona (1995).

68 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


estratégias territoriais mais amplas que o próprio mu-
nicípio, a própria região e nação.
✦✦ Esperança realista no futuro, que permita ver além da
realidade, se esta é sombria (“Queremos promessas,
não mais a realidade”, diziam os argentinos duran-
te uma de suas crises econômico-financeiras), e que
gere expectativas racionais nas inversões de capitais e
nos esforços humanos.
✦✦ Legitimação e reconhecimento social da figura da
pessoa e instituição promotora.
✦✦ Respeito e confiança na atuação dos outros atores,
que é a base para a geração do capital social.
• O apoio social e a participação cidadã. As estratégias e os
principais projetos estruturantes devem dispor de um
importante apoio social, e este será mais efetivo se a
participação cidadã for estimulada e garantida, enten-
dida em dois sentidos: como garantia de que seus prin-
cipais desafios e expectativas serão considerados nas es-
tratégias, e como condição para sua responsabilização e
envolvimento social gerador de capital social.
• A existência de lideranças formais e informais entre os atores
institucionais-chave, com capacidade de aglutinar e repre-
sentar a maioria dos interesses, pactuar e respeitar insti-
tucionalmente suas decisões. A liderança principal deve
corresponder, como já assinalamos, à instituição mais
democrática, isto é, a escolhida por toda a cidadania.
Do contrário, nos encontraríamos com uma liderança
corporativa a partir da qual não é possível construir o
interesse geral, uma vez que se reduz ao corporativo.
Como assinala J. Subirats, “o grau de liderança das ins-
tituições representativas no processo de governança das
comunidades vai derivar de sua capacidade para envol-
ver o restante dos atores, agentes e pessoas presentes

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 69


na sociedade na construção de um modelo de futuro
compartilhado”.28
• A articulação de políticas regionais e locais. Trata-se de con-
ceber a região como sistema de cidades e municípios,
com capacidade de:
✦✦ Combinar as políticas regionais e locais com objetivos
e instrumentos no conjunto do território, com as es-
tratégias locais com capacidade de dar especificidade
e integridade ao conjunto de ações, fortalecendo a
cooperação pública e a colaboração cidadã.
✦✦ Articular os municípios não a partir de uma organi-
zação territorial fixa, mas de uma maneira flexível e
adaptável em função do projeto-rede. Quer dizer, dos
territórios que abarcam o desenvolvimento do proje-
to.
✦✦ Dispor de regras de jogos formais e informais que
pautem a interação entre administração regional e as
municipais, assim como as intermunicipais.
• A habilidade de uma cidade para posicionar-se frente ao futu-
ro. Isto é, a capacidade de antecipar-se a novos desafios,
renovando permanentemente a estratégia, gerando novos
projetos e dando novos enfoques aos temas sociais.

A gestão relacional é a modalidade de


gestão característica da governança
O fato de serem as cidades os principais centros de inovação
e desenvolvimento econômico e social dos países deve-se, fun-
damentalmente, à densidade das interações entre seus distintos

28 J. Subirats, “¿Qué gestión pública para qué sociedad?. Una mirada retrospectiva sobre el
ejercicio de la gestión pública, en las sociedades europeas actuales” em Instituto de Gobier-
no y Políticas Públicas. UAB.

70 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


membros e organizações. Da complexidade, diversidade, inten-
sidade e qualidade dessas interações dependerão as vantagens
comparativas do desenvolvimento humano que uma cidade ou
região metropolitana terá.
A gestão relacional é o tipo de gestão pública que, no nosso
caso, é levada a cabo pelos governos territoriais para incrementar
a intensidade, qualidade e diversidade das interdependências e
interações dos atores econômicos, sociais e institucionais e os dis-
tintos setores da cidadania. Seu objetivo é melhorar a criatividade,
a confiança, a colaboração e a cultura empreendedora e de ação
cívica do conjunto da cidadania para conseguir, coletivamente e
de maneira compartilhada e cooperativa, um maior desenvolvi-
mento humano.
A gestão relacional é própria do que se denominou socieda-
des inteligentes, ou seja, aquelas que, segundo as palavras de A.
Marina, incrementam a capacidade de criação e de solidariedade
dos cidadãos.29
Logicamente, a pretensão não é gerenciar todas as relações
sociais, mas tão somente aquelas que têm relação com a cons-
trução compartilhada do desenvolvimento humano. Os âmbitos
privilegiados da gestão relacional entre os governos territoriais e a
sociedade civil são:
Por um lado, as relações com os agentes com maior capacida-
de de transformação do território, via recursos e competências ou
sua legitimação social pelo conhecimento e estatura moral. Neste
grupo encontramos:
• As relações intergovernamentais: tanto entre diferentes
níveis de governo em distintos âmbitos territoriais, como
relações multilaterais entre governos do mesmo nível
territorial, sejam intermunicipais ou inter-regionais.

29 J. A. Marina, La inteligencia fracasada. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004.

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 71


• As relações com grandes instituições: universidades, centros
de pesquisa e desenvolvimento, câmeras de comércio, fun-
dações culturais e educacionais de prestígio, igrejas, etc.
• As relações com o setor econômico privado: setores eco-
nômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de
risco, confederações e associações empresariais, etc.
• As relações com agentes sociais e profissionais: sindica-
tos, agremiações profissionais, associações de morado-
res, importantes movimentos sociais, etc.

Por outro lado, relações destinadas a articular o tecido social e


fortalecer o capital social do território:
• As relações com entidades sociais que têm também um
papel de intermediação.
• Uma tarefa de mediação para alcançar um espaço de
inter-relação entre entidades sociais.
Por último, sem que neste caso signifique em absoluto baixa
prioridade:
• Relações diretas com os cidadãos entre os períodos elei-
torais. É importante dispor de múltiplos mecanismos de
informação, comunicação e deliberação tanto para co-
nhecer diretamente opiniões, desafios e necessidades, e
conseguir, efetivamente, que as políticas respondam aos
interesses do conjunto da cidadania, como para fortale-
cer uma cidadania ativa.
• Participação eleitoral. Deve ser considerado que são as
eleições democráticas o principal e mais decisivo modo
de assegurar que as políticas governamentais tenham
em conta as preocupações dos cidadãos. A qualidade da
representação é o que há de essencial numa democra-
cia e a liderança baseada na representação é o principal
fator de êxito na governança democrática.

72 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


A gestão relacional se assenta em um
conjunto de técnicas e instrumentos
A gestão relacional como instrumento de governança não é
somente um enfoque da realidade social e, em especial, do modo
de governar. Ela necessita também de técnicas e instrumentos que
façam dela um mecanismo eficaz do desenvolvimento humano.
Precisamente, este novo enfoque é o que permite transformar no-
vos métodos em instrumentos de gestão ou identificar e adaptar
antigas técnicas, propiciando-lhes um papel renovado na gestão
das relações sociais.
Sem dúvida, o avanço da gestão relacional e as próprias trans-
formações que sua aplicação propicia condicionarão o surgimento
de novas técnicas e o aperfeiçoamento das existentes.
Em uma publicação da Área de Promoção Econômica da Pro-
víncia30de Barcelona, expliquei em detalhes as características de
uma série de técnicas que já demonstraram sua eficácia na gestão
relacional, e que enumero a seguir para que o leitor tome conhe-
cimento do amplo leque de ferramentas já existente:31
• Os planos estratégicos, desenvolvidos nos territórios a par-
tir da cooperação público-pública e público-privada e a
participação cidadã, constituem um bom início da ges-
tão relacional própria da governança ao dotar os territó-
rios de uma estratégia compartilhada entre os principais
atores e com um amplo apoio social. O planejamento
estratégico, assim entendido, constitui a fase inicial ou

30 No original, Diputación (Província). Trata-se de um governo supramunicipal de âmbito


territorial denominado Província. Na Espanha, a organização territorial é a seguinte: os
municípios se agrupam em Províncias e estas se agrupam em Comunidades Autônomas
(equivalentes aos estados no Brasil). Os órgãos de governo da Província são eleitos pelas
prefeituras em função do número de vereadores, que, por sua vez, depende do tamanho
da população do seu município. (Nota do tradutor)
31 J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza, op. cit.

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 73


fase de planejamento propriamente dito da gestão das
interdependências ou gestão estratégica.32 A metodolo-
gia dos planos estratégicos é um bom instrumento para
o início da governança territorial.33
• A negociação relacional dos conflitos públicos. As técnicas
de negociação relacional constituem um bom instrumen-
to para o desenvolvimento da gestão de interdependên-
cias ou gestão relacional. A negociação relacional é um
tipo de negociação com características próprias, porque
o resultado buscado por parte de um dos negociadores
é consolidar e melhorar a relação entre os protagonistas
para obter maior confiança mútua e poder desenvolver
projetos com base na cooperação.
• Técnicas de mediação. No paradigma do governo geren-
cial, era costume o governo ser uma das partes. Em con-
flitos entre grupos sociais no território, é difícil encontrar
o governo fazendo o papel de mediador entre os atores.
Na perspectiva da governança, em que os governos lo-
cais e regionais assumem a liderança na construção cole-
tiva do território, a mediação é, sem dúvida, um dos re-
cursos dos políticos e profissionais da administração. Na
mediação, o papel da administração é intervir para que
uma situação conflituosa entre atores sociais possa en-
contrar uma solução e, no processo, melhore a imagem
das partes e a confiança entre elas. A ação do governo é
a de ser catalisador de um acordo sem converter-se em
parte do mesmo.

32 Para o desenvolvimento desta tese, ver J. M. Pascual Esteve, De la planificación a la gestión


estratégica. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 2001.
33 J. M. Pascual Esteve, La estrategia de las ciudades. Los planes estratégicos como instrumento:
métodos, técnicas y buenas prácticas. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1990. Neste li-
vro exponho um conjunto de métodos e técnicas que são úteis para a elaboração de planos
estratégicos territoriais que servem como início da governança.

74 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


• Técnicas de participação cidadã e apoio social às políticas
públicas. Das estratégias de participação deve-se passar
à participação como estratégia para fortalecer a capaci-
dade de organização e ação. Das inúmeras técnicas de
participação, na área da gestão relacional, são especial-
mente úteis as que: (1) se baseiam em procedimentos
claros e simples, com finalidades precisas que facilitam
a expressão de ideias e desafios sobre um tema ou as-
sunto e, naturalmente, impedem que se prolonguem
eternamente os debates. Participação é método e orga-
nização. Do contrário, a participação se reduz a poucos
participantes, pouco reflexivos, dado que seu interesse é
menos convencer do que se impor pelo cansaço; (2) aju-
dam a gerar confiança, colaboração e responsabilidade
cidadã nos acordos realizados; (3) permitam legitimar
objetivos e projetos da cidade e obter um importante
apoio da cidadania aos mesmos.
• Métodos e técnicas de gestão de projetos em rede. As téc-
nicas para a gestão de redes são fundamentalmente de
dois tipos: a gestão da dinâmica da rede, que abarca
desde a inclusão dos atores-chave ao fomento de pro-
jetos que consolidem os interesses comuns. As técnicas
de gestão de estruturas para adequá-las aos objetivos
para os quais foram criadas e permitam fortalecer uma
cultura ou uma perspectiva comum. É particularmente
útil para a gestão de redes o uso das matrizes de atores
no marco da gestão sistêmica por objetivos.34
• Gestão da cultura empreendedora e cívica da cidadania. A
tecnologia para fortalecer as características de uma cul-
tura empreendedora e de ação entre a cidadania é muito

34 Ver J. M. Pascual Esteve, La estrategia de las ciudades: métodos, técnicas y buenas prácticas.
Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1999, pp. 157-162.

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 75


recente e tive a oportunidade de sistematizar os indi-
cadores para o monitoramento de sua evolução através
de pesquisas aleatórias e por amostragem para o Cen-
tro de Estratégias e Desenvolvimento de Valência (Ceyd,
na sigla em espanhol). O processo de gestão da cultura
empreendedora exige, na perspectiva da governança de-
mocrática, uma grande transparência e um acordo de-
mocrático entre os principais setores da cidadania para
desenvolvê-la.
Não obstante, dispomos de instrumentos cujos efeitos
podem ser observados em curto prazo, muito embora
sejam poucos os resultados conjunturais. Referimo-nos
às técnicas de “city ou regional marketing” interno, ou
seja, o marketing voltado para a identificação dos pró-
prios cidadãos com o seu território.
A respeito do marketing interno, do ponto de vista da
governança, é recomendável o enfoque e as metodo-
logias propostas por T. Puig, relacionadas à criação de
uma marca do território construída de maneira coletiva
e com capacidade de convencer e comover.35 É aconse-
lhável adotar o posicionamento do Ceyd relativamente à
gestão da memória, cujo direcionamento deve estar vol-
tado para a geração de uma consciência coletiva capaz
de unir tradição e modernidade e aproveitar o passa-
do para fundamentar aspirações e valores democráticos
e solidários para o presente e o futuro, isto é, olhar o
passado com os olhos do futuro, tal como observava H.
Arendt.36

35 Ver T. Puig, La Comunicación cómplice con los ciudadanos. Madri: Siglo XXI, 2003.
36 Ver J. M. Pascual Esteve, “La gestión de la memoria en la estrategia de las ciudades”. Revista
del CEYD, Valência, 2005.(www.ceyd.org)

76 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


• “Coaching” para a liderança relacional. Na governança, o
que se fortalece é o valor da representação do políti-
co, e dele se requer capacidade para escutar, dialogar,
compreender, convencer, comover e motivar para a ação
coletiva e para a responsabilização e compromisso social
da cidadania.
• Por outro lado, na governança os resultados da sua ação
já não são tanto os serviços, e sim o nível geral do desen-
volvimento econômico e social alcançado no território
durante seu mandato e o grau de coesão social alcança-
do com a cidadania. É preciso apresentar o balanço da
sua gestão relacional, e para isso são necessárias novas
formas, novas atitudes e novas habilidades.
• As técnicas de construção de consensos. Não é necessário
insistir na importância destas técnicas na governança.
De fato, as técnicas anteriormente citadas sobre nego-
ciação relacional e participação cidadã incluem neces-
sariamente o consenso. Mas existe uma grande plurali-
dade de metodologias e técnicas amplamente testadas,
além das citadas, que devidamente adaptadas podem
ser utilizadas nos diferentes âmbitos em que se desen-
volve esta nova arte de governar.
• O enfoque abrangente nas ciências sociais. Na governança
é necessário compreender o que diz cada ator em seu
contexto social e poder entender não apenas o que ex-
pressa, mas como e porque o diz. A compreensão dos
atores e a análise dos conflitos, a partir das distintas
perspectivas das partes, são condições absolutamente
necessárias, embora naturalmente insuficientes para o
bom desenvolvimento da governança. Trata-se de fazer
inteligível a base subjetiva em que repousam os fenô-
menos sociais; a análise objetiva desses fenômenos é
perfeitamente possível e compatível com o fato de que

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 77


as ações humanas têm um caráter subjetivo. Este enfo-
que, também denominado interpretativo da ação so-
cial, tem em Max Weber seu autor mais clássico, e está
voltado para a compreensão do sentido de uma ação
para um ator, dando a conhecer os motivos entre a ati-
vidade objetivamente observada e seu sentido para o
mencionado ator.37
• A direção sistêmica por objetivos.38 As técnicas de admi-
nistração por objetivos são um bom instrumento para a
gestão relacional. Não é este o caso da direção baseada
em procedimentos protocolizados para se chegar a um
resultado, uma vez que se trata de estabelecer objeti-
vos comuns a um conjunto de atores que constituem um
sistema social e, de acordo com eles, concretizar de ma-
neira inovadora seus objetivos através de projetos cujo
gerenciamento deve ser feito em rede.

Para desenvolver-se, a governança precisa
ter êxitos eleitorais visíveis
Como já observado, o governo relacional, com a governança
como seu modo específico de governar, é um novo paradigma
que está avançando nas ciências sociais, embora não constitua o
modo de governar habitual nem na América nem na Europa. Para
desenvolver-se, além das técnicas, a governança precisa de conte-
údos nas políticas públicas e, especialmente, de êxitos eleitorais
visíveis.

37 Podemos encontrar a exposição metodológica da sociologia compreensiva em Sobre la Teo-


ría de las Ciencias Sociales (Barcelona, Península, 1971) e também em Economía y Sociedad,
op. cit., no qual mantém a importância da subjetividade para a análise sociológica.
38 Para conhecer o enfoque sistêmico, recomenda-se a leitura de L. Bertalanffy, La Teoría Ge-
neral de Sistemas. Madri: F.C.E, 1981.

78 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


Atualmente, e apesar da sua crise, é o governo gestor com o
seu modo gerencial de governar que constitui a forma dominante
de fazer política. Sem dúvida, uma das razões que explica a per-
manência do “gerencialismo” como modo habitual de governar é
que se acha amplamente na consciência das pessoas o modo ge-
rencial como a forma correta de fazer “política” (confundindo-se a
prática dominante e o hábito com a postura correta e adequada).
Considera-se que a política demanda o cidadão (sem ter em conta
que, neste caso, se observa a lei de Say, que nos diz que a oferta,
no caso a política, condiciona a demanda) e que qualquer posi-
cionamento transgressor do modo de governar citado tende a ser
rechaçado. A governança deve superar estes grandes obstáculos
para se constituir como modo comum de governar os territórios.
Por isso, como qualquer paradigma social em fase inicial, a
governança só avança em experiências pontuais. Alguns poucos
dirigentes políticos inovadores, em circunstâncias determinadas,
colocaram em prática processos de governança, muitas vezes sem
conceituá-los como tal.
Essas experiências devem ser objeto privilegiado de análise e
divulgação para melhorar o entendimento e possibilitar a concre-
tização deste modo de governar, sobretudo se com a implantação
da governança for constatado um importante progresso econô-
mico e social através da colaboração entre governo e sociedade
civil. Em especial, são importantes para a superação dos velhos
modelos políticos a análise e divulgação dos êxitos eleitorais obti-
dos depois da aplicação das políticas baseadas no novo modo de
governar. Estes são os principais caminhos para gerar um “caldo
de cultura” idôneo para o surgimento de novas experiências de
governança, para romper o obscurantismo na cultura política re-
presentado pelo gerencialismo.
A governança como modo de governar tem uma grande au-
tonomia em relação aos conteúdos das políticas, mas esta auto-

Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano 79


nomia não é total. Existem as condições especiais, econômicas e
sociais, que favorecem esta nova arte de governar.
Os conteúdos concretos das políticas dos governos territoriais
condicionam o bom desenvolvimento da governança. Sem dúvida,
uma opção por uma cidade compacta, não segregada, baseada na
complexidade e diversidade das relações humanas no espaço pú-
blico, favorece a gestão relacional de qualidade. O envolvimento
dos usuários e familiares nos programas voltados para o bem-estar
social e para a educação, a difusão dos valores relacionados ao
sentimento de “pertencer”, o comprometimento e a atribuição de
um valor simbólico aos espaços coletivos, para convertê-los em
lugares de encontro e convivência, são também condicionantes
que favorecem o desenvolvimento do governo relacional e da go-
vernança como modo de governar as cidades.
Os objetivos do Movimento AERYC (América-Europa de Re-
giões e Cidades) para a governança territorial têm esta tríplice
finalidade: análise e divulgação das técnicas e instrumentos de
gestão relacional e governança; boas práticas de desenvolvimento
humano e êxito eleitoral baseado na governança; e identificação
de conteúdos para a promoção da governança. Esta última, a par-
tir da perspectiva dos grandes desafios confrontados pelos territó-
rios: cidades, regiões, imigração, gestão do tempo, etc.

80 Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento humano


3. O Governo Relacional e
a Governança se assentam
nas mudanças sociais e na
emergência da sociedade-rede

Ideias Principais
1. Nova desigualdade social e nova visão da pobreza.
2. A individualização das relações sociais e a geração de capital
social.

3. Risco e vulnerabilidade social.


4. Imigração: identidade e multiculturalidade.
5. Mudanças na família: socialização com base na diversidade
de famílias.

6. a cidade à medida das mulheres: uma exigência.

7. Uma nova visão do tempo e espaço na sociedade-rede.


8. A centralidade dos valores na organização social.
9. A globalização do social.
10. Mudanças nas formas de prestação e gestão dos serviços de
bem-estar social
A mudança nas formas de governar os territórios não se justifica
apenas pela necessidade de governar aprofundando a democracia
e para alcançar maior eficácia e eficiência das políticas públicas,
mas pelo fato de que está ocorrendo uma grande transformação
em nossa sociedade que afeta a economia, a estrutura social, a
organização do espaço, a educação, a cultura e, naturalmente, a
estrutura do governo e o modo de governar.
Estamos vivendo o processo de transição da sociedade indus-
trial para a sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Isto
significa uma mudança social tão importante como foi a passagem
da sociedade agrícola e artesanal à sociedade industrial.39
A sociedade-rede assentada nas tecnologias da informação e
comunicação tem na geração do conhecimento e na inovação,
a partir da interação de diferentes agentes (pessoas, empresas,
atores, setores produtivos, etc.), a principal fonte de valor agre-
gado. A principal fonte de produtividade é o capital cultural ou
intelectual, que é gerado e fortalecido a partir da qualidade e
intensidade das interações humanas e empresariais, ou seja, da
qualidade da organização das redes. Nas últimas etapas da socie-
dade industrial, predominava a organização fordista, e uma de
suas principais características era a absorção pela empresa, na sua
própria estrutura, da maioria das funções relacionadas com a pro-
dução (marketing, assistência jurídica, comercialização, etc.). Na
atualidade, e dada a necessidade de inovar permanentemente,
as empresas se especializam de maneira flexível naquilo que é a
sua atividade central e terceirizam a maior parte das atividades
de apoio à sua produção específica. Os conceitos de inovação,
flexibilidade e adaptabilidade substituíram a especialização, con-
tinuidade e reprodução de atividades e produtos.
Neste capítulo não vamos descrever todas as mudanças que
afetam a transformação das nossas cidades. Trataremos tão so-

39 Ver M. Castells, La Era de la Información. Madri: Ed. Alianza, 2000. Vol.I.

82 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


mente daquelas que atingem mais diretamente a situação social
das pessoas e grupos sociais, particularmente dos que se relacio-
nam mais diretamente com as políticas de bem-estar social e sua
gestão por parte dos governos locais.
No quadro seguinte, observamos as interdependências das
mudanças tecnológicas, econômicas e sociais e, muito especial-
mente, das transformações sociais. Identificamos os principais de-
safios sociais que a gestão estratégica das cidades deve se propor
enfrentar, isto é, aquela gestão cujo objetivo seja conduzir a cida-
de a patamares de maior qualidade de vida na sociedade global
da informação e do conhecimento.
Para simplificar, só assinalamos no quadro a influência da tec-
nologia nos desafios sociais, e omitimos o impacto destes desa-
fios na tecnologia. Não obstante, devemos ter presente que existe
uma interdependência dos distintos âmbitos estruturais e variáveis
que o conformam.

Os Desafios Sociais
Análise de tendências

Tecnologia Economia Estrutura Social Desafios Sociais

Estrutura ocupacional
Nova desigualdade
Informação a Economia Mercado de trabalho
comunicação Informacional Individualização das relações sociais
Base tecnológica / Era do Conhecimento

ou do Sociedade risco
Nova pobreza
Estrutura social / Sociedade-rede

conhecimento
Economia contemporânea

Risco e vulnerabilidade

Imigração terceiros países Identidade / Multiculturalidade


Desafios Sociais

Mudanças na família
Economia
Igualdade de gêneros
Global Sociedade-rede
Crise na organização dos
Importância capital social benefícios

Reestruturação do Estado Crise fórmulas de intervenção


do Bem-Estar

Novo papel dos territórios Globalização do social

Novos
Genética Centralidade ética e valores Cultura dos valores
Setores
Econômicos

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 83


A seguir, descrevemos os desafios sociais a partir das mudan-
ças que estão ocorrendo na estrutura social das cidades.

Nova desigualdade social e nova visão da


pobreza
O fundamental para entender os novos processos de dualida-
de e polarização social nas cidades, anteriormente mencionados,
é compreender que existe uma mudança no principal fator de
geração das desigualdades de renda e poder em relação às ci-
dades industriais. Nestas, era o acesso à propriedade do capital
o fator fundamental para organizar os processos de produção e
distribuição social dos bens e serviços na cidade, e, em especial,
para alcançar um maior retorno econômico. Da renda dependia
em boa medida o acesso à melhor educação, saúde, cultura e la-
zer. Daí resulta terem os benefícios do Estado do Bem-Estar Social
sido direcionados tanto para assegurar a universalização dos ser-
viços sociais, educacionais e de saúde básicos como para garantir
determinados níveis de renda para setores vulneráveis da popula-
ção – aposentados, desempregados, portadores de necessidades
especiais –, como melhor forma de lutar contra a pobreza e a
desigualdade social.
Na atualidade, a União Europeia considera a pobreza em ter-
mos relativos de desigualdade. No II Programa de Luta contra a
Pobreza, esta foi definida como aquela situação em que se encon-
tram as famílias que recebem menos da metade da renda média
da sociedade de referência. Esta definição continua hoje vigente
no âmbito europeu.
Na cidade da informação, o acesso ao capital cultural está
se constituindo o principal fator gerador da desigualdade social,
ainda que não o único. Nela, o fundamental é a capacidade de
transformar a informação em conhecimento. Este é o principal
gerador de valor agregado. O capital cultural não é conhecimen-

84 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


tos concretos sobre arte e ciências. Capital cultural é a capacida-
de socialmente adquirida de produzir conhecimento partindo do
acesso universal à informação. Capital cultural é proporcionado
pelo domínio da linguagem, do conhecimento de conceitos, das
técnicas de raciocínio, da faculdade de criar e imaginar; é conheci-
mento e atitude positiva em relação à inovação e à aprendizagem
constante durante toda a vida.40
O capital cultural é fruto de uma educação em sentido amplo,
que acontece na família, na escola, nas interações sociais. Depen-
de da intencionalidade educativa que se atribua aos processos de
socialização primária e secundária que acontecem na cidade.
Nem a igualdade de oportunidades, nem a redução da po-
breza podem ser alcançadas através da garantia de acesso aos
serviços básicos e níveis de renda mínima. Isto será uma condição
necessária, mas não suficiente. Para garantir habilidades sociais,
educacionais e culturais básicas, será preciso desenvolver uma
ação social global. Só assim poderão ser dadas oportunidades à
equidade na sociedade do conhecimento.
A criação de conhecimento vem sendo o primeiro fator gera-
dor de renda, e o domínio social e empresarial se consolidam por
esta via, como já observado por sociólogos e economistas como
J. K. Galbraith, A. Gouldner, N. Bentham e A. Touraine. São os
novos intelectuais, a inteligência, ou uma nova classe dirigente,
cujos instrumentos de poder são a capacidade de criar e gerir co-
nhecimentos.
Junto a este novo fator diferencial dos processos de desigual-
dade contemporâneos, encontramos outras singularidades espe-
cíficas. Em primeiro lugar, a dualização da estrutura ocupacional
urbana. A terceirização nas cidades se desenvolve em dois polos
muitos diferentes, o crescimento dos serviços avançados que re-
quer uma força de trabalho muito qualificada e, também, o in-

40 B. Bernstein, Clases, Códigos y Control. Vols. I e II. Madri: Ed. Akal, 1988 e 1989.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 85


cremento do terciário de baixa qualificação, muito relacionado
com os empregos pouco qualificados no setor de lazer e hotelaria.
Porém, também empregos relacionados com o que se denomina
bolsa de empregos intensivos em mão-de-obra. Este é o caso dos
serviços de ajuda a domicílio, assistência doméstica, lavanderia,
mensagens e etc. Os empregos intermediários diminuem seu peso
relativo, correlacionados com a redução do tamanho da indús-
tria, do impacto das tecnologias da informação e das técnicas de
gestão baseadas na reengenharia de processos, que reduzem os
postos de trabalhos intermediários.
A oferta de postos de trabalho de baixa qualificação nas cida-
des europeias e norte-americanas constitui um atrativo para imi-
grantes de países do Terceiro Mundo, e um incentivo para empre-
gadores abrirem o mercado de trabalho aos estrangeiros.

A individualização das relações sociais e a


geração de capital social
A inovação constante em processos e produtos exige flexibi-
lidade na estrutura ocupacional, para o que se requer uma força
de trabalho com uma ampla formação de base polivalente que a
permita adaptar-se às mudanças no sistema produtivo.
A individualização das relações trabalhistas é outra caracterís-
tica da era da informação e do conhecimento. A especialização
flexível e a tendência já assinalada de as empresas formarem re-
des locais e internacionais reduzem o tamanho de cada uma das
unidades produtivas tomadas individualmente. Do mesmo modo,
o trabalho com tecnologias da informação, da comunicação e
também da robótica, individualiza os processos de trabalho e, ao
contrário do trabalho mecânico da sociedade industrial, os traba-
lhadores na era do conhecimento não se submetem às maquinas
e controlam o processo produtivo de maneira individual e não
coletiva.

86 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


Isto faz com que as organizações trabalhistas e, principalmen-
te os sindicatos, cujas estruturas e objetivos surgiram na era in-
dustrial, estejam atravessando um processo de crise de adaptação
para preservar a dignidade das condições de trabalho dos novos
tipos de trabalhadores – com a tipologia mais ampla e diversifi-
cada de postos de trabalho, mais fragmentados em um maior nú-
mero de empresas, com maior autonomia no processo produtivo
e formação, e inseridos em um ambiente que está mudando o
processo de formação das classes sociais.
Isto não quer dizer que não existam desigualdades sociais,
inclusive desigualdades crescentes. Porém, as desigualdades ba-
seadas na organização em classes sociais e, em especial, na cons-
ciência de classe, perderam sua posição principal ou centralidade
na sociedade.
A individualização nas relações trabalhistas se articula com a
maior individualização das relações familiares, resultantes da revo-
lução social nas práticas sociais e nos valores que as legitimavam,
representada pelo processo de autonomia da mulher através de
sua plena incorporação à educação superior, ao mercado de tra-
balho e à atividade política. Uma sociedade mais individualizada
não significa, necessariamente, uma sociedade mais egoísta e com
maiores níveis de isolamento, mas simplesmente uma sociedade
menos determinada pelas ações coletivas e mais sujeita às ações
de cada uma das pessoas que formam a sociedade concreta.
Individualização significa, por um lado, um processo de des-
vinculação das instituições e grandes organizações sociais e, por
outro, um processo de nova vinculação a outras formas de vida
social em que os indivíduos adquirem uma maior importância no
desenvolvimento de suas próprias biografias.
O florescimento das ONGs nas cidades pode ser relacionado
com o trabalho de intermediação que elas exercem entre as pes-
soas e a sociedade. Quer dizer, uma intermediação mais flexível
e atenta às particularidades ou singularidades pessoais, de cará-

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 87


ter mais voluntário e menos coercitivo do que as grandes orga-
nizações tradicionais – partidos, sindicatos e igrejas. A cidade é
cada vez menos um sistema baseado nas grandes organizações,
estruturando-se mais através do conjunto de redes de atores insti-
tucionais e pessoais que se formam nos âmbitos da economia, da
cultura, da política e da ação comunitária.
As transformações sociais urbanas situam o indivíduo, enquan-
to tal, no centro das interações e relações sociais, e isto representa
a crise dos modos de vida urbana tradicionais.
Em algumas cidades que se definem mais por sua constante
transformação do que por sua ordem social, não existe, como
observou A. Touraine,41 nenhum outro lugar fora do próprio in-
divíduo em que seja possível conjugar estratégias econômicas
e identidades culturais. Um novo direito específico emerge em
nossas sociedades caracterizadas pela globalização econômica e
pelo encontro de culturas, o direito à individualização, que se-
gundo o citado sociólogo tem que fortalecer a capacidade de
cada ator individual ou coletivo alcançar a individualização, isto
é, dar um sentido geral e próprio ao conjunto de condições das
interações e comportamentos que formam sua existência e, por-
tanto, a transformam em uma experiência.
Neste sentido, as sociedades contemporâneas, ao se ba-
searem mais nos indivíduos do que nas grandes organizações
(igrejas, sindicatos, partidos...) e grupos sociais (classes, coo-
perativas profissionais, grupos com status social elevado...), fa-
cilitam as relações horizontais entre a cidadania e, com isso, a
criação de capital social.
Por capital social se entende “as expectativas de cooperação
alimentadas por redes institucionais – as associações – que se ma-
terializam em pautas de cooperação continuadas”.42

41 Ver A. Touraine, Igualdad y Diversidad. México: F.C.E., 2001.


42 Ver C. Boix, Introdução ao livro Para que la democracia funcione. Barcelona: Ed. Proa, 2000.

88 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


A geração de capital social, segundo o estudo de Putnam,43 é
o que explica o maior avanço econômico e social e a qualidade
da vida política democrática. A vantagem colaborativa é uma das
principais forças motoras do desenvolvimento social, econômico e
político, com um valor superior à disponibilidade de capital eco-
nômico e à oferta de infraestruturas e serviços.
Gerar capital social nas cidades do conhecimento significa,
hoje, em primeiro lugar, capacidade para criar os espaços nos
quais cristaliza o movimento associativo. Porém, o florescimento
de associações e seu fortalecimento é uma condição necessária,
mas não suficiente. Para gerar capital social em uma cidade é pre-
ciso que exista ajuda mútua entre associados e, muito especial-
mente, que as finalidades associativas facilitem a cooperação para
a produção de bens públicos. Uma cidade cheia de associações
com finalidades singulares ou exclusivas para si mesmas será uma
cidade com uma denominada sociedade civil organizada, porém
incapaz de cooperar e promover confiança.44
A ampliação e o fortalecimento do tecido associativo para a
geração de capital social são um desafio inevitável para os go-
vernos locais que pretendem desenvolver sua cidade na era do
conhecimento.
Dizer cidades da informação e do conhecimento é o mesmo
que dizer cidades da educação, em que a educação geral aumenta
notadamente e, sobretudo, um grupo social cada vez mais nume-
roso dispõe de educação superior que se recicla, necessariamente,
em períodos temporais cada vez mais curtos. Isto significa um au-
mento do que Giddens denominou reflexividade social da cida-
dania. Nestas condições a política democrática mais adequada é
sem dúvida a que se baseia na autonomia dos cidadãos, na sua li-
berdade, não apenas de eleger, mas também de produzir a opção

43 Op. cit.
44 Ver Boix, op. cit., pp. 20-29.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 89


mais interessante. A chave consiste na educação e na cultura de
valores e solidariedade que permitam articular a autonomia como
base de uma interdependência geradora de confiança, colabora-
ção e sentido comunitário, potencializando de forma equilibrada
o reconhecimento de direitos com os deveres ou responsabilida-
des cidadãs.
Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a vi-
são de uma gestão pública distante das preocupações e demandas
dos cidadãos, como tampouco é compatível com um sistema de
garantias de Direitos e Responsabilidades organizado com base no
Estado-nação e concebido de cima para baixo. A democracia não
apenas não corre perigo em um mundo global na era do conhe-
cimento, como pode ser fortalecida e aprofundada se o governo
democrático for concebido como um governo de proximidade,
capaz de articular interesses e gerar colaboração e corresponsabi-
lização. Ou seja, a democracia na nova cidade significa descentra-
lização de competências e recursos para os governos locais, para
que eles possam, como veremos, inaugurar uma nova forma de
governar baseada na gestão de redes cidadãs.

Risco e vulnerabilidade social


O desenvolvimento da sociedade-risco impacta a nova estrutu-
ração das relações sociais. Por um lado, a vulnerabilidade é conse-
quência da individualização das relações sociais em um tempo de
flexibilização da estrutura ocupacional, no qual as transformações
econômicas e tecnológicas são constantes. Por outro, entretanto,
a vulnerabilidade cria uma nova cultura de provisoriedade que
está favorecendo tanto as respostas do tipo intimista, que buscam
a segurança no próprio “eu” – seja do tipo espiritual, como o bu-
dismo, as interpretações subjetivas do cristianismo, as psicológico-
terapêuticas do tipo autoajuda, ou o apoio emocional. Ou, ainda,
respostas do tipo social, criando culturas positivas para a mudança
e inovação de natureza pessoal e, em especial, criando ou parti-

90 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


cipando nas organizações sociais de caráter setorial ou territorial
que estão na origem do aparecimento das teorias sobre o capital
social e do novo impulso comunitário tão em voga na sociologia
atual. Esta, sem dúvida, é uma perspectiva a ser incorporada nas
políticas sociais urbanas que tenham como objetivo fortalecer a
sociedade civil, e que são as que podem ser mais eficazes na cida-
de contemporânea.
A vulnerabilidade social se associa diretamente a outra carac-
terística da vida urbana atual, que é o risco. O fato de entender-
mos nossas sociedades como sociedades de risco deve-se, funda-
mentalmente, às pesquisas e reflexões de U. Beck.45 Este professor
da Universidade de Munique considera o risco como uma carac-
terística própria da cidade que se volta em direção ao futuro e
que rompe efetivamente com o passado, com suas tradições e
costumes. Não se trata de um risco externo à cidade, mas de riscos
produzidos pela própria cidade em transformação, como a mu-
dança nas relações familiares, na produção, na nossa intervenção
no meio ambiente, nos sistemas de proteção e segurança social,
na ruptura com as tradições. Trata-se de um risco produzido pela
própria cidade (desenvolvimento da indústria genética, insusten-
tabilidade, nova pobreza...).
Sociedade-risco significa que os conflitos sociais deixam de ser
tratados como problemas de ordem e segurança e começam a ser
considerados como problemas de risco. O que significa que não
têm soluções preestabelecidas e inequívocas, mas que se distin-
guem por sua ambivalência e podem ter suas “soluções” expressas
em termos de probabilidade.
Assumir socialmente o risco significa optar por inovação46 e
criação, e buscar a segurança assumindo os riscos e abandonando

45 U. Beck. La sociedad del riesgo. Madri: Ed. Paidós, 1992.


46 As respostas aos novos desafios e riscos a partir das visões e certezas das políticas próprias
da sociedade industrial e do Estado do Bem-Estar Social contribuem para o colapso social.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 91


as certezas da sociedade industrial, afrontando e tentando dirigir
as transformações.
Em outras palavras, trata-se de construir um projeto coletivo
para dar intencionalidade às ações dos atores urbanos que são as
geradoras de risco. Não optar por um projeto de futuro integral e
integrador significa dar mais possibilidades ao desenvolvimento,
em nossas cidades, das opções negativas de enfrentamento do
risco, como o fundamentalismo – entendido como defesa de tra-
dições inadequadas, por não serem mais funcionais para a garan-
tia da qualidade de vida na cidade –, ou o racismo, como forma
de culpar terceiros pelos riscos de perda dos costumes e tradições
supostamente autóctones.

Imigração: identidade e multiculturalidade


O baixo crescimento vegetativo da população nas cidades eu-
ropeias, conjugado ao incremento da oferta de postos de trabalho
pouco qualificados e ao forte incremento da população ativa sem
possibilidades de ocupação nos países pouco desenvolvidos, ex-
plica o importante fenômeno imigratório que está ocorrendo em
direção às principais cidades europeias.
Para entender este fenômeno e adotar uma perspectiva ade-
quada ao seu tratamento é preciso perceber quatro questões im-
portantes:
• Mais do que um problema, a imigração será uma solu-
ção sempre que coincida com a existência de postos de
trabalhos suficientes para serem oferecidos à população
imigrante, e desde que não exista concorrência entre imi-
grantes e a população local. A disputa por postos de tra-
balho é a principal fonte de conflitos e segregação, que se
expressa não poucas vezes em termos racistas por parte
da população local com menor nível de qualificação. A
correlação que os estudos sociológicos têm demonstrado

92 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


no sentido de que um maior nível de escolaridade corres-
ponde a atitudes menos xenófobas encontra explicação
no fato de que a população qualificada não entra em dis-
puta com os imigrantes, já que esta em sua grande maio-
ria é uma força de trabalho de baixa qualificação.
• Em segundo lugar, os baixos níveis de renda e a necessi-
dade de encontrar grupos com a maior afinidade possível
para relacionar-se fazem com que em todas as cidades
existam sempre determinados bairros que funcionam,
efetivamente, como receptores de imigrantes. Se a situa-
ção de uma boa parte dos imigrantes é de pobreza ou
de extrema pobreza e os governos locais não dispõem
de recursos para investir na renovação urbana, serviços
e equipamentos, tais bairros se degradam e a população
local passa a atribuir à imigração tanto a degradação de
suas condições de vida e de valor dos seus imóveis como a
segregação social dos mesmos, particularmente se existe a
presença de atividades ilícitas e o bairro é rotulado como
perigoso. Em muitas ocasiões, os conflitos nesses bairros
são rotulados como racistas, o que leva à segregação de
seus moradores em dois grupos antagônicos, à intensifica-
ção e ampliação dos mesmos e, o que é mais importante,
a uma concepção inadequada de sua natureza, o que difi-
culta encontrar uma solução baseada em acordo.
• A imigração estrangeira (e, em especial, a que vem de
lugares com idioma e religião significativamente diferen-
tes aos do país receptor) se relaciona a setores da socie-
dade receptora como fator de perda de identidade, de
tradições e costumes. À parte a debilidade histórica e
sociológica desta argumentação, posto que as configura-
ções culturais e idiomáticas de um país em um momento
dado costumam ser produto da interação de realidades
culturais plurais ao longo de sua história, é certo que
hoje (como consequência da globalização e do encontro

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 93


cultural ao nível planetário, assim como da individuali-
zação das relações sociais) nos encontramos diante de
uma reafirmação da identidade ou singularidade terri-
torial e cultural.
• Esta identidade entendida como sentimento de pertencer,
como uma expressão de singularidade cultural que intera-
ge no interior da cultura universal em constante mudan-
ça, conduz à modernidade e à convivência e criatividade
cultural, e à globalização da diversidade, segundo os es-
pecialistas.47 Porém, sem uma política ativa de respeito
ao pluralismo e de tolerância cultural, facilmente podem
unir-se, numa mesma visão segregacionista, a reafirmação
da identidade com a defesa fundamentalista das tradi-
ções, costumes, e uma intolerância às expressões culturais
respeitosas dos direitos humanos dos novos cidadãos.48
Em resumo, a verdadeira globalização cultural acontece nos
municípios, nas cidades, que são o espaço de relacionamento, de
encontro, de formação de amizades e inimizades entre pessoas
de diferentes origens culturais. As cidades se encontram ante um
fenômeno com novas dimensões, e não somente o seu futuro de-
penderá do tipo de ação coletiva que triunfe em cada uma delas
e das possibilidades de atuação dos governos locais, como depen-
derá também a convivência do planeta, que cada vez mais é um
sistema de articulação de cidades.

Mudanças na família
A família formada por dois cônjuges e seus descendentes é,
cada vez mais, apenas um dos diferentes modelos de família que

47 Ver, por exemplo, U. Beck, La democracia y sus enemigos. Madri: Ed. Paidós, 2000, e M.
Castells, La era de la información. Vol. II. El poder de la Identidad. Madri: Ed. Alianza, 2001.
48 Ver G. Sartori. La sociedad multicultural. Madri: Ed. Taurus, 2001.

94 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


encontramos na cidade atual. Sobressai o aumento das famílias
monoparentais por diferentes razões:
• O envelhecimento da população faz com que existam
cada vez mais famílias monoparentais pelo falecimen-
to de um dos cônjuges, geralmente o homem, devido à
maior expectativa de vida da mulher. Este fato se vincula
à separação física dos pais e filhos no território metropo-
litano. Isto dificulta a ajuda mútua no seio da família e,
portanto, gera maior dependência dos serviços sociais.
• Por outro lado, há também o aumento das famílias mo-
noparentais chefiadas por jovens, principalmente de mu-
lheres com filhos, devido ao rompimento do casamento.
Este tipo de família é consequência direta do processo
de emancipação das mulheres.
Em um patamar inferior ao das famílias monoparentais, po-
rém em ascensão, encontramos famílias polinucleares, nas quais
convivem chefes de família de diferentes núcleos familiares. Esta
é uma das consequências da pobreza em que vivem muitos imi-
grantes, que se veem obrigados a reagrupar distintas famílias ou
membros de distintos núcleos familiares em uma só família.
A existência de casais de fato, ainda em que muitas cidades te-
nha pouca relevância estatística, é sem dúvida um fenômeno com
tendência a crescer, particularmente se tomamos como referência
o que ocorreu nos países do norte da Europa.
Este crescimento da tipologia familiar tem consequências muito
importantes, que superam as evidentes implicações para o mercado
imobiliário e se vinculam à programação de novos serviços de assis-
tência e, muito especialmente, ao estímulo dos processos de ajuda
mútua extrafamiliares, em particular nos bairros e setores sociais.
Por outro lado, em uma perspectiva de apoio social que consi-
dere a grande maioria da cidadania, o pluralismo no convívio em
nossas cidades faz com que se tenha que falar mais de políticas de
família do que de política de apoio à família.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 95


A cidade à medida das mulheres
Observamos a importância da emancipação das mulheres, ao
referirmo-nos ao processo de individualização das relações sociais e
às mudanças na tipologia das famílias na cidade contemporânea.
Porém, é necessário dedicar uma seção específica ao que, sem
dúvida, é o processo de mudança mais importante nas relações
sociais que atualmente está acontecendo nas cidades do Ocidente:
a chamada revolução das mulheres.
Trata-se de uma revolução pacífica, profunda e perseverante
que está revolvendo as relações de autoridade e poder que se as-
sentam e se reproduzem nos espaços da vida cotidiana em nossas
cidades.
O aparecimento da cidade está intrinsecamente ligado ao pa-
pel da mulher. As cidades surgiram por volta do ano 7000 a.C.,
sendo consideradas as primeiras Catal Huyuk, que se situava perto
do Irã e Iraque, e Jericó, atualmente na Palestina. Na cidade, zona
de intercâmbio de objetos entre nômades e caçadores, como pon-
tas de lança e peles, nasceu a agricultura, que fixou a população
e cujos produtos também passaram a ser objeto de comércio. A
cidade cria a agricultura e, portanto, a civilização. Entretanto, a
origem da agricultura e da cidade como promotora da civilização
é a mulher.
Eram as mulheres que se dedicavam à colheita e conservação
de alimentos, que começaram a plantar e inventaram a agricul-
tura, permitindo assim sustentar o crescimento demográfico das
primeiras cidades. Nestas não houve patriarcado e a principal pro-
tagonista foi a mulher.49
A mulher deixou de ter um papel relevante quando a agricul-
tura se estendeu para fora das cidades e se converteu na atividade

49 Ver E.W. Soja. “La mujer dominó las primeras ciudades”. Entrevista em La Vanguardia,
8/8/2001.

96 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


dominante. Foi quando então apareceu o patriarcado, contempo-
râneo em muitas sociedades primitivas do aparecimento da ex-
ploração. Desde então, a história do autoritarismo, da repressão
e exploração se relaciona à dominação da mulher pelo homem.
As sociedades, ou etapas sociais de uma mesma sociedade, mais
repressivas e exploradoras coincidem com uma maior intensidade
dessa domínio, sendo difícil saber se foi a opressão generalizada
que o gerou ou se ele é a chave para entender o aparecimento do
autoritarismo.
O certo é que no Ocidente, nos países do Primeiro Mundo
inseridos na era infoglobal, o processo de emancipação da mulher
significa a quebra das relações de autoridade e dominação estabe-
lecidas na sociedade industrial, muda a estrutura do mercado de
trabalho e dá sustentação ao surgimento de novas relações sociais
e familiares.
A cidade infoglobal pressupõe a entrada massiva da mulher
no mercado de trabalho. Na maioria dos países do Primeiro Mun-
do, o número de mulheres nas universidades é superior ao dos
homens, há muito tempo. A população feminina tem maior êxito
escolar que a população masculina. Isto, evidentemente, não signi-
fica que, na maioria das cidades, as desigualdades de gênero e o
domínio masculino nos postos de direção das empresas e institui-
ções públicas ainda não sejam notórios, mas o que nenhum ana-
lista pode deixar de ressaltar é o processo de mudança em curso.
As transformações urbanas anteriormente apontadas, como
a individualização das relações sociais, o aparecimento de novos
tipos de família, a criação de capital social, etc. estão intrinseca-
mente ligadas ao processo de emancipação da mulher.
Entretanto, o mais interessante é que o movimento de mulhe-
res tenha se voltado recentemente para a análise da cidade – da
sua morfologia até seus conteúdos, das infraestruturas à cultura,
do seu passado ao seu futuro – e desenvolva suas perspectivas de
ação a partir do ponto de vista da mulher.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 97


A visão da mulher perpassa a cidade em sua totalidade.50 Os
espaços públicos, a moradia, a mobilidade, a assistência social e
a saúde, a educação e a cultura, o turismo... tudo é repensado a
partir do seu ponto de vista. Estamos diante do posicionamento
mais amplo e integrador que um movimento social jamais fez so-
bre a cidade, justamente pela ampla diversidade de “papéis” que
as mulheres assumem na cidade: estudante, trabalhadora, mãe...
Por outro lado, a visão da cidade a partir da perspectiva das
mulheres integra outros pontos de vista sobre a mesma. Este é o
caso da cidade das crianças formulada pela pedagogia ativa; em
sua condição de mãe e educadora, a mulher assume a postura
de forjar a cidade a partir da condição dos meninos e meninas.
Ela também assume as posições sobre a acessibilidade defendidas
pelo movimento urbano protagonizado por pessoas portadoras
de necessidades especiais, ao coincidir no tempo as necessidades
de mobilidade de todas as mulheres no período de gestação e
maternidade com as das pessoas com problemas físicos. Assume,
igualmente, as políticas por mais bem-estar e autonomia dos ido-
sos, em razão da sensibilidade derivada do seu papel de guardiã
da família, que a divisão social do trabalho lhe impôs.
A emancipação das mulheres e, em especial, os avanços na
igualdade de gênero em que o homem também assume novos
papéis e perspectivas, contribuirão sem dúvida para o fato de que
tanto mulheres como homens assumam um projeto de cidade
mais equilibrada, acessível, sustentável e equitativa, isto é, um
projeto de cidade de todos.
A Cidade do Conhecimento pode encerrar o ciclo que se ini-
ciou logo depois que as mulheres inauguraram as civilizações, o
fim da era patriarcal, mas o mais certo é que hoje as mulheres já
estão reestruturando as relações sociais e os modos de conceber
a vida cotidiana.

50 Ver as conclusões do I Congresso das Mulheres de Barcelona. Prefeitura de Barcelona.

98 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede


Para isso, no entanto a política de igualdade de gênero deve
contemplar hoje, mais do que nunca, ações positivas para os co-
letivos de mulheres em posição mais desfavorável do ponto de
vista da emancipação da mulher. Em especial, o impacto na desi-
gualdade das imigrantes, que vivem em maior nível de pobreza
econômica e relacional associado a uma maior relação de depen-
dência aos homens.

Uma nova visão do tempo e do espaço


O progressivo avanço na direção da cidade da informação e
do conhecimento significa a ruptura dos modelos referenciais de
espaço e tempo próprios da cidade industrial.
Entre tais mudanças, podem ser destacadas as seguintes:
• Rompe-se a separação, ao longo da vida, do tempo de
aprendizagem, tempo de trabalhar e tempo de aposen-
tar. A aprendizagem ocorrerá ao longo de toda a vida,
e será combinada com o tempo de trabalhar e também
com o tempo de aposentadoria. Por sua vez, o tempo de
trabalhar se combina com o lazer e a qualidade de vida.
A aposentadoria rompe os rígidos condicionantes da ida-
de e se estende ou se reduz, atendendo, cada vez mais, a
situações concretas e, inclusive, individuais.
• Todos os tempos da vida se fazem presentes em um mo-
mento dado e se tornam interdependentes.
• Aparece uma nova relação tempo/distância. As tecnolo-
gias da informação permitem o funcionamento em tem-
po real da economia, das relações sociais. A comunicação
é feita de modo imediato e as distâncias se aproximam
através da comunicação escrita, sonora e visual.
• O trabalho tem uma continuidade permanente ao longo
do espaço. As diferenças de horário entre os continentes
permitem a continuidade nos trabalhos, nas empresas

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 99


de conhecimento que trabalham em rede, uma vez que
um mesmo projeto pode ser continuado ao finalizar a
jornada de trabalho em outro país com diferença horá-
ria.
• O fim da divisão entre espaço de trabalho e o espaço
doméstico, devido ao fato de que as Tecnologias da In-
formação e da Comunicação (TIC) permitem às equipes
trabalhar em rede em espaços diferentes e conectar-se a
partir de qualquer lugar e em qualquer momento.
• As TICs permitem em boa medida criar um ambiente
do “lá” no “aqui”, acompanhando as notícias, criando
um ambiente de música e de comunicação, de tradição;
permitem a vivência de culturas diferentes num mesmo
espaço.
Estas rupturas espaço-temporais apenas começaram e ainda é
cedo para identificar com clareza as mudanças em profundidade
que serão capazes de introduzir nas relações sociais e na dinâmica
das cidades. Mas qualquer estratégia urbana deve estar atenta
para tais transformações e seu impacto social para que a cidade
possa ser direcionada a metas de autonomia dos cidadãos e pro-
gresso social.

A centralidade dos valores na organização


social
A emergência da ética dos valores, inclusive acima da ética das
normas, é mais uma característica da sociedade contemporânea.
A questão ética na gestão pública e privada e, em geral, sua
revalorização social não são consequência de uma reação social à
sua ausência nos comportamentos econômicos, sociais e políticos
– que é, de fato, um tema muito discutível –, mas se deve, funda-
mentalmente, a dois temas estruturais:

100 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
• A inovação social
• O desenvolvimento da indústria genética
O intenso e extenso processo de inovação econômica e social
rompe os hábitos e normas de comportamento estáveis para gerar
um ativo, ou, inclusive, proativo processo de adaptação perma-
nente a mudanças e a novos desafios sociais. A mudança, ainda
que possa parecer uma contradição em termos, é a constante das
novas cidades. Por isso, suas regras e normas são um instrumento
inadequado para os comportamentos sociais, econômicos e políti-
cos. Vem daí a necessidade de se enfatizar os valores que inspiram
e são marcos de referência para a constante geração e readapta-
ção dos sistemas e normas de comportamento social e de gestão
empresarial e institucional.
No âmbito empresarial surgiu um novo tipo de gestão:51 a
gestão por valores, que visa a dar um novo quadro de referência
para os empregados, diretores, acionistas, fornecedores e clientes
em um ambiente de mudanças tecnológicas, culturais e pessoais.
Mudanças que, sem dispor de referências, provocam insegurança
e ansiedade em todos os grupos que formam a empresa.
A formação baseada em valores é o que melhor pode orientar
os cidadãos – cada vez menos incorporados às grandes organiza-
ções sociais – a renovar seus processos de socialização.
A educação aparece outra vez como o novo fator crítico para a
nova sociedade, mas desta vez a educação orientada para valores.
A pergunta que segue é óbvia: quais valores promover? Como
promover valores e evitar os conflitos éticos e culturais em países
cada vez mais multiculturais? A resposta ainda é mais óbvia que
a pergunta: tolerância e respeito ao pluralismo, solidariedade,
conhecimento e racionalidade, liberdade e equidade. Em outras
palavras, fortalecer os direitos humanos e os valores que os funda-

51 K. Blanchard e M. O’Connor, Dirección por valores. Barcelona: Gestión 2000, 1998.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 101
mentam, pois são, como demonstrou A. Sen, entre muitos outros,
uma aspiração verdadeiramente universal.52 Uma só proibição:
proibido proibir. Uma só intolerância: não tolerar a violação dos
direitos humanos.53 Tudo o mais – línguas, religiões, artes, vesti-
mentas – são fatores de conhecimento e enriquecimento cultural.
A educação, ou melhor dito, a socialização através de valores es-
truturados a partir da tolerância entre diferentes grupos sociais e
culturais, deve ser objeto de um grande pacto social entre todos
aqueles que atuam no espaço das interações sociais cotidianas: a
cidade.
A reafirmação de valores vem, por sua vez, motivada pelo de-
senvolvimento da investigação genética humana e, em especial,
de suas aplicações, do desenvolvimento de uma nova indústria e,
com ele, de um novo mercado global: o dos produtos genéticos
aplicados aos homens. Este novo setor econômico provoca, neste
caso em escala global, o estabelecimento dos valores que fun-
damentam um comportamento ético e códigos de conduta que
permitem diferenciar, nas áreas da saúde e da agricultura, as apli-
cações benéficas das perversas – como a criação de subespécies
humanas. O desenvolvimento desta indústria condiciona a cen-
tralidade dos valores como guia consciente da ação humana nos
âmbitos local e global.

A globalização do social
Sem dúvida, um dos principais desafios relativos ao futuro
apontados pelos governos urbanos é a mundialização das políticas
sociais, das políticas urbanas de impacto integrador.

52 A. Sen, Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.


53 W. Kymlicka explica como coexistem os direitos das minorias com os direitos humanos e
também como os direitos das minorias estão limitados pelos princípios de liberdade, demo-
cracia e justiça social. Ver seu livro La ciudadanía multicultural. Madri: Ed. Paidós, 1995.

102 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
Como já assinalamos, a globalização é econômica, mas tam-
bém tecnológica, informativa e cultural. As transformações que
nos afetam não se reduzem a uma zona do planeta, mas se es-
tendem a todas as partes, ainda que sua influência nas estruturas
econômicas, sociais, culturais e familiares seja diferente em função
das coordenadas geográficas e culturais dos países.
A globalização tem, naturalmente, aspectos positivos como o
crescimento da riqueza, a inovação e o desenvolvimento tecno-
lógico, a superação das fronteiras e as novas possibilidades de
encontro entre culturas. Entretanto, é verdade que os efeitos da
mundialização são muito desiguais, e a globalização significa no-
vas formas de exclusão e pobreza para muitos países. A globaliza-
ção significou maior marginalização para a África Subsaariana –
consumo abaixo do equivalente a um dólar americano – e alcança
215 milhões de pessoas, na Ásia atinge 550 milhões e na América
Latina, 150 milhões de pessoas.54
A globalização em seus aspectos econômicos e tecnológicos
está transformando o próprio conceito de pobreza. Esta já não se
entende como associada ao desemprego, mas à estrutura da ren-
da. Assim, estima-se que, de cada dez famílias urbanas pobres na
América Latina, sete são pobres devido ao baixo rendimento do
trabalho, duas são pelo desemprego de alguns de seus membros,
e uma, por ser formada por um número elevado de crianças. Os
níveis de pobreza relativos à América Latina são superiores aos
dos 25 membros da União Europeia, tomando por base o limiar
de 60% da mediana da renda. A comparação das médias simples
de cada região mostra valores de 28% da população na América
Latina e 15% para a União Europeia.55
É um equívoco considerar a existência apenas de uma via ou
de um só caminho predeterminado no desenvolvimento da glo-

54 Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.


55 Dados da Cepal, 1998 e 2006.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 103
balização, e que esta, inevitavelmente, gera mais desigualdade e
exclusão. Há uma pluralidade de vias para organizar a crescente
interdependência das distintas partes do mundo. As estratégias
de ação são hoje possíveis e devem ser dirigidas para a transfor-
mação necessária e eficaz da organização social do mundo. Um
dos principais atores desta transformação são as cidades, e, muito
especialmente, as políticas e estratégias urbanas.
Já afirmamos que o global emerge do urbano. Por isto, com
a organização da cidade e com o modelo de desenvolvimento
que nossas cidades escolherem, é possível contribuir de maneira
decisiva à organização da sociedade futura em nível mundial. As
cidades formam uma rede de nós urbanos, com distintos níveis,
com distintas funções, que se estendem por todo o planeta e que
funcionam como centro nevrálgico da nova sociedade mundial.
Deste ponto de vista, é um erro de graves consequências so-
ciais fixar-se apenas nos aspectos da concorrência entre as cidades,
como tantas vezes se faz, e deixar de contemplar e fortalecer as
relações de complementaridade e colaboração entre elas.
As cidades, e em especial os governos urbanos responsáveis,
devem assumir de maneira progressiva a gestão dos processos de
suas próprias mudanças e, de maneira coordenada entre elas, o
avanço na direção de uma maior coesão social em nível continen-
tal e intercontinental. Os governos das cidades devem articular a
ação local com a global.
Neste sentido, na primavera do ano 2000, as principais fede-
rações e associações internacionais de cidades se reuniram em Va-
lência a convite do governo da cidade, no contexto do seu Plano
Estratégico. Ali criaram as bases de um movimento internacional
de cidades, que inclui as associações mencionadas ou redes mun-
diais de cidades existentes, com o objetivo comum de assumir
como prioridade sua ação de globalização do social, para que as
cidades assumam uma posição relevante na construção da solida-
riedade mundial.

104 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
Construir uma globalização mais integradora a partir das ci-
dades significa que cada cidade adote uma visão ampla do de-
senvolvimento urbano, tecnológico, econômico, social, cultural
e educativo, guiado por valores de sustentabilidade, equidade e
pluralismo, e baseado na colaboração e confiança entre os atores
urbanos e no envolvimento da cidadania.
Os desafios sociais urbanos que um movimento internacional
e pluralista de cidades deveria priorizar, por serem os mais co-
muns, são os seguintes:
• A política de moradia e, em especial, a reabilitação e
revitalização dos bairros urbanos.
• A segurança cidadã que contemple aspectos de preven-
ção e promoção social.
• A geração de oportunidades de emprego.
• A convivência na diversidade cultural.
Segundo a área de Análise e Previsão da Unesco, dar um teto
digno a todos significaria construir nos próximos 40 anos o equi-
valente a mil cidades de três milhões de habitantes, ou reconstruir
boa parte das cidades existentes.
É necessário desenvolver políticas de moradia a preços reduzi-
dos e para todos, e fazer isto do modo mais sustentável do ponto
de vista ambiental. É preciso criar espaços públicos de qualidade
que atuem como lugar de encontro, convivência e colaboração
entre os cidadãos, e nos quais se pratiquem a democracia e o res-
peito à diversidade como forma de enriquecimento cultural.
Os governos locais devem contribuir para reduzir e superar o
apartheid urbano. A polarização social de muitas cidades e a segre-
gação social do espaço urbano estão na base do surgimento dos
“enclaves privados” protegidos por forças de segurança próprias.
Estes enclaves são social e culturalmente homogêneos, como o
são os subúrbios pobres, e a ampliação de uns e outros significa

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 105
o desaparecimento dos espaços públicos que são a base da cida-
dania.56
Superar estes enclaves de exclusão significa proporcionar segu-
rança cidadã. A segurança urbana tem três componentes – os três
“P” da segurança: Proteção aos cidadãos, porém num sentido am-
plo. Que os cidadãos se sintam seguros ante o delito e a violência,
mas também frente a catástrofes, enfermidades, envelhecimento,
etc. Para isto é necessária a prevenção, no sentido da antecipação,
mas também a promoção social dos socialmente segregados. De-
vemos ter sempre claro que são os processos de marginalização e
exclusão social que explicam, em grande medida, a delinquência
urbana.
Reduzir as condições de exclusão significa, além disso, gerar
novas oportunidades de ocupação e de coesão no tecido social
para inserir as pessoas na comunidade. Para o primeiro, é neces-
sário gerar investimentos produtivos e desenvolver a educação.
Educação permanente ao longo de toda a vida para todos os cida-
dãos e cidadãs, baseada nas quatro aprendizagens que o Informe
Delors para as Nações Unidas aponta: aprender a fazer, aprender
a conhecer, aprender a ser e aprender a conviver.
Esta última aprendizagem é a que permite que o agrupamento
de pessoas de diferentes procedências geográficas e origens cultu-
rais construa a nova cultura urbana, transformando com criativi-
dade e pluralismo cultural, e em convivência com a diversidade, o
que poderia se tornar um choque entre culturas.
Os desafios sociais urbanos são interdependentes, condicio-
nam-se, razão pela qual é preciso, como dito anteriormente, dar-
lhes uma solução integral em um projeto de desenvolvimento
urbano. Este projeto deve aglutinar e coordenar os esforços de
todas as administrações envolvidas, de todos os atores privados
e de toda iniciativa social que interfira na transformação da cida-

56 F. Mayor, Un mundo nuevo. Unesco, 2000.

106 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
de. Logicamente, a direção deste projeto deve ser exercida pelo
governo democrático mais próximo dos cidadãos, que é o que
melhor pode organizar a rede de atores envolvidos.

Mudanças nas formas de prestação e


gestão dos serviços de bem-estar social
Foram introduzidas importantes modificações na gestão públi-
ca dos serviços na área do bem-estar social na década de 90 do
século XX. Do predomínio da gestão pública direta dos serviços,
passou-se, paulatinamente, à gestão indireta ou contratação ex-
terna para a gestão de serviços financiados com fundos públicos.
Esta contratação fez com que surgisse o setor privado, tanto com
finalidades lucrativas quanto não lucrativas, como opção para a
gestão de serviços públicos terceirizados.
Por outro lado, a ampliação de determinados benefícios so-
ciais a vários setores da população também favoreceu os serviços
de bem-estar social financiados pelo setor privado por sua renta-
bilidade. O setor privado foi também favorecido pela extensão da
responsabilidade social corporativa das empresas, através da qual
estas decidem de maneira voluntária integrar a realização de uma
série de objetivos sociais em suas operações comerciais e produti-
vas, e nas relações com seus interlocutores.
Por último, os processos de individualização, não de individua-
lismo social, e a crise das grandes organizações sociais – partidos,
sindicatos, igrejas – fez surgir uma nutrida oferta de associações
e movimentos sociais que têm como finalidade contribuir para a
resposta aos desafios sociais que as cidades apresentam.
Tudo isto faz com que estejam sendo produzidas mudanças
nas respostas da sociedade aos desafios sociais. Na atualidade,
nenhum setor, seja público ou privado, dispõe de toda a informa-
ção e, muito menos, da capacidade de atuação para fazer frente
às demandas da sociedade.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 107
Conclusão: da gerência à governança
Hoje é preciso trocar o modo gerencial de governar pela ges-
tão relacional ou das interdependências próprias da governança.
As principais razões são:
• Estamos diante de novas formas de desigualdade e po-
breza, distintas do não acesso a determinado nível de
benefícios econômicos e serviços que justificaram o apa-
recimento do governo provedor. Ante as novas formas
de desigualdade relativas aos capitais cultural e social e
à dualização digital, etc., a prestação pública continua
sendo necessária, mas é absolutamente insuficiente.
• O surgimento de desafios e necessidades intangíveis tor-
na ineficaz uma ação baseada nos recursos econômicos
e na prestação de serviços.
• O gasto público, que supera 50% do PIB, pode cres-
cer, mas de maneira lenta. Já as necessidades e desa-
fios sociais disparam. Isto é, as necessidades crescem em
proporção geométrica enquanto os recursos públicos
crescem em proporção aritmética. O crescimento das ne-
cessidades sociais e a busca de novos caminhos para sua
satisfação são sinônimo de progresso.
• A multiplicação de agentes no âmbito do bem-estar so-
cial implica o reposicionamento do papel do governo
para assegurar a qualidade e a coordenação da oferta
para que esta possa chegar a todos e, especialmente, aos
cidadãos mais necessitados e vulneráveis.
Tudo isso exige um novo posicionamento do governo local. Este
deve priorizar seu papel de organizador de uma resposta coletiva.
O novo papel do governo é o de promover e articular a construção
coletiva da cidade, especialmente do bem-estar social.
Assumir esta posição exige, como veremos, atuar em muitas
direções e dimensões. Uma delas é a dimensão política. A neces-

108 O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede
sária qualidade da representação política e da cidadania, o novo
papel que deve ter o político eleito com responsabilidades de go-
vernar e o tipo de liderança que deve exercer são exigências das
quais não se pode escapar para alcançar o desenvolvimento da
governança, embora em muitas ocasiões se tenha evitado o tema
e privilegiado as abordagens técnicas, metodológicas ou da orga-
nização da participação social. Por isso vamos tratar em detalhes
estes temas nos próximos capítulos.

O governo relacional e a governança se assentam nas mudanças sociais e na emergência da sociedade-rede 109
4. A revalorização da política
no Governo Relacional

Ideias Principais
1. Crise da política em razão da permanência do governo prove-
dor e gestor.

2. A democracia é básica para o desenvolvimento econômico na


sociedade-rede.

3. O governo relacional é uma oportunidade para fortalecer a


qualidade democrática.

4. A política democrática é entendida, prioritariamente, como


capacidade de representação.

5. A participação é básica para assegurar a boa representação.


6. Um novo papel para o político local é chave para a qualidade
democrática.
A governança democrática requer a revalorização da política e
do político eleito, ao situar as relações entre o governo e a política
de um modo muito diferente do governo provedor e gestor e,
muito especialmente, do modo gerencial de governar.

O governo provedor e a crise da política local


A crise do governo que estabelece a relação principal com a
cidadania através da oferta de recursos financiados com fundos pú-
blicos e da gestão de serviços públicos, como já observado, deve-
se ao fato de que o gasto público sobre o PIB atinge cifras próxi-
mas ou superiores a 50%. Os governos já não podem confiar que
seus gastos sejam suficientes para satisfazer as necessidades sociais,
cada vez mais amplas e complexas. Por outro lado, a perspectiva
da sociedade-rede ou interdependente mostra que a resposta aos
desafios sociais é coletiva, uma pluralidade de atores intervém, e o
envolvimento de amplos setores da cidadania se torna necessário.
A continuidade do governo provedor e do modo gerencial de
governar, em especial, uma vez quebradas as bases que o susten-
tam, provoca, em boa medida, a desvalorização da política e do
político vivida pelas sociedades democráticas. Hoje, quanto mais se
estende a democracia no planeta, menos valorizada ela se encontra
em muitos países.
A substituição do governo provedor faz-se necessária para a revi-
talização da democracia entre a cidadania pelos seguintes motivos:

• A política parece ser menos relevante no modo como as pes-


soas veem os seus destinos individuais e coletivos. A restrição
da oferta de novos recursos sem visualizar um novo para-
digma de governo significa que os governos democráticos
não respondem às novas necessidades sociais, o que acaba
produzindo uma desvalorização e descrédito da política e
do político.

112 A revalorização da política no governo relacional


• O não cumprimento dos programas eleitorais: a desconfian-
ça na oferta política. A continuação de programas políticos
baseados na oferta de serviços para os quais não há recur-
sos provoca uma primeira reação de engodo, passa para
a desconfiança e pode chegar à indiferença e ao mais alto
absenteísmo dos cidadãos em relação à política.
• A diferenciação política pela desqualificação. Este é outro
dos efeitos da persistência do governo provedor. A ausên-
cia de políticas inovadoras e não centradas em serviços
e benefícios para os que têm poucos recursos leva à não
diferenciação entre os programas eleitorais. A semelhança
programática é acompanhada, em não poucas ocasiões,
pela diferenciação pessoal, pelo insulto. As acusações
constantes e não comprovadas de corrupção ou desper-
dício entre os próprios políticos produzem um grave re-
trocesso democrático e a descrença nos valores da repre-
sentação dos eleitos, que são, nem mais nem menos, os
valores da democracia. Os políticos são a principal causa
do seu próprio desprestígio.
• O comportamento político de “soma zero” ou “todos per-
dem”. O sistema democrático é um sistema de ganhar-
perder. O número de vereadores, deputados e senadores
é fixado por lei; se um partido ganha deputados, ou-
tros perdem. Em matéria eleitoral não se pode aplicar o
ganha-ganha, o que leva à dureza da luta política.57 Esta

57 Outra razão da crise da política, porém desvinculada do governo provedor, é a existência de


instrumentos políticos dos partidos, sem dúvida necessários à democracia, que não levam
em consideração a cidadania. O fato de que as cadeiras sejam em número fixo e, portanto,
a abstenção seja desconsiderada, leva a que a luta frontal entre os partidos não tenha muito
em conta a participação eleitoral e a opinião dos cidadãos. Chega-se, inclusive, a desenhar
estratégias eleitorais para aumentar a abstenção, o que é sem dúvida uma perversão. Para
uma estreita relação entre partidos e cidadania, assim como para limitar a luta virulenta pela
vitória ou a derrota apenas para o outro, talvez fosse conveniente vincular, em alguma medi-
da, o número de eleitos ao nível de participação eleitoral. Desse modo, havendo incremento
do número de eleitos pelo aumento da participação, existiria um motivo para os partidos
colaborarem entre si e uma maior sensibilidade em relação às preocupações cidadãs.

A revalorização da política no governo relacional 113


dureza, em um contexto de modelo de governo inade-
quado e na ausência de inovação política, se estende ao
terreno da desqualificação mútua dos contendores, e esta,
por sua vez, leva ao descrédito generalizado da política.

A democracia é básica para o desenvolvimento


econômico na sociedade-rede
Sen, Prêmio Nobel de Economia, sem dúvida é o economis-
ta que estudou com maior profundidade a relação entre liberda-
de, desenvolvimento e equidade.58 Para este autor, a democracia
constitui o principal meio para conseguir o desenvolvimento eco-
nômico e social. Seus principais argumentos sobre o impacto da
democracia no desenvolvimento econômico são:
• Em primeiro lugar, assinala que o desenvolvimento não
pode ser entendido apenas como incremento da renda,
mas também como maiores oportunidades para a equida-
de e bem-estar. Para Sen, o exercício dos direitos e liberda-
des também tem um valor em si mesmo para a vida e o
bem-estar social.
• A democracia propicia que maior atenção seja dada às
necessidades das pessoas, entre elas a educação, a saú-
de e os serviços sociais. Estes são fatores-chave para a
geração de capital humano que, juntamente com o ca-
pital social, são as principais bases do desenvolvimento
econômico.
• A democracia permite o livre intercâmbio de valores e
ideias, a partir dos quais podem ser criadas prioridades
compartilhadas de grande alcance social e de grande
mobilização dos recursos humanos.

58 Ver especialmente o livro Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.

114 A revalorização da política no governo relacional


Aos argumentos de Sen podemos acrescentar outros que os
complementam:
• Castells observou, como principal fator da evolução dos
países da antiga URSS59 para a democracia, que os regi-
mes autoritários não podiam fazer frente ao novo desa-
fio da economia informacional, que exigia liberdade de
informação para poder produzir conhecimentos e ino-
vação.
• No mesmo sentido, Prats60 mostra como as relações ins-
titucionais entre os atores ou, o que é o mesmo, o mo-
delo de interação deles incide diretamente no desen-
volvimento econômico. O modelo de interação revela a
capacidade de inovação, a flexibilidade para a incorpo-
ração de novos atores e a reforma das estratégias dos
atores tradicionais. O marco de interação determina a
classe de conhecimentos e habilidades necessárias para
nos adaptarmos à era infoglobal. As características do
modelo de interação hoje necessárias são: abertura,
flexibilidade e integração. Estas, como é óbvio, se ba-
seiam nos mesmos valores da democracia política.
• Putnam demonstrou que a maior capacidade de cola-
boração entre os atores – o capital social – nas cidades
do Norte da Itália, é o fator que explica o desenvolvi-
mento diferenciado em relação às cidades do Sul.61 A
democracia não só facilita a geração destas vantagens
colaborativas, mas também o capital social, ao significar
participação e colaboração cidadã, que é condição para
que a democracia funcione.

59 M. Castells, La Era de la Información. Vol. 3. Madri: Alianza Ed., 2000.


60 J. Prats, Bolivia: El desarrollo posible, las instituciones necesarias. Barcelona: Instituto de Gober-
nabilidad, 2003.
61 D. Putnam. Making Democracy Work. Princeton: Princeton University Press, 1990.

A revalorização da política no governo relacional 115


• O bom funcionamento das instituições facilita o desenvol-
vimento econômico, como bem registrou o BID em seu
informe: “Mais além da política”, de 2000. Concluindo,
são justamente as instituições democráticas as que me-
lhor facilitam o desenvolvimento, ao possibilitar uma re-
presentação efetiva e permitir o controle dos políticos e
governantes.
• Em um importante estudo empírico em 90 países, entre
1960 e 1989, Rodrik62 mostrou que os sistemas democrá-
ticos contribuíam com quatro vantagens econômicas frente
aos autoritários: a variação do crescimento a longo prazo
era menor, a estabilidade a curto e médio prazos era maior,
as crises exógenas eram melhor controladas e o nível de
salários era mais elevado. Ainda que Rodrik não aponte,
estas vantagens sem dúvida podem ser consequência das
razões antes enunciadas.
As razões pelas quais as democracias permitem articular o desen-
volvimento econômico com equidade e sustentabilidade são ainda
mais evidentes:
• As democracias, por respeito aos direitos civis e políticos
de toda a população, permitem levar em consideração
os interesses e necessidades dos grupos sociais mais des-
favorecidos. De fato, com as mobilizações dos trabalha-
dores na Europa, foram incorporados os direitos sociais
aos direitos políticos e civis democráticos.
• Na busca da estabilidade política, os governos democráti-
cos tentam estabelecer amplos acordos e alianças sociais,
para o que devem articular diferentes interesses sociais.
• Dotados de um maior poder político, os movimentos
sociais pressionaram para uma maior equidade na distri-

62 D. Rodrik, Democracy and Economic Performance. 1997.

116 A revalorização da política no governo relacional


buição da renda, no acesso igualitário aos serviços e no
respeito à sustentabilidade.
• As oportunidades observadas nas democracias para im-
pulsionar o desenvolvimento econômico e social estão
diretamente relacionadas às possibilidades que oferecem
para articular formas de interação flexíveis e estáveis, ba-
seadas na confiança e na cooperação, nas possibilidades
de articular diferentes interesses em amplos projetos, na
capacidade de mobilização e responsabilização da cida-
dania a partir de valores compartilhados.
• Em conclusão, o aproveitamento das potencialidades e
oportunidades do desenvolvimento econômico e da coe-
são social depende da capacidade de gestão das interde-
pendências dos atores sociais e institucionais. Esta gestão
das interdependências é precisamente, como vimos, o
que caracteriza a nova arte de governar: governança ou
governo-rede, tal como indicou Mayntz, entre outros.63

O governo relacional necessita de


qualidade democrática
O governo assume um novo e singular papel, com o que ad-
quire uma nova importância política em sua qualidade de repre-
sentante eleito: assume o papel de articulador do interesse geral,
a partir dos interesses legítimos dos diferentes atores e setores da
cidadania. O governo já não deve imitar as empresas, mas inovar
na sua relação com a cidadania.
O governo já não vê a sua atuação limitada pela relação entre
gasto público e PIB, mas, sim, que pode assumir novas e comple-
xas necessidades a partir do envolvimento de todos os atores e

63 R. Mayntz, “Nuevos Desafíos a la Teoría de la Governance” em Instituciones y Desarrollo. Nº


7. Instituto Internacional de Gobernabilidad, 2000.

A revalorização da política no governo relacional 117


setores que influem favorável ou desfavoravelmente nas respostas
às mesmas.
Os programas econômicos e sociais, pelas razões anteriores,
podem aumentar substancialmente o escopo dos objetivos de de-
senvolvimento a serem considerados, podendo, portanto, se dife-
renciar das propostas eleitorais.
As ações de governo sustentadas na definição de objetivos de
desenvolvimento humano, e não na prestação de serviços no terri-
tório, permitem uma maior e melhor colaboração em vários níveis
de multilateralismo entre governos. Isto é, entre governos locais,
regionais ou estaduais ou, ainda, entre governos do mesmo nível.
Dá um significado mais amplo e profundo à participação cidadã,
entendida como corresponsabilização da cidadania, e não sim-
plesmente como reivindicativa ou auxiliar das políticas públicas.

A política democrática como capacidade de


representação
A governança democrática exige o fortalecimento organizativo e
da representação da sociedade civil. A tarefa de construir o interesse
geral a partir dos interesses dos distintos atores e setores sociais é
mais efetiva se os diferentes interesses estiverem bem definidos e
os interlocutores representarem os diversos coletivos. Governança
democrática e capacidade de representação são conceitos que se
condicionam mutuamente. Maior representatividade, melhor go-
vernança e vice-versa. De todos os modos, o papel determinante é
o da governança, pois, uma prática decidida do governo baseada
na gestão das interdependências tem, sem dúvida, efeitos organiza-
tivos e de melhoria da representação da sociedade civil.
Porém, sem dúvida, o fator crítico para uma boa governança
democrática é a qualidade de representação do governante eleito.
Se a liderança na gestão das interdependências em um território
pertence a uma universidade, ao empresariado ou à igreja e etc.,

118 A revalorização da política no governo relacional


estamos diante de uma liderança corporativa, pois mesmo que ela
se origine de uma instituição democrática, seu representante foi
eleito por empresários, universitários, comunidade religiosa, etc.
Na verdade, o único representante votado por todos os cidadãos
e apenas enquanto cidadãos é o político eleito. Apenas se este
assumir a liderança, existirão as condições para que a governança
seja realmente integradora.
Sem dúvida, um dos déficits democráticos que pode envolver a
governança é a exclusão dos setores que não dispõem de capacida-
des organizativas ou de interlocução na defesa de seus interesses. O
político-governante caracterizará sua aposta na democracia através
de ações positivas que desenvolva para conseguir a melhoria da ca-
pacidade de representação dos interesses de todos os setores e, em
especial, dos mais vulneráveis. Esta tarefa, ainda que se refira a todos
os âmbitos do governo local, corresponde muito frequentemente de
modo específico aos políticos com responsabilidades de governo nas
áreas de bem-estar social.
A democracia, como afirma com veemência Zafra,64 é repre-
sentação. Se esta falha, o que falha é a democracia. As denomi-
nadas democracias participativas e deliberativas são, sem dúvida,
aspectos que contribuem para assegurar que se produza uma boa
representação ao longo dos mandatos entre as eleições, mas é
muito pouco razoável pensar que um complemento possa substi-
tuir o essencial, que é a eleição do representante e a qualidade da
representação como ingredientes básicos da democracia.

Um novo papel para o eleito local


Em um governo relacional, cujo principal papel é organizar a
capacidade coletiva para promover o desenvolvimento humano,

64 M, Zafra, El Ayuntamiento como Gobierno Facilitador de Consensos. Barcelona: F. Pi i Sunyer,


2003.

A revalorização da política no governo relacional 119


o papel do eleito é justamente o de gestor65 dos processos das
interdependências dos distintos atores e setores da cidadania.
Para reger a articulação das interdependências, para encami-
nhá-las na direção do desenvolvimento humano, o gestor muni-
cipal dispõe de sua capacidade como produtor de legislação (que
em um governo local é pouco significativa, com exceção da área
de urbanismo), de algum recurso econômico que pode aplicar
(cujo crescimento, como foi apontado, tende a zero, ainda que a
descentralização seja um tema pendente na maioria dos países da
UE e, particularmente, na Espanha) e da legitimidade e reconhe-
cimento como eleito (que na atualidade está em crise, mas que
pode ser recuperada).
Sem dúvida, é a legitimidade política que valoriza o papel nos
processos de negociação relacional, mediação e busca de acordo.
A valorização da política importa para que o eleito possa influir na
coordenação e mediação das relações entre os distintos atores.
Podemos agora dizer: a legitimidade importa para que o ges-
tor possa ser o organizador coletivo; porém, assumir o novo papel
também é fonte de legitimidade. O que, então, é mais importante
ou tem um papel determinante, se não quisermos cair numa tau-
tologia?
Sem dúvida, ambos os processos interagem, mas o papel de-
terminante hoje, por parte dos políticos, é assumir a mudança do
papel de eleito local para o de gestor de recursos para a cons-
trução coletiva do desenvolvimento humano e do interesse geral
do conjunto do território, ou de um setor de atividade. E fazê-lo
dispondo das habilidades específicas e das técnicas necessárias,
o que propiciará a revalorização e o reconhecimento da repre-
sentação política, à qual a perspectiva do governo relacional e a
governança dão novas e renovadas oportunidades.

65 Vereador, que na Espanha tem função executiva. No original, consejal, quer dizer o que rege
ou governa. Dicionário da Língua Espanhola. (Nota do Tradutor.)

120 A revalorização da política no governo relacional


5. A liderança do político
eleito na governança
Ideias principais
1. Liderança representativa: capacidade de visualizar os interesses
e habilidades da cidadania.

2. A liderança representativa é relacional e não dominadora ou


substituta da cidadania.

3. A liderança representativa é capacitadora e não dominadora.


4. Saber a distinção entre os papéis do político e do gerente é
básico na governança.

5. A liderança pela direção política e moral.


6. O representante político é o principal agente de mudança.
7. Uma nova tarefa política: tornar visível o apoio social, para
que a participação possa fluir.
Capacidade de visualizar os interesses e
habilidades da cidadania
Existe uma infinidade de definições de liderança. Covey66 sele-
ciona 15, mas elas se referem, em sua grande maioria, a lideran-
ças em empresas e grandes organizações. Para encontrar uma de-
finição adequada a um líder democrático é preciso recorrer ao que
há de mais elementar. Líder é aquele que conta com seguidores.
Para um líder democrático, os seguidores são os eleitores. Portan-
to, a liderança política representativa será aquela que dispõe de
eleitores que consideram que seus interesses estão representados
pela política da pessoa a quem denominamos líder.
Isto significa que um líder político representativo não é tanto o
que conhece e oferece programas atraentes para ter um eleitorado,
mas uma pessoa capaz de fazer com que os atores sociais e o conjunto
da cidadania compreendam seus verdadeiros interesses, assim como
suas capacidades, de tal modo que sejam assumidas como próprias.
Para isto devemos saber fazer a distinção entre posicionamen-
to e interesse. Posicionamento é a reivindicação que um ator ou
um grupo social formula para defender seus interesses. O interesse
é o que o ator social realmente busca e deseja. Frequentemen-
te, posicionamento e interesse se confundem. O interesse poucas
vezes é claramente identificado em um conflito social. Nele, cos-
tumam entrar em contradição os posicionamentos, mais do que
os interesses. Apenas em relação aos posicionamentos, a luta é
inevitável; com os interesses, o acordo é possível.
Vejamos um exemplo. Um grupo de cidadãos de um bairro popu-
lar se opõe à abertura de um centro de tratamento para dependentes
químicos. E a Prefeitura, apoiada pelas associações de familiares de
pessoas dependentes e outras associações civis, não quer desistir de

66 S.R. Covey, El 8º hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005, pp. 391 a 400.

122 A liderança do político eleito na governança


implantar o centro em um dos poucos espaços adequados existentes
na cidade. A partir daí aparecem as acusações de que uns querem
prejudicar o bairro e de que a outros faltam compreensão e solidarie-
dade, e o conflito acaba tomando corpo. Na verdade, os interesses
dos dois grupos são mais complexos e diversos e poucas vezes apa-
recem expressos em conflitos. Os moradores do bairro estão preocu-
pados com a possível desvalorização de sua região e das suas casas,
o que é muito compreensível dado o preço da moradia e os esforços
necessários para pagá-la. Também estarão preocupados pelo possí-
vel aumento da insegurança, devido a ser frequentemente associado,
no imaginário coletivo, o consumo de drogas com a delinquência.
Possivelmente também estarão preocupados com a sujeira, pela de-
terioração dos padrões de comportamento atribuída a essas pessoas
e, obviamente, pelo aumento do tráfico de drogas no bairro e que o
consumo acabe chegando a seus filhos. Por outro lado, a Prefeitura e
as associações de familiares e outras organizações sociais consideram
que é necessário que a cidade disponha deste tipo de equipamento
e canalize suas esperanças de reabilitação, e que são poucos os locais
adequados e disponíveis na cidade para tal prática.
Estes interesses podem ser compatibilizados em um projeto in-
tegral que dê segurança e contrapartida aos moradores do bairro
para que seus interesses sejam assegurados. Como, por exemplo,
através da construção de elementos simbólicos, espaços públicos,
subvenções para reabilitação de construções, medidas para me-
lhoria do trânsito, enfim, medidas que repercutam na manutenção
ou melhoria do valor do patrimônio imobiliário dos moradores.
Além disso, podem ser tomadas medidas que assegurem a imple-
mentação de políticas que melhorem a segurança e desestimulem
o consumo de drogas e, também, de políticas que melhorem a
limpeza no bairro.
Esta tarefa de identificar, através de espaços de deliberação e
mediação, projetos que compatibilizem interesses é, sem dúvida,
uma das principais responsabilidades da liderança representativa
na governança. Esta tarefa de identificação de interesses e mediação

A liderança do político eleito na governança 123


deve ser uma função regular do governo local, sem circunscrevê-la
ao fato de que na situação conflituosa estejam envolvidas compe-
tências legais ou recursos municipais. Ao contrário, é necessário
que este tipo de intervenção se torne referência para a criação de
espaços de intermediação sempre que as contradições entre atores
tenham impacto na configuração física ou cultural da cidade, ou
ainda na convivência entre grupos e setores da cidadania.
A tarefa de representação cidadã com base em interesses im-
plica, obviamente, na criação de espaços de cidadania, de partici-
pação, nos quais haja deliberação e construção de conhecimento
mútuo, confiança e compromisso de ação. Neste sentido, a partici-
pação é um espaço necessário e que torna possível a representação.
Nunca pode ser concebido, na democracia, como substituto da re-
presentação cidadã.
Podemos sintetizar a liderança representativa no seguinte es-
quema:

Conhecer desafios, demandas,


expectativas, interesses...

ELEITO Cidadania

Transmitir a potencialidade e
capacidade de ação (possibilitar
a ação da sociedade)

Para uma tarefa de representação cidadã que tenha por ob-


jetivo o envolvimento da cidadania no “fazer a cidade”, o eleito
precisa de métodos de participação que o ajudem a identificar

124 A liderança do político eleito na governança


os interesses que se escondem por trás dos posicionamentos, e
que os próprios interessados possam reconhecê-los. Por sua vez,
precisa ter capacidade de análise e conhecimento dos conteúdos,
para poder desenhar os projetos de futuro que integrem de ma-
neira complementar e sinérgica os distintos interesses em jogo. O
importante destas técnicas não é que o político eleito tenha um
conhecimento direto das mesmas, mas que lhe sejam proporcio-
nadas por profissionais da gestão relacional que, sem dúvida, nos
governos relacionais terão maior relevância que os gestores de
serviços, para poder dar apoio ao trabalho de liderança, que é a
tarefa própria e insubstituível do político eleito.
Entretanto, em uma tarefa de gestão relacional, e em circuns-
tâncias em que não há prestação de serviços públicos, é essencial
a legitimidade do político eleito, que repousa na revalorização da
política e dos políticos, no comportamento como expressão de
valores éticos e na eficácia baseada no uso de novas metodologias
e técnicas.

Uma nova visão do poder


A governança dá ao governo democrático uma nova relevân-
cia. Em um governo cuja atuação tenha por base a provisão de
recursos, a limitação destes em relação ao PIB leva necessaria-
mente à perda de peso do governo democrático na sociedade.
Contrariamente, a perspectiva da construção do interesse geral
em cada setor, em cada projeto, envolvendo os atores e buscando
o apoio da cidadania, dá sem dúvida um novo e renovado pa-
pel ao governo e à política democrática, de maior alcance que o
modo gerencial, e permite superar a visão do público como um
setor diferenciado, inclusive, em oposição ao setor privado ou à
iniciativa não lucrativa.
Este novo papel muda, naturalmente, a concepção que se tem
do poder. Se por poder se entende a imposição da própria vonta-

A liderança do político eleito na governança 125


de aos demais, seja através da lei e da força ou de condicionantes
produzidas pelos recursos públicos, a governança significará, sem
dúvida, uma perda de poder. Em troca, se o poder é entendido
como a capacidade de fazer valer ou realizar os próprios inte-
resses, o poder dos atores sociais e do governo fica reforçado.67
O do governo, em especial, por sua liderança na construção do
interesse geral a partir dos interesses legítimos e pela renovada
relevância social dos políticos eleitos, que melhora e legitima o
“papel” do político na sociedade.

A liderança representativa é relacional


Vimos que a liderança representativa necessária à governan-
ça é relacional; ela busca fortalecer as densidades de interação
dos distintos atores. Não procura substituir a sociedade com a
sua liderança e torná-la dependente de suas propostas e planos
de ação.
O interesse do líder relacional será influir nas pessoas para que
estas enfrentem seus problemas. Em lugar de oferecer soluções,
levantam questões e, mais que solucionar conflitos, sua principal
missão é propor desafios coletivos.
Já foi dito que a liderança relacional constrói propostas com-
partilhadas a partir da identificação de interesses, e não aspira a
proporcionar programas eleitorais para agradar a um eleitorado
passivo, que elege entre produtos em um mercado no qual não
intervém como produtor. Uma oferta de produtos que não se ba-
seie no conhecimento profundo dos interesses, necessidades e de-
sejos da cidadania, converte a dinâmica política em crescimento
desmesurado e impossível de propostas que não “satisfazem” a
ninguém, e que em uma época de poucos recursos deslegitimam
a política eleitoral. O crescimento pelo crescimento, como assinala

67 Ver J. K. Galbraith, La Anatomia del Poder. Barcelona: Ed. Plaza y Janés, 1984, pp. 45-61.

126 A liderança do político eleito na governança


Capra, é crescimento cancerígeno (também em termos de pro-
postas eleitorais), que mata a própria classe política, e com ela, a
democracia.68
Uma analogia com o esporte pode servir para ilustrar. A lide-
rança capacitadora é o jogador que arma o jogo de sua equipe
para que todos os jogadores obtenham o máximo rendimento de
si mesmos. Ao contrário, o dominador é aquele jogador que toda
a equipe joga para ele, para que seja decisivo. Por isto, a liderança
dominadora crê que os membros da sua equipe têm pouco valor e
necessita que todos se ponham a seu serviço, ainda que seja para
o fim coletivo de vencer.
Frequentemente se entendeu a liderança como aquela situa-
ção na qual uma pessoa tem a capacidade de expressar as neces-
sidades e sentimentos da coletividade, fazer propostas, desenhar
o futuro da coletividade e assumir todo o risco da sua realização,
fazendo com que, deste modo, a cidadania siga confiando nela.
É a figura do líder “caudilhista”. Em situações de crise aguda,
esta liderança pode ser possível, porém em absoluto é desejável,
por suas conotações autoritárias, e porque implica uma situação
de desorganização social ou comunitária. Por outra parte, em
uma sociedade que avança na era das redes e do conhecimen-
to, este tipo de liderança é de todo inadequado, produz graves
fraturas no sistema de relações sociais e dificulta a constituição
de redes. O líder representativo também necessita expressar os
desafios, emoções e sentimentos da cidade, porém o faz a partir
da consulta, isto é, da construção coletiva. Entenda-se bem. Em
outras palavras, na busca do diálogo, da consulta, da participa-
ção, sem deixar de dispor de ideias e de gerar emoções e senti-
mentos. Sua liderança consistirá em saber identificar a visão de
futuro e saber convencer e comover a cidadania; porém, estas
características próprias da liderança, ao contrário do líder cau-

68 F. Capra, La trama de la vida. Barcelona: Ed. Anagrama, 1998.

A liderança do político eleito na governança 127


dilhista, serão obtidas através do diálogo e da consulta. Serão
uma construção coletiva na qual teve um papel facilitador, sem
contudo perder a capacidade de representar esta visão de futuro
e gerar sentimentos e ações coletivas. Do contrário, não poderá
liderar a coletividade.

A liderança representativa é capacitadora


A boa atuação de um líder representativo se mede em função
de que, uma vez finalizada a ação, houve aumento do nível de
organização e envolvimento da cidadania. Ao contrário, uma li-
derança dominadora avaliará sua ação em função do aumento de
sua influência e domínio entre a cidadania.
Para o líder eleito, nada do que acontece em sua cidade lhe
é estranho. Está claro que, na maioria dos casos, o que preocupa
a cidadania não será obrigatoriamente uma competência munici-
pal, nem o município necessariamente disporá de recursos para
enfrentá-los, mas o líder atuará como interlocutor de sua cidade
frente a outras administrações, facilitará o envolvimento de atores
privados e amplos setores da cidadania interessados para organi-
zar a resposta e obter os resultados esperados.
O líder representativo constrói consensos e forja pactos e
alianças, obtém o apoio e envolvimento cidadão ao expressar as
suas necessidades e desafios e os assume como seu representante
eleito.
A liderança política na governança pede uma cidadania ativa.
Sua principal finalidade é melhorar sua capacidade de atuação.
Fixará os objetivos políticos de tal modo que seus resultados en-
volvam o conjunto da cidade, concentrando-se não só nas compe-
tências legais ou na disponibilidade de recursos municipais, mas
em objetivos de desenvolvimento humano no qual todos os seto-
res da cidadania tenham responsabilidades.

128 A liderança do político eleito na governança


Seu êxito consistirá em apresentar os avanços conseguidos no
município, mais do que o cumprimento de algumas propostas
eleitorais que ninguém controla.
Continuando a analogia com a área esportiva feita ante-
riormente, o líder representativo avaliará o êxito pela posição
que sua equipe conquistou na tabela de classificação. Já o
dominador só se fixará em seus resultados pessoais: gols, ces-
tas, tempos conseguidos e etc. Para ele, o resultado da equipe
é menos importante porque ela depende de seus resultados
pessoais.
A liderança representativa, isto é, relacional e capacitadora,
tem em conta que o cidadão atribui ao prefeito ou prefeita tudo o
que acontece na cidade. Seja positivo ou negativo, seja de compe-
tência municipal ou não, as responsabilidades por ação ou omis-
são são atribuídas pela cidadania ao prefeito ou prefeita. Para a
cidadania é difícil identificar o responsável por um equipamento
ou serviço público no emaranhado de competências existentes. É
mais fácil que demonstre sua satisfação em função de temáticas
gerais da cidade: mobilidade, meio ambiente, espaços públicos,
emprego, prática esportiva e oferta cultural. Isto é, aspectos im-
portantes da vida cotidiana com grande capacidade de produzir
bem-estar; porém, esta é uma produção que envolve muitos ato-
res, e a tarefa do governo local é justamente gerir suas interdepen-
dências para organizar coletivamente a produção do bem-estar
mencionado.

A distinção entre política e gerência


No modo gerencial de governar, próprio do governo provedor e
gestor de recursos, se confunde o papel do político e o do gerente ou,
de modo geral, do gestor. De fato, foi produzida uma subordinação
da política à gerência, valorizando-se muito mais o papel gerencial e

A liderança do político eleito na governança 129


simplesmente de gestão do que o do político eleito com funções de
governo.
Esta subordinação da política à gerência assumiu formas dife-
rentes. A mais lamentável é o desprestígio do político eleito e sua
desautorização por parte dos profissionais da gestão. Outra tem
sido o fato de que os gerentes ganharam relevância sobre os políti-
cos, criando-se a figura do prefeito-gerente, ou do vereador-gestor.
Este enfoque tem sido acompanhado da tentativa de converter a
prefeitura numa empresa, em alguns casos, inclusive, como a maior
empresa do município.
O grande problema deste posicionamento, isto é, do modo
gerencial de governar, é que a prefeitura, e menos ainda os
serviços de bem-estar social, não são uma empresa, e querer
torná-los semelhantes, levou em muitos casos a desconsiderar
sua responsabilidade pela aplicação da lei, própria de qualquer
administração democrática, e o papel do cidadão passou do pa-
pel de súdito, próprio do modelo burocrático, ao de cliente ou
consumidor, e não como cidadão propriamente dito. Ou seja,
como sujeito ativo de direitos, a quem o governo deve ser capaz
de representar.
Na governança democrática, o papel do político não ape-
nas é revalorizado em relação ao gestor ou gerente. Ele tam-
bém deve ser capaz de gerir os serviços com eficácia e, como
veremos, em função do seu impacto no desenvolvimento co-
munitário.
Porém, sem dúvida, o mais importante é a nítida separação
das funções de gerência ou gestão das funções e “papéis políticos”
que a governança proporciona. No quadro seguinte são destaca-
das as diferenças citadas:

130 A liderança do político eleito na governança


GERENTES ELEITOS NA GOVERNANÇA

1. Organizam e proporcionam recursos 1. Constroem o interesse geral


2. Fazem corretamente as coisas 2. Fazem as coisas corretas
3. Centram-se nos processos de trabalho 3. Centram-se na criação de uma visão
4. Perguntam-se como e onde comum
5. Preocupam-se em fazer as coisas 4. Perguntam-se o quê e quando
6. Dão prioridade aos procedimentos, 5. Preocupam-se com o significado das
estruturas, controle e qualidade da coisas para as pessoas
gestão 6. Dão prioridade aos objetivos sociais,
7. Confiam nos procedimentos e aos valores e “posicionam” as pessoas
controles numa direção
8. Interessam-se pela produtividade 7. Confiam nas pessoas e sua capacidade
9. A participação como cliente e usuário de mudança e compromisso
de serviços 8. Interessam-se pela eficácia (cumprir
objetivos)
9. A participação como construção e
envolvimento da cidadania
É importante o equilíbrio entre a administração e a representação, mas a prioridade
é a liderança representativa para fortalecer a capacidade de organização e ação. A
liderança é chave em tempos de mudança.

É óbvio que estas diferenças são plenamente compatíveis.


Mais ainda, sua compatibilidade permite dar um caráter sinér-
gico à atuação do governo local. Neste sentido, cabe destacar
que a prestação e gestão dos recursos do profissional não só
está subordinada à construção do interesse geral como deve
ser um dos suportes nos quais esta construção deve basear-se.
Porém, em caso algum pode se entender que o interesse geral
consiste no desenvolvimento de uma prestação de serviços e
sua gestão eficiente.
O papel do gerente é, precisamente, preocupar-se com uma
gestão eficiente, isto é, com a produtividade, porém está colocada
a serviço do cumprimento de objetivos sociais, cuja identificação
tenha sido liderada pelo representante eleito.

A liderança do político eleito na governança 131


Em seu papel de líder capacitador, o que o preocupa, fun-
damentalmente, é o significado que as coisas e projetos têm
para as pessoas. Procura que elas sejam identificadas como um
direito e um dever. Quer dizer, evitará que seja vista como favor
e, muito menos, como uma ação clientelista ou, ainda, como
uma ação que provoque dependência ou subordinação. Deve
ser uma ação realizada pelo governo que corresponda à satis-
fação de direitos sociais, que reverta em maior compromisso
com a autonomia pessoal e coletiva dos cidadãos, e que esta
autonomia se expresse em compromisso ativo e solidário com
o conjunto da sociedade. Já a preocupação do gerente é fazer
bem as coisas, mas no marco político estratégico e com signifi-
cado para a cidadania estabelecido politicamente.
Em última análise, a tarefa do governante eleito é articular
coletivamente a estratégia. Ou seja, “o quê” e o “quando”. E,
ao considerar na estratégia as competências e os recursos mu-
nicipais, o profissional da gestão ou o gerente estabelecerá o
“como”, isto é, os procedimentos e metodologias; e o “onde”, o
lugar mais adequado entre os possíveis.

A liderança estabelecida através da direção


política e moral
Gramsci, filósofo humanista e político, fundador do Partido Co-
munista Italiano, se distanciou muito da política leninista de sua
época. Entendia a tarefa do partido comunista como a construção
de um grande bloco social e popular que abarcaria a maioria da
sociedade. A aglutinação desta maioria social se daria através da
hegemonia política. Ou seja, pela capacidade de direção cultural e
moral de um grupo social – no seu caso, o partido comunista –, que
atuaria como um intelectual coletivo e estruturaria o bloco social.
Hoje estamos em outro momento histórico, embora a propos-
ta de Gramsci de aglutinar um grande conjunto social, através da

132 A liderança do político eleito na governança


direção cultural e moral, deva ser levada em conta.69 É importan-
te entender, contudo, que não se trata mais de gerar um grande
bloco contra alguém ou classe social, mas de construir o interesse
geral a partir dos interesses legítimos dos diferentes setores sociais.
É claro que, em não poucas ocasiões, setores sociais minoritários
ficam à margem deste acordo, mas esta minoria não se transfor-
ma em inimigo a ser abatido. Tampouco aqui afirmamos que se
trata de construir o socialismo ou o comunismo, mas de avançar
em condições dadas na direção do desenvolvimento humano. Nem
mesmo se trata de priorizar um “ismo”, seja liberalismo, socialismo
ou nacionalismo, mas de enfatizar e priorizar os valores e atitudes
democráticas de fortalecimento dos direitos humanos e as atitudes
de respeito, tolerância, abertura e criatividade. O mais importante
é que hoje a democracia não pode ser entendida simplesmente
como um meio, mas como meio e fim. Por último, já não se vê
o partido como o grande organizador desse amplo acordo social,
mas sim os líderes eleitos no exercício das funções de governo, a
pessoa eleita como representante pela maioria dos cidadãos, seja
para governar o conjunto da população que vive em um território,
seja para assumir a responsabilidade de uma política setorial, como
é o caso da política de bem-estar social. Entretanto, para isto, é
imprescindível que o governante eleito não realize sua tarefa tendo
em conta apenas seus eleitores, mas todo o conjunto de habitantes
do território ou cidade, ainda que possa partir dos interesses (não
dos posicionamentos) de seus eleitores aos quais, sem dúvida, deve
corresponder à confiança nele depositada.
Estamos, pois, em sintonia com Gramsci no sentido de que,
na governança democrática, a construção coletiva do desenvolvi-
mento humano deve ser realizada através de valores, atitudes e
responsabilidade. A estratégia compartilhada e os projetos basea-

69 Ver N. Bobbio, “Gramsci y la Concepción de la Sociedad Civil” em Gramsci y las Ciencias


Sociales. Mexico: Ed. Pasado y Presente, 1997, pp. 65-94.

A liderança do político eleito na governança 133


dos em um compromisso coletivo de ação estão fundamentados
no conhecimento e guiados por valores.
A direção política se refere, na governança democrática, ao go-
verno da pólis, isto é, ao conjunto da cidade, ao estabelecimento de
alguns objetivos para a sociedade e ao desenvolvimento de políticas
ou projetos para alcançá-los coletivamente. Assim como no estabe-
lecimento de metodologias precisas para distinguir entre interesses
e posicionamentos, e do conhecimento dos conteúdos das políticas
para poder desenhar os cenários de futuro e os projetos que permi-
tam articular os interesses e compromissos de ação. Para isso, o po-
lítico eleito necessita ampliar e fortalecer sua capacidade estratégica
e relacional. Não lhe bastam suas qualidades pessoais; ele necessita
de apoio e assistência técnica especializada em gestão de serviços,
procedimentos legais e administrativos. Necessita de assessoramento
específico em gestão relacional. Este tipo de assessoria, dado que se
desenvolve em um ambiente de mudança permanente, e de grande
complexidade e diversidade, precisa de serviços contratados exter-
namente (ainda que coordenados internamente), de think tanks, isto
é, de serviços de alta inovação política e social, que possam dar ao
dirigente apoio à sua tarefa de construir o interesse geral através da
confiança, do acordo, da colaboração e do compromisso.

O representante político é o principal


agente de mudança
A necessidade de profissionais externos e internos para fortale-
cer a capacidade da liderança relacional do representante político,
através do suporte e assistência técnica, faz lembrar, no âmbito do
bem-estar social, a ideologia do trabalhador social como agente
de mudança, que teve força nos anos 70 e até o princípio dos 80
na Catalunha.
É certo que o papel do trabalhador social, como os educa-
dores, psicólogos e sociólogos, contribui para o desenvolvimento

134 A liderança do político eleito na governança


comunitário ao fortalecer a capacidade de uma comunidade. De
fato, como já observado anteriormente, uma das tarefas prioritá-
rias para a governança democrática é o fortalecimento da organi-
zação dos grupos e comunidades vulneráveis, para que participem
de pleno direito na construção do interesse geral em seu território.
Daí decorre a importância do trabalho social comunitário como
prioridade crescente na perspectiva do futuro imediato.
Porém, como no caso do gestor ou gerente, a tarefa se inscre-
ve no marco das políticas de construção coletiva do bem-estar, que
deve, sem dúvida, ter como protagonista o político, o representante
da pólis ou cidade.
Podemos dizer, com toda clareza, que o agente principal de
mudança, já que não existe um agente único na democracia con-
solidada, é o político eleito. É desejável que ele seja o principal
líder da capacidade de organização e ação de um território. Qual-
quer enfoque que coloque em um profissional o papel de agente
de mudança em uma democracia só pode ser entendido como
uma relíquia do pensamento tecnocrático e autoritário.

A nova tarefa: tornar visível o apoio social


às políticas
Um dos temas mais preocupantes do trabalho político é, sem dú-
vida, a oposição de setores da cidadania à tomada de decisões de ca-
ráter transcendente sobre assuntos de interesse coletivo. Maquiavel,
em O príncipe, já alertava o mandatário sobre este aspecto, na intro-
dução de reformas e novas leis: “Aquele que queira introduzi-las (as
novas leis ou reformas), terá como inimigos todos os que se benefi-
ciavam das antigas. E aqueles que as novas leis favoreçam serão ape-
nas apáticos defensores das mesmas.”70 As razões da tibieza, segundo
Maquiavel, são o medo em relação aos adversários que tinham uma

70 N. Maquiavel, El Príncipe. Barcelona: Ed. Veron, 1974, p. 24.

A liderança do político eleito na governança 135


situação de privilégio anterior, e o fato de que a confiança na inova-
ção, nos novos projetos, só se adquire realmente ao ser comprovado
que funciona. No século XXI, em uma democracia consolidada, a
segunda explicação é, sem dúvida, a mais relevante.
O certo é que, ante novas políticas e projetos, o que se visualiza
por parte do cidadão (através dos meios de comunicação interes-
sados, alguns, em ressaltar as más notícias, ou por ocupação de
espaços públicos por meio de manifestações e outros atos) são os
setores que se opõem, os que estão em desacordo com a imple-
mentação dos projetos. Os que estão de acordo, na melhor hipó-
tese, desaparecem no meio da maioria silenciosa.
Por outro lado, em muitas propostas de participação, estas
aparecem como “a plenária dos não eleitos”, isto é, o lugar de
expressão das demandas e das queixas daqueles que não têm re-
presentação eleitoral, que têm pouca influência nas decisões po-
líticas. Este espaço, sem dúvida de grande interesse do ponto de
vista democrático, não pode ser considerado o espaço de parti-
cipação do conjunto da cidadania, porque simplesmente não é.
No mesmo sentido, muitas vezes a participação cidadã é apenas o
espaço em que se manifestam os setores descontentes.
A construção do interesse geral em cada política setorial, em
cada projeto, significa que é preciso entender os espaços de partici-
pação e de deliberação cidadã de maneira ampla e muito flexível,
tal como vamos expor nos capítulos seguintes. De modo que, efeti-
vamente, sejam visíveis os acordos sociais, que se visualizem de ma-
neira clara os setores que deles se beneficiam e, muito especialmen-
te, aqueles setores vulneráveis cuja situação possa ser melhorada.
A liderança do representante eleito em espaços de ampla deli-
beração e colaboração é, sem dúvida, uma das tarefas básicas em
um governo que se defina como relacional.

136 A liderança do político eleito na governança


6. Fundamentos para liderar
a coesão social a partir do
governo local

Ideias Principais
1. A coesão social é um conceito amplo que precede o desenvolvi-
mento e não é somente sua consequência.

2. A coesão social equivale à capacidade de um território de fazer


frente a seus próprios desafios.

3. É preciso uma liderança política assentada em novos pilares de


gestão para promover a coesão social das cidades.

4. Liderar a coesão social é antecipar-se e canalizar os conflitos


entre os cidadãos.

5. A liderança relacional precisa de apoio técnico renovado.


Já mencionamos que a coesão social não pode ser entendida
apenas como um resultado do desenvolvimento de um território.
Pelo contrário, é preciso partir de alguns níveis necessários de
coesão para que se alcance um desenvolvimento endógeno sus-
tentado e sustentável. Neste sentido, ela deve ser entendida como
capacidade de organização e ação de um território para enfrentar
seus próprios desafios econômicos, sociais, político-democráticos
e de sustentabilidade. Quer dizer, de uma maneira muito seme-
lhante a como se tem entendido historicamente o trabalho de
desenvolvimento comunitário por parte dos trabalhadores da área
social.
Uma cidade ou município, em geral, estará mais integrado
socialmente, ou disporá de maior capacidade de organização e
ação sempre que:
• Disponha de uma grande e ampla visão compartilhada
do território, assim como das bases e eixos sobre os quais
deve se assentar uma estratégia que envolva a grande
maioria dos atores sociais e cidadãos.
• Exista um profundo e amplo sentimento de identidade
com a cidade por parte de todas as distintas comunida-
des e setores que a compõem, e que se distinguem por
sua procedência geográfica, cultural ou social.
• Seja desenvolvido um processo de maior valorização das
diferenças entre as pessoas, frente a sua procedência
geográfica e cultural.
• Sejam desenvolvidas relações diversas e intensas entre
as pessoas nos distintos âmbitos sociais: trabalho, escola,
lazer, bairro e etc.
• Exista um processo mais intenso e extenso de redução
das desigualdades sociais e geração de novas e maiores
oportunidades vitais para o desenvolvimento de projetos
de autonomia individual ou grupal ao alcance da cida-

138 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


dania, independentemente de sua procedência, origem
e ambiente cultural.
• Nesta perspectiva, e tendo em conta que no território se
produzem processos complexos de coesão-desintegração
social, o governo local que tenha como objetivo o desen-
volvimento de um território socialmente mais integrado
deverá exercer seu trabalho em uma dimensão dupla.
Por um lado, uma tarefa de dar impulso aos fatores que
geram coesão, e, por outro, um trabalho de prevenção
e canalização de situações conflituosas, que sempre são
geradas em uma cidade ou município.

Os 7 pilares para a liderança política


Um político eleito com a vocação de liderar a construção de
uma cidade mais inclusiva deve elaborar uma política que se fun-
damente nos seguintes pilares ou bases.
1. Criar uma visão social do município e seu futuro. Trata-se de
dirigir, como representante do seu município, a elabo-
ração e o desenvolvimento de uma estratégia compar-
tilhada entre todos os atores e setores da cidadania. O
mais importante desta estratégia é a visão ou modelo de
futuro do município. É básico para a coesão social que
esteja claramente refletida a dimensão social do modelo
de cidade, uma vez que em muitas cidades existe so-
mente um modelo urbanístico e/ou econômico. Uma
visão que, além de ser entendida e aceita pela grande
maioria dos cidadãos, gere adesão e compromisso cida-
dão para levá-la a cabo. Para isto é imprescindível uma
elaboração participativa, que todos os setores sociais e
cidadãos se sintam parte da mesma e, deste modo, pos-

Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local 139


sam orientar sua atuação na mesma direção.71 O funda-
mental é o compromisso cidadão com a cidade, isto é,
com os demais cidadãos.
2. Atrair e envolver todos os setores da cidadania. A elabora-
ção de uma estratégia compartilhada que seja inclusi-
va, isto é, que não exclua a presença das necessidades
e desafios de nenhum grupo social, exige o desenvolvi-
mento de ações positivas para conseguir que os grupos
mais desfavorecidos socialmente estejam claramente re-
presentados na política de coesão social. É preciso estar
sempre vigilante para que a participação não se restrinja
aos setores mais organizados e com maior capacidade
propositiva. Se isto ocorrer, existe o perigo de fortalecer
a segregação social entre o grupo social mais amplo e os
excluídos.
3. Gerar capital social. Trata-se de integrar as diferentes pes-
soas e grupos sociais no desenvolvimento de projetos
comuns ou em redes. Para isto deve desenvolver-se toda
uma programação para que os setores da cidadania pos-
sam reconhecer seus interesses comuns ou complemen-
tares e se desfaçam as falsas percepções que uns têm
sobre os outros. Promover as suas interações para que
obtenham maior confiança mútua e possam chegar a
compromissos de ações conjuntas ou complementares.
4. Mediar conflitos entre atores e setores da cidadania. O gover-
no local deve atuar com enfoque e técnicas de negocia-
ção relacional de conflitos, cuja finalidade seja fortalecer
as relações entre as entidades que negociam, nos temas
em que tenha sua competência envolvida. Também deve

71 Recomenda-se a elaboração de um plano estratégico, cuja finalidade seja alcançar uma


cidade inclusiva. Ver a este respeito os trabalhos do Marco Estratégico de Barcelona, pro-
movido pela associação público-privada ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social).
www.abas.org

140 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


ser facilitador e mediador de conflitos entre atores e enti-
dades cidadãs. A coesão social de um território depende
de sua capacidade de enfrentar e resolver positivamente
conflitos. Um município que progride não é aquele onde
inexistam conflitos, mas aquele que os confronta buscan-
do novos cenários, novas situações em que os diferentes
interesses possam se complementar. Por isto, é importan-
te dispor de espaços de intermediação facilitadores do
encontro de interesses legítimos entre os grupos, setores e
entidades da cidadania.
5. Conseguir vitórias rápidas e visualizar a realização de pro-
jetos. É importante, para promover a coesão, que a ci-
dadania experimente uma realização visível de projetos
tangíveis para o bem-estar da comunidade. A partir de
uma perspectiva de mobilização e participação nos as-
suntos coletivos, o mais importante não é tanto o proje-
to tangível que afeta um número reduzido de cidadãos,
mas os efeitos intangíveis na consciência cidadã do saber
fazer e gerenciar com eficácia e honradez. Por isto, a
realização de projetos deve enquadrar-se em um projeto
de geração de cultura cívica e empreendedora da cida-
dania. Dar intencionalidade educativa a tudo o que se
faça, para que a comunidade compreenda, confie e se
envolva.
6. O desenvolvimento de uma comunicação efetiva baseada
nos valores do humanismo ou do republicanismo cívico. A
comunicação deve basear-se na realidade dos projetos e
de suas circunstâncias. A comunicação efetiva não tenta
substituir a realidade, mas tomá-la como base para as
mensagens e os significados que se deseja transmitir a
partir de uma situação objetiva. A comunicação tem que
se apoiar em uma informação clara, transparente, docu-
mentada e na qual se possa acreditar.

Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local 141


7. Envolver o conjunto do governo local na temática da coesão
social. Este pilar não é o último por ordem de importância.
Muito pelo contrário, pois, se a coesão social não for um
objetivo assumido por toda a administração, são criados
obstáculos dificilmente superáveis para liderar os proces-
sos de coesão social por parte dos governos locais. Por seu
papel importante, dedicamos-lhe uma seção específica.

O envolvimento do governo local


A coesão social, ou mesmo a realização de objetivos sociais
em um município, não é tarefa exclusiva de um departamento
ou secretaria. Assim, por exemplo, para garantir as necessidades
básicas de uma população ou reduzir a pobreza em um território
– embora a responsabilidade para alcançar este objetivo costume
ser da secretaria de assistência social, por ter mais competências
e recursos específicos – devem ser envolvidas as áreas de saúde,
obras públicas (saneamento básico, espaços públicos, iluminação,
etc.), transporte, moradia, educação e esporte (que se converteu
em necessidade básica de saúde), uma vez que as tais necessida-
des são mais amplas que o acesso a equipamentos e prestação dos
serviços sociais.
O fundamental para integrar socialmente um município é que
a atuação do conjunto do governo se oriente por objetivos so-
ciais. Que a atuação de todas as áreas ou departamentos tenha
por referência os mesmos objetivos de coesão social, redução das
desigualdades e desequilíbrios territoriais.
É muito importante que o responsável pela assistência social,
que vai liderar as ações para a integração social, tenha muito claro
o que deve demandar das outras áreas do governo para que o con-
junto do município avance no sentido de alcançar o maior grau de
coesão possível.

142 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


A este respeito, o primeiro fórum de responsáveis pela área de
bem-estar social da Província de Barcelona72 dedicou um grupo
de trabalho destinado à identificação dos critérios sociais para a
produção de espaço público, que é um dos temas de maior envol-
vimento na geração de capital social, e na prevenção de conflitos
sociais.73 As principais constatações foram:
• A configuração do espaço público ou, inclusive, a carên-
cia do mesmo, foi considerada como uma das expres-
sões mais claras do que é a sociedade: “... é a sociedade
inscrita na terra” (Lefebvre). Porém, o espaço público, en-
quanto construção coletiva de uma cidade dirigida por
uma prefeitura democrática, também é a expressão do
que se quer ser, uma antecipação da sociedade do futuro
e, por sua vez, um instrumento de transformação da cidade
ou do município atual na perspectiva do município que se
deseja no futuro.
• Na visão democrática da nova sociedade-rede, ou tam-
bém denominada sociedade do conhecimento, o espaço
público é considerado fundamentalmente como gerador de
capital social. Na avaliação do impacto de um espaço pú-
blico, têm que ser levado em conta, sobretudo, a intensi-
dade e qualidade das relações sociais que favorece.
Um espaço público, desenhado a partir de uma clara definição
de objetivos sociais a serem alcançados pela cidadania, pode ter
os seguintes impactos positivos:
• Dar centralidade e, em consequência, iniciar a recuperação
de periferias, sempre que se recuperem espaços margi-

72 No original, “I Forum de Regidors i Regidoras de Benestar Social”, organizado pela Diputa-


ción de Barcelona. Os “Regidors” e “Regidoras”, também denominados Concejales e Con-
cejalas (vereadores e vereadoras), são pessoas eleitas em pleitos locais e, na Espanha, têm
responsabilidades executivas na equipe de Governo. (Nota do tradutor)
73 O grupo foi presidido por Josep Mª Lahosa. Diretor de Serviços de Prevenção da Prefeitura
de Barcelona, e Consejal (vereador) responsável pela área de Bem-Estar Social da Prefeitura
de Villanova.

Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local 143


nais, segregados e inacessíveis, de encontro, onde pos-
sam emergir atividades econômicas, sejam casas comer-
ciais ou escritórios. Tem como consequência incrementar
o preço do solo nos arredores, fato que significa um cres-
cimento da renda da vizinhança.
• Gerar identidade, por converter os espaços em lugares,
isto é, espaços significativos para a cidadania. Espaços
dignos, bonitos, com valor simbólico, que permitam que
as pessoas se sintam como sendo do lugar, do bairro. O
sentimento de “pertencer” é chave para a autoestima e a
geração de envolvimento e responsabilização dos mora-
dores em relação ao bairro e a se mesmos; e inicia e for-
talece o processo de progresso do conjunto do bairro.
• Gerar capital social. Constituir um espaço de encontro e
convivência gera conhecimento mútuo, identifica e di-
funde, através das relações de vizinhança, os desafios do
bairro e permite a colaboração entre vizinhos.
• Constituir um equipamento aberto para a prática de espor-
tes e atividades de lazer para todo mundo, mas muito
especialmente para a vizinhança com menos possibilida-
des de renda e com moradias mais deterioradas, que são
os que mais usam o espaço público.
• Fortalecer a cultura popular e de bairro, para a realização
de festas populares e atividades culturais e solidárias de
rua.
• Promover a integração cultural da diversidade de origens –
geográficas, de línguas e idades – como consequência
dos impactos anteriormente apontados.
A partir destas considerações, foram estabelecidos critérios que o
responsável pela área de bem-estar social deve demandar da equipe
de governo, para conseguir maior coesão social nos projetos de es-
paço público:

144 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


• Acessibilidade para todas as pessoas em todos os espaços,
cumprir os critérios da LISMI (idosos, crianças, pessoas
com mobilidade reduzida...)74
• Multifuncionalidade. Dispor de espaços para crianças, jo-
vens e idosos, assim como para diferentes usos – esporti-
vo, lazer, comercial, etc. – é básico para conseguir ser um
lugar de encontro e convivência entre as gerações.
• Participação dos moradores e dos profissionais de assistência
social para que se identifiquem com clareza os diferentes
desafios e expectativas dos diversos segmentos da popu-
lação no desenho e realização do projeto.
• Que melhore a imagem do bairro ou do município, pela sua
beleza (não quer dizer que seja mais caro) e por sua uti-
lidade.
• Simbolismo. Que haja elementos que recuperem a me-
mória do bairro ou do município. Assim como símbolos
que favoreçam a identificação do bairro e a autoestima
dos moradores. “Monumentalizar as periferias.”
• Prevenção. O espaço aberto permite identificar situações
de risco que possibilitam um tratamento social. É impor-
tante tratar os temas com sentido de antecipação para
a melhora da convivência. Por exemplo, o tratamento
de grupos de jovens “desajustados”, o aparecimento de
“bêbados”, etc.
• Segurança. Conseguir espaços públicos seguros não sig-
nifica cercá-los nem privatizar o seu uso. Têm que ser
levadas em conta a iluminação e a visibilidade em todos
os lugares, para que gerem ambientes seguros. É preciso
assegurar que os moradores possam facilmente chamar
a polícia caso necessário.

74 Trata-se de uma lei espanhola que garante os direitos das pessoas com necessidades espe-
ciais. A sigla significa Ley de Integración Social del Minusválido. (Nota do tradutor)

Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local 145


• Integração. Conseguir que as pessoas de origens diversas
participem do uso do espaço público.
De modo semelhante, estes critérios devem ser aplicados ao
conjunto dos departamentos municipais e, assim, contando com
os mesmos recursos, mas orientados por critérios sociais, sejam
alcançados avanços importantes na coesão social dos municípios.

Antecipar-se e canalizar situações de


conflito
Foi dito antes que, para liderar a coesão social, era preciso de-
senvolver um trabalho em duas dimensões. Uma, desenvolver os
pilares sobre os quais repousa a coesão; e outra, prevenir e canalizar
as situações conflituosas entre diferentes grupos sociais ou setores
da cidadania.
Os processos de coesão social podem ser obstaculizados ao
aparecerem conflitos que, se forem indevidamente canalizados,
levam à segregação mútua entre setores comunitários.
A exclusão social é definida por dois componentes: uma situação
social diferenciada em função de uma ou mais variáveis (proce-
dência geográfica, cultural ou social, valores e crenças, opções e
atitudes sexuais, gênero, nível de renda etc.) em relação ao grupo
social mais amplo (definido em função das variáveis sociais con-
sideradas), e uma reação de rejeição ou segregação do grupo social
mais amplo com respeito ao minoritário em todos ou alguns dos
níveis ou âmbitos de uma sociedade (econômicos, sociais, territo-
riais ou políticos).
A diferença social, a desigualdade ou mesmo o desvio em
relação a atitudes e condutas predominantes e suportadas pelos
costumes ou normas geram exclusão social se não for criada uma
reação social segregacionista ou excludente. Determinadas situa-
ções sociais condicionam, sem dúvida, o aparecimento da reação
de exclusão: elevados níveis de desemprego, a insegurança cida-

146 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


dã, situações de miséria econômica e de habitação, a ocupação
exclusivista do espaço público etc. Porém, a reação excludente
tem seus mecanismos próprios de geração: desconhecimento do
outro, incompreensão de atitudes e reações, medo do diferente,75
cultura não pluralista76 e etc. Em geral, a reação social excludente
é antecedida pela sistematização de preconceitos sociais ou eti-
quetas que um grupo social elabora em relação aos “outros”.
Uma ou um político que lidere processos de coesão ou in-
clusão social deverá atuar, com apoio do governo municipal, de
modo a antecipar situações para reduzir as desigualdades sociais
e os desequilíbrios territoriais entre os bairros, mas também, e
sobretudo, na prevenção e redução dos obstáculos intangíveis à
coesão social e dos mecanismos que geram a exclusão social.
Pela importância deste segundo aspecto, assim como pela sua
novidade e por esta tarefa inscrever-se plenamente na gestão rela-
cional, são identificadas, a seguir, as tarefas a serem empreendidas
pelo político com responsabilidades de governo para prevenir e
canalizar os conflitos enfrentados por grupos e setores do muni-
cípio.
• Uma das principais tarefas é, sem dúvida, facilitar a
informação clara, documentada e confiável sobre os
diferentes grupos sociais que, por procedência geográ-
fica e cultural, se localizam no território. Em especial,
proporcionar informação sobre as principais contribui-
ções positivas que o grupo em questão (e em perigo de
sofrer reação excludente) faz à sociedade e ao municí-

75 Neste sentido, recomenda-se o livro de Z. Baugman, Confianza y Temor en la Ciudad. Barce-


lona: Ed. Arcadia, 2006.
76 É comum os meios de comunicação difundirem a opinião de políticos e profissionais euro-
peus demandando que os imigrantes de terceiros países aceitem os valores e atitudes das
sociedades receptoras, do mesmo modo que os europeus deveriam assumi-las no caso de
emigrarem para seus países de origem, esquecendo que as sociedades europeias se definem
como pluralistas.

Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local 147


pio em particular, e difundi-las de maneira massiva e
permanente.
• Dispor de espaços de encontro entre os principais agen-
tes responsáveis por processos de socialização: igrejas,
universidades, escolas, associações de moradores e de
imigrantes, sindicatos de trabalhadores e empresários,
que realcem os valores e as características comuns que
podem favorecer a interação e relação estável entre se-
tores da comunidade. Fazendo declarações conjuntas na
celebração das diferentes festividades, perante eventos
locais e externos que podem inibir a segregação mútua e
mediando conflitos locais.
• Assegurar que todos os moradores e moradoras partici-
pem das políticas cidadãs e municipais sobre o território,
para que acumulem o conhecimento de todo o municí-
pio e articulem as respostas às necessidades e desafios de
todos os setores da cidadania.
• Promover e fortalecer redes associativas que integrem
pessoas de diferentes procedências geográficas, culturais
e sociais, com a prefeitura atuando como liderança co-
munitária.
• Dispor de amplos, flexíveis e fortes vínculos entre a pre-
feitura e as entidades do terceiro setor em todos os bair-
ros do município.
• Fazer, sempre que possível, pactos para a inclusão so-
cial com todas as forças sociais e políticas democráticas
do município e, em especial, nos temas relativos à imi-
gração.
Estes mecanismos preventivos funcionam com grande eficácia
nos casos de aparecimento de conflitos entre grupos de vizinhos.
É muito importante que os eleitos tenham uma atitude aberta em
relação ao conflito e uma consciência clara tanto frente aos riscos
como às oportunidades. Esta é a melhor forma de prever e gerir os

148 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


conflitos, incrementando a consciência das interdependências dos
grupos. Líderes políticos sem capacidade para identificar, tanto
as interdependências internas como as externas à Prefeitura e ao
município, são um freio para as sociedades complexas e abertas
em que vivemos.
Em qualquer caso, o líder político relacional nunca buscará o
domínio dos valores e comportamentos de um grupo social sobre
outros, tampouco o isolamento ou a segregação cultural dos gru-
pos sociais. Ao contrário, buscará o máximo apoio e colaboração
para o predomínio dos valores que favoreçam a maior interação
possível, baseada na comunicação aberta, no conhecimento e
compreensão mútuos, assim como no estabelecimento de rela-
ções estáveis entre os distintos grupos sociais no território.

O apoio necessário à liderança relacional


A liderança política relacional necessária para articular a coe-
são social é muito diferente da que se precisa para gerir os recursos
e serviços municipais. É conveniente que o político representativo
possa dispor, ao nível interno ou mediante a contratação externa,
dos seguintes tipos de apoio:
• Conhecimento especializado nas técnicas que assinala-
mos anteriormente de gestão relacional: planejamento
estratégico, participação, gestão de redes, negociação
relacional, etc.
• Um mapa de atores sociais do seu território, que lhe
proporcione uma informação sobre o conjunto de atores
públicos, voluntários, organizações sociais sem fins lu-
crativos, associações de moradores e comunitárias, assim
como seus principais projetos relacionados com os temas
da inclusão e coesão social. Assim como dispor de fortes
vínculos com este conjunto e dos mecanismos para enla-
çar atividades e projetos.

Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local 149


• Manutenção de um sistema de informação sobre as
variáveis que podem incidir na quebra da convivência
entre setores comunitários: evolução do desemprego,
dos índices de delinquência e vítimas, déficit de serviços
básicos e moradias, programação de serviços e equipa-
mentos que possam ser objeto de rejeição por grupos de
moradores.
• Um registro atualizado para saber quem chega ao terri-
tório e as zonas ou bairros em que se assentam.
• Poder utilizar com rapidez e flexibilidade diferentes
meios de comunicação: boletins, imprensa, rádio e tele-
visão local, assim como capacidade para pôr anúncios,
editar folhetos etc.
Não se entende que seja necessário dispor de todos e cada
um desses instrumentos para liderar politicamente a coesão social
em um território; cabe assinalar, unicamente, que eles são conve-
nientes para construir uma política de coesão social mais eficaz.
Por outro lado, quanto menor for a população e a complexidade
do território, menos sofisticação será preciso nos mecanismos de
apoio técnico.

150 Fundamentos para liderar a coesão social a partir do governo local


7. Perfil político para a
liderança representativa
na governança: Valores,
habilidades e atributos

Ideias Principais
1. Os valores próprios das sociedades abertas e do republicanismo
ou humanismo cívico sustentam a liderança representativa.

2. Habilidades ou aptidões específicas do perfil político são neces-


sárias para a prática da governança.

3. Principais atributos do político para a prática política na go-


vernança.
Entenderemos por perfil político a soma integral de habilida-
des ou aptidões, atributos e valores mais importantes para que
uma pessoa, ou um coletivo político eleito possa exercer de ma-
neira mais adequada a liderança representativa em um governo
relacional.

Os valores que sustentam a liderança


representativa
Os valores próprios da liderança representativa na governança
são aqueles da discussão relacional, dos valores e das atitudes que
favorecem, segundo Popper, o desenvolvimento científico.77 Estes
são a liberdade em todas as suas facetas e, muito especialmen-
te, a liberdade de informação, a circulação e debate de ideias,
a tolerância e o respeito ao outro, a suas opiniões e crenças, a
humildade frente a suas próprias ideias, ou seja, os valores das
sociedades abertas.
A governança democrática precisa dispor de técnicas para
poder desenvolver-se. Porém, necessita mais ainda de valores e
virtudes, ou de atitudes dos políticos para dar impulsão à sua po-
tencialidade. Neste sentido, Ortega y Gasset mostrou como o sen-
tido e a própria causa da técnica se encontra fora dela, a saber:
no emprego que o homem dá a suas energias latentes e liberadas
pela técnica; e observou para a sua época que as crises nos dese-
jos, ideias e valores são a razão pela qual toda potencialidade da
técnica não tenha servido para nada.78
Hoje há também uma crise de valores, como nas primeiras dé-
cadas do século passado. Em especial, ressalta um questionamento
generalizado dos políticos e dos valores éticos que devem presidir

77 K. Popper, La sociedad abierta y sus enemigos. Barcelona: Ed. Paidós, 2006.


78 Ver J. Ortega i Gasset, Meditación sobre la técnica y otros ensayos. Madri: Revista de Occidente,
Alianza Ed., 2002, pp. 53-55.

152 Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
a atuação da denominada classe política democrática. Mas este la-
mento generalizado de quebra moral e perda de valores não pode
ser atribuído a casos concretos de corrupção política; como obser-
vou D. Innerarity, essas crises de valores acompanharam sempre o
processo de modernização social e política.79 Hoje, como já dito,
estamos ante uma necessidade de mudança nas formas de go-
vernar dado o esgotamento do modelo baseado na prestação e
gestão de recursos, assim como em uma forma de fazer política
própria de sociedades bem delimitadas territorialmente e integra-
das politicamente no marco do Estado-nação.
As metodologias e técnicas da gestão relacional se inspiram e
só podem desenvolver-se em um contexto de valores e virtudes
próprios das sociedades abertas. De outro modo, é muito difícil
identificar estratégias compartilhadas, estabelecer a negociação
relacional, ou desenvolver o enfoque abrangente em ciências so-
ciais etc.
A governança requer duas condições para ser considerada
como um novo enfoque em ciências sociais, e como um modo
apropriado de governar na sociedade-rede: que a verdade ou a
falsidade de suas teses principais, das bases detalhadas e expli-
cativas, seja demonstrável pela lógica e que suas explicações se
adaptem aos fatos e sejam, portanto, suscetíveis de prova. Porém,
o fato de que este novo enfoque de governar seja considera-
do objetivo ou racional-científico não significa que esteja livre de
valores, como lembra Hempel.80 Pelo contrário, como já obser-
vamos, existem valores e condições sociais e econômicas que per-
mitem um maior/menor desenvolvimento desta teoria, tanto em
nível conceitual quanto prático.

79 D. Innerarity, El Nuevo Espacio Público. Madri: Ed. Espas Calpe, 2006, p. 188.
80 “A adequada solução para um problema não só exige o conhecimento dos meios técnicos,
mas também de padrões para avaliar os meios alternativos à nossa disposição; e este se-
gundo requisito coloca problemas reais.” Em La explicación científica. Barcelona: Paidós Ed.,
2005, p. 118.

Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos 153
Neste sentido, deve entender-se que as políticas estão condi-
cionadas pelo ambiente econômico, social, tecnológico e institu-
cional em que se inscrevem. Porém, condicionadas não quer dizer
determinadas, posto que as decisões políticas são também fruto
da liberdade e responsabilidade de quem decide.81
A governança democrática, como seu nome indica, necessi-
ta das regras e procedimentos democráticos e se consolidará à
medida que os valores e atitudes próprios da sociedade aberta
e democrática sejam interiorizados pela sociedade e seus líderes
políticos sejam sua expressão prática, e não apenas pelo respeito
às regras do jogo democrático. A organização atual da sociedade-
rede, baseada nas interdependências, requer um marco democrá-
tico de responsabilidades que não pode ser assegurado de manei-
ra centralizada nem hierárquica pelos governos; precisa, sim, de
uma responsabilidade com cooperação entre os atores e setores
da cidadania, definida e organizada de forma plural.82
A argumentação anterior também nos serve para destacar que
a governança democrática é uma forma de governar própria de de-
terminadas ideologias políticas ou partidos políticos. Com efeito, a
partir da aceitação das regras do jogo democrático, qualquer opção
política pode desenvolver as metodologias da gestão relacional ou
das interdependências, uma vez que estas são objetivas. As opções
políticas, portanto, não se distinguem pelo uso das técnicas de ges-
tão nem pelo modo de governar adotado, mas pelos valores que
perseguem com o modo de governar, e que se expressam pelos
eleitos e representantes políticos.
No paradigma do governo como gestor do gasto público, a
distinção não se devia ao tipo de gestão, mas, sobretudo, à fi-
nalidade do gasto; se era prioritariamente militar ou social, e se

81 Ver J. Prats, “Ética del oficio político”, em Instituciones y desarrollo. Nº 14-15 Nov. 2003,
pp. 205 a 209.
82 D. Innerarity, op.cit., p.199.

154 Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
a decisão do gasto correspondia a maior ou menor proximidade
com o cidadão. Na governança, a distinção se fará de acordo cm
a prioridade acerca das finalidades do progresso humano, seja
o desenvolvimento econômico, a equidade ou a coesão social,
a sustentabilidade ou o desenvolvimento da ética democrática
ou republicana. Todos eles são valores compatíveis e interde-
pendentes, mas também sujeitos à ordem de prioridade, em
especial se consideramos conjunturas concretas nas quais é pre-
ciso optar pelo que tem um valor predominante. Dito com toda
clareza, a construção coletiva e consciente do progresso huma-
no nos territórios será feita em função de alguns valores ou em
função das pessoas e grupos políticos que tenham sido eleitos
democraticamente.

Habilidades ou aptidões do perfil político


para a prática da governança
As habilidades para o líder em governança não devem ser en-
tendidas tanto como habilidades pessoais, fruto de uma persona-
lidade ou formação, mas como habilidades e aptidões coletivas.
Isto é, aptidões construídas pelo eleito e equipe ou equipes técni-
cas que o assessoram na sua atividade política na prefeitura.
As principais habilidades ou aptidões para exercer este tipo de
liderança são:
• Visão de futuro para o território
• Iniciativa para a gestão da mudança: definição de obje-
tivos
• Desenho de processos e organizações: capacidade de
adaptação
• Comunicação e motivação: convencer e comover
• Construção de alianças: domínio das interdependências

Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos 155
A visão de futuro ou a capacidade de imaginar cenários é funda-
mental para alcançar uma articulação de interesses. É comum que
a confrontação entre atores se produza com base em uma situa-
ção ou projeto dado. Buscar o maior acordo possível e necessário
significa muito frequentemente articular os interesses e desafios
em cenários futuros a serem construídos coletivamente, ou ima-
ginar projetos factíveis em que todos possam ganhar de maneira
correspondente ao esforço ou investimento.
A gestão das expectativas cidadãs é uma habilidade muito impor-
tante. Gerar expectativas que não se realizam provoca frustração.
Sua consequência é a desmobilização da cidadania e a geração de
desconfiança política. Tão importante como a não realização efe-
tiva das expectativas é a percepção de que estas não se cumprem;
os resultados são os mesmos. Esta segunda modalidade é mais
frequente na realização dos projetos estruturantes na cidade, uma
vez que a sua realização não é imediata. Um projeto complexo
percorre necessariamente diferentes etapas (formulação, estudo
prévio, desenho do projeto executivo, orçamento, início de exe-
cução) que se estendem por um tempo que pode ser excessivo e
pode ter seus avanços não percebidos. É preciso não gerar expec-
tativas irrealizáveis, mas também dispor de uma política de comu-
nicação adequada para que os avanços sejam percebidos.
Existe uma fórmula que, se bem que não seja exata, é preciso
ter sempre em conta como referência: satisfação é “igual” ou se-
melhante à percepção das realizações menos as expectativas que
a cidadania tenha criado. Ou seja, quanto maiores as expectativas
em relação à percepção, menor será a satisfação ou maior será a
frustração.
De todos os modos, para que uma cidade possa avançar, ne-
cessita de expectativas razoáveis e críveis, pois do contrário não se
avança. Vale lembrar o caso extremo do lema que apareceu pin-
tado nas ruas de Buenos Aires quando se desvalorizou sua moe-
da: “Queremos promessas, não mais realidades.” À realização de

156 Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
expectativas, cabe responder imediatamente com outras novas.
Para gerir expectativas é aconselhável ter em conta, além da que
acabamos de mencionar, o caso das corridas de cachorros galgos:
quando a lebre se encontra muito longe, o galgo não corre, não
avança, mas se a lebre fica mais perto, o galgo a agarra e também
não corre; é preciso situá-la a uma distância adequada para que o
galgo acredite “razoavelmente” que a agarrará, mas não consegue
alcançá-la e continua correndo. A lebre é a expectativa e o galgo
a cidade, e o que importa é que a cidade sempre corra, sempre
avance.
Iniciativa para a gestão da mudança: gerir as expectativas significa
tomar a iniciativa para começar e dar continuidade às mudanças.
É evidente que não basta apenas vislumbrar, mas iniciar os pro-
cessos de mudança para que, a partir da situação atual, se atinja a
situação ou cenário futuro considerado possível e desejável. Para
isto é preciso dotar-se de uma estratégia e colocá-la em prática.
As forças de transformação devem ser identificadas e definidos os
objetivos compartilhados de maneira clara e factível. Assim como
deve ser iniciada, de maneira exemplar e com visibilidade, a ges-
tão da mudança.
O desenho de processos para a participação cidadã e a realização
de acordos é uma aptidão necessária para gerir a mudança corre-
tamente. A participação deve assegurar o conhecimento perma-
nente dos desafios e necessidades dos diferentes setores para con-
seguir apoio da cidadania, se a estratégia e os projetos adotados
assumirem os desafios e necessidades identificados. Os processos
de mudança não seguem trajetórias fixas; os próprios avanços in-
troduzem mudanças na situação de partida, o que significa que
a estratégia ou projeto identificado aparece com maior clareza e
riqueza de matizes que, sem dúvida, exige a reprogramação não
só dos conteúdos estratégicos, mas também dos espaços organi-
zacionais em que se canaliza a cooperação pública e privada e a
participação.

Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos 157
A comunicação e motivação cidadã83 para conseguir deslanchar
com maior plenitude a capacidade de ação da coletividade. É
convincente comunicar objetivos percebidos pela população como
respostas a suas demandas desde que factíveis e necessárias. Po-
rém, a razão não basta para a ação. É preciso também canalizar
os sentimentos em uma mesma direção. Por isto, a possibilidade
de comover é inseparável da de convencer. Uma sem a outra não
consegue envolver a cidadania em seu conjunto.
A construção de alianças é condição necessária para a governan-
ça. A identificação das interdependências dos atores é condição
necessária, porém realmente crítico é passar desse reconhecimen-
to à construção de alianças, isto é, à geração de compromissos de
ação. A esta condução que vai da identificação de interdependên-
cias ao compromisso, chamamos de gestão relacional. Ela deve
partir do reconhecimento mútuo pelos atores de suas interdepen-
dências, promover ou fortalecer a confiança recíproca para poder
chegar a compromissos sólidos de ação.

Principais atributos para a prática da


governança
Embora as aptidões possam ser, e é aconselhável que sejam,
construções compartilhadas entre as pessoas eleitas e suas equipes,
os atributos são fundamentalmente pessoais de quem se elegeu.
Os principais atributos, ou seja, atitudes permanentes ou instau-
radas da liderança que facilitam o desenvolvimento das aptidões
necessárias à governança, são:84

83 Para o desenvolvimento desta capacidade, recomenda-se o livro de T. Puig, La Comunicación


Municipal Cómplice con los Ciudadanos. Barcelona: Ed. Paidós, 2003.
84 Os atributos foram especialmente selecionados pelo autor. Para um amplo leque dos atri-
butos da liderança recomenda-se J. Boyett, Lo mejor de los gurus. Barcelona: Ed. Gestión.
2001. Também S.R Covey, El 8º Hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005.

158 Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
• Saber escutar: é básico para poder conhecer a fundo as
necessidades e interesses, mas também as contradições,
dos quais surgem os posicionamentos ou reivindicações
dos atores e setores da cidadania, assim como para po-
der entender as sensibilidades.
• Empatia: a habilidade para entender os problemas, de-
safios, emoções e sentimentos, sabendo colocar-se no
lugar do outro.
• Imaginação: atributo necessário para gerar visões de fu-
turo do território e projetos compartilhados – novos ou
reformulados – que gozem de importante apoio social.
• Inovação: a atitude de fazer coisas novas ou as mesmas
coisas de maneira diferente facilita o início de uma nova
gestão pública.
• Habilidade no trato: gerar confiança significa um trata-
mento respeitoso e compreensivo com os outros e saber
incorporar todas as sensibilidades aos compromissos de
ação.
• Curiosidade para conhecer todos os pontos de vista:
entendê-los a partir dos contextos e situações em que
são produzidos é, sem dúvida, uma condição impor-
tante para a sua modificação a partir da compreensão
dos envolvidos e conseguir, assim, sua compatibiliza-
ção.
• Aprender de maneira continuada: é uma atitude essen-
cial para dispor dos conhecimentos necessários para
construir novos cenários ou projetos que incorporem
a grande maioria dos interesses e pontos de vista dos
atores e setores da cidadania envolvidos.

Encontramos, também, atributos pessoais necessários a toda


e qualquer liderança, tais como integridade, serenidade, respon-
sabilidade, proatividade, sentido de humor, preocupação com os

Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos 159
demais, etc. Sem dúvida, ajudam a liderança representativa como
qualquer outra atividade na vida em que se aspire a ser feliz,
porém não são específicos para a liderança própria da governan-
ça democrática. Entretanto, é preciso levar em conta que, muito
frequentemente, confundem-se, com pouco rigor profissional, os
livros sobre liderança com receitas de autoajuda.

160 Perfil político para a liderança representativa na governança: valores, habilidades e atributos
8. Os Governos Locais:
Protagonistas na era da
governança

Ideias Principais
1. Os governos locais têm maior êxito na gestão de serviços às
pessoas e na gestão das relações entre os setores da cidada-
nia.

2. A prefeitura, como organizadora coletiva, é o governo prota-


gonista na sociedade-rede.

3. Os municípios autoinsuficientes.
4. A crescente importância dos governos intermunicipais.
A gestão relacional ou de redes própria da governança posi-
ciona os governos locais em uma situação ímpar para ser o go-
verno protagonista desta nova arte de governar. Dito de outro
modo, o local pode ser o nível de governo característico e chave
do modo relacional de governar. Porém, dispor de oportunidades
não significa que elas sejam aproveitadas. A identificação deste
novo papel e as condições para o seu aproveitamento são tratadas
neste capítulo.

As condições de êxito do nível local


Há muitas décadas que são conhecidos na Europa os fatores
de êxito de um governo local, ainda que os outros níveis de gover-
no insistam em não reconhecê-los.
Em 1986, em plena emergência do modo gerencial de go-
vernar, Margaret Tatcher encomendou um estudo sobre a eficá-
cia dos governos locais na Inglaterra para a gestão dos serviços
de assistência social. O objetivo da ilustre governante era poder
demonstrar que a fragmentação municipal era um inconveniente
a superar, e que uma maior eficácia na gestão justificaria a cen-
tralização de tais serviços. Com estes propósitos, encarregou um
reconhecido gestor de centros comerciais, Sir Roy Griffiths, para
fazer o informe.
O Informe Griffiths, ao contrário do que se supunha, reco-
mendou o reforço dos governos locais. Considerou-se, no Infor-
me, que eles eram o nível mais adequado para gerir as políticas
de assistência social. As razões que expôs não podiam ser mais
emblemáticas:
• Os governos locais, por estarem mais próximos do am-
biente onde vivem as pessoas, são os que melhor podem
identificar suas necessidades. Note-se que não é uma
proximidade física, mas das relações entre as pessoas e
comunidades com seu entorno social e territorial.

162 Os governos locais: protagonistas na era da governança


• Também podem desenvolver uma ação mais integral,
coordenando diferentes tipos de serviços para satisfazer
as demandas sociais.
• A partir do nível local, pode-se organizar o voluntariado
e provocar uma resposta social mais ampla às necessida-
des sociais.
• A partir dos governos locais, é mais fácil coordenar a
assistência social financiada com recursos públicos e pri-
vados.
As vantagens comparativas dos governos locais nos serviços
assistenciais são facilmente estendidas ao conjunto dos serviços
voltados para o bem-estar social. Todas as vantagens observadas
têm um denominador comum: a proximidade. Porém, como já
apontado, não se trata de uma proximidade física – a menor dis-
tância da cidadania, que a torna mais acessível –, mas da proxi-
midade que permite um maior conhecimento das relações entre
as pessoas e as comunidades, com o seu ambiente social e terri-
torial.

A prefeitura como organizador coletivo


A sociedade do conhecimento ou sociedade-rede torna irre-
levante a proximidade física dos governos locais, uma vez que as
tecnologias da informação tornam acessíveis qualquer administra-
ção a partir de qualquer lugar do mundo. Em troca, reforça até o
mais alto grau a proximidade relacional, porque o fundamental
é a organização e gestão de redes de atores. As tecnologias da
informação incidem na produção de valor, se existe uma organi-
zação em rede que permita maximizar suas possibilidades. Neste
sentido, entender a prefeitura como o principal organizador co-
letivo das redes sociais é o que possibilita seu papel de governo
protagonista na sociedade-rede.

Os governos locais protagonistas na era da governança 163


O Informe Griffiths é um exemplo de que, já no modo geren-
cial, a prefeitura poderia ter tido um papel mais importante na
administração do Estado. Para isso, necessitava da transferência
de competências e recursos de outros níveis da administração.
Somente com maiores competências e recursos as prefeituras
poderiam ampliar a importância do seu papel no modelo de
governo provedor e gestor de recursos. Por isso, na Espanha,
e na Catalunha em particular, a ação conjunta dos municípios
tem consistido em alcançar uma segunda descentralização, até
hoje não conseguida, de competências e recursos, sem, de modo
algum, negar a importância dessa descentralização para os go-
vernos locais promoverem o desenvolvimento humano. Na so-
ciedade-rede, o papel central das prefeituras é determinado por
sua atuação como organizador coletivo, pelo seu impacto na me-
lhoria da capacidade de organização e ação de todos os atores e
pessoas em um território.
O papel das prefeituras consiste precisamente em ir além de
suas competências, sejam elas quais forem, para assumir os desafios
das suas cidades. Nada que aconteça, ou os seus cidadãos neces-
sitem, é alheio a uma prefeitura que tenha adotado a governança
como modo de governar. Sua tarefa não consiste em tentar achar
solução para os recursos que não tem, nem qualquer administração
terá, mas em desenvolver uma ampla ação multidimensional que
implique recursos, geração de uma cultura de ação, organização
comunitária, colaboração interinstitucional e público-privada para
dar uma resposta coletiva, no sentido de que envolve toda a socie-
dade para a solução dos seus desafios.
Em última análise, as competências e os recursos nas mãos dos
governos locais não são importantes em si mesmos, mas enquanto
instrumento para aumentar a capacidade das prefeituras convoca-
rem os atores sociais e os cidadãos para organizarem os processos
de responsabilização cidadã e parceria público-privada.

164 Os governos locais: protagonistas na era da governança


O Poder Local: riqueza dos países e regiões
Hoje, depois dos estudos de Jacobs, Sassen, Castells e de tantos
outros, inclusive dos informes do Banco Mundial, parece já estar
estabelecido que as cidades são a riqueza das nações e que a era in-
foglobal se assenta em um sistema mundial de cidades. Os fluxos de
informação, bens e pessoas que se tornaram mais interdependentes
são produzidos, organizados e distribuídos nas cidades e regiões
metropolitanas.
O que hoje deve ser fixado é que o desenvolvimento dos ter-
ritórios depende fundamentalmente dos governos locais – muni-
cipais e intermunicipais. Seu papel de organizador coletivo das
redes e interações sociais no território é, como já observado, sua
dimensão mais singular e influente no desenvolvimento econômi-
co, social e humano.
A modernização da Espanha é, sem dúvida, a modernização das
suas cidades, e o mesmo poderíamos dizer da modernização da Cata-
lunha.85 Os governos locais na Espanha são os principais responsáveis
pela inovação urbana. É certo que a porcentagem dos recursos públi-
cos nas mãos das prefeituras não chega a 13% do gasto público total,
e é o mesmo desde o início da democracia, após o fim do franquis-
mo. O desempenho das prefeituras na Espanha na transformação das
cidades foi dado pelo seu papel relacional. De fato, os cidadãos fo-
ram aos governos locais com suas reivindicações e demandas, estes,
ao não disporem das competências e recursos, não puderam respon-
der diretamente às mesmas. A falta de resposta poderia ter levado
à sua deslegitimação, porém boa parte deles respondeu pondo em
marcha o planejamento estratégico da cidade em conjunto com os
principais atores econômicos, sociais e institucionais. Também foram
feitos planos setoriais para promover o bem-estar social, educação,

85 G. Clark em La gobernanza territorial: un nuevo arte de gobernar. Sevilha: Junta de Andalucía,


2007.

Os governos locais protagonistas na era da governança 165


esporte, saúde e etc., as agendas 21, assim como foram desenvolvi-
das múltiplas experiências de participação e envolvimento da cidada-
nia, processos de cooperação público-privada que, sem conceituá-los
deste modo, serviram para dar início à governança.
Esta tarefa inovadora de protagonizar e articular a construção co-
letiva da cidade deve ser o principal objetivo dos governos locais,
que desse modo passarão a ser o nível de governo fundamental na
sociedade-rede.

Os municípios autoinsuficientes
Os municípios, como consequência da interdependência de
fluxos de todos os territórios, aumentam o seu nível de autono-
mia. Não dependem de um único município, seja este capital de
estado ou centro de uma área metropolitana. A multiplicação das
influências territoriais incrementa a autonomia dos municípios,
que podem reestruturar suas relações com diferentes territórios.
Isto, sem dúvida, explica o desenvolvimento de planos estratégi-
cos em municípios de reduzido tamanho populacional.
Porém, ao definir sua estratégia, ainda que não a definam
bem, eles se dão conta de que necessitam da colaboração de ou-
tros municípios e regiões para melhorar a qualidade de vida de
sua população. As redes não terminam no município e se estru-
turam em territórios mais amplos, em função do tema tratado:
bem-estar social, turismo, cultura, segurança, etc. Ou seja, o en-
caminhamento de uma resposta aos desafios sociais requer a co-
laboração intermunicipal. O município é, na grande maioria dos
temas, insuficiente para dar sozinho uma resposta adequada.
Ele deve ser considerado a unidade básica de um sistema de
redes – regional, macrorregional ou internacional – de cidades que
interagem em uma temática concreta. Gerir a qualidade de vida
da população de um município também é a gestão das relações
externas intermunicipais.

166 Os governos locais: protagonistas na era da governança


A crescente importância dos governos
intermunicipais
Neste contexto das redes municipais, adquirem grande impor-
tância os níveis de administração que têm a responsabilidade pela
promoção e suporte à intermunicipalidade.
No conjunto do Estado espanhol existe uma grande fragmen-
tação municipal e um importante “minifundismo” municipal. Os
Conselhos Provinciais (Diputación), na qualidade de administrações
locais, têm desempenhado historicamente o papel de governo su-
pramunicipal. Os municípios pequenos delegaram aos Conselhos
competências, provisão e gestão de recursos que, pelo seu tama-
nho, não poderiam assumir. Desse modo, os Conselhos assumiram
competências e serviços que gerenciam para âmbitos superiores a
cada município, atuando como governos supramunicipais.
Os Conselhos Provinciais assumiram ao longo da sua história o
financiamento e a gestão de serviços e equipamentos que na atua-
lidade, na Espanha, são competência dos estados (Comunidades
Autónomas ou Departamentos). Este fato, juntamente com as polí-
ticas de investimento e subvenções dos Conselhos aos municípios,
fez com que muitos estados queiram acabar com os Conselhos
por considerá-los concorrentes. A este motivo se soma ainda o
fato de que o território provincial representa uma divisão territo-
rial adotada pelo Estado Nacional, e não corresponde à divisão
que alguns estados lhes consideram adequadas. Não é finalidade
deste trabalho entrar neste debate, afirmar a necessidade de um
governo supramunicipal, seja lá que nome tenha. Porém, o que
uma sociedade em rede precisa e, em particular, a governança
territorial também, é sobretudo de um governo intermunicipal.
O governo supramunicipal é necessário para fornecer os equi-
pamentos e serviços de competência exclusivamente municipal e
que um segmento de prefeituras não pode proporcionar a seus
municípios. O governo supramunicipal não é, portanto, uma no-

Os governos locais protagonistas na era da governança 167


vidade. É, simplesmente, uma maneira de dar continuidade à fun-
ção de prestação e gestão de serviços das prefeituras.
Diferentemente, um governo intermunicipal constitui uma
novidade e é uma dimensão com vocação para prosperar na so-
ciedade-rede. As dimensões da atuação intermunicipal são funda-
mentalmente as seguintes:
• Estabelecer um marco de referência comum sobre desa-
fios e objetivos a serem desenvolvidos no território, para
que facilite a colaboração entre municípios.
• Produzir espaços de intermediação para articular a coo-
peração entre prefeituras.
• Fortalecer as aptidões estratégicas, relacionais e organi-
zativas dos governos locais para o desenvolvimento da
governança, tanto no interior de cada território como
nas relações externas com outros atores e níveis de go-
verno.
• Apoiar a liderança institucional das prefeituras e, em es-
pecial, de seus prefeitos e prefeitas, para fortalecer sua
capacidade de representação e suas habilidades para
construir o interesse geral em seu território, a partir dos
interesses legítimos dos atores e setores cidadãos.
Os Conselhos, como governos supramunicipais, estabeleceram
relações de hierarquia com as prefeituras. Se bem que sua tare-
fa consista em apoiá-las no desenvolvimento de suas competên-
cias, ao disporem de recursos escassos e terem que priorizar as
ajudas, se estas não são feitas através de instrumentos objetivos,
acabam por gerar relações de domínio e subordinação. Em troca,
a dimensão intermunicipal exige horizontalidade, atuação lado a
lado com as prefeituras, uma vez que se trata de gerar redes de
municípios.

168 Os governos locais: protagonistas na era da governança


9. A Governança do
Bem-Estar Social

Ideias Principais
1. O Bem-Estar Social: vanguarda da governança.
2. É necessário reestruturar a gestão dos serviços públicos de
bem-estar social na governança.

3. A gestão de redes e a participação cidadã. Eixos estruturantes


do governo relacional.

4. A participação como envolvimento da cidadania no “fazer ci-


dade”.

5. O apoio social às estratégias e políticas.


O Bem-Estar Social: vanguarda da
governança
A governança, como assinalamos anteriormente, é a arte de
governar ou modo de governar específico do governo relacional.
Este, por sua vez, é o que emerge com a sociedade-rede, também
denominada sociedade do conhecimento. Hoje a governança se
encontra em uma etapa ascendente, deslocando o caduco modo
gerencial de governar que, além disso, comportou – e, sobretudo,
sua permanência ainda comporta – grandes déficits nas duas gran-
des dimensões da democracia: a qualidade da representação do
eleito e a participação e colaboração cidadã na gestão da cidade.
O bem-estar social é um setor que está tendo um papel de
vanguarda no desenvolvimento da governança local na Catalu-
nha. Esta afirmação se sustenta na constatação empírica. A cidade
de Barcelona conta com um plano estratégico setorial, o Plano
Integral de Serviços Sociais, primeiro plano que evoluiu no senti-
do de dar início aos processos de governança democrática. A as-
sociação público-privada criada para impulsionar seus projetos foi
definida em 2005, de maneira totalmente pioneira nas políticas
de bem-estar da Catalunha e Espanha, ao passar a definir-se como
associação promotora de governança no âmbito do bem-estar na
cidade. O fórum dos gestores, do qual falaremos mais à frente,
é uma experiência singular e inovadora no âmbito europeu, já
que reúne as pessoas eleitas com responsabilidades de governo
na área do bem-estar social com o objetivo de fortalecer projetos,
conteúdos, técnicas e boas práticas na nova arte de governar.86
O fato de que as políticas de bem-estar social na Província de
Barcelona se encontrem em uma situação avançada para assumir
o desenvolvimento da governança democrática deve-se, entre ou-
tras, às seguintes razões principais:

86 Vide nota anterior sobre o fórum. (Nota do tradutor)

170 A governança do bem-estar social


• O impacto do enfoque do desenvolvimento social comunitá-
rio, que teve um importante desenvolvimento nos anos
70 e princípios dos anos 80. Ainda que, posteriormente,
este enfoque tenha ficado subordinado à necessária or-
denação e gestão de um importante fluxo de recursos e
serviços que chegaram, a perspectiva do trabalho social
comunitário não se perdeu, apesar de não ter sido favo-
recida. A governança democrática não tem semelhança
com o trabalho comunitário. A governança é um modo
de governar e o trabalho comunitário é uma dimensão
do trabalho social. Deve-se ter em conta, por exemplo,
que os enfoques teóricos do trabalho comunitário não
contemplam o papel do governo e do político eleito de
uma maneira explícita. Mas, claro, têm em comum a fi-
nalidade de que a própria sociedade, em um caso, e
a comunidade, em outro, assuma a realização de seus
próprios desafios.
• É um dos âmbitos do governo local em que se constata
com a maior crueza a impossibilidade de que o crescimen-
to dos recursos públicos satisfaça as crescentes necessidades
sociais. Nasce daí sua disposição para inovar em políticas
públicas.
• A gestão próxima ao usuário e seu entorno social e territo-
rial permitiu o desenvolvimento do trabalho social como um
trabalho relacional, destinado a estabelecer os vínculos
entre os grupos sociais vulneráveis com a comunidade
territorial e os usuários com seu entorno relacional, fami-
liar e de trabalho. Estas atividades foram denominadas
trabalho social comunitário e social sistêmico, respecti-
vamente.
• A tradição de colaboração entre governos locais e ONGs foi
muito maior na Província do que no conjunto da Cata-
lunha e Espanha, o que permitiu a rápida compreensão

A governança do bem-estar social 171


da necessidade de coordenar atores para gerir projetos
sociais complexos. Por outro lado, permitiu que as organi-
zações sem fins lucrativos fossem contratadas pela admi-
nistração para gerir os serviços financiados com fundos
públicos. Em muitos lugares do Estado espanhol a aber-
tura de processos de terceirização dos serviços significou,
desde o começo, a entrada de grandes empresas comer-
ciais procedentes de setores sem experiência na área de
prestação de serviços sociais.
• Os serviços de bem-estar social, em especial a assistência
social, opuseram maior resistência à cultura empresarial,
própria da última etapa do governo provedor. O traba-
lho relacionado com as temáticas de alta necessidade
social, pobreza e exclusão, próprias de muitos setores
do bem-estar social, levou à recusa da apropriação lu-
crativa dos recursos que poderiam ser revertidos a estes
âmbitos de atuação. Esta resistência às empresas de fins
lucrativos e a existência de um importante tecido social
facilitaram a transição rápida do modelo burocrático ao
modelo de governança com pouca influência do modo
gerencial, que provoca uma rejeição na maioria dos
profissionais do setor.
• Uma tradição bem assentada na assistência social é a dife-
renciação entre demanda e necessidade na atenção à po-
pulação usuária. Esta distinção que aparecia como con-
flito no modo gerencial, que entendia a qualidade como
satisfação aos pedidos dos clientes ou usuários, constitui
um bom enfoque para um dos pilares do desenvolvi-
mento da governança, uma vez que esta, como já apon-
tado, distingue entre o que é interesse ou necessidade e
o que é posicionamento ou demanda.

172 A governança do bem-estar social


A reestruturação da gestão dos serviços
públicos do bem-estar social
A governança, como modo de governar próprio do gover-
no relacional, incorpora, naturalmente, a função de prestação
e gestão de serviços públicos no município. Esta função deve
desenvolver-se, sem dúvida, através dos critérios de eficácia e
eficiência. Entretanto, a gestão de serviços e, em especial, a sua
eficácia e eficiência são reconfiguradas na governança relativa-
mente ao modo gerencial de governar.
O modo gerencial tem como preocupação a improdutividade
dos serviços financiados com fundos públicos geridos burocrati-
camente, e busca na imitação das empresas privadas os métodos
e instrumentos para melhorar a produtividade e, deste modo,
alcançar um maior número de usuários ou clientes dos serviços
públicos. A eficácia, definida na realização dos objetivos (ser efi-
caz é cumprir objetivos), no modo gerencial de governar era e é
entendida como a cobertura dos serviços, financiados com fundos
públicos, sobre a população potencialmente ou manifestamente
demandante. Eficiência, que se define pela relação entre eficácia
e custos, consiste, no modo gerencial, em aumentar a cobertura
com o mínimo custo possível.
A aplicação do modo gerencial na área do bem-estar social,
em comparação com outros setores das políticas públicas, era e
é delicada porque o incremento da cobertura não necessaria-
mente significa a satisfação das necessidades dos usuários, que é
o verdadeiro objetivo das políticas sociais. Assim, por exemplo,
ainda que exista uma relação direta entre pessoas vacinadas e
a prevenção de uma enfermidade, o aumento do número da
cobertura dos serviços à infância não significa, que tenha sido
reduzido o risco de exclusão ou sua dependência psíquica ou
sua vulnerabilidade social. Isto depende de como se trabalha no
serviço e, logicamente, de haverem sido definidos com clareza

A governança do bem-estar social 173


os objetivos do mesmo e feita a sua avaliação com sistemas de
indicadores adequados.
Um dos principais problemas das políticas sociais é que se
passou de um sistema de gestão burocrático, baseado em proce-
dimentos administrativos e com funcionários públicos, à tercei-
rização através de licitações, em que a produtividade é o critério
dominante. A uma crítica injusta à gestão por procedimentos
burocrático-administrativos (que ainda que não sirvam para ge-
rir serviços, mantêm a função da garantia de direitos e de racio-
nalidade legal) se juntou a exaltação de tudo que procede do
mundo dos negócios.
Na governança, ainda que admitindo que o aumento de co-
bertura se relacione diretamente com a satisfação da necessidade
do usuário, como no caso de alguns serviços em domicílio dedica-
dos a pessoas com grandes dependências permanentes, o critério
de eficácia não é o mesmo do modo gerencial. Não é simples-
mente o incremento da cobertura, mas o impacto do serviço na
capacidade de organização e ação do conjunto da cidadania para
satisfazer ou dar respostas às necessidades e desafios sociais. Isto
é, o que a governança exige como critério de eficácia ou, o que é
o mesmo, como cumprimento de objetivos próprios do seu modo
de governar, é que a prestação e gestão de serviços financiados
com fundos públicos tenham uma dimensão comunitária. Que
contribuam para melhorar a capacidade de resposta do conjunto
da sociedade. Na governança é preciso exigir da gestão dos servi-
ços a complementaridade com outros serviços do município, para
formar redes de atuação público-privadas sob a responsabilidade
pública, assim como o envolvimento comunitário de famílias e
usuários em ações de melhoria do capital social, ou, em termos
mais tradicionais, de desenvolvimento comunitário.
O esquema que diferencia o modo de governar gestor ou ge-
rencial da governança aplicado à área do bem-estar social é o
seguinte:

174 A governança do bem-estar social


Esquema gestor Esquema governança

Desenvolvimento Desenvolvimento
social social

Participação
Infraestruturas Infraestruturas Capacidade de
desenvolvimento
e serviços e serviços organização
comunitário

Políticas de Bem-Estar Social Políticas de Bem-Estar Social

Damo-nos conta de que a prestação de serviços públicos deve


impactar o desenvolvimento comunitário, e, por isto, o envolvi-
mento social é um critério essencial para abordar a eficácia dos
serviços na perspectiva da governança.
A eficiência se relaciona diretamente, na governança, com o
custo dos serviços que não são eficazes. Quer dizer, que incidem
diretamente tanto na satisfação das necessidades dos usuários
como no desenvolvimento da capacidade da comunidade no ter-
ritório em que se situam.
Em qualquer política pública de um governo relacional, a go-
vernança – e, naturalmente, a área de bem-estar social – respon-
deria ao seguinte esquema:

A governança do bem-estar social 175


Governança Territorial: nova
arte de governar

(1)
Âmbito legal-
burocrático
(2)

Provisão e
Gestão relacional
gestão de (1)
ou estratégica (3)
recursos

Capacidade de organização do (1) A posição da função de âmbito legal ge-


rida pela burocracia profissional e a provisão
território
da gestão e recursos gerida por profissionais
não burocráticos são suporte de gestão estra-
tégica. A linha pontilhada (2) significa que a
gestão relacional e de recursos têm que res-
Progresso econômico
ponder à legalidade e normas democráticas.
e social A seta (3) significa que os recursos próprios
devem articular-se com os objetivos da ges-
tão estratégica.

Assim, temos um âmbito de legalidade para garantir os di-


reitos de todos os cidadãos, dirigido por funcionários, isto é, por
trabalhadores especialmente protegidos das mudanças políticas e
institucionais para garantir ao máximo a neutralidade e adequa-
ção à lei dos procedimentos de contratação, participação e cola-
boração interinstitucional e público-privada. É de se supor que a
participação e colaboração serão as áreas de maior desenvolvi-
mento normativo na governança.
Trata-se de uma prestação e gestão de serviços que não impac-
tará somente na melhoria dos índices de cobertura, mas especial-
mente na capacidade do desenvolvimento comunitário.
O âmbito relacional, que assume na governança o papel estru-
tural de todas as funções de governo, é o que terá maior nível de

176 A governança do bem-estar social


desenvolvimento, uma vez que consiga apoiar-se em um conjunto
de metodologias e técnicas específicas que constituem a gestão
relacional.
No âmbito da função de prestação e gestão de serviços, a
passagem do modo gerencial para a governança deve significar a
promoção das seguintes mudanças mais importantes:
• De perspectiva: será contemplado, por parte do gover-
no, o conjunto da oferta de serviços de bem-estar social
no território.
• De concepção da qualidade: será priorizada a qualidade
das redes – a intensidade e qualidade das interações en-
tre serviços para assegurar uma ação integral.
• De contratação de serviços: importância da gestão co-
munitária.

A visão do conjunto da oferta de serviços


do território
Ao centrar-se em objetivos para o conjunto da população do
território e, a partir daí, gerir as interdependências de todos os ato-
res que atuam em uma situação social, o governo local, na gover-
nança, não apenas se fixará na oferta de serviços específicos, mas
no conjunto da oferta de serviços no município e em sua área de
influência. E, no mínimo, tentará articular os atuais e futuros presta-
dores para que, em conjunto, possibilitem que sejam alcançados os
objetivos de cobertura para toda a população do município.
É próprio do modo gerencial de governar atender apenas
o percentual da população que será coberto pelos recursos pú-
blicos oriundos do município, sejam estes próprios ou obtidos
por transferência de outros níveis da administração. Assim, por
exemplo, um planejamento municipal pode indicar um objetivo
de cobertura para os serviços de assistência em domicílio finan-

A governança do bem-estar social 177


ciados pelo município que alcance 4% da população-alvo e, na
verdade, só atingir os 2%. A partir dessa defasagem definirá,
com data precisa e possível – digamos, quatro anos –, o incre-
mento de recursos próprios e das transferências de outras admi-
nistrações para conseguir o aumento da cobertura.
Esta forma de atuar dos governos locais, tão centrada na ati-
vidade setorial e no impacto populacional que pode obter, des-
considera o nível de cobertura necessário para o conjunto da
população que depende do município, esquecendo que foram
escolhidos como representantes por todos os cidadãos para cuidar
da satisfação de todos e não só daqueles aos quais pode chegar
através de sua ação setorial.
Um governo relacional se fixará nos níveis de cobertura a se-
rem alcançados no conjunto do município e buscará articular e
coordenar com todos os atores as medidas necessárias para tal.
É preciso um planejamento compartilhado e também uma ges-
tão das interdependências dos atores para atingi-los. Assim, no
mesmo município do exemplo anterior, detecta-se que o nível de
cobertura necessário é de 6%, a oferta financiada é logicamente a
mesma, 2%, mas na nova perspectiva identifica-se que outros 2%
são cobertos pela iniciativa social e privada, e, além disso, 75% da
população dependente está sob o cuidado de familiares. No novo
modo de governar, o que procede é constituir um grande acordo
estratégico entre a prefeitura, a iniciativa social e empresarial e
os demais níveis de governo para desenvolver ações coordenadas
destinadas a alcançar os 6% de cobertura necessários.
A aplicação da “Lei de Promoção da Autonomia Pessoal e Aten-
ção a Pessoas em Situação de Dependência”, denominada colo-
quialmente “Lei da Dependência”, está significando um aumento
da oferta de serviços nos municípios. Dadas a procedência distinta
dos fundos públicos, a terceirização da gestão dos serviços e o in-
cremento da variedade dos mesmos, torna-se necessário assegurar
a coordenação e a complementaridade da oferta de serviços. Não

178 A governança do bem-estar social


fazê-lo (a capacidade de conseguir maior bem-estar pelo aumento
da oferta) diminuirá em função da muito provável fragmentação
da oferta. A tarefa de liderar a constituição de um marco refe-
rencial para a colaboração e complementaridade dos serviços no
município é um novo tipo de ação que corresponde à prefeitura,
para o que necessitará de nova capacidade de organização.
Um objetivo se destaca de maneira especial na governança: a
oferta de serviços públicos deve contribuir para o fortalecimento
da sociedade civil e, em particular, de sua capacidade para assu-
mir maiores responsabilidades sociais. As políticas de oferta de
serviços públicos devem contribuir para a melhora da qualidade
de vida da população com necessidades e também dos familiares
e vizinhos que assumam tarefas de solidariedade social.
Trata-se de evitar que o compromisso social da sociedade civil
seja debilitado por uma configuração inadequada de políticas de
bem-estar social. Um exemplo de má política se produziu em al-
guns municípios da Província de Barcelona, ao contratarem exter-
namente, sem analisar as redes sociais do território, e com fundos
públicos, a figura dos profissionais de atividades recreativas para
a infância nos bairros (monitores), cujo efeito foi o contrário do
que se pretendia: destruíram a atividade profissional e também a
voluntária, que se desenvolvia nas paróquias e entidades de mo-
radores. O conjunto da oferta para a infância diminuiu. Em troca,
a introdução dos serviços municipais que dão suporte às famílias
acolhedoras, denominadas “respir”,87 está favorecendo a incor-
poração de pessoas acolhedoras e a qualidade de sua atenção, ao
disporem de diversas atividades para as pessoas assistidas. Deste
modo, familiares e voluntários acolhedores podem combinar suas
atividades cotidianas com a solidariedade familiar e de vizinhos.

87 Centros de descanso de curta permanência para idosos ou pessoas com problemas físicos
ou psíquicos, para dar um tempo para "respirar" aos familiares que se encarregam do seu
cuidado, para permitir-lhes tirar férias, alguns dias de descanso ou mesmo um dia para
cuidar de algum assunto pessoal. (Nota do tradutor)

A governança do bem-estar social 179


A qualidade das redes: as marcas de
garantia
O novo modo de governar implica integralidade na concepção
das necessidades das pessoas e, portanto, precisa da articulação
do conjunto de serviços para que representem uma oferta de qua-
lidade. Em outras palavras, que o conjunto de serviços públicos e
de iniciativa das organizações sociais possa cobrir todas as necessi-
dades das pessoas, no caso em que elas sejam de natureza pública
– objetivo das políticas sociais.
Uma pessoa com necessidade de assistência em um momento
determinado pode precisar de ajuda domiciliar e teleassistência.
Em outro momento, pode precisar do seu ingresso em um centro
de descanso, ou em uma residência assistida e, outra vez, de uma
assistência domiciliar, etc. A atenção integral, portanto, precisa de
uma coordenação de serviços baseada na qualidade. Dado que a
oferta de serviços para propiciar a atenção integral em um mu-
nicípio se acha fragmentada em uma pluralidade de instituições,
torna-se necessário o estabelecimento de uma marca que englobe
o seu conjunto.
Na Espanha, as autoridades portuárias são exemplos do bom
funcionamento de uma marca. Os portos precisam, para sua com-
petitividade, assegurar objetivos, como garantir, por exemplo,
que um carregamento de calçados chegue a seu destino no prazo
de sete dias. Para conseguir isto, um porto precisa coordenar a
ação de diferentes operadores e atores, tanto na cidade de ori-
gem como no destino: consignatários, transportadores, agentes
aduaneiros, empresas de contêineres, estivadores, rebocadores,
operadores ferroviários, entre outros.
Para alcançar tal coordenação, organiza-se uma marca de qua-
lidade. A marca tem um conselho de direção formado pela autori-
dade portuária, o Estado e a prefeitura da cidade. Os operadores
também integram a marca, desde que cumpram uma série de

180 A governança do bem-estar social


condições e compromissos operacionais. Por sua vez, os clientes
que contratam os serviços da marca têm a garantia do cumpri-
mento dos mesmos. Em caso de descumprimento por parte de
algum operador, a marca impõe as sanções previamente estabele-
cidas e, se reiterada a falha, cabe a sua expulsão.
Para a articulação de serviços, a qualidade é insuficiente – o
procedimento das normas ISO e a metodologia EFQM se centram
na qualidade, no interior de cada serviço. As marcas de qualidade
podem exigir de cada operador tais normas, mas elas garantem a
qualidade de cada serviço e, também, a sua coordenação.
Em uma oferta de serviços de bem-estar social, cada vez mais
ampla e fragmentada, é preciso uma ação dos governos locais
apoiados pelos demais níveis de poder para promover e dirigir
uma marca de qualidade em um território.
Uma marca de qualidade em serviços de bem-estar social de-
verá, no mínimo, dispor dos seguintes elementos:
• Um serviço de recepção de novos sócios que solicitem
ingressar na marca de qualidade.
• Exigências mínimas de funcionamento interno para cada
um dos serviços distintos incluídos na marca.
• Uma identificação dos compromissos de coordenação
entre cada tipo de serviço.
• Um serviço de queixas e reclamações próprio da marca
de qualidade para usuários, familiares e vizinhos.
• Uma normativa de bonificações e sanções, inclusive ex-
pulsão, para os serviços que não cumpram as regras.
• Uma política de comunicação e divulgação da marca de
qualidade para a cidadania e entidades sociais.
As marcas de qualidade são, sem dúvida, um claro instrumen-
to de gestão relacional, de governança. Através deste instrumento,
o governo local assume um papel de maior relevância social como

A governança do bem-estar social 181


fiador da qualidade e da atenção integral do que desempenhava
como simples prestador ou gestor de determinados serviços.
Na governança, a responsabilidade pública não somente con-
siste em responder pela qualidade dos serviços financiados com
recursos públicos, mas, e fundamentalmente, em responsabilizar-
se pela resposta coletiva aos desafios e necessidades sociais da
população, e garantir a qualidade da atenção integral aos usuários
dos serviços.
As marcas de qualidade começam a ter uma clara expansão
quando são aplicadas no âmbito turístico, assistência sanitária,
nas instalações esportivas, no transporte coletivo intermodal de
passageiros, etc., e, em breve, seguramente, nos serviços de bem-
estar social na Província de Barcelona.
É preciso que se vá preparando o futuro das marcas de quali-
dade na área do bem-estar social, assim como também a organiza-
ção da oferta de serviços com critérios de governança, isto é, para
que tenham um impacto positivo na capacidade de organização e
resposta comunitária. Deve-se iniciar, de imediato, a revisão dos
critérios de adjudicação nas licitações públicas para a contratação
externa dos serviços de bem-estar social.

A contratação externa para a gestão de


serviços com base no desenvolvimento
comunitário
A experiência da gestão burocrática de serviços, cuja crítica e
superação deu origem ao modo gerencial, é suficiente para pensar
que a gestão pública dos serviços de assistência social não seja
direta, através de profissionais da administração, mas por terceiri-
zados contratados externamente. Por outro lado, a complexidade
de situações e necessidades sociais requer uma ampla gama de
profissionais e uma grande capacidade de adaptação e, portanto,
de flexibilidade, que fazem com que uma organização burocrática

182 A governança do bem-estar social


– no sentido de que sua finalidade é zelar pela legalidade, tem
natureza necessariamente normativa e é protegida para garantir
direitos – não possa assumir a gestão destes serviços.
A governança exige contratação externa dos serviços financia-
dos com recursos públicos em igual ou maior proporção do que
no modo gerencial, mas será preciso suprimir e introduzir critérios
de prioridade nos processos de contratação externa. Em especial,
os seguintes:
• Um critério essencial para a terceirização, que já podia
ter sido estabelecido no modo gerencial, é definir os
objetivos de impacto na população usuária. A identifi-
cação destes objetivos permite a medição posterior de
resultados nos serviços sociais, e levam a não pressupor
que um incremento de produtividade seja suficiente
para aferir a eficácia no cumprimento de objetivos de
fortalecimento da autonomia pessoal ou de inserção so-
cial. É muito importante recordar que se eficiência é um
cociente em que o numerador é a eficácia e o denomi-
nador é o custo, no caso em que a eficácia tenda a zero,
por mais produtivos e de baixo custo que sejam os servi-
ços, a eficiência será zero. Este resultado é com bastante
frequência esquecido por aqueles que se consideram en-
tusiastas da produtividade em serviços sociais, uma vez
que, se não há resultados, de nada serve a produtividade
ou o baixo custo das atividades ou serviços ineficientes.
• Parece óbvio que, na contratação externa de serviços
sociais, o fundamental seja a existência de cláusulas
perfeitamente mensuráveis através de indicadores, tan-
to para identificar as características das entidades a se-
rem contratadas e garantir sua responsabilidade social
como para regular e controlar a qualidade da atenção
na atividade dos serviços e medir os resultados. Ao con-
trário do que é hoje prática habitual, a variável custo

A governança do bem-estar social 183


na contratação de serviços na área de assistência social
só deveria pontuar na adjudicação no caso de um hipo-
tético empate na pontuação dos critérios de qualidade,
na atenção e nos resultados sociais propostos a serem
alcançados.
Só pela pequena capacidade de inovação, pode-se en-
tender que na gestão dos serviços públicos, ainda hoje,
persistam critérios econômicos próprios do industrialis-
mo, que, entre outros, considera em sua contabilidade
as pessoas como gasto e os equipamentos e máquinas
como ativo.
• À parte deste critério de racionalidade própria de qual-
quer tipo de gestão dos recursos públicos, a gestão rela-
cional – ou de interdependências, própria da governança
– exige uma série de outros critérios para que a presta-
ção dos serviços repercuta positivamente na geração de
tecido social, ou no seu fortalecimento, e na adaptação
à diversidade social própria do território. Só desse modo
conseguirá os resultados essenciais e a articulação neces-
sária com as políticas de desenvolvimento comunitário e
as políticas públicas do território.
• A coordenação com os serviços sociais e pessoais do ter-
ritório para estabelecer uma cobertura na rede que per-
mita uma resposta integral aos desafios sociais através
da complementaridade dos serviços.
• A dimensão comunitária da gestão do serviço, de tal
modo que facilite a máxima inserção dos usuários e fa-
miliares em associações e movimentos de interesse so-
cial. São muito destacados na Província de Barcelona os
serviços geridos por associações dedicadas à assistência
a pessoas com dependência física e psíquica, assim como
os dedicados à prevenção e assistência aos dependentes
químicos, em que se canaliza a participação de pessoas

184 A governança do bem-estar social


usuárias e familiares para as tarefas de voluntariado para
a prevenção de riscos e à ajuda mútua.
• A contribuição ao desenvolvimento da cultura cívica no
território e, deste modo, contribuir para a geração de
capital social.
Dado que “o hábito não faz o monge”, não se pode concluir
que as entidades sem fins lucrativos sejam as depositárias da con-
tratação externa dos serviços em um governo relacional. Porém,
parece razoável que não sejam empresas ou entidades sem fina-
lidades nem práticas sociais, muito menos as que procedem de
setores como construção civil, construção de estradas, canais e
portos ou com especialidade na coleta e tratamento de resíduos
sólidos, para citar alguns exemplos reais, as que consigam maior
pontuação nos processos licitatórios de serviços sociais públicos.
Esta é, no mínimo, uma prova da confusão de critérios a que se
pode chegar na gestão pública. E, sem dúvida, constitui uma pro-
va da permanência do modo gerencial baseado na denominada
escola da “Nova Gestão Pública”, que optou pela imitação das
empresas privadas, em vez de inovar na gestão pública, que é do
que realmente se trata.

A gestão de redes e a participação cidadã


A gestão relacional – ou seja, das relações sociais que constro-
em a sociedade propriamente dita, já que esta é uma configura-
ção espaço-temporal de relações sociais que se localizam em um
território – é o instrumento fundamental da governança democrá-
tica, como observamos anteriormente.
A gestão relacional tem duas dimensões fundamentais: a ges-
tão de redes ou das interdependências88 propriamente ditas e a

88 Ver M. Castells, La Galaxia Internet. Barcelona: Ed. Plaza y Janes, 2001, pp.15 a 29.

A governança do bem-estar social 185


participação cidadã, à qual podemos agregar uma terceira, que é
o apoio social às estratégias e políticas públicas.
Por redes entendemos uma série de nós interconectados. Os
nós não são em temas sociais homogêneos, pois têm uma impor-
tância desigual ou assimétrica. Uma situação social tem a configu-
ração de rede se esta depende da interação de um conjunto de
atores e seu desenvolvimento ou evolução depende da dinâmica
que estabeleçam de maneira consciente ou inconsciente entre si.
Neste sentido, ainda que não se tenha atuado em consequência
disso, toda questão social é uma questão de redes ou de interde-
pendências de atores.
As redes sociais têm um sentido mais forte que as interações
sociais. Tudo interage com tudo, mas a rede se distingue porque
existe uma clara interdependência de um número reduzido de
atores para enfrentar um desafio ou uma situação social.
De maneira semelhante, um projeto em rede significa que a
realização do mesmo depende da ação de diferentes atores que
contribuem com recursos econômicos ou humanos para a realiza-
ção do mesmo, e sem eles a realização não seria possível.
As redes, portanto, implicam horizontalidade para poder iden-
tificar os interesses e desafios dos distintos atores, articular estes
interesses de maneira complementar em estratégias, projetos, e
compromisso de ação para realizá-los.
O exercício da liderança na gestão de redes por parte do go-
verno local significa a possibilidade de criar e programar redes em
função de distintos objetivos sociais compartilhados, e, por outra
parte, a capacidade e habilidade para conectar distintas redes de
atores de tal modo que compartilhem objetivos e possam dispor
de um maior volume de recursos para os seus objetivos.
Na opinião de Castells, a importância de um nó em uma rede
depende de sua capacidade de contribuir para os objetivos da

186 A governança do bem-estar social


rede.89 Em nosso caso, em uma rede de atores, a liderança polí-
tica é alcançada pela capacidade de representação dos distintos
interesses e pelo desenvolvimento das habilidades para realizá-los
através de políticas e projetos.
Na perspectiva da governança, enfrentar um desafio ou um
projeto significa a necessidade de convocar todos os atores, mas
não todos os setores ou organizações que têm a ver, quer dizer,
que serão direta ou indiretamente beneficiados ou prejudicados
pelo mencionado desafio ou projeto. As redes, como observado,
agrupam atores interdependentes – organizações e pessoas que
têm tanto a capacidade para desenvolver o projeto como para im-
pedir que este atinja seu objetivo. Falamos de interdependências
de rede ou, inclusive, de cooperação público-privada e institucio-
nal só nestes casos.
A colaboração que a partir do governo local deve ser estabe-
lecida considera, no mínimo, os seguintes âmbitos:
• As relações intergovernamentais: tanto com governos de
distintos níveis territoriais como multilaterais com gover-
nos do mesmo nível, sejam intermunicipais ou inter-re-
gionais.
• As relações com grandes instituições: universidades, cen-
tros de pesquisa e desenvolvimento, câmaras de comér-
cio, fundações culturais e educativas de prestígio, igrejas,
etc.
• As relações com o setor econômico privado: setores eco-
nômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de
risco, confederações e associações empresariais, etc.
• As relações com agentes sociais e profissionais: sindica-
tos, associações profissionais, associações de moradores,
movimentos sociais importantes, etc.

89 M. Castells, La Sociedad Red: una visión global. Madri: Ed. Alianza, 2006, p. 27.

A governança do bem-estar social 187


A gestão relacional não é apenas gestão de redes, pois incor-
pora também a dimensão participativa. Do contrário, ela seria
uma gestão excludente, uma vez que as organizações ou setores
com pequeno poder de ação ou reação não seriam levados em
conta. O que nos assegura de que estamos falando de governança
democrática, de uma construção do interesse geral, é a dimensão
participativa, o fato de contar com todos os setores envolvidos e
interessados. A distinção entre gestão de redes, participação cida-
dã e apoio social a políticas ou projetos é muito importante devi-
do a suas consequências práticas. Uma indiferenciação dificulta a
operacionalização da governança.

A participação como envolvimento da


cidadania na construção da cidade
Em um sentido amplo, a gestão de redes e a política de apoio
social podem ser entendidas como participação cidadã. Mas aqui,
justamente para dar maior capacidade operacional à governança e
seu principal instrumento, a gestão relacional, será preciso mais.
Entende-se por participação cidadã o processo de envolvi-
mento do conjunto de setores da sociedade através de entidades
e organizações sociais, que não são propriamente atores em um
âmbito concreto. O objetivo principal é conhecer seus interesses,
desafios e necessidades para poder diferenciá-los dos seus posi-
cionamentos.
A participação cidadã implica necessariamente a criação de
espaços de cidadania para a deliberação. Estes espaços devem ser,
por sua vez, flexíveis e bem organizados, com metodologias rigo-
rosas e bem orientadas para o objetivo de identificar, sistematizar
e dar prioridade aos interesses e necessidades sociais.
A participação da cidadania tem um impacto básico na capa-
cidade de organização e ação que a gestão relacional persegue

188 A governança do bem-estar social


– a articulação de uma ampla rede social e o fortalecimento do
capital social.
Por capital social se entende o conjunto de redes que as pes-
soas podem formar para resolver problemas comuns. São redes
de compromisso cívico como entidades esportivas, associações de
moradores e culturais, etc. Quanto mais densas são estas redes,
maiores as possibilidades de que os cidadãos cooperem para ge-
rar oportunidades comuns de bem-estar.90 Construir capital social
requer conhecimento do “outro”, a geração e preservação da con-
fiança e compromisso de atuar conjunta e coordenadamente.
A participação cidadã é entendida como um conjunto de pro-
cessos que têm por finalidade o envolvimento da cidadania no
desenvolvimento da cidade, isto é, que cidadãos se sintam parte
da cidade. Participação não é, na governança, um simples pro-
cesso para canalizar demandas, sugestões ou recomendações à
administração municipal. Trata-se de que as pessoas reconheçam
sua importância no passado, presente e futuro da cidade e se res-
ponsabilizem pelo andamento da mesma. Participação é compro-
misso e colaboração cidadã.
No modo gerencial de governar, também encontramos pro-
cessos de participação, mas neste caso se dirigem à administração
como clientes e usuários, para que esta melhore a prestação e
gestão de recursos e serviços. Assim, encontramos processos parti-
cipativos para fazer recomendações e sugestões em:
• Análise das situações sociais.
• Programas para a gestão pública.
• Serviços que se adaptem às necessidades dos usuários.
• Realização de serviços públicos.
• Avaliação de resultados.

90 Ver D. Putnam, Making Democracy Work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton
University Press, 1993. p. 125.

A governança do bem-estar social 189


Na governança, estes processos são uma dimensão subordi-
nada. O importante é criar espaços, como fizeram muitos planos
estratégicos, em que o cidadão descortina o conjunto do território
e não apenas a oferta municipal ou pública, e se coloca em uma
situação de corresponsabilidade.
Para finalizar esta seção, é importante observar que muito
frequentemente ocorrem erros na concepção dos processos parti-
cipativos, que levam à inoperância dos mesmos e debilitam a im-
portante contribuição da participação cidadã à democracia local
e como dimensão que não só completa, mas qualifica a democra-
cia, que é fundamentalmente representação. Entre os principais
erros, encontramos:
• Confunde-se participação com elaboração de estratégias
ou de projetos. A elaboração de estratégias e projetos é
uma tarefa complexa e precisa, de rigor técnico e concei-
tual, pelo que não se pode deixar esta tarefa aos proces-
sos participativos. Tal como já observado, os processos
participativos devem identificar desafios e interesses, e
estes são o principal insumo para a elaboração de estra-
tégias. O contrário significaria obter estratégias e proje-
tos sem legitimação nem apoio social, e o processo de
elaboração não teria impacto na melhoria da capacida-
de de organização.
• Atribui-se erroneamente à participação cidadã a apro-
vação das estratégias e projetos. De fato, a participação
irá referendar e dar consentimento majoritário à estra-
tégia e, sobretudo, aos projetos. Mas a aprovação dos
mesmos depende dos atores que têm capacidade para
levá-los a termo. A aprovação participativa de projetos
sem o compromisso prévio dos atores relevantes para a
sua execução não traz a garantia de que estes serão con-
cretizados, com o que se produz uma importante frus-
tração de expectativas nas pessoas e uma desconfiança

190 A governança do bem-estar social


nos processos participativos. Desconfiança que surge de
serem propostas aos participantes deliberações que não
lhes dizem respeito. Dos processos participativos podem,
sim, sair critérios de atuação que orientem a ação políti-
ca e a gestão de redes.
• Juntamente com o ponto anterior, verificamos que os
processos participativos se colocam como o lugar ade-
quado para a tomada de decisões que correspondem à
atuação dos eleitos e, de fato, reivindicam substituir os
órgãos de representação política. Este é um erro de gra-
ves consequências democráticas, uma vez que qualquer
processo participativo é setorial-corporativo. A convoca-
ção para os processos participativos se subordina a te-
mas predefinidos e os participantes, quando muito, re-
presentam suas organizações, e não são escolhidos pelo
conjunto da cidadania. Considerar estes processos como
substitutos das instituições surgidas de votações gerais é,
sem dúvida, uma atitude antidemocrática e só explicável
em situações em que os processos eleitorais tenham sido
corrompidos.
• Não se distingue com clareza duas dimensões da par-
ticipação. A participação cidadã na elaboração de po-
líticas municipais financiadas com recursos públicos da
participação cidadã no “fazer cidade”, em fazer parte
de organizações sociais, desportivas, culturais, de mo-
radores, etc.; de adotar comportamentos cívicos e, na-
turalmente, da participação eleitoral. Ambas são im-
portantes e se condicionam mutuamente, mas os mé-
todos para o seu desenvolvimento são distintos e, sem
dúvida, a segunda dimensão é determinante.
A participação cidadã na elaboração e monitoramentos das
políticas, em condições de normalidade democrática, qualifica
a democracia. Por isto, sua finalidade deve ser concebida de tal

A governança do bem-estar social 191


modo que favoreça a participação eleitoral e o interesse pelo mo-
nitoramento da política. Um dos principais indicadores dos pro-
cessos de participação cidadã (embora não dependa apenas da
participação) deveria ser o aumento da participação eleitoral, o
interesse pela política e o prestígio da figura do representante po-
lítico.

O apoio social às estratégias e políticas


O apoio social frequentemente engloba a participação, mas
tem finalidades próprias. Aqui não se trata de identificar os inte-
resses dos distintos setores da sociedade, mas de buscar o apoio
social às estratégias e projetos. Dito de outro modo, trata-se de
promover e dar visibilidade ao apoio da cidadania.
Uma das regras principais da eficácia do marketing de cidades
é que não se pode dar visibilidade ao que não se tem, isto é, o
marketing urbano deve assentar-se nas qualidades que efetiva-
mente existem no território. Da mesma maneira, os métodos para
conseguir o apoio estão destinados ao fracasso se as estratégias ou
projetos não correspondem aos interesses e necessidades expres-
sadas ou sentidas pela população.
Sem a existência prévia da participação cidadã, no senti-
do anteriormente dito, dificilmente se conseguirá um amplo
apoio social. Muito embora sejam necessárias medidas que
vão muito além dos processos participativos para se alcançar
um amplo apoio social.
Ainda que existam eventos que combinam com êxito um am-
plo processo de participação com a visualização do apoio social,
como no caso das conferências de exploração estratégica, ambos
os processos devem ser pensados de maneira diferenciada.91

91 Trata-se de uma metodologia criada pela equipe da “Estrategias de Calidad Urbana”; ver
www.equ.es

192 A governança do bem-estar social


Conseguir um amplo apoio social é básico para uma estratégia
de futuro, porque proporciona a coesão da base social que pode
sustentar as mudanças sociais envolvidas.
A visibilidade do apoio social constitui, por sua vez, uma “de-
monstração de força” para os promotores das estratégias, políticas
e projetos e, ao mesmo tempo, serve para dar-lhes a coesão ne-
cessária para empreender as ações.
Para conseguir um apoio social é necessária, sem dúvida,
uma política de comunicação e difusão da estratégia ou dos pro-
jetos estruturantes. Embora este não seja um livro de técnicas
sobre políticas de comunicação urbana, é preciso dizer que a
comunicação para a sociedade com o objetivo de conseguir um
forte apoio deve enquadrar-se em uma cultura que promova o
envolvimento da cidadania e não a simples aceitação. Para isto,
a comunicação deve ter duas dimensões: comover e convencer.
O convencimento virá dos conteúdos estratégicos e da facilidade
com que possam ser explicados. Para comover é preciso comuni-
car valores, muito especialmente os seguintes:
• O sentimento de enraizamento e de identidade com a
cidade, que deve ser fortalecido como instrumento para
gerar responsabilidade social e predispor para ações vo-
luntárias e solidárias para com os outros.
• A autoestima cidadã para enfrentar os desafios do futuro
com esforço, porém com confiança.
• O sonho realista em relação ao futuro, se as ações indivi-
duais são inseridas na tarefa coletiva; trata-se de valori-
zar a contribuição cidadã no trabalho coletivo.
• A união entre tradição e modernidade na cidade, para
articular todos os setores da cidadania em uma mesma
perspectiva de futuro, que será aquela que olhe o passa-
do com os olhos de futuro.
A gestão de rede de atores, combinada com um amplo
processo de participação cidadã e de apoio social, inseridos

A governança do bem-estar social 193


todos os três em um marco estratégico, articula a coesão so-
cial prévia e necessária para que se produza o desenvolvimen-
to humano na cidade.

A organização municipal necessária para a


governança democrática
Em uma organização municipal cujo foco principal seja a pres-
tação de serviços e a gestão de recursos, o principal apoio para o
político com responsabilidades de governo é um gerente ou uma
gerente de serviços com especialidade em gestão. É comum que
esta pessoa de apoio seja especializada em administração de em-
presas – é o que já mencionamos como o modo gerencial.
Na governança democrática, em que a gestão municipal sofre
uma importante transformação, também os organogramas pas-
sam a ser modificados. O principal apoio ao prefeito será as pes-
soas especializadas em gestão relacional. Isto porque se trata de
direcionar a gestão dos recursos e serviços no sentido de apoiar
a melhoria da capacidade de organização e ação da cidade ou
município.
Nas prefeituras que optam pela governança, se produz uma
mudança no peso específico dos profissionais e departamentos. As
mudanças de organograma dependem do tamanho e complexida-
de das prefeituras e áreas municipais. Porém, com a exceção do
topo da estrutura executiva, que é assumido por uma pessoa com
enfoque e capacidade nas técnicas de gestão relacional, nestes go-
vernos locais já se observam tendências para a organização munici-
pal da governança como:
• O surgimento dos departamentos de participação e coo-
peração cidadã que dependem diretamente do prefeito
ou secretário responsável por uma área de atuação. Lo-
gicamente a participação não é entendida apenas como
participação na elaboração e monitoramento das polí-

194 A governança do bem-estar social


ticas municipais, mas como participação na cidade, nos
processos de melhoria da coesão social.
• Uma concentração, em um só departamento subordina-
do ao líder político, de profissionais com responsabilida-
de na definição e promoção de estratégias, participação
e comunicação cidadã, assim como dos programas ou
projetos interdepartamentais.
• Uma importância maior para as políticas transversais e,
sobretudo, para a gestão das interdependências de de-
partamentos para alcançar objetivos sociais.
Em geral, os departamentos e áreas são definidos por pres-
tações de serviços: esportes, ensino, serviços sanitários e serviços
sociais. O que ocorre é que alguns não se definem pelo tipo de
benefícios e serviços que prestam, mas por objetivos de impacto
na população, e se denominam, por exemplo, saúde em vez de
serviço sanitário, educação em vez de ensino, ou inclusão social
em vez de serviços sociais etc., que são objetivos compartilhados
por outros sistemas de serviços e benefícios.
A gestão relacional vai além da transversalidade das políticas,
como por exemplo a promoção da igualdade de gênero. Sua fina-
lidade é que os departamentos, áreas, etc. – só as estruturas verti-
cais – compartilhem a consecução de um objetivo comum sem que
seja objetivo de nenhuma delas em particular. A transversalidade
exclui a gestão operacional, os órgãos transversais não participam
de projetos operacionais, apenas monitoram o impacto produzido
na sua finalidade. Todavia os objetivos sociais de impacto, como
“dar cobertura às necessidades básicas” ou “reduzir as desigual-
dades em capital educacional ou cultural”, exigem a articulação
de diferentes sistemas de benefícios: serviços sociais, serviços sa-
nitários, ensino, moradia, etc., mas neste caso se necessita de uma
gestão de tipo operativo interdepartamental e interinstitucional;
por esta razão, fala-se de gestão das interdependências.

A governança do bem-estar social 195


Estas tendências irão se configurando de maneira progressiva
na maioria dos governos locais e nos departamentos de bem-estar
social ou serviços sociais, em especial, dada a falência do modo
gerencial como consequência da mudança das condições econô-
micas e sociais que o fizeram surgir.

196 A governança do bem-estar social


Referências selecionadas
A seguir são indicadas as referências bibliográficas e páginas
eletrônicas mais diretamente relacionadas à temática do livro e
possivelmente úteis ao leitor que queira se aprofundar na mes-
ma.

1. Bibliografia
AERYC (II Conferencia Internacional). Regiones y Ciudades ante el
Desarrollo Humano Contemporáneo: La Governanza Democrática. Se-
vilha: Junta de Andalucía, 2006.
AERYC (I Conferencia Internacional). Estrategia Regional y Gover-
nança Territorial: La Gestión de Redes de Ciudades. Sevilha: Junta de
Andalucía, 2004.
ALGUACIL, J. (org.). Poder Local y Participación Democrática. Barce-
lona: El Viejo Topo, 2006.
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Desarrollo más allá de
la Política. Washington D.C.: BID, 2001.
BAUGMAN, Z. En Busca de La Política. México: F.C.E., 2002.
BECK, U. La Democracia y sus Enemigos. Barcelona: Paidós, 2000.
BLANCO, I y Gomà, R. Gobiernos Locales y Redes: Retos e Innovacio-
nes. Instituto de Gobierno y Políticas Públicas, 2002.
CASTELLS, M. Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia,
2006.
CENTELLES, J. El Buen Gobierno de la Ciudad. La Paz: IIG, 2006.
CERRILLO, A. (org.) La Governanza Hoy: 10 Textos de referencia.
Madri: INAP, 2005.
GIDDENS, A. Europa en la Era Global. Barcelona: Paidós, 2007.
INNERATY, D. El Nuevo Espacio Público. Madri: Espasa, 2006.

198 Referências selecionadas


KYMLICKA, W. La Ciudadanía Multicultural. Barcelona: Paidós,
1995.
MOUFFE, Ch. El Retorno de lo Político. Barcelona: Paidós, 1999.
OVEJERO, F. MARTÍ, J. L., GARGARELLA, R. Nuevas Ideas Republica-
nas. Barcelona: Paidós, 2003.
PASCUAL ESTEVE, J.M. La Estrategia Territorial como Inicio de la Go-
vernanza Democrática: Los Planes Estratégicos de 2ª generación. Bar-
celona: Diputación de Barcelona, 2007.
PASCUAL ESTEVE, J.M. La Gestión Estratégica de las Ciudades: Un
instrumento para gobernar las ciudades en la Era Infoglobal. Sevilha:
Junta de Andalucía, 2002.
PRATS, J. A los Príncipes Republicanos: Governanza y Desarrollo desde
el Republicanismo Cívico. Madri: INAP, 2006.
PUIG, T. La Comunicación Municipal Cómplice con los Ciudadanos.
Barcelona: Paidós, 2003.
SUBIRATS, J. “¿Qué Gestión Pública para qué Sociedad? Una Mi-
rada Prospectiva sobre el Ejercicio de la Gestión Pública en las
Sociedades Europeas Actuales”. Instituto de Gobierno y Políticas
Públicas. UAB, 2003.
VIDAL BELTRAN, J.M. y PRATS, J. Governanza. Diálogo Iberoameri-
cano. Madri: INAP, 2005.
VVAA. Las Democracias Urbanas en Europa. Madri: INAP, 2006.
ZAFRA, M. El Ayuntamiento como Gobierno Facilitador de Consensos.
Barcelona: Fundación Pi i Sunyer, 2007.

2. Links eletrônicos

www.abas.org ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social)


é uma parceria público-privada dedicada à promoção da gover-

Referências selecionadas 199


nança na área do bem-estar social na cidade de Barcelona. É in-
teressante pelos seus documentos e projetos que promovem esta
nova forma de governar.
www.aeryc.org AERYC (América-Europa de Regiones y Ciudades),
é um movimento internacional que tem como finalidade o desen-
volvimento da governança territorial. A página eletrônica contém,
entre outros temas de interesse, os livros com as principais confe-
rências e apresentações de suas conferências anuais, assim como
boas práticas em governança. São de especial interesse, por sua
singularidade, os temas de gestão regional através dos sistemas de
cidades e as conclusões de suas conferências anuais.
www.diba.es/servsocials É interessante para o conhecimento dos
programas de apoio das políticas de bem-estar social às iniciativas
locais na Província de Barcelona.
www.iigov.org É a página do Instituto Internacional de Governa-
bilidade da Catalunha. Suas publicações eletrônicas têm grande
interesse e, em especial, a revista do instituto especializada na
temática da governança. Sua revista eletrônica Instituciones y De-
sarrollo também merece atenção.

200 Referências selecionadas


O trabalho de Josep Ma Pascual Esteve não deixa o leitor
indiferente. Tem clareza e força suficientes para fustigar as
práticas de governo estabelecidas e mostrar o caminho para a sua
necessária transformação, ajustando-as às exigências da sociedade
do conhecimento e da informação.
Trata-se de um contundente chamamento à ação e traz o
entusiasmo e a autoconfiança de quem sabe aonde quer chegar.
Sua energia se concentra no fortalecimento dos governos
das cidades, para que possam enfrentar as dificuldades mais
importantes na gestão das demandas cidadãs.
Por pretender ser propositivo e útil aos políticos e técnicos que
atuam na administração dos municípios, o livro é bastante
didático. Para Pascual, a cidade deve ser uma construção coletiva
e o governo local o dinamizador e organizador da capacidade de
ação da sociedade. Defende com firmeza a opção pela qualidade
do meio ambiente e o radical aprofundamento dos instrumentos
democráticos de governo.

202 Governança: uma nova arte de governar

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