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Especial Volta ao Mundo

Texto e fotos: Gustavo Cieslar e Elke Pahl

Capítulo 35 (último episódio)


Argentina

Missão cumprida!

“As motos vão chegar ao Brasil com um mês e meio de atraso. Enviámo-las por engano para Hong Kong e Coreia.”.
Era assim que dizia o email da companhia naval, pela qual, há um mês atrás, tínhamos enviado as duas motos num
contentor, desde a Austrália, com destino ao Rio de Janeiro. Foi exactamente três dias antes da data prevista para
o seu desembarque que nos chegou este comunicado.

Foto de Alejo Rodríguez (f1photo)

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O cómico percurso das motos seria então: Austrália, Singapura, Hong
Kong, Coreia, Hong Kong, Singapura e Brasil. Tentámos por todos os
meios, primeiro amavelmente e depois ameaçando com advogados, uma
compensação por parte da agência marítima, que cobrisse parte dos gas-
tos que essa espera de seis semanas nos causaria, mas nem sequer um
pedido de desculpa obtivemos como resposta.
Por ali, pela cidade de Rio de Janeiro, tinha passado com a minha moto,
fazia já cinco anos e meio, durante os primeiros dias da viagem. Ao voltar
a essa mesma cidade fechava-se o círculo à volta do mundo, e estava
prestes a acabar uma história que, sobre duas rodas, tinha transformado
a minha vida e a de Elke. Estávamos a poucos dias de chegar a Buenos
Aires, de onde tinha partido no dia 22 de Dezembro de 2003, com a pro-
messa de voltar vinte dias depois.
Os vinte dias acabaram por se converter em dois mil, e a visita a um país
vizinho converteu-se numa travessia de quarenta países e cinco continen-
tes. A pequena viagem de descanso transformou-se numa aventura que
mudou a história das nossas vidas e simultaneamente de muitas outras.
A prolongada espera pelas motos dava-nos agora bastante tempo extra
para descansar no Brasil, adiantar os trabalhos atrasados e reflectir sobre
tudo o que tinha sucedido e o que viria depois, assim que as rodas deixas-
sem de girar. Não seria fácil abandonar, de repente, uma vida em que tudo
muda constantemente à nossa volta, regressando a algo mais normal e
rotineiro. Era ao mesmo tempo um desejo intenso e um desafio aterrador.
Ansiávamos voltar a ter a nossa própria cama, a nossa família por perto,
os amigos, as saídas de fim-de-semana em que sabemos que voltaremos
a casa. Durante a viagem muitas pessoas disseram que nos invejavam,
que éramos pessoas com muita sorte. Nós sempre lhes respondemos
que eles não imaginavam o quanto os invejávamos a eles, por terem um
refúgio próprio para onde voltar todas as noites, por poderem ver cres-
cer os seus filhos, irmãos e sobrinhos, por poderem fazer uma viagem e
ao estarem cansados terem um lar para onde voltar, e por muitos outros
tesouros que as pessoas nem reparam que têm entre mãos. Enfim, algo
que temos apreendido nesta viagem é a sonhar sempre com intensidade,
mas não deixar de valorizar o bem que se tem quando se tem o nosso
próprio refúgio.
Voltar ao Brasil foi reviver as emoções dos primeiros quilómetros. O sam-

Foto de Alejo Rodríguez


(f1photo)

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ba, as praias, o carnaval, os batidos de frutas As motos não poderão ser desembarcadas no mas raízes africanas.
exóticas, a alegria dos motoclubes, as garotas Rio de Janeiro, mas sim em Porto de Santos”. Retirar as motos do porto custou-nos suor e lágri-
desinibidas... O país perfeito para se começar e Deslocámo-nos para essa bonita cidade, sede mas. Informaram-nos depois que Brasil não é o
terminar uma viagem. Só não conseguimos as- do maior porto da América Latina, de onde se ex- melhor lugar na América do Sul para onde despa-
sistir ao Carnaval do Rio, porque os nossos “ami- portam toneladas de café, bananas e carros. Ali char um veículo. O custo somado dos portos de
gos” da empresa naval voltaram a enviar-nos outro o sambódromo era menor e o seu Carnaval mais partida e destino, que se compõem de transporte
inesperado email. “Alterámos o porto de destino. simples, mas cheio da mesma paixão e das mes- e abertura do contentor, inspecções, impostos,

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taxas, sindicatos, despachantes e demais buro- do preço que nos iriam cobrar para atravessar um vas. Queríamos aproveitar os últimos dias de algo
cracia, triplicam o custo original do frete marítimo. oceano, em que tivemos a tentação de abando- que não se repetiria jamais. Estávamos a poucos
Ou seja, se o transporte em si custa 400 euros, nar as motos ali mesmo e seguir a pé. Nunca o milhares de quilómetros da meta e todos os gran-
os portos chegam a cobrar até 1.200 euros de fizemos pelo carinho que temos para com esses des problemas já tinham ficado para trás. Bem...
taxas, ou mesmo mais. Durante a viagem gastá- bichos mecânicos, que nunca se cansaram de todos menos um, que nos esperava na fronteira e
mos no transporte das motos mais de cinco vezes nos transportar. que não era pequeno. A minha carta de condução
o seu próprio valor. Houve momentos, ao saber Rumámos a sul a todo vapor, cheios de expectati- já tinha caducado há meses, não tínhamos segu-

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ro dos veículos, e a minha moto estava em grave mais pequena. Fechámos os olhos e começámos cheios de dúvidas, franzindo a testa e esfregando
infração nas aduanas, por ter saído durante tanto ali os trâmites de entrada. Os empregados pa- os olhos e coçando as orelhas, esperando o pior.
tempo do país sem autorização. Por qualquer um reciam inexperientes e relaxados, e em nenhum Não sei se acreditaram, se tiveram pena de nós,
destes motivos nos poderiam aplicar severas mul- momento deram conta das três faltas, até que, por ou se só queriam mesmo fazer-nos sofrer mais um
tas, e inclusive apreender as motos. fim, nos despedimos e começámos a caminhar, pouco, mas nos deixaram seguir.
Um conhecido de um amigo, trabalhava num dos com uma calma aparente, para longe deles. Estávamos a entrar na Argentina na Semana San-
postos de fronteira, e nos facilitaria a entrada no — Hei, esperem! Vocês têm o seguro internacio- ta e estava tudo fechado, um autêntico deserto.
país. Era assim que estava combinado. Mas no nal? — Gritou-nos uma velha senhora que se en- Não era possível adquirir os seguros obrigatórios,
último momento, mesmo no último dia, avisou-nos carregava de pedir esse documento a cada carro mas mesmo assim continuámos pela estrada.
que entraria de férias no dia seguinte. Decidimos que chegava. Essa foi uma má e irresponsável decisão. Nas
então mudar de estrada e entrar por uma fronteira — Bem... sim... — respondemos-lhe dando a volta estradas havia tanto controlo policial como nunca

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tínhamos visto no mundo. Um posto de controlo a condução caducada e falta de seguro para as Isso era algo que não podia estar a acontecer
cada cinquenta quilómetros. Passámos sem ser duas motos), dando um total de 2.000 pesos, naquele momento. Já tínhamos programado uma
detidos pelos primeiros cinco, mas no sexto nos comunicou-nos o polícia. “Apreenderemos tam- data para a chegada a Buenos Aires e nesse mo-
mandaram parar. bém o seu motociclo até que alguém, com carta mento já não era possível alterar as coisas. Havia
A multa era no valor de trezentos litros de gaso- de condução válida, o venha buscar. Pode ser um gente que estaria à nossa espera pelo que não
lina para cada uma das três infracções (carta de familiar ou um amigo.”. podíamos cancelar. Fizemos um último esforço e

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demos uma demorada explicação das razões pe- gente gritando, saltando e acenando, câmaras de as motos na garagem, esvaziámos as malas pela
las quais não estávamos legais. A longa história canais de televisão, familiares e velhos amigos, as última vez e sentámo-nos a olhar em volta, como
amoleceu o coração dos polícias, que acabaram lágrimas começaram a cair dos nossos olhos sem quem chega de outro planeta. Chegava agora
por nos deixar partir com uma multa de 250 pe- as conseguirmos conter. Parámos os motores das uma nova etapa, aquela em que haverá outros so-
sos. Foi a única multa da viagem, exactamente motos e abraçávamos as pessoas que podiamos. nhos, outras lutas, outros objectivos. E a nossa
três dias antes desta terminar. Era uma festa que jamais tínhamos imaginado. primeira luta, o nosso maior sonho neste momen-
Esta flexibilidade latina, ainda assim, facilitou-nos Os meus pais estavam em casa, esperando-nos to, é que neste mundo seja mais compreendido o
as coisas, mas tratámos dos seguros na primeira e sem saberem de nada daquilo. Junto com essa significado de uma palavra que descobrimos ser
povoação que encontrámos. Tivemos sorte, nos caravana de centenas de motos e automóveis, tão importante, mas que tantas vezes esquece-
seguintes controlos policiais, e atravessámos a úl- entrámos no bairro, acelerando os motores e to- mos ao longo das nossas vidas. Esta viagem en-
tima ponte, aquela que nos deixaria na recta final cando buzinas e sirenes. A surpresa foi também sinou-nos a necessidade que este planeta tem de
de 50 km até ao ponto de onde tinha partido à enorme para eles. Os meus pais abriram a por- que todos nós aprendamos mais sobre a palavra
mais de cinco anos. Do outro lado da ponte espe- ta espantados e o abraço foi imenso, tal como “respeito”. Respeito pelo meio ambiente, pelas di-
rava-nos uma grande surpresa. Havia um grande imensas também foram as lágrimas de alegria. O ferencias culturais e religiosas, políticas e sexuais,
grupo de motociclistas à nossa espera. Acompa- carinho de toda aquela gente fez com que esse pelos nossos vizinhos, pelo nosso próximo. É de
nharam-nos, em caravana, até ao centro da cida- dia fosse inquestionavelmente o melhor de toda um respeito profundo que precisamos para salvar
de, e quando vimos na base do Obelisco (o mo- a viagem. este planeta. Desde o simples respeito por quem
numento central de Buenos Aires) uma massa de Mais tarde despedimo-nos de todos, deixámos atravessa a rua diante de nós, até ao respeito pe-

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las outras espécies existentes, que povoam este cinco capítulos, para a Moto Report, sentimo-nos Vemo-nos por aí... na estrada.
nosso mundo, pelos rios e pelos homens e mulhe- muito perto de vós. Provavelmente voltaremos a
res que virão depois de nós. Pensemos nisso, e encontrar-nos em próximas aventuras, em próxi- Gustavo Cieslar e Elke Pahl
que essa seja a base de todas as nossas acções mas edições, em próximas viagens para outros
futuras. sonhos. Poderão ver o vídeo da chegada em: http://www.
Obrigado por terem viajado connosco durante Mas e porque não os vossos?!... youtube.com/watch?v=oyfH-Y6FaQc
todo este tempo. Ao escrevermos estes trinta e Até sempre. e o da viagem em: www.re-moto.com

Alguns
elementos
curiosos da
viagem
Motos usadas na viagem: duas
Yamaha YBR 125 cc (uma
de nome “Garota”, conduzida
por Gustavo Cieslar; outra de
nome “Milton”, conduzida por
Elke Pahl).
Tempo total da viagem: 1.944
dias (5 anos e 4 meses).
Total de quilómetros percorri-
dos: 85.701
Total de pneus gastos: 13 (6
traseiros e 4 dianteiros na “Ga-
rota”; 2 traseiros e 1 dianteiro
na “Milton”.
Total de furos: 10
Total de quedas: 6
Total de litros de gasolina gas-
tos: 3.506 (2.597 na “Garota”
e 909 na “Milton”).
Total de países visitados: 43
Total de fotos registadas:
48.970

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