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218
da palavra
VI. Ensaios em homenagem a Benedito Nunes
da palavra 219
220 da palavra
João Guimarães Rosa:
um mestre que ensina
a dialogar com o povo
Willi Bolle1
Maira Fanton Dalalio2
Ao lado: Guimarães Rosa, Relatamos aqui a experiência de um mini-curso de três dias, ministrado
reprodução
sob o título “JGR – um mestre que ensina a dialogar com o povo”, em agosto de
2004 na Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, no âmbito do III
Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa. O curso foi planejado com base
nos experimentos do grupo de estudos grandesertão.br, que se constituiu na
Universidade de São Paulo em dezembro de 2003, a partir de um estudo do
romance Grande Sertão: Veredas, realizado por Willi Bolle no livro grandesertão.br
– O romance de formação do Brasil, cujo manuscrito foi terminado em 2003 e que
foi publicado em 2004. Trata-se nesse estudo de revelar o retrato do Brasil
contido na obra-prima de Guimarães Rosa. A chave da interpretação é a análise
da situação narrativa. Estamos diante de um narrador sertanejo que fala o tempo
todo, enquanto seu interlocutor, um doutor da cidade, apenas escuta. Por meio
desse dispositivo poético, o romancista nos incentiva a pesquisar uma questão
cultural e política: como se conversa ou não se conversa na sociedade brasileira.
Observa-se uma ausência de diálogo entre os donos da norma culta e os
socialmente excluídos. O que rege as relações de fala, que expressam relações
de poder, é uma função de linguagem que podemos chamar de diabólica, sendo
1
Professor de Literatura na a figura do diábolos – aquele que se interpõe entre as pessoas e as divide –
Universidade de São Paulo
(USP).
onipresente em Grande Sertão: Veredas. Quanto à história narrada, esse romance
2
Mestranda de Letras (USP). do cânone universal pode ser lido como a versão brasileira da “história mundial
da palavra 221
do sofrimento”, para usar a expressão de Walter Benjamin. Ao representar um
sistema de poder estreitamente vinculado ao crime e que funciona tanto no
sertão quanto nas cidades, Guimarães Rosa traçou de modo exato e visionário
um retrato das tendências de criminalização na sociedade brasileira. Através do
que chamou de “sistema jagunço”, ele condensou numa expressão sintética a
violência, a miséria, a iniquidade social e as forças que bloqueiam a emancipação
e o processo democrático.
O escritor, no entanto, elaborou também um dispositivo de emancipação que
vem se somar ao que Antonio Candido (1995) chama “O direito à literatura”. A
utopia artística e política de Guimarães Rosa é a invenção de uma nova linguagem,
de acordo com sua convicção de que “O mundo somente pode ser renovado através
da renovação da linguagem” (Rosa, in: Lorenz, 1983, p. 88) Essa invenção consistiria
essencialmente na fusão da norma culta com a fala das classes periféricas e
marginalizadas, das quais o autor extraiu a grande maioria de suas estórias e de seus
protagonistas, reconhecendo-os, portanto, como sujeitos da História.
Contra a violência, o diálogo. O que orientou o nosso trabalho foi a ideia
de um diálogo, inspirado na mistura de linguagens, por parte de Guimarães Rosa,
entre a norma culta e a fala popular. O fio condutor do nosso mini-curso foi a
leitura dramática de um episódio de Grande Sertão: Veredas, que montamos e
discutimos com os participantes. O objetivo principal da apresentação e o intento
pedagógico do curso podem ser assim sintetizados: Os participantes-atores
experimentam ludicamente o papel de agentes da violência, para se transformarem em agentes
de diálogo cultural. Como viabilizar essa metamorfose? Eis o desafio pedagógico
e a questão-chave a ser discutida. De acordo com a proposta dialógica e o
componente de teatralização do curso, ele foi planejado desde o início para ser
ministrado não apenas pelo professor responsável (Willi Bolle), mas também
pelos três monitores Maira Fanton Dalalio, Henrique de Toledo Groke e Paulo
Roberto Ortiz.
222 da palavra
arte, leitura de contos, exibição de filmes, debates, danças, caminhadas e subidas
à “pirâmide do sertão”, nosso grupo ensaiou e depois apresentou publicamente
a leitura do episódio. Incorporamos 15 atuantes-jagunços – além de meia-dúzia
de integrantes do “coro dos jagunços”, que faz parte do espetáculo –, convidando
habitantes da cidade e da redondeza, sendo a maioria deles “Miguilins”, os
contadores de estórias de Cordisburgo. Essa experiência bem-sucedida, num
trabalho conjunto de pesquisadores acadêmicos de Guimarães Rosa com jovens
do sertão que transmitem oralmente a obra do autor, nos animou a planejar
como próximo passo o mini-curso em Belo Horizonte.
Quanto ao título do curso, “JGR – um mestre que ensina a dialogar com o
povo”, lembramos que o uso dos conceitos de “povo” e “nação” no romance de
Guimarães Rosa foi estudado detalhadamente no livro grandesertão.br (nos capítulos
“A nação dilacerada” e “Representação do povo e invenção de linguagem”). Em
síntese, pode-se dizer que os donos do poder jogam com a incongruência entre
“povo” e “nação”, para administrar os conflitos de um Estado burguês dilacerado
entre as promessas de igualdade social e a traição desse ideal. Uma vez que o
conceito de “povo” está um tanto desgastado pelo seu frequente uso populista e
demagógico, acabamos por centrar nosso trabalho teórico e prático mais
especificamente no diálogo entre os que dominam a norma culta e os que usam a
fala popular. Imaginamos aprender a redimensionar essa questão com o autor de
Grande Sertão: Veredas, na medida em que ele reinventa o idioma brasileiro pela
fusão de elementos linguísticos e culturais diferentes, visando superar a diglossia
e fomentar o diálogo entre as classes sociais – contra o pano de fundo de um
Brasil marcado por antagonismos sociais, violência e crime.
Metodologicamente falando, os integrantes do grupo grandesertão.br,
juntamente com cinco ou seis Miguilins, transmitiriam a experiência anterior do
Morro da Garça aos participantes do mini-curso, procurando aprofundar e
aperfeiçoar a proposta pedagógica. Além do trabalho cênico, nossos recursos
foram os da hermenêutica literária, histórica e sociológica – sendo a
hermenêutica, segundo Friedrich Schleiermacher, “a arte de compreender textos
e pessoas”. O curso foi estruturado em três módulos inter-relacionados.
da palavra 223
Agora você é um jagunço.
Quando for chamado: brinque, encontre um jeito de falar o seu texto.
Experimente dos mais diversos modos, seja criativo.
Sintonize-se com os demais e lembre-se:
você é parte de um bando.
Jõe Bexiguento:
Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio...
Quem se encarregou de coordenar os 16 atores novatos, os “recém-
jagunços”, foi o trio diretor, os atores de Hermógenes, Riobaldo e seô Habão.
Paralelamente, ocorreu uma iniciativa estimulante. Algumas mulheres, na maioria
professoras, assumiram o papel do coro de jagunços. Colocando-se no fundo
mais elevado do auditório, atrás do público e confrontando-se de longe com os
jagunços do palco, elas construíram uma espécie de “ponte de ambientação”
entre os ferozes bandidos do sertão e suas virtuais vítimas: os habitantes das
cidades, representados pelo público. Dessa maneira, metade da classe estava
em cena, experimentando a linguagem dos jagunços de Grande Sertão: Veredas,
não só intelectualmente, mas na voz e no corpo.
Para dar uma ideia da atmosfera mental do nosso recorte do romance,
reproduzimos aqui a fala integral do coro dos jagunços. Esse texto é uma
adaptação cênica de uma visão do narrador-protagonista Riobaldo, que teme
que os miseráveis do sertão possam invadir as cidades. Inicialmente, há uma
breve indicação de como deve agir cada integrante do coro.
E de repente ELES podiam ser montão, montoeira,
Aos milhares mís e centos milhentos,
ELES se desentocando e formando do brenhal,
ELES enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.
224 da palavra
Para se esconderem – Deus nos diga?
Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e vantagens
de toda valia... E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver
recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua
cama ou rede! ...
da palavra 225
“letrados” e dos “não-letrados”, prevenindo-nos de certas idealizações e
abstrações. O depoimento de uma estudante de Letras, que recebeu sua formação
entre os Miguilins, nos deu um eloquente testemunho de como “as margens
entre as duas culturas não são fixas”. O que contribuiu desde cedo para essa
oscilação – a busca de identidade entre sua atual condição de letrada e a cultura
tradionalmente oral do ambiente sertanejo – é que a própria formação dos
contadores de estórias implica numa iniciação literária. Por isso, eles são muito
mais representantes de um “entre-lugar” cultural. A busca de fantasmas culturais
supostamente puros seria, aliás, um contra-senso numa cultura mista como a
brasileira. A dedicação dos Miguilins às atividades artísticas, com base nas
estórias de Guimarães Rosa, nos fez redescobrir a nossa tarefa básica:
desenvolver um trabalho de diálogo cultural no medium da obra do escritor.
Resolvemos aprofundar a experiência que tínhamos iniciado na véspera
no sentido de trabalhar como nosso “entre-lugar” a relação intermedial entre
literatura e teatro. Um estímulo importante foi a notícia de que uma equipe da
TV Globo faria à noite uma reportagem sobre o Seminário e, nessa ocasião,
filmaria também a nossa leitura dramática, prevista para ser apresentada em
público, naquela noite, por ocasião do lançamento do livro grandesertão.br. Com
vista a essa apresentação, o professor e os monitores passaram a tarde inteira no
auditório, arrumando com a ajuda dos técnicos os móveis, a iluminação e o
cenário e, sobretudo, realizando uma preparação intensa de coreografia,
expressão corporal, exercícios de voz e interpretação que depois foi transmitido
para os participantes.
Quando estes chegaram, a notícia da filmagem funcionou como um
poderoso catalisador. Se a aula do primeiro dia transitou de letras para a atividade
teatral, a do segundo dia foi sobretudo uma aula de teatro. Maira Fanton começou
fazendo um aquecimento corporal com os participantes-atores e Willi Bolle se
encarregou do aquecimento vocal. Ambos ajudaram os outros a se familiarizarem
com o espaço, inclusive, a perder o medo desse auditório vasto e de acústica
sofrível e a se apoderar dele com o corpo e a voz. Nessa tarefa contribuíram
decisivamente as participantes do coro. No coro foram, aliás, introduzidas
inovações: o texto foi interpretado com três variações:
226 da palavra
Quando a equipe de televisão chegou, a leitura dramática aconteceu com
muita força e vontade – e brutalidade. Foi impressionante ver figuras tão delicadas
expelindo crueldade. Ali poderia ser o espaço catalisador da maldade humana.
Sem querer supervalorizar a nossa apresentação, pode se dizer que foi uma
leitura dramática que ficou na memória dos participantes.
Catrumano:
Ossenhor utúrje, a gente estamos resguardando essas estradas: o povo do
Sucruiú, que estão com a doença, que pega todos, peste de bexiga preta...
Menino Guirigó:
Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...
As pessoas que vivem nesse meio de miséria e de doença ou se resignam
ou procuram sair dali de qualquer jeito. Um caminho frequente é a opção pelo
crime, considerado nesse contexto uma profissão respeitável como qualquer
outra:
João Concliz:
Quando se jornadeia de jagunço não se nota tanto: o estatuto de misérias
e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha...
As necessidades e aspirações básicas dos jagunços são assim sintetizadas:
Rodrigues Peludo:
Jagunço é isso: comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim final...
Esse desejo expresso pelo jagunço Rodrigues Peludo não é restrito à esfera
do sertão, pois os habitantes das cidades desejam algo muito semelhante. Veja-
da palavra 227
se esta passagem-chave da peça de Bertolt Brecht, Ascensão e queda da cidade
Mahagonny (1929): “comer, amar, lutar, beber” – embora se trate aqui de uma
cidade da zona de garimpo, um lugar de transição. O desejo geral dos homens
sertanejos é assim verbalizado pelo coro dos jagunços: “Vamos querer usufruir
depressa de todas as coisas boas.” Haveria algum mal nisso? Não é para isso
que somos adestrados diariamente pela sociedade de consumo, não é esse o
comportamento que os donos do poder esperam da massa dos consumidores?
Onde começa, então, a passagem da civilização para a violência? No “uivar
e desatinar”? Um passo importante do conhecimento do ser humano foi dado
no momento em que Nietzsche aboliu a distinção secular e preconceituosa entre
o “selvagem” das brenhas e o “homem urbano”, descobrindo que o
comportamento de “selvageria” pode repentinamente surgir em qualquer um
dos dois. Guimarães Rosa chegou ao mesmo diagnóstico ao declarar que “sertão:
é dentro da gente”. Portanto, as falas do Valtêi, que “gosta de matar”, ou do
Sidurino, que “carece de um tiroteio”, ou do Firmiano, que quer “esfolar e castrar
um soldado”, ou do Riobaldo, que deseja “matar, matar assassinado”, não são
restritas, de forma alguma, ao ambiente de bandidos sertanejos.
Quanto ao fazendeiro seô Habão, capitão da Guarda Nacional, vivendo
“com a ideia na lavoura”, vejamos como ele faz o balanço de seus negócios,
depois da doença que inutilizou e em parte ceifou a sua mão-de-obra:
Seô Habão:
A bexiga do Sucruiú já terminou. Morreram só 18 pessoas...
Ele precisa de gente “para capinar e roçar, e colher”, se não, a economia
pára. Nesse momento, ele se dá conta de que, na sua frente, está exatamente
esse número de pessoas de que precisa, perfeitamente aptas a realizar o trabalho.
Então, ele declara, com a maior naturalidade:
Vou botar vocês para o corte da cana e fazeção de rapadura.
A rapadura vou vender para vocês. Depois vocês pagam com trabalhos
redobrados...
228 da palavra
diferente das pedagogias idealistas que subestimam o fascínio e a força que o
Mal exerce sobre as pessoas, resolvemos encarar de forma lúdica o Mal,
exatamente para conhecê-lo – afinal, nosso romancista trabalha com o
pressuposto da “ruindade nativa do homem”. Como um dos antídotos contra o
Mal, dispomos da atividade lúdica. O protagonista-narrador de Grande Sertão:
Veredas nos ensina que o discurso da violência é algo construído e que podemos,
portanto, também desconstruí-lo.
Do meio para o fim da aula, os participantes se dividiram em três grupos
para discutir como nós, estudantes e professores de letras, poderíamos prosseguir
no caminho proposto por Guimarães Rosa em sua obra: realizar o trabalho
dialético de extrair, a partir de uma constelação de crime e violência, a perspectiva
de um diálogo social. Nessa discussão, o professores e os monitores fizeram
questão de apenas ouvir o que diziam os participantes, assim como o letrado da
cidade que ouve a fala de Riobaldo.
Este breve resumo só pode reproduzir muito imperfeitamente a riqueza,
os detalhes e a vivacidade das exposições dos três grupos, que chamamos aqui
de A, B e C. O grupo B se centrou na questão da dramatização, que diminui a
distância entre as esferas sociais e nos põe em guarda para não usar de modo
autoritário as obras canônicas e “temidas”, como Grande Sertão: Veredas. O grupo
C ressaltou a importância da humildade como forma de aprendizagem. Já o
grupo A, desconfiando de tamanha “humildade”, detectou ali também mais um
mascaramento da violência.
Cabe sinalizar ainda que, no final de setembro de 2004, houve uma leitura
dramática do nosso texto em Belém, na VIII Feira Panamazônica do Livro,
realizada por alunos da Escola de Teatro da UFPA, sob a direção dos professores
Lúcia Uchoa e Walter Bandeira. A realização cênica foi de uma beleza selvagem.
Depois dessas experiências, o grupo trabalhou com oficinas e realizações
de leitura dramática sob o título “Atores da violência – atores do diálogo”, em
diversos lugares do Brasil e da Europa. Modificações e transformações ocorreram
da palavra 229
durante o percurso. Buscamos aperfeiçoar, teórica e esteticamente, a nossa
proposta principal: elaborar um modelo de oficina e leitura dramática que possa
ser colocado à disposição de grupos interessados.
Atualmente buscamos repensar e refinar os nossos principais conceitos
operacionais, através de estudos de tópicos como romance de formação, teatro
de aprendizagem, método Paulo Freire, conceito de violência, análise do
discurso, retórica, popularização do saber, juntamente com a criação de um
documentário em vídeo com os registros das experiências e a aprendizagem do
grupo.3
Referências bibliográficas
BOLLE, Willi. grandesertão.br – o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2004.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. 3a ed. revista e
ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
LORENZ, Günter W. “Diálogo com Guimarães Rosa”. Trad. De Rosemará
Costhek Abílio. In: Coutinho, Eduardo (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. 62-97.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 5a ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1965 (1a ed.: 1956).
SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermeneutik. Org. por Heinz
Kimmerle. 2a ed. Heidelberg: Carl Winter, 1974.
230 da palavra
CORO dos JAGUNÇOS – 1
E de repente ELES podiam ser montão, montoeira,
Aos milhares mís e centos milhentos,
eles se desentocando e formando do brenhal,
eles enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.
Alaripe: Eu tenho receio que me achem de coração mole; tenho pena de toda
criatura de Jesus…
Hermógenes – 1: Eu vou levar vocês para atacar grandes cidades, a serviço
para chefes políticos...
João Bugre: O Hermógenes é positivo pactário. Ele tira seu prazer do medo
dos outros, do sofrimento dos outros...
Rodrigues Peludo: Jagunço é isso: comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim
final...
Firmiano, apelidado Piolho-de-Cobra: Me dá saudade de pegar um soldado,
e tal, pra uma boa esfola, com faca cega... mas, primeiro, castrar...
Riobaldo – 1: Matar aquele homem, matar assassinado... E agarrar aquela moça
nos meus braços, uma quanta-coisa primorosa que se esperneia, e vocês, meus
companheiros, todos de pé, fechando praia de mar...
Matar aquele homem? ... E agarrar aquela moça? ... e vocês, meus companheiros?
...
da palavra 231
Catrumano: Ossenhor utúrje, a gente estamos resguardando essas estradas: o
povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega todos, peste de bexiga
preta...
João Concliz: Quando se jornadeia de jagunço não se nota tanto: o estatuto de
misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha...
Menino Guirigó: Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...
Zé Bebelo: O que imponho é se educar e socorrer as infâncias desse sertão...
Guimarães Rosa: País de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...
Hermógenes – 2: Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e
objetos e vantagens de toda valia... E só vamos sossegar quando cada um já
estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas,
p’ra o renovame de sua cama ou rede! ...
232 da palavra
Riobaldo – 2: Eu eu aqui, no entremeio deles... Afinal, o que é que eu sou?
Um raso jagunço atirador, cachorrando por esse sertão...
Adalgizo: Seô Habão está cobiçando a gente para escravos! ...
Riobaldo – 3: Duvidar, Seô Habão, o senhor conhece meu pai,
fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!
Senhor Habão – 3: Dou notícia... Dou notícia...
Abaixo:
Willie Bolle e Riobaldo – 4: [apontando para os jagunços, que olham para ele como para um traidor]
Benedito Nunes
Foto: acervo Maria Sylvia Nunes O silêncio deles me entende.
da palavra 233
234 da palavra
O Encoberto que vem no Desejo
Alcir Pécora*
A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma
figura. Os egípcios, nos seus hieroglíficos, e antes deles os caldeus, para representar a eternidade
pintaram um O, porque a figura circular não tem princípio nem fim, e isto é ser eterno.1
*
Professor da UNICAMP.
Autor de vários livros e orga- Depois, pensou em adicionar som à imagem:
nizador, entre outros de “Ser-
mões - Padre Antonio Viera” O desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam, se o afeto rompeu
2 vol. Hedra. 2001.
1
Todas as citações de Vieira silêncio, e do coração passou à boca, o que pronunciam é Ó.2
são feitas na edição dos Ser-
mões feita pela Edameris (l957-
59). O trecho citado aparece à Por fim, para aperfeiçoar a figura, imprimiu-lhe movimento:
página 103 do volume VI, cor-
respondente ao início da quin- Se acaso ou de indústria lançasses uma pedra ao mar sereno e quieto, ao primeiro
ta parte do Sermão de Nossa
Senhora do O, dado como ten- toque da água vistes alguma perturbação nela; mas tanto que essa perturbação se
do sido pregado em 1640, na
Igreja de Nossa Senhora da sossegou, e a pedra ficou dentro no mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo
Ajuda, em Salvador. perfeito, e logo outro círculo maior, e, após este, outro e outros, todos com a mesma
2
Idem, ibidem.
3
Idem, p. 111-2. proporção sucessiva, e todos mais es-tendidos sempre, e de mais dilatada esfera.3
da palavra 235
Aí está a figura exata, mas qual pode ser o exato percurso que lhe dá A concepção de natureza,
4
236 da palavra
Assim, qualquer outro ser que não se defina em analogia com o Ser de Deus,
por maior que pareça, não é, porque vem a parar em não-ser.12
da palavra 237
Jogando um pouco mais com as noções aparentadas à de desejo no esboço
gramatical17 que se tenta aqui, pode-se dizer que, sem o conhecimento de seu
objeto em alguma forma de experiência antecipada do bem proporcionado por
ele, a própria noção de “amor”, tomado platonicamente como desdobramento
fecundo, natural e desinteressado do desejo na fruição da presença do bem,
seria implausível, pois o objeto a que se chega não é o mesmo que o desejo
supõe. Ainda mais, tal fruição seria implausível pelo fato de que esse falso
objeto não tem ser, e o ser é a condição irredutível do amor real18.
Nos termos de Vieira, ainda é possível dizer que o amor mais comum, no
âmbito mundano dos desejos, significa uma espécie de deformação fantástica
da imaginação, na qual o desejo, longe do conhecimento, torna-se
progressivamente irreal. No Sermão da primeira Sexta-feira da Quaresma, dado
como tendo sido pregado em Odivelas no ano de 1644, afirma o seguinte:
Isto que no mundo se chama amor é uma coisa que não há nem é. É quimera, é mentira, é
engano, é uma doença da imaginação19.
238 da palavra
O tormento amoroso é, pois, efeito da distorção imaginária do desejo,
que é incapaz de conhecimento do seu objeto, e, por isso mesmo, incapaz de
orientá-lo para o ser. Nessa roda mortal, de circuito falho, o amor, que
catolicamente deve ser entendido essencialmente como “união”22, permanece
irrealizado. Para ser fecundo, o desejo deve estar fundado sobre o conhecimento
de seu objeto real, pois apenas a existência real permite a condução do desejo à
forma superior do gozo unitivo. Sem esse conhecimento, com a vontade
subjugada pela tentação néscia, apenas pode tomar formas dolorosas, cuja
natureza exaltada e falta de ser contraria necessariamente a razão. Num Sermão
do mandato, atribuído ao ano de 1645, Vieira propõe ser essa a causa da
representação do Amor como uma criança na literatura erótico-galante (depois
de propor, de início, que isso se dava apenas porque “nenhum amor dura tanto
que chegue a ser velho”23). Diz ele:
Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca
chega à idade de uso de razão. Usar de razão e amar, são duas coisas que não se ajuntam. A
alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é
o amor vulgar.24
Diz ainda:
(...)tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento.
Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará
de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a
vontade que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração que não
houvesse fraqueza no juízo.25
(...)isto, que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem
de ignorância, tantas lhe faltam de amor26.
O arremate é lapidar:
Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância
na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem ignorando ofendeu, em
rigor não é delinquente. Quem ignorando amou, em rigor não é amante.27
da palavra 239
seres criados, tem de ser reorientada por alguma espécie de ciência do ser, para
evitar, assim, a sua dissolução nas formas estéreis e atormentadas do apetite.
Ou seja, o desejo deve mover-se segundo um parâmetro ordenado que
proporcione a sua consumação na união amorosa que exige o ser. Na direção
contrária, a entrega à fermentação fantástica, fantasiosa, da ignorância inevitável
do desejo impede o salto para o ser. A fantasia, absolutizada, conduz o desejo a
submeter a vontade e a destruir a sua natural orientação para a livre obtenção
do bem. Por fim, isto equivaleria à própria destruição do desejo, cuja finalidade
última não é desejar, mas ser (“desejar ser”) à imagem do Ser primeiro.
Em outros termos, o perigo da representação imaginária do não-ser
significa catolicamente -a renúncia – irracional e moralmente má – à comunhão
com aquilo cujo maior bem, antes de ser qualquer coisa, antes de ter uma essência
particular, é -ser29, e que, a rigor, só é desejável porque verdadeiramente é. Quer
dizer, só o amor do que tem realidade e cuja natureza admite a existência é
amor real. O amor do que não é não pode ser senão falso amor:
(...)os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não
é o que cuidam, ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando
que são diamantes, diamantes, estima, e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são
perfeições, perfeições ama, e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros
de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo, os
homens não amam o que cuidam. Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não
há, porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina e não é,
não o há no mundo.30
Ou ainda:
Os homens amam muitas coisas, que as não há no mundo. Amam as coisas como as imaginam,e
as coisas como eles a imaginam, havê-las-á na imaginação, mas no mundo não as há31.
240 da palavra
Se a fantasia não responde ao desejo de participação no Ser de Deus,
porque ignora a sua manifestação viva no real, tampouco o faz o mundo,
considerado fora de sua finalidade transcendente. Em primeiro lugar, porque
considerado num momento qualquer, o mundo representa sempre um estado
decaído, distante da comunhão com Deus, por efeito dos sucessivos enganos da
história humana; em segundo, porque o desejo se orienta pelo real para participar
da finalidade divina de sua criação. Isto é, o desejo busca em meio aos efeitos o
fim pretendido por Deus; logo, não são os estados circunstanciais do mundo,
mas o seu movimento providencial que responde ao desejo na-tural, definido
de maneira finalista, teleológica.
Se a fantasia é uma deformação do desejo à margem do real, os objetos
do mundo, sem a Providência, são uma redução do real a sua matéria, uma
interrupção do movimento desejante para o Ser. Um e outro – o imaginário fora
do mundo e o estado imediato do mundo – têm muito em comum. Trata-se
apenas de amplificar a irrelevância frenética das paixões viciosas pessoais até o
mais vasto esvaziamento mundano.
Cumprir-se o desejo, nessas condições, significa ultrapassar tanto o
imaginário vão, como o engano da matéria; tanto o irreal da fantasia, como o
infrarreal do mundo. A razão, entendida como discernimento do objeto do desejo,
é decisiva para impedir o descolamento da fantasia do real ou o enrijecimento
dele na sua matéria.
da palavra 241
O plano sacramental da invenção de Vieira permite supor pelo menos 33
Na ortodoxia católica, há
analogia entre causa e efeito.
três instâncias distintas. Uma primeira, em que a acidentalização do Ser encontra- O universo criado seria aná-
se manifesta em todo o universo, dado que este, não sendo autônomo, mas logo, portanto, ao Criador. A
causalidade física (entre os
criado, sustentado e dirigido pelo Ser divino, guarda necessariamente em suas seres criados, portanto) seria
múltiplas circunstâncias os “vestígios”33 daquele que o fabricou do nada. O que um desses vestígios, um ele-
mento analógico do Ser que é
há nas variações do mundo e da história, e ainda no que nelas falta, está Causa. Gilson discute essa
questão no capítulo do
impregnado do Ser que é Causa final delas. Uma segunda instância sacramental L’esprit de la philosophie
destaca o lugar privilegiado dos mistérios litúrgicos para essa presença do Ser médiévale dedicado às no-
ções de analogia, causalidade e
sob a capa das espécies do mundo-o da Eucaristia, sobretudo: “o mais alto de finalidade. Pode-se dizer que o
todos os mistérios”, “o mais alevantado de todos os sacramentos”, “soberano mundo cristão tem um caráter
sacramental porque tudo o que
mistério”34. Uma terceira instância, enfim, está articulada à crença popular ao nele há se orienta pelo e para
tempo da Restauração portuguesa, na qual o ocultamento inevitável que sofre o o Ser que o cria.
34
São termos empregados no
divino quando se apresenta no mundo, opera-se mediante a instituição da figura Sermão do Santíssimo Sacramen-
to, pregado em Santa Engrácia,
de um eleito, de um favorito da Providência destinado a atuar decisivamente no em 1645; in Sermões (op.cit.),
desfecho da história hu-mana. v. I, p. 134.
35
O eleito é assim descrito
Quer dizer, nessa última instância, o Ser buscado pelo desejo toma a forma por Vieira no Sermão de ação de
e o nome de “Encoberto”. Tal ideia do desejado que se encobre se compreende, graças pelo nascimento do príncipe
d. João (palavra de Deus desempe-
portanto, quando a comunhão com o Ser de Deus, que o desejo busca, aparece nhada), dado como pregado na
mediada por um intermediário capaz de ajustar o desejo comum do homem à Bahia, em 1688: O Filho do
homem é Cristo; o quase Fi-
finalidade cristã da história. De maneira direta: o desejo apenas descobre o lho do homem é o quase Cris-
to, ou Vice-Cristo. De sorte
verdadeiro desejado quando o Ser assinala o que Vieira chama de “Vice-Cristo”35. que, assim como o primeiro
Aí estão os três passos da via sacramental do desejo, a única que assegura vigário de Cristo, que é o sumo
pontifico, pela jurisdição uni-
a posse do desejado. Tomados em separado, referem-se a passos bem conheci-dos, versal que tem sobre toda a
seja da ortodoxia (na formulação predominante, mas não exclusiva, do tomismo), Igreja, se chama Vice-Cristo no
império espiritual, assim o
seja do sebastianismo da Restauração portuguesa, de que os jesuítas foram segundo vigário do mesmo
insistentes propugnadores.36 Particular de Vieira é apenas o discurso que articula Cristo, pelo domínio univer-
sal que terá sobre todo o mun-
o tema do Encoberto, sem perda da carga que recebe do imaginário nacional da do, se chamará também no
Restauração, a lugares argumentativos exclusivos da ortodoxia católica. A império temporal Vice-Cris-
to: Quasi Filius hominis. A
interpretação de seus sermões é, portanto, dependente do exame dos movimentos esse eleito caberá, então, efe-
tivar o paraíso terreal que Vi-
proporcionados por esse eixo sacramental. eira identifica como sendo o
V Império (após o de assírios,
persas, gregos e romanos): E
V. A via sacramental este é o império quinto e último, que
se há de levantar depois da extinção
O primeiro movimento da via sacramental diz respeito ao sacramento da do turco, não na pessoa de Cristo
imediatamente, senão na de um prín-
Eucaristia, que fornece também o modelo da ideia contrarreformista de sacramento. cipe seu vigário” (in Sermões, v.
Aí, pela presença do Ser divino encoberto sob as espécies materiais do pão e do XXI, p. 416-7).
36
Sobre a participação jesuí-
vinho, há-, de acordo com a ortodoxia católica (que, como é sabido, recusa qualquer tica na elaboração e divulga-
ção do sebastianismo da Res-
concepção de uma presença meramente simbólica), uma “comunhão” do homem tauração há muitos textos im-
com Deus, uma comunicação “abreviada” do Ser.37 Vieira discute não apenas a portantes. Cito dois muito
conhecidos: A literatura au-
natureza dessa comunicação, como também as razões para que ela se faça pela tonomista sob os Filipes, de
via sacramental, isto é, como presença encoberta na matéria. A primeira delas Hernâni Cidade, e A Compa-
nhia de Jesus e a restauração de
refere-se à ideia de que a presença manifesta do Ser, vista sem a mediação das Portugal, de Francisco Rodri-
espécies nas quais se sacramenta, tende paradoxalmente a fazer com que o desejo, gues, publicado no volume VI
dos Anais do Ciclo da Res-
dada a imper-feição humana em que se formula, seja dissolvido no plano tauração de Portugal (Lisboa,
exclusivamente material dos sentidos. Considerada a ignorância do homem, a vista Academia Portuguesa de His-
tória, 1942).
direta de Deus no mundo traz o risco iminente de o desejo do Ser restringir-se ao 37
Cristo ao Sacramento tem abre-
viada e estreitada sua grandeza
âmbito imediato do visível, excluindo dele sua substância e fim.38 (Sermão do Santíssimo Sacramen-
242 da palavra
Para Vieira, se o desejo humano, por um lado, não se pode dar fora de sua
condição corpórea, sensível, por outro, se os sentidos forem satisfeitos neles
mesmos, romperão a finalidade substancial do desejo. Nessa perspectiva, quando
se encobre nas espécies sacramentais, Deus é previdente em relação à natureza
dos sentidos, cuja satisfação imediata conduz à limitação do desejo ao próprio
campo dos sentidos, abandonando-se o seu encaminha-mento para o Ser.
Encobrir-se é a forma eficaz de manter insatisfeito o desejo com a matéria e
estado do mundo, a fim de apurá-lo enquanto desejo do Ser39. Assim é que
Vieira afirma-:
(...) amam os homens mais finamente a Cristo desejado por saudades, do que gozado por
vista”40.
Ou então:
(...)o amor de Cristo desejado por saudades é muito mais eficaz nesta parte, ou mais afetuoso, ou
mais impa-ciente, que o mesmo amor de Cristo gozado por vista”41.
E como a Cristo lhe vai melhor com as nossas saudades que com os nossos olhos, por isso se quis
deixar em disfarce de desejado, e não em trajos de visto. Descoberto para os olhos, não; encoberto
sim para as saudades.Co-nheça logo a nossa devoção que é fineza, e não implicação do amor de
Cristo, o deixar-se invisível naquele mistério (...).42
da palavra 243
O postulado dessa dupla eficácia não compreende o movimento inteiro
da via sacramental do desejo, pois, tal como está proposto em Vieira, ele ainda
supõe a “comunhão”, essencial ao mistério. O sentido da comunhão com o Ser
por meio do Sacramento Eucarístico não se esgota no contato entre o homem e
Deus, pois exige ainda a produção de uma particular relação de identidade entre
os homens que têm o mesmo desejo de Deus.
Num Sermão do Santíssimo Sacramento, dado como tendo sido pregado no
ano de 1662, Vieira expõe assim a questão:
(...) pergunto: que quer dizer comunhão? O nome comunhão-communio-não é inventado por
homens, senão imposto por Deus, e tirado das Escrituras Sagradas em muitos lugares do
Testamento Novo.E que quer dizer communio? Quer dizer communis unio: união
comum. Assim expli-cam sua etimologia todos os intérpretes. De maneira que dando Cristo
nome à Comunhão, não lhe pôs o nome da união particular que temos com ele, senão da união
comum que causa entre nós. A união que cada um de nós tem com Cristo no Sacramento é
união particular; a união que mediante Cristo temos todos entre nós é união comum, e esta união
comum, como efeito principal e ultimadamente pretendido por Cristo, é a que dá o Ser e o nome
à Comunhão: communio: communis unio.45
Assim como os acidentes sacramentais são composição de muitas coisas unidas em uma, assim, o
efeito do Sacramento é união de muitos homens entre si.46
244 da palavra
inteiramente, a indicação de uma forma externa àquela que subjaz a essa
comunhão coletiva. Mlehor: forma mais que externa, isto é, capaz de representar
essencialmente a comunhão, sem deixar de ser distinta dela.
O argumento de Vieira é, portanto, o seguinte: à identificação do desejo
comum, segue-se a identificação de uma pessoa, real, única, que possa responder
tanto à esperança de participação no Ser, quanto aos desígnios do Ser para suas
criaturas. Primeiro, o desejo busca a substância de sua manifestação humana, o
que implica a existência de uma coletividade como imagem possível do Ser
divino que se busca; em seguida, essa imagem ganha vida autônoma, fora do
desejo coletivo, pois, além de lhe ser correlata, deve ser também manifestação
da vontade soberana do Ser que está ao fim e além do desejo. O Encoberto
concilia, portanto, numa existência humana única, o mais fundo do desejo – a
sua substância coletiva – com o ato de eleição divina, ato de escolha amorosa
de Deus que a aceita como sua. Ou seja, quando a comunhão entre os homens
reconhece o seu desejo essencial do Ser, este gera, nele, o ser capaz de conduzi-
lo ao seu legítimo destino.
Assim como Cristo é o encoberto no ventre de Maria – cujo parto é tanto
mais esperado quanto mais se aproxima a hora (“quanto o bem desejado está
mais vizinho, tanto é maior o desejo”47) –, o Encoberto é o esperado parto do
desejo comum. Assim como o Cristo não é simples fruto do desejo de Maria, o
Desejado não se confunde com um fruto exclusivo do desejo do homem (o que
implicaria recair na tentação irrealista do imaginário).
Vieira propõe que, quando a natureza comum desejante se revela, na
clareza possível, como imagem do Ser de que se quer participar, ela é fecundada
por um ato do Ser capaz de gerar a existência do desejado, até então encoberto.
A presença divina na imagem comum toma, então, a forma de um corpo real.
Ou, para dizê-lo à Vieira, o desejo precisa sofrer a ausência para chegar ao seu
objeto. A esse respeito, dedica algumas páginas de seu belo Sermão de Nossa
Senhora do O, de que teria sido palco a Igreja da Ajuda, na Bahia, em 1640. Ao
discorrer sobre a natureza do desejo, que nem sempre se desfaz na presença de
seu objeto, afirma:
A imagem do Ser, unida ao desejo comum, íntima dele, enseja uma queixa
semelhante àquela que Vieira figura em Narciso, “com verdadeira razão, em
história fabulosa”:
47
O que desejo, tenho-o em mim; e porque o tenho em mim, careço do que tenho. - Pois, que
Sermão de Nossa Senhora do O,
in Sermões, v. VI, p. 119. remédio? Votum in amante novum: o remédio é um desejo novo, qual nunca desejou quem
amasse. E que desejo é esse? Velle quod amamus abesse: desejar que o que amo se
48
Idem, p. 121.
49
Idem, p.122
50
Idem, ibidem. ausente e se aparte de mim.50
da palavra 245
É a mesma queixa da Virgem, com o Cristo no ventre:
51
Idem, ibidem.
52
Sermão do mandato, de 1655,
in Sermões, v. VII, p. 100.
53
Idem, p. 101.
Carecia do mesmo bem que tinha, porque o tinha dentro em si. Por isso suspirava e desejava
com ânsia vê-lo já fora.51
(...) dando-nos Cristo sua própria carne no Sacramento, encarnou em todos os homens, que
somos nós, os que a comungamos52; (...) unindo-se Cristo por meio de sua carne a cada um de
nós, todos como membros seus ficamos um só corpo”53.
246 da palavra
Paixão e ciúme: uma abordagem
“problemática e aproximativa”
de um poema de Safo
da palavra 247
a evidência de invariantes , que atravessam séculos, que cruzam espaços. Esse
sentimento que é inexprimível a não ser pela poesia , mudaria, no espaço e no
tempo? Mas mesmo com todas as disposições para se respeitar a dimensão
histórica, eu me dobro à percepção inequívoca de uma invariante amorosa.
Os estudiosos são unânimes em afirmar que a nossa concepção de amor data
da lírica trovadoresca. No entanto, no caso dos poemas elencados, a lírica
grega do século VII A.C. faz inequivocamente ressoar em nós algo que integra
a nossa experiência de humanos do século XXI.
Mas antes de entrar nas modulações da paixão atualizada no poema (e
fragmentos) de Safo, bem como nas estrofes de “dor de cotovelo” dos nossos
compositores da MPB, impõe-se uma questão preliminar, dizendo respeito à
própria etimologia da palavra paixão: o pathos grego, que significa sofrimento, é
do mesmo radical da passio latina, (de onde se originou passivo, passividade) –
indicando algo que se sofre. E se é verdade que pathos designa qualquer emoção
da alma (cólera, inveja, alegria, ódio, remorso, piedade, etc), é verdade que o
conceito se afunilou, e paixão, nos tempos atuais, passa a designar paixão
amorosa, algo que sobrevém, que irrompe, como uma doença. Pathos, assim, é o
que se experimenta, por oposição ao que se faz, isto é, tudo o que afeta o corpo
ou a alma, no bem e no mal. Põe-se à luz a ligação entre afeto e afetado.
Em todo o caso, reitero que vou usar o termo “paixão” na sua acepção
moderna, atual; neste momento não vou me debruçar sobre as questões delicadas
da historicização do termo “pathos”, um terreno rico (e minado). No entanto,
umas rápidas pinceladas se farão necessárias para prosseguirmos: na Poética
de Aristóteles, “pathos” enquanto “sofrimento” é o termo para denominar
uma das partes do “mythos”, do enredo da tragédia: o sofrimento cruento, que
nunca era mostrado em cena aberta; na Retórica , quando discorre longamente
sobre as paixões, é da amizade, “Philia”, que Aristóteles tratará, bem como na
Ética a Nicômaco, onde o filósofo faz a tocante declaração de que amizade
é condição necessária para a felicidade. Mas será com Platão, n´O Banquete,
que Eros será apresentado em toda a sua grandeza. O nosso conceito usual de
“paixão” seria recoberto por Eros, podendo ser traduzido ora por “amor”, ora
por paixão amorosa.
N´O Banquete, diz Aristófanes, à guisa de introdução à narrativa do
mito do Andrógino:
“Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor (Eros) ,
que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe
fariam, não como agora que nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É
ele, com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura
dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano.” (O Banquete, 65)
Mas se é verdade que o amor provê a cura para o mal de existir, nos
grandes textos que tratam do amor- paixão, do amor passional, essa coisa que se
experimenta é sentida como algo que faz sofrer. Por que sofrimento? Por que
essa rima inevitável do amor com dor?
248 da palavra
Uma primeira resposta nos levaria a algo com que a nossa experiência
pessoal inevitavelmente já nos terá feito deparar: a percepção da radical
incompletude que nos estigmatiza, impelindo-nos ao encontro com o Outro.
E, evidentemente, a sensação da solidão, a nostalgia da Completude. Nostalgia
do Um, que é radicalizada – e atualizada em termos de mutilação — nas
separações. Foi ela que deu origem aos mitos do Andrógino n´O Banquete de
Platão e de Eva tirada da costela de Adão, no Gênesis bíblico: mitos de cepas
culturais diferentes, mas no entanto de mesma etiologia. Com efeito, se tomarmos
esses dois mitos fundantes de duas civilizações de cuja confluência se originou
a nossa civilização: a grega e a judaica, (com a contribuição africana e indígena,
no caso específico brasileiro) , veremos que eles tentam dar conta dessa dolorosa
percepção ligada à nossa experiência do amor.
Vejamos o mito do Andrógino: o ser humano foi criado por Zeus como
duas metades acopladas2, e estava se tornando muito forte: isso preocupou os
deuses, que, para fragilizar essa criatura – repito: para enfraquecê-la – resolveram
dividi-la em duas metades – que hão de procurar-se, o resto da vida,
inapelavelmente....
Essa mesma ideia será encontrada no seio de uma outra civilização,
como já disse, na narrativa mítica da Criação no Gênesis bíblico, em que Eva
foi tirada da costela de Adão. Em ambos os casos, alude-se à ruptura de uma
unidade primordial e suas dolorosas consequências.
Se a Filosofia e também nos nossos tempos a Psicanálise tentam dar
respostas – lógicas, racionais – a questões fundamentais do humano no nível do
pensamento racional, da razão, o que faz o mito? O mito conta uma história,
uma narrativa em que essas questões fundamentais são colocadas– a saber, a
incompletude que experimentamos, a dor mutilante nas rupturas afetivas, a
percepção da falha, da falta, da carência: isso tudo é figurado numa narrativa,
constela-se num mito.
Reitero: tanto o mito grego do Andrógino, quanto o bíblico de Adão e
Eva são criados a partir de uma vivência humana, e de uma perplexidade: a dor
da incompletude. Mitos criados a partir da experiência da fugaz percepção de
completude que as relações amorosas propiciam, infinitas enquanto duram. A
paixão é flagrada sempre em momentos de clivagem; está sempre no registro da
dor, e não no registro da alegria. Paixão, desde a etimologia, reitero, está ligada
2
Esse ser “completo” podia a sofrimento. Será por isso que encontramos, num dos fragmentos de Safo:
ser formado ou de duas meta-
des de sexos diferentes, ou
de duas metades do mesmo
“os que são meu bem-querer, esses
sexo. me trazem dores” (Fragmento 75) ?3
3
As traduções dos fragmen-
tos são de Joaquim Brasil Fon-
tes: Safo de Lesbos. Poemas
Ou ainda, no mesmo diapasão, no fragmento 60:
e Fragmentos. São Paulo, Ilu-
minuras, 2003; a tradução do “a minha dor ,que flui
poema analisado, “Parece-me gota a gota”
igual aos deuses” é do livro
anterior do mesmo Autor: Dor e sofrimento modulados o mais das vezes como solidão, como a que
Eros, Teceláo de Mitos. Sáo
Paulo, Estação Liberdade,
Safo expressa numa tocante simplicidade, em versos que conjugam o “estar
1991.
da palavra 249
sozinha” (literalmente: “mas eu só”: ego de mona) com a passagem implacável do
tempo, um tempo mensurado pelo movimento dos astros:
“A lua já se pôs, as Plêiades também;
É meia noite;
A hora passa, e estou deitada, sozinha (Fragmento 31)
250 da palavra
como diz Joaquim Brasil Fontes. Há um texto de Plutarco, refere ele, em que
são descritas as reações de um rapaz quando ele encontra uma mulher e , diz
Plutarco, nesse homem podiam ser encontrados “todos aqueles sinais que Safo
nos descreve em suas obras.”9
O estado de apaixonamento e sua conturbação revela-se no corpo, marca-
o profundamente, sensorialmente. A emoção é percebida no nível corporal: o
coração bate com pavor, a cor muda, os sentidos comparecem na sua quase
totalidade. Com efeito, 4 dos 5 sentidos são violentamente convocados e
atingidos, como que desatinando: o sentido do gosto (a língua se parte), o sentido
do tato (o fogo sutil sob a pele; o frio suor), a visão (os olhos não vêem): a audição
(os ouvidos zumbem). O único sentido que não aparece explicitamente é o olfato.
E finalmente, o corpo na sua totalidade é atingido: “um frêmito se apodera do corpo
todo”, vem a palidez (verde como as ervas) e o símile é a morte.
Staiger, ao falar da lírica, transcreve esse poema em seu Conceitos
Fundamentais da Poética, como um exemplo insuperável de sensações ou
sentimentos que são realidade corpórea, ratificando, diz ele, a sentença de
Schleiermacher: “ser alma quer dizer ter corpo10”. Efetivamente, aqui é o corpo,
sede da emoção, o lócus da dor, do sofrimento. Não há uma “análise psicológica”
em pauta: há um sofrimento, um pathos , uma emoção intensa que é exteriorizada
no corpo. Emoção: etimologicamente, emoção pressupõe movimento: de ex-
movere = mover a partir de.
Não por acaso, Otto Maria Carpeaux11, para quem “A Expressão de paixões
violentas parecia aos antigos a verdadeira tarefa da poesia lírica” , fala de uma
verdadeira “psicofisiologia erótica” desses versos. Efetivamente, a paixão aí se
mostra na sua violência, através dos efeitos corporais que provoca. Estamos
de tal maneira no plano físico que o “coração” que aparece é, no original grego,
“cardia”, e não o termo “frenes” (traduzido no mais das vezes como “espírito”,
ou “alma”, ou coração mesmo, mas enquanto sede de sentimentos); aqui se
trata do coração fisiológico, aquele que bate no peito, e de que se ocupam os
cardiologistas.
E tudo isso, provocado pela visão, por parte do eu lírico, da amada dando
atenção a um outro: ciúme. Está instaurada a situação clássica, um triângulo
amoroso. Ou: um triângulo supostamente amoroso, em que uma das personagens
deduz dos gestos das outras duas, uma ameaça (real?) de perda amorosa. Pois
nesse poema nada é interpretado das personagens, nada é narrado, só descrito. E
aqui, tem-se que dar razão aos helenistas que, unanimemente, falam da ausência
de análise psicológica na poesia grega. Mostra-se uma cena, um “clima” entre
9
Idem, ibidem. Op. Cit., p.
duas personagens, um homem e uma mulher; e alude-se a uma terceira, espectadora,
148.
10
que é o eu lírico, por detrás de quem estaria Safo de Lesbos. Uma cena, sua
Emil Staiger: Conceitos
Fundamentais da Poética. espectadora, e mais todas as suas consequências: um vórtice.
Rio de Janeiro, Tempo Brasi- Há um outro poema de Safo, ou melhor, um fragmento de poema que se
leiro, 1993, p. 62 ss. Agradeço
essa indicação a Marcus Vini- pode dizer que daria conta de explicitar o potencial devastador dessa cena;
cius Mazzari.
11
Otto Maria Carpeaux: His-
nesse fragmento (No. 62) nomeia-se o medo, a possibilidade virtual a que essa
tória da Literatura Ociden- cena alude:
tal, vol. I .Brasília, Edições do
Senado Federal, 3ª. Ed., 2008,
p. 56..
da palavra 251
“Tu me lançaste no esquecimento
[ ]
ou existe outro homem
que a mim tu preferes?”
252 da palavra
“] de novo, Eros me arrebata,
Ele, que põe quebrantos no corpo,
Dociamaro, invencível serpente”
“Amor, amor,
que instilas pelos olhos o desejo
e volúpias infundes
n’alma daqueles a quem dás combate,
Oxalá nunca
Te reveles a mim com a desdita,
Nem me ataques além de minhas forças.
Dardos não têm o fogo e os astros
Iguais aos que dos braços de Afrodite
Desfere Amor, filho de Zeus.
da palavra 253
amoroso –— que, 10 séculos depois de Safo, encontrarão guarida num dos mais
belos sonetos de Camões, tecido de antíteses e paradoxos:
Essa adversativa final nos deixa ... à beira do abismo. Já se falou que
seria preciso incorporar a fragmentação, a incompletude, à nossa percepção dos
poemas de Safo. Um poema é, séculos depois, ele próprio e tudo aquilo que o
tempo aí agregou (ou desagregou) 17. Nesse caso, são as incompletudes que,
paradoxalmente, se agregam ao corpo do texto, dando-lhe uma nova dimensão,
abrindo-o para o inconcluso, para o não definitivo – como é o conhecimento
tateante que temos das coisas.
Mas volto à ideia de morte com que finaliza esse poema passional. A
sensação de já estar morta comparece em outro fragmento de Safo, o de No. 9:
254 da palavra
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor
Meu senhor
Nos braços de um outro qualquer?
Você sabe o que é ter um amor
Meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do seu pode ser?
Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias
E sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhe venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor”.
da palavra 255
que se pode deduzir de seus poemas e fragmentos de poema (alguns, referidos
indiretamente, por outros autores da Antiguidade, como, por sinal, esse poema
de que estamos tratando, preservado na íntegra por Longino); e confunde-se o
tempo todo o chamado “eu lírico”com a Poeta, deduzindo-se, a partir de seus
poemas, sua vida amorosa.
***
Mas, continuemos: quase 28 séculos depois ( Safo viveu por volta de 612
A.C.), no registro da contemporaneidade, temos, entre mil outros exemplos, na
MPB, a canção “Dor de Cotovelo”, de Caetano Veloso .20:
256 da palavra
Caetano Veloso aí avança, em relação a Lupicínio, em complexidade e
sutileza, naquilo que diz respeito a uma análise de sentimentos, que a antiga
lírica grega não expressaria. Na sua formulaçao condensada, esses versos 9 e 10
talvez revelem mais sobre a natureza do ciúme do que sonha a nossa vã filosofia.
Mas na sequência, os versos finais da canção nos apresentam o ciúme se
espraiando pela Natureza externa ao homem, literalmente: “dói pra fora na
paisagem”. E em detalhes: “ dói do leito à margem”, “arde ao sol do fim do dia”, “corre
pelas veias na ramagem”. Estamos em pleno universo da analogia; e será inevitável
que, com o filósofo Giambatista Vico, a gente veja aí uma “transposição do
corpo humano e das humanas paixões”22 sobre a realidade circundante, sobre
a paisagem. A imagem de um rio em que o ciúme dói “do leito à margem”,
figura um total abarcar; a do sol que arde ao fim do dia metaforiza o ardor da
paixão ; e a das veias na ramagem mostra o sistema venoso do ser humano
duplicado nas formações arbóreas e na estrutura das plantas. Aliás, é através
dessa alusão ao sistema circulatório que o “coração” (nomeado literalmente
nos textos de Safo e de Lupicínio) se faz presente nesta canção de Caetano
Veloso. Em suma: o corpo humano aí comunga com uma dimensão cósmica,
de que plantas, árvores, rios e astros participam.
E a ação mais reiterada do ciúme se desvenda pelo martelar dos verbos
mais presentes: dói, dói, rói, dói... Mas ao final da canção, há ainda um outro
universo que é atingido pelo ciúme: o universo da poesia, mais especificamente
aquele que articula “voz” e “melodia”, o mundo da canção: “Atravessa a voz e a
melodia”. Efetivamente, o Poeta e Eros são servidores de Afrodite23.
E assim, finalizo essa tentativa de “interpretação problemática e
aproximativa de Safo de Lesbos”, retomando e reiterando o pensamento de
Benedito Nunes, com que iniciei este texto: “No confronto da distância
temporal que as une e separa, a lírica de Safo e a lírica moderna se aclaram
mutuamente.”24
22
Cf Giambatista Vico: Prin-
cípios de uma Ciência Nova.
23
Cf Fr. 15, em que, como
refere Joaquim Brasil Fontes,
Máximo de Tiro registra que
numa das canções de Safo,
Afrodite se dirige à poeta ,
dizendo: “Tu e Eros, meu ser-
vidor”.
24
“Que isto de método...” –
Prefácio de Benedito Nunes
a Joaquim Brasil Fontes: Eros,
Tecelão de Mitos: A Poesia
de Safo de Lesbos. São Pau-
lo, Estação Liberdade, 1991,
p. 20.
da palavra 257
258 da palavra
Drummond e o Livro Inútil1
*
Professor titular da USP –
Universidade de São Paulo.
Atua na área de Estudos Com-
parados de Literatura de Lín-
gua Portuguesa.
João Adolfo Hansen*
1
Texto publicado em Lette-
rature d’America. Direção de
Ettore Finazzi-Agrò. Roma,
Facoltà di Scienze Umanisti-
che dell’ Università di Roma
“La Sapienza”, 2005, v. 107, p.
69-98I
2
Confissões de Minas publica
textos de gêneros variados es-
critos desde 1932,: crônicas
escritas como ensaios críticos
( “Três Poetas Românticos”,
“Mauriac e Teresa Des-
queyroux” etc.); crítica artísti-
ca, crítica política e notícia
histórica (“ Morte de Federi-
co Garcia Lorca”, “Viagem de
Sabará” etc.); memória dos
anos da formação do autor em
Belo Horizonte e dos inici-
ais de sua vida no Rio (“Na
Rua, com os Homens”; “Esti-
ve em Casa de Candinho” etc.).
Para o caríssimo Benedito Nunes, grande leitor com quem
Também traz textos escritos aprendi a ler Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral
como crônicas narrativas, qua-
se ficcionais, de vidas compos- de Melo Neto e o mais que há pra ler nesse nosso vasto mundo.
tas como retratos (“Lembro-
me de um Padre” etc.); e, ain-
da, peças pequenas, difíceis “La littérature, d’accord en cela avec la faim,consiste
de classificar, postas entre a
teoria da escrita, a invenção
à supprimer le Monsieur qui reste en l’écrivant ».
poética em prosa e o diário Mallarmé
(“Caderno de Notas”) etc. Cf.
Confissões de Minas. In Obra Com-
pleta. Rio de Janeiro, Aguilar,
1964.
3
Vale totalmente para a práti-
ca do Drummond prosador
de Confissões de Minas o que afir-
Na nota introdutória de seu primeiro livro de prosa, Confissões de Minas
ma sobre poesia: (1944), Drummond expõe a ética utópica de seu estilo2. Data a nota de agosto
“Entendo que poesia é negó-
cio de grande responsabilida- de 1943, “depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini”, propondo
de, e não considero honesto os eventos como balizas negativas do “exame da conduta literária diante da
rotular-se de poeta quem ape-
nas verseje por dor de coto- vida”. Afirmando que “Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham
velo falta de dinheiro ou mo-
mentânea tomada de contato
consciência do tempo, e saibam transformá-lo em matéria literária”, declara
com as forças líricas do mun- que não desdenha a prosa e que a respeita a ponto de furtar-se a cultivá-la.
do, sem se entregar aos traba-
lhos cotidianos da técnica, da Define-a como “linguagem de todos os instantes”; pelo avesso, a definição permite
leitura, da contemplação e ver que não pensa a poesia como “linguagem de todos os instantes”, pois implica
mesmo da ação. Até os poetas
se armam, e um poeta desar- outros processos e fins.
mado é, mesmo, um ser à
mercê de inspirações fáceis,
Drummond postula que há uma necessidade humana de que não só se
dócil às modas e compromis- faça boa prosa, “(...) mas também de que nela se incorpore o tempo, e com isto
sos. Infelizmente, exige-se
pouco do nosso poeta; menos se salve esse último”3. Frequentemente, a literatura é escrita à margem do tempo
do que se reclama ao pintor, ou contra ele, por inépcia, por covardia, por cálculo. Não basta usar as palavras
ao músico, ao romancista...”
Drummond. “Autobiografia para “cultura” e “justiça” para incorporar e redimir o tempo, mas é preciso “(...)
uma Revista”. Confissões de Mi-
nas ( Na Rua com os Homens)
contribuir com tudo (...) de bom para que essas palavras assumam o seu conteúdo
ed.cit. p. 530 verdadeiro ou então sejam varridas do dicionário”. Não há temas maiores ou
da palavra 259
menores; todos estão no presente, divididos pelas mesmas contradições históricas:
“Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a
presidente da república e termina em 1943, com o mundo submetido a um
processo de transformação pelo fogo”. Nesse mundo, os escritores têm que se
confessar mais determinados quanto aos problemas fundamentais do indivíduo
e da coletividade, examinando com rigor as matérias da escrita para atuar
criticamente nos processos inventivos que as transformam, separando o que
merece durar como “conteúdo verdadeiro”. O preceito implica não aceitar as
coisas como se apresentam, mas regredir ao pressuposto delas para evidenciar
sua particularidade e explicitar seus encadeamentos em teias microscópicas de
causa-efeito que permanecem impensadas para seus agentes, enredando-os em
petrificações vividas como natureza. Segundo Drummond, o escritor deve
classificá-las e destruí-las no comentário leve da crônica, na estranheza da ficção,
na mescla tragicômica da poesia, dissolvendo a inércia de injustiças que se
tornaram hábitos, de superstições vividas como civilização, de provincianismos
com pretensão a universalidade, de “conteúdos verdadeiros” que se naturalizaram
como opressão. Como em Mallarmé, a Beatriz que lhe orienta a ética do estilo é
a destruição.
A transformação do mundo pelo fogo evidencia que a liberdade livre da
invenção que se apropria das representações divididas da memória coletiva é
apenas parcial e contingente. Recusando a omissão da arte pela arte e a
obediência a palavras de ordem partidária, é parcial e não pode ceder à inércia
do passado, como se a história depositada nas matérias fosse história de mortos.
Ao contrário, deve transformá-las como história de vivos, buscando as formas
possíveis de um futuro em que as palavras “justiça” e “cultura” não serão só
palavras.
Um texto de Confissões de Minas, “O Livro Inútil”, figura essa ética utópica.
Hoje, quando essa ética está esquecida e arquivada no conformismo da nossa
desesperança pós-utópica, provavelmente o texto é ilegível. Ou talvez só legível
como fóssil que documenta as disposições modernas que a poesia de
Drummond passou a intensificar principalmente depois de Sentimento do Mundo,
escrito entre 1935 e 1940:
“Escrever um livro inútil, que não conduzisse a nenhum caminho e não encerrasse
nenhuma experiência; livro sem direção como sem motivação; livro disfarçado
entre mil, e tão vazio e tão cheio de coisas (as quais ninguém jamais classificaria,
falto de critério) que pudesse ser considerado, ao mesmo tempo, escrito e não
escrito, sempre foi um dos meus secretos desejos.
Os dias passaram sobre esse projeto e não o fizeram mais nítido; ambições
mais diretas me agitaram; nunca soube quando chegaria o tempo desse livro, e
nunca senti em mim a plenitude insuportável da maturação; será hoje?
Se me disponho a escrevê-lo (o livro inútil) é porque já está feito...O
mesmo seria dizer que minha vida está acabada. Quando me sinto capaz de
nascer nesse escasso momento e olhar com olhos ingênuos essa janela que se
insere entre mim e a paisagem; ou aquela porta, que esconde um gato; ou o céu,
260 da palavra
onde passam aeroplanos postais. O homem acabado, o livro acabado são
fórmulas; o homem que continua, o livro que continua, e, sobretudo, o leitor
que continua estão insinuando como é audacioso esse projeto e como é difícil
‘pintar a passagem’, com o pincel que foge da minha mão, com a mão que se
desprega do braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da
onda que, por sua vez ...” 4.
da palavra 261
temas, fazendo alusões parciais aos possíveis do futuro. Drummond afirma que
o estilo é justamente a negação da completude da memória na experiência do
presente, pois figura a razão dividida que analisa sua própria falta de ser e unidade
nas formas incompletas ou contingentes do devir da sensação, realizando a
experiência de dissolução própria da grande arte moderna em que é “insuportável”
a “plenitude da maturação”6. Aqui, teoriza a ética utópica da sua arte: para não
escrever o livro inútil, é preciso sentir-se “(...) capaz de nascer nesse escasso
momento”. Ou seja: ser capaz de escolher a cada novo momento a forma
precária, entre as formas possíveis da experiência do passado e da expectativa
do futuro, sabendo que o escritor está limitado por condicionamentos e
determinações - também os inconscientes- do “escasso momento” do presente
ruim. A inteligência, a sensibilidade, o caráter, a família, a educação, a província,
a cultura pessoal, as escolhas que modelam a vida de um homem; a situação de
classe do escritor funcionário público, a posição de classe do escritor funcionário
público, as amizades e as inimizades do escritor funcionário público, os amores
do escritor funcionário público, as dores do escritor funcionário público, as trocas
simbólicas do escritor funcionário público; e as instituições, políticas e artísticas,
a luta de classes, o fascismo, os acontecimentos terríveis do país e do mundo do
escritor funcionário público, tudo sem remédio imediato... É impossível escrever
o livro inútil porque, num tempo em que todos os homens continuam a nascer
num escasso momento, o “olhar com olhos ingênuos” do trabalho infindável da
arte ainda nem começou. Se já começou, já não é mais, já não pode ser mais o 6
Provavelmente, é em poe-
mesmo, pois não pode fixar-se: a vida do escasso momento do presente não está mas de A Rosa do Povo, como “
Vida Menor”, “Nosso Tempo”
e provavelmente nunca estará acabada. Drummond afirma que o livro inútil, e principalmente em alguns
como livro acabado, é mais que inútil, pois pressupõe o homem acabado, a vida de Claro Enigma , como “Os
Bens e o Sangue”, “Rapto”, e
acabada, a história acabada. Fórmulas a evitar, porque o homem, o escritor, o em um dos melhores já es-
critos de toda a história da
livro e o leitor continuam, “nesse escasso momento”, a nascer escassamente, poesia, “Elegia”, de Fazendeiro
mas, apesar de tudo, a nascer, demonstrando que a escrita nunca está acabada, do Ar (1952-1953), que o ara-
besco dessa dissolução apa-
porque a vida verdadeira ainda nem sequer começou. Essa incompletude feita rece na sua liberdade livre,
de divisões é orientada pelo futuro improvável e deve ser o núcleo raciocinado suspenso no ar, como o quar-
to de Manuel Bandeira e a sin-
da forma, orientando-lhe politicamente o sentido estético. taxe de Mallarmé. “Fragilida-
de”, de A Rosa do Povo, teoriza
Logo, o “livro inútil” é também a metáfora do livro que ainda não veio: é a suspensão do sentido for-
do futuro que vem o tempo da escrita. A repetição é insuportável porque o mulada antes, no pequeno tex-
to de Confissões de Minas sobre
moderno não admite cânone nem canonização; toda arte será, antes de tudo, “pintar a passagem”. A sus-
pensão aludida é a do ato que
auto-reflexão da impossibilidade de totalização da forma da sensibilidade partida figura não propriamente con-
que escreve no “escasso momento” já o deixando livremente para trás no ato, ceitos cheios, mas o instante
mesmo das passagens do uso
pois também o leitor continua a nascer nele. A fidelidade ao acabado é uma de uma palavra a outra, o áti-
contrafação, pois repete o mesmo num momento precário em que tudo já está mo dos intervalos daquela in-
decisão entre som e sentido
mudando ou já terá mudado ou já mudou, sem que ainda tenha vindo o terceiro que finalmente acha a chave.
Berkeley dizia que a ideia do
pensamento, a precária síntese das contradições. Quando vier - se vier- o livro movimento é antes de tudo
inútil então será realmente inútil. Por enquanto, o fundo da imaginação individual uma ideia inerte. No auge da
sua arte, em A Rosa do Povo e
do artista continua sendo a memória social dos signos e seu radical fracasso. A Claro Enigma, Drummond fi-
gura o movimento da lingua-
escrita que transforma essa memória não pode naturalizar e repetir sua divisão, gem mesma no incessante
seu sofrimento, sua morte. Os conteúdos sociais da memória só interessam como deslocamento vazio e silenci-
oso dos signos, não-ser das
matéria da experiência de um presente em que a escrita programaticamente coisas.
262 da palavra
inacabada se anula na negação de si mesma como completude, abrindo-se
dividida para o futuro donde tantas coisas apenas pressentidas hão de vir, entre
elas principalmente o sopro da revolta que destrói os limites do “escasso
momento”.
A utopia da arte moderna anunciada nessa pequena prosa moderna de
Drummond “pinta a passagem” do seu próprio devir futuro ainda nem sequer
imaginado e, hoje, quando o pop norte-americano domina, esquecido. Enunciados
poéticos - “com o pincel que foge da minha mão, com a mão que se desprega do
braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da onda que, por
sua vez...”- apontam para a linguagem como a realidade do possível de uma
experiência plena só aludida, pois ainda não vivida por ninguém. Nessa
linguagem, tal “a mão que se desprega do braço e navega por conta própria”, a
estrutura estética tende a transcender-se a si mesma como auto-negação
pressionada pelo conteúdo aludido de verdade que anuncia o conceito totalmente
irrealizável de sublime como síntese final. Do que decorre o “audacioso desse
projeto” e, certamente, enquanto “o pincel foge da mão”, também o impossível
utópico dele, pois a divisão dos materiais do passado e do “escasso momento”
do presente do escritor os torna radicalmente inconciliáveis com o ideal
pressuposto. Logo, para ainda lembrar Adorno, ideal e material se afastam um
do outro na tensão com que o escritor figura o infigurável em uma arte cuja
utopia faria enfim coincidir a dissimetria de reflexão e sensibilidade, possível e
real, abolindo a experiência frustrada das violências do passado, o tempo horrível
do presente do autor e do leitor divididos pela classe e pela morte, e a si mesma,
ficção, como coisas finalmente acabadas e verdadeiramente inúteis, na forma
de um livro afinal e muito justamente inútil. Por enquanto, isso é impossível. É
o “durante” do trabalho de “pintar a passagem” para o devir de outra coisa que
essa prosa anuncia generosamente como a futura radicalidade que o tema do
“nada” terá na poesia de Drummond.
***
Em um texto de Confissões de Minas, que situa a poesia pessimista de Abgar
Renault no modernismo, lê-se o enunciado que funde referências à ação de
Mário de Andrade e ao Mallarmé de Crise de vers:
da palavra 263
mais claro. Como na poesia o hermetismo não é de todo impróprio, pois na boa
arte a falta de clareza é antes de tudo falta de clareza do leitor, Drummond
guarda para o poema o mais íntimo da experiência8.
A tensão ética desse ocultamento na clareza é construída por procedimentos
técnicos que modelam sua prosa como função comunicativa e função crítica. A
função comunicativa é obtida pela propriedade vocabular, clareza e linearidade
sintáticas, estilo médio, análise, exemplo, citação de autoridades, explicação etc.;
a função crítica, por meio da elisão de termos redundantes, pelo uso de marcas
optativas de dúvida, negação e indeterminação, da formulação aforismática, da
análise do “eu” como não-unidade, da ironia e do humor quanto à matéria tratada
etc. Tais procedimentos, recombinados a cada texto, constituem o conteúdo
material da prosa de Drummond como instrumentos gramaticais e retóricos ou,
ainda, como procedimentos técnicos mobilizados para “manifestar-se espontânea
e intensamente” no estilo eticamente orientado.
Na crônica, a eficácia técnica desse conteúdo material associa-se
funcionalmente à análise das matérias, constituindo a maneira singular ou “estilo
Drummond” de efetuar valores simbólicos propostos à leitura como “conteúdo
de verdade” relativizador e relativizado9. O valor- ou os valores- nascem da
transformação das significações transportadas das matérias para a cena
comunicativa do texto como sentido utópico que nega a facticidade das
“verdades” das matérias, demonstrando que são perspectivas parciais datadas;
com isso, transforma as significações das matérias em um “conteúdo de verdade”
parcial e orientado pela moralidade técnica como ponto de vista que se auto-
critica a cada momento, fazendo a distinção de “bom” e “ruim” como tensão
não-resolvida. A tensão escande o discurso como destruição construtiva de um
outro, possível, sempre aludido.
Assim, o que é o “conteúdo verdadeiro” de que fala? O resto que sobra
do ato crítico do mundo torto realizado como crítica de linguagens na linguagem.
Reconhecendo a particularidade datada dos textos que publica, Drummond
afirma que Confissões de Minas é insuficiente: falta-lhe justamente o tempo, pois
teria sido escrito para contar ou consolar um homem das Minas Gerais, o
indivíduo Carlos Drummond de Andrade. Em várias crônicas, tratou dos
condicionamentos desse “indivíduo das Minas Gerais” e da sociabilidade letrada
em que se escolheu a si mesmo nos anos de 1920, em Belo Horizonte. Numa
delas, “BH”, publicada no Correio da Manhã, em 10/12/1967, escreve: 8
Rubem Braga. “Fala, Amen-
doeira”. Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 19/9/1957.
“Nas calçadas da Avenida Afonso Pena, moças faziam footing, domingo à noite, 9
Por exemplo: “Não somos
como deusas inacessíveis, estrelas; a gente ficava parado no meio-fio, espiando bastante hábeis para extrair de
em silêncio. E divertimento era esperar o trem da Central, que trazia os jornais nosso instrumento a nota mais
límpida, bastante honestos
matutinos do Rio; era fazer interminavelmente a crônica oral da cidade nas para confessá-lo, bastante hi-
mesinhas de café do Bar do Ponto, literaturar à noite na Confeitaria Estrela, do pócritas para disfarçá-lo, bas-
tante cínicos para nos conso-
Simeão, que nos fiava a média, com pão e manteiga. Não acontecia nada. Que lar, bastante obstinados para
paisagem!Que crepúsculos!Que tédio!” tentar de novo e sempre. Por
fim, cumprimos a nossa car-
reira. E não há outra”. Cf.
Drummond. “Do Homem Ex-
Nesse tempo referido na crônica, 1923, como escreve em “Recordação perimentado”. Passeios na Ilha.
de Alberto Campos”, de Confissões de Minas, ele e Abgar Renault, Gustavo Ed. cit. p. 666.
264 da palavra
Capanema, Alberto Campos, Emílio Moura, Milton Campos, Pedro Nava, Mario
Casasanta, Martins de Almeida, Gabriel Passos e outros, esporádicos, preparavam
“materiais de cultura”. Como costuma acontecer nos grupos intelectuais de
província condenados ao autodidatismo e à vigilância ferozmente irônica e auto-
irônica contra os poderes da sombra do lugar, também os intelectuais do grupo
de Drummond eram vítimas da própria ironia; impiedosos, não se perdoavam
nenhuma fragilidade a si mesmos10. Será talvez preciso ter vivido no interior
para lembrar a desesperada náusea dessas noites relatadas sem auto-indulgência
nas crônicas de Drummond? Lá e então, como aqui-agora, os poderes que faziam
o deserto crescer eram imediatamente visíveis em tipos emblemáticos, padre,
delegado, vereador, dono de cartório, juiz, comerciante, gerente de banco,
professora, aluno promissor que um dia ainda iria ser alguém na vida prestando
serviços bajulando medalhões. A ironia aí tinha pasto. Mas Drummond também
sabe que os poderes são principalmente ativos na invisibilidade das micro-formas
sutis do gregarismo, do individualismo, do tédio, do compromisso amoroso, das
mães terríveis, da família e do Ideal com que o entusiasmo da cruel abstração
da juventude é mistificado. As redes tentaculares dos poderes que constituem o
provincianismo conseguem transformar a auto-ironia em irrisão para os próprios
indivíduos que tentam, e como! resistir contra eles com suas mesmas formas. É
magnífica a formulação dessa irrisão em outra crônica de Confissões de Minas:
“Era ainda naquele tempo (bom tempo) em que se tomava cerveja e café
com leite na Confeitaria Estrela. Entre dez e onze horas, o pessoal ia aparecendo
e distribuindo-se pelas mesinhas de mármore. Discutia-se política e literatura,
contavam-se histórias pornográficas e diziam-se besteiras, puras e simples
besteiras, angelicamente, até se fechar a última porta (você se lembra, Emílio
Moura?Almeida? Nava?). Ascânio chegou quando o Estrela já entrara em
decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o açúcar derramado
sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava.”11
da palavra 265
posição não-provinciana à esquerda, na timidez ousada do estilo que vai como
que de cabeça baixa e mãos pensas, cismando sobre o que é cheio de si sem si,
lucidez da descrença e a angústia de sempre. Como afirma Drummond, sua
prosa marcada pela vida provinciana, por isso mesmo prosa limitada, tem um
saldo: deve ser lida como depoimento negativo que indicará aos mais novos o
que fazer. O que fazer?
266 da palavra
atualidade do seu comentário dos temas. Daí, muitas vezes, esse ar meio paradão
de depósito de coisas usadas que os livros de crônicas costumam ter. Neles, os
aspectos das matérias cotidianas escolhidos e transformados pelo autor como
temas de interesse imediato, que no jornal são o nervo do gênero, tornam-se
apenas póstumos, bastando lembrar o óbvio: o livro é compilação feita e editada
depois, quando a atualidade da crônica já passou e ela sobrevive a si mesma na
leitura como um casulo de inseto que já voou ou memória exterior de matérias
mortas desprovidas de imediaticidade. É por isso, talvez, que crônicas despertam
o interesse de historiadores, que se apropriam delas como documentos de ruínas.
Muitas vezes, as crônicas de Drummond sofrem desses defeitos. Eles
são determinados não propriamente pelo seu estilo, mas pela simples mudança
do meio material de publicação. Mesmo assim, a passagem do tempo e a função
comunicativa própria do gênero não conseguem eliminar totalmente o sentido
negativo que imprime aos temas nos textos publicados como livro. Isso porque
usa a crônica tendendo a subordinar sua estrutura comunicativa à dramatização
de conflitos, tensões e contradições da memória coletiva depositada nas matérias
que transforma nela, orientando o comentário com o sentido utópico da
perspectiva ética que, compondo o estilo como negatividade, consegue derrotar
a facticidade e a obsolescência das matérias, flutuando, por assim dizer, aquém
e além delas, para ganhar autonomia análoga- análoga, não idêntica- à da
poesia. Isso é ainda mais evidente hoje, quando o eventual leitor lê suas crônicas
e zomba da sua ética, como de um morto de sobrecasaca. O tempo das crônicas
de Drummond realmente passou, mas não as determinações capitalistas dele,
que aí estão intensificadas como um verme a roer também o leitor pós-utópico,
fazendo pior o soluço de vida criticada nelas. Seria equivocado, de qualquer
modo, aplicar os critérios de leitura da poesia à leitura das crônicas de
Drummond, pois equivaleria a esperar delas uma condensação que não têm
nem pressupõem.
***
Quando afirma, na mesma nota introdutória de Confissões de Minas, que
uma sutileza que não resista à prova da convivência mais larga é apenas um
vício, alegando justamente a necessidade política da socialização da inteligência,
Drummond propõe a mesma orientação ética que se lê nos trechos da carta de
Mário de Andrade transcritos em outra crônica comovidíssima e comovedora
de Confissões de Minas. Mário de Andrade foi fundamental para Drummond,
ensinando-lhe, quando era moço de província, a esquecer o bovarismo de
Joaquim Nabuco e as afetações céticas de Anatole France12. A mesma lição do
Cf. Santiago, Silviano. “In- amigo se lê quando Drummond afirma que é necessário reformar a capacidade
12
da palavra 267
os textos de Confissões de Minas, Contos de Aprendiz e Passeios na Ilha. Drummond
declara com todas as letras sua apropriação dos paulistas de 1922, principalmente
as lições de Mário de Andrade sobre a moralidade da técnica e o “bárbaro e
nosso”, de Oswald de Andrade. Mas, diversamente do nacionalismo limitador
de Mário de Andrade - “É preciso evitar Góngora, é preciso evitar Mallarmé”-
a concepção de palavra poética de Drummond deve muito a Mallarmé,
principalmente porque não dissocia a formulação estética do pensamento da
economia política do signo.
Por isso mesmo, em Confissões de Minas e na sua prosa posterior, são
recorrentes temas e procedimentos da sua poesia. Sempre orientados como
“expressão livre e arejada”, recebem o mesmo direcionamento negativo do
sentido. Desde o início, Drummond escolhe a direção negativa do sentido em
função da sua ética do estilo, mas como que a disfarça, discreto, em amabilidades
finas, convenientes à vertiginosa liberdade da sua inteligência sempre analítica,
fiel antes de tudo a si mesma no exame de sua matéria, a palavra. Uma leitura
paciente de toda a sua prosa que a compare com sua poesia encontrará mais
evidências desse trânsito dos temas de um campo para outro e poderia ser útil,
quem sabe, para elucidar o sentido de formulações condensadas e por vezes
herméticas de muitos poemas. Lê-se em um pequeno texto de Confissões de Minas,
“Neblina”:
“Mas como é impossível partir -os caminhos são compridos e os meios são
curtos e a vida está completamente bloqueada-, tu te resignas a tomar o teu
grogue do hotel, nessa hora mais que todas tristíssima - seis horas da tarde,
enquanto a neblina cai lá fora, e as mulheres passam monstruosas e vagas como
desenhos indecisos, que a mão constrói para apagar logo depois”13
268 da palavra
Enigma. Também seria útil comparar a estrutura de textos postos na forma
sequencial de prosa em muitos poemas com os textos que publicou como prosa
e nos quais a condensação onírica dos significados tem efeitos análogos aos da
poesia. É, por exemplo, o caso de “Enquanto descíamos o rio”, de Confissões de
Minas, e de “O Enigma”, de Novos Poemas, que têm andamento e processos
analíticos análogos:
“As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o
caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam
outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra.
Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência,
prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras
detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo”17.
“Casa fria, de apartamento. Paredes muito brancas, de uma aspereza em que não
dá gosto passar a mão. Aí moram quatro pessoas, com a criada, sendo que uma
das pessoas passa o dia fora, é menina de colégio. Plantas, só as que podem
caber num interior tão longe da terra (estamos em um décimo andar), e apenas
corrigem a aridez das janelas. Lá embaixo, a fita interminável de asfalto, onde
deslizam automóveis e bicicletas. E ao longo da fita, uma coisa enorme e estranha,
a que se convencionou dar o apelido de mar, naturalmente à falta de expressão
sintética para tudo o que há nele de salgado, de revoltoso, de boi triste, de cadáveres,
de reflexos e de palpitação submarina. Do décimo andar à rua, seria a vertigem,
16
“ Enquanto descíamos o se chegássemos muito à janela, se nos debruçássemos. Mas adquire-se o costume
rio”, Confissões de Minas, p. 594.
17
“O Enigma”, Novos Poemas, de olhar só para a frente ou mais para cima ainda”18.
p. 231.
18
“Esboço de uma Casa”, Con-
fissões de Minas, p. 579 E a poesia:
da palavra 269
“Silencioso cubo de treva;
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
270 da palavra
da vida; a desconfiança e a descrença das soluções acabadas; o raríssimo senso
de alternativa; a particularização analítica de coisas, pessoas, personagens,
situações, eventos; o desejo quase sempre incontido de evidenciar a não-
naturalidade do que é dito; e a dramaticidade do terrível que espreita no mínimo
detalhe inocente.
Na poesia, a elisão dos nexos gramaticais impede, obviamente, a
representação do processo analítico do pensamento como linearização sintática
dos atos do juízo. A mesma elisão produz o discurso como justaposição de
pedaços que significam a divisão social do “eu” e das matérias e,
simultaneamente, funcionam como diagrama sintático do trabalho crítico de
desorganização programática da forma. A possível análise dos temas é feita
pelo leitor como inferência parcial das significações condensadas agudamente
nas palavras e entrevistas nos intervalos semânticos do deslocamento contínuo
dos pedaços justapostos. Interceptando-se em vários planos semânticos
associados como politematismo, as imagens dão-se à leitura como metonímias
do desejo dividido e símbolos extremamente condensados.
***
Drummond não escreve prosa experimental como Oswald de Andrade.
Não dissolve os nexos sintáticos, como faz na poesia; ao contrário, como é uma
inteligência extremamente analítica, quando escreve prosa parece ter predileção
pela oração contínua e seus incisos e acidentes particularizadores. Veja-se uma
formulação típica do seu estilo, que se afunila na particularização crescente de
um tema observado e fixado na tensão que constitui sua referência, a cidade
capitalista contemporânea, tensão visível na formulação optativa, hipotética -
“pode ser”, “poderá explicar”; no gosto das duplicações - “o paralisa e o priva”,
“liberta e ao mesmo tempo oprime”, “desta solidão está cheia a vida” e oposições-
“mas, poeticamente” etc.:
“No formigamento das grandes cidades, entre os roncos dos motores e o barulho
dos pés e das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por uma terrível
solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor.
Um desligamento absoluto de todo compromisso liberta e ao mesmo tempo
oprime a personalidade. Desta solidão está cheia a vida de hoje, e a instabilidade
nervosa do nosso tempo poderá explicar o fenômeno de um ponto de vista
científico; mas, poeticamente, qualquer explicação é desnecessária, tão sensível e
paradoxalmente contagiosa é esta espécie de soledade”20
da palavra 271
gramáticos brasileiros de fins do século XIX e começos do século XX, mas
estilização modernista e moderna de vários padrões da língua portuguesa como
variedade necessária pressuposta no conceito de mot juste. Leitor de Machado
de Assis, Gustave Flaubert e Marcel Proust, aplica os termos com propriedade
e variedade, pressupondo que a justeza da palavra - como adequação
representativa aos temas- deve ser simultaneamente evidência da justiça dos
atos do juízo que, enquanto os avalia, não discorre pelas matérias, simplesmente,
mas antes de tudo as decompõe para especificar os mecanismos que as
particularizam e, distinguindo o bom do ruim, evidenciar a distinção operada
na mesma propriedade do uso do termo. Fazendo distinções, Drummond é
discreto, pois acredita, como dizia Adorno, que o sujeito precisa sair de si na
medida em que se oculta. Saindo de si com discrição, incorpora à seleção
vocabular de suas primeiras crônicas a lição modernista da contribuição
milionária de todos os erros. E é nisso que se revela um estilista dos bons, pois
sua prosa dá nome aos bois. Nunca a simplicidade kitsch das tentativas de
singeleza humanista de um sujeito cheio de boas intenções aquém do objeto,
mas a simplicidade artificialíssima que resulta da depuração obtida por operações
técnicas extremamente complexas21. A “poesia mais rica/ é um sinal de menos”,
lemos em A Vida Passada a Limpo. Ou, em prosa:
***
Como qualquer outro, o estilo que “pinta a passagem” na poesia e na
prosa de Drummond é uma sintaxe, uma maneira particular de ver e de dizer as
coisas. Mas não só, porque antes de tudo é a impossibilidade de vê-las e dizê-
las de outra maneira23. Essa restrição, decisiva na sua arte de poeta do finito e
da matéria, determina a composição das significações de seus textos como
divisão pelo “fatal meu lado esquerdo”, expressão-síntese de sua poética legível
no primeiro poema de A Rosa do Povo (1945). Drummond é, antes de tudo, uma
sensibilidade comovida com o tempo, mas capaz, como dizia T.S. Eliot dos 21
Cf. “Simplicidade”, em
poetas metafísicos ingleses do século XVII, de controlar e devorar Confissões de Minas. Ed. cit.,
p. 591.
intelectualmente qualquer experiência afetiva24. Desde seu primeiro livro, Alguma 22
Cf. Confissões de Minas, p.581
23
Drummond “Apontamen-
Poesia (1930), a inteligência da forma dessa sensibilidade aparece unida tos literários”. Correio da Ma-
materialmente à afirmação da liberdade como dicção irônica e auto-irônica muito nhã, Rio, 1/9/1946.
24
“Mas Carlos Drummond de
pessoal, mas sem subjetivismo, orientada pelo firme e desencantado senso Andrade, timidíssimo, é ao
utópico de justiça que a faz atenta a tudo quanto é dor. A partir de Sentimento do mesmo tempo, inteligentíssi-
mo e sensibilíssimo. Coisas
Mundo (1935-1940), humaniza-se mais, se é possível dizê-lo assim, como maneira que se contrariam com fero-
cidade. E desse combate toda
auto-reflexiva de dizer as coisas daqui e do vasto mundo que evidencia a a poesia dele é feita”. Mário de
particularidade da sua angústia anti-heróica. Acentuando a auto-reflexão com Andrade. “A Poesia em 1930”.
Aspectos da Literatura Brasileira.
gravidade trágica, o poeta opera o sentido “esquerdo” da ética do estilo em dois 5 ed. São Paulo, Martins, 1974,
níveis complementares e antitéticos de significação, a angústia de viver as formas p. 33.
272 da palavra
opressivas da vida capitalista e a resistência contra a sua essencial barbárie. Ser
e tempo, vida profunda e miséria histórica, a complementaridade antitética das
significações é estranhamento, tensão e contradição das normas sociais que
organizam a naturalidade das representações que o leitor habitualmente faz de
si e do mundo. O estranhamento acontece em todos os níveis do discurso como
dramatização dos temas por meio de duas perspectivas antagônicas25. Dividem
a figuração em afetos irônico-sentimentais irreconciliáveis e opõem os
enunciados como elevação lírica e trágica das matérias humildes e baixas e
rebaixamento cômico e satírico das matérias altas e graves: “anjo torto”, “sublime
cotidiano”, “vísceras sentimentais”. As mesclas estilísticas dessa divisão negam
a unidade suposta do sujeito e a racionalidade suposta das coisas do seu mundo,
evocando no leitor as incongruências de um abismo de melancolia racional e
ceticismo sentimental26.
Na auto-reflexão sobre a impossibilidade da poesia em um tempo de
miséria, Drummond dissolve as formas artísticas que naturalizam a arte como
evidência. A particularidade histórica do artifício aparece à leitura como
suspensão e desvanecimento do sentido, pois incide negativamente sobre os
25
Cf. Lima, Luiz Costa. “O
condicionamentos sociais, materiais e institucionais da sua própria possibilidade
princípio-corrosão na poesia como poesia em um mundo no qual o leitor está inteiramente subordinado à
de Carlos Drummond de An-
drade”. Lira e Antilira. Mário, lógica da mercadoria. O real não é racional, propõe sua forma, transformando e
Drummond, Cabral. 2 ed. revis- dissolvendo as ideologias correntes sobre o tempo e a história. Dissolvendo-as,
ta. Rio de Janeiro, Topbooks,
1995. esvazia também o ato da invenção em um vácuo posto entre limites denegados:
26
“Vila de Utopia”, Confissões
de Minas. Obra Completa. ed. cit.
o ainda impossível futuro das formas da sensibilidade livre anunciadas no “livro
p. 561. Por exemplo dessa inútil”- a inteireza da memória da infância, a vida sem culpa, o amor sem medo
melancolia racional e ceticis-
mo sentimental, leia-se “O e extorsão, o trabalho significativo, a simplicidade da beleza, a liberdade coletiva,
Enigma”: “Ai! de que serve a a revolução- e o real do presente intolerável, objeto da reflexão em “livros
inteligência- lastimam-se as
pedras. Nós éramos inteligen- inúteis”- a miséria da história, a exploração, a mercadoria, a feiúra da cidade, a
tes, e contudo, pensar a amea-
ça não é removê-la; é criá-la.
falta de sentido, a opressão de classe, a solidão do indivíduo, a falta de amor, a
Ai! de que serve a sensibilida- injustiça, o fascismo.
de- choram as pedras. Nós éra-
mos sensíveis, e o dom da Como em Mallarmé, a destruição é sua Beatriz. Poesia da experiência,
misericórdia se volta contra nunca é harmônica, pois sabe que o sofrimento humano é histórico. Sua divisão
nós, quando contávamos apli-
cá-lo a espécies menos favo- mesclada corresponde à desarmonia essencial da vida, pois sabe que o sofrimento
recidas.” ( Novos Poemas, ed. cit.
p. 231).
nunca é anedótico, menor, pouco ou insignificante. Vamos morrer. Máximo poeta
27
“ Se a realidade dada perde moderno da memória, do esquecimento esquecido de si mesmo e da
seu valor para o ironista, não é
enquanto é uma realidade ul- impossibilidade de esquecer o peso horrível do passado, sabe que qualquer dor
trapassada que deve dar lugar é mal, devendo ser tratada com a delicadeza e a honestidade de uma comoção
a uma outra mais autêntica,
mas porque o ironista encara só possível porque fundada na maior solidão de todas, a solidão do indivíduo
o Eu fundamental, para o qual
não há realidade adequada”.
que vai morrer sabendo que a injustiça não acabou, uma solidão anti-heróica,
“Kierkegaard, O Conceito de portadora da peste coletiva transfigurada na recusa da Grande Saúde que faz a
Ironia”. In Ménard, Pierre. Ki-
erkegaard, sa vie, son oeuvre, pp. vida improvável. Sua poesia lembra que a morte, tal o gavião molhado de “Morte
.57-59, cit. por Deleuze, Gilles. das Casas de Ouro Preto”, baixou entre nós, em nós e não vai embora. Com
Lógica do Sentido.Trad. Luiz
Roberto Salinas Fortes. São comovedora exemplaridade por assim dizer compendiária, dramatizando
Paulo, Perspectiva, 1974, p. 142
(Estudos, 35).
experiências que nunca tiveram vez nem voz, impensável amargo da beleza e
28
Aqui, escolhi estabelecer impensado recalcado da herança das violências das estruturas coloniais
algumas relações da prosa ini-
cial de Confissões de Minas e de sintetizadas na memória da família patriarcal e das modernidades oligárquicas
livros de poesia publicados da sociedade urbana instaurada no país pela Revolução de 1930 e pelo Estado
da palavra 273
Novo, a força negativa da sua recusa da vida ruim é extraordinária. pelo autor até 1945. Mas avan-
ço, um tanto, para lembrar
A materialidade da palavra em “estado de dicionário”, a mescla estilística, rapidamente que o arabesco
em movimento anunciado em
a sintaxe gaga, a dissolução do verso, a ausência de música, as incongruências Confissões de Minas no pequeno
de ironia, comoção, humor, desprezo e angústia da poesia retomam a auto- texto sobre a “pintura da pas-
sagem” torna-se princípio es-
reflexão irônico-sentimental praticada pelos românticos como contraste de ideal truturador da forma em Claro
sublime e de realidade grotesca. Como reflexão infinita de um Eu ilimitado Enigma e Fazendeiro do Ar. Ne-
les, o conceptismo já classifi-
sobre a essência da forma poética, a ironia romântica expressa o distanciamento cado como “barroquismo” da
dicção do enovelar-se intelec-
que a perspectiva de uma consciência infeliz, mas superiormente crítica, toma tualista da linguagem sobre si,
em relação ao mundo mau e incapaz, em suas formas finitas, de oferecer consolo deslizando-se, estrutura, em
palavra e palavra no vazio que
à má generalidade da sua solidão saudosa de Absoluto. Fundamentando as vai de uma a outra, como se
sentimentalidades em unidades metafísicas tidas como soluções, os românticos em torno de um eixo de ar
intensificado na suspensão
recusam as únicas existentes, as humanas, por isso nadificam o finito no mito27. encantatória do sentido livre
de nexos de representação na
Nada desse idealismo no estilo da poesia e da prosa de Drummond. Anti- fictícia aparência do presente,
romântico, seu pensamento é material. Sabe, com a lição romântica de Baudelaire, tem certamente sentido alegó-
rico de resposta política ao
que o “eu” é abominável; com a lição cética de Montaigne, que é vário e estalinismo do PCB aludida
desinteressante; com a lição do rigor de Mallarmé, que a transposição e a estrutura também na prosa de Passeios
na Ilha. Mas, antes de tudo,
produzem a desaparição elocutória do sujeito, cedendo lugar às palavras em isso- ou aquilo - que também
já foi chamado de “formalis-
estado de dicionário. E sabe, com a sabedoria do seu fazer, que o eu lírico eleva mo” pelos que falam de “lite-
a voz do fundo do abismo do ser, pois sua subjetividade é pura imaginação, ratura e história” ignorando a
historicidade das transforma-
como diz o Nietzsche do Nascimento da Tragédia28. Mas sabe principalmente, ções históricas da forma da
com a simples, comum, rotineira e imediata experiência da vida brasileira, que poesia moderna- aponta de
novo, poeticamente, para o
a destruição da vida besta é mais fundamental que o “eu”, a poesia e o Ser. mestre do Valér y citado na
epígrafe, o Mallarmé do
“nada”, o Mallarmé “syntaxi-
er”, o Mallarmé do “enunciar
é produzir”, o Mallarmé que
relaciona auto-reflexão, lin-
guagem, ficção e crítica da
representação: “Minha maté-
ria é o nada”, lê-se em “Nu-
dez”, de A Vida Passada a Lim-
po (1958). Tratando do ser e do
tempo sem perder-se na flo-
resta negra ou no mato nacio-
nalista, Drummond busca o
tema do “nada” também em
outro mestre da indetermina-
ção rigorosamente construída,
Machado de Assis, desenvol-
vendo-o como palavra “em
estado de dicionário”. Mas não
só. Desde A Rosa do Povo, prin-
cipalmente, passou a fazer
poemas narrativos e dramáti-
cos longos, que lembram con-
tos e peças teatrais postos em
forma de romance ritmado e
rimado, como “Caso do Ves-
tido”. Nesses textos, a distin-
ção tradicional de poesia/pro-
sa já não funciona mais. Já em
Alguma Poesia e Brejo das Almas,
tinha escrito textos como “O
Sobrevivente” e “Outubro
1930”, em que a prosa compa-
rece. Lição de Coisas continua a
experiência narrativa e dramá-
tica em poemas como “Os
Dois Vigários” e “O Padre e a
Moça”.
274 da palavra
da palavra 275
276 da palavra
A “Ode marítima”:
representações metafóricas
da viagem no texto de Álvaro
de Campos
da palavra 277
obras canadenses. Quero enfatizar esse desdobramento como forma de introduzir
uma leitura do poema “Ode marítima”, objeto maior deste trabalho.
Quanto a’Os Lusíadas,1 é desnecessário lembrar que circunda o poema
toda uma tradição que o coloca no primeiro plano da literatura ocidental,
mostrando como o poema camoniano celebra as glórias portuguesas, levantando
um passado glorioso e se fazendo, o próprio texto, esse passado que a cultura
lusófona não se cansa de exaltar.
Entretanto, é preciso ver que o tema dá muitas voltas – talvez fosse melhor
dizer que ele faz muitas viagens –, plantando surpresas. É o que ocorre, por
exemplo, quando se lê o romance As naus,2 de Lobo Antunes. A crítica tem
reconhecido no romance uma espécie de inversão especular do poema
camoniano. Se neste se tem o apogeu glorioso das conquistas portuguesas, nas
fabulosas viagens em busca de novos mundos, na narrativa de Lobo Antunes
essa glória é posta em xeque, na medida em que representa o retorno sem glória
daqueles que “entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram”.
Trata-se do retorno da África, na descolonização, dos portugueses que encarnaram
o papel de heróis no poema de Camões. Se aqueles foram os heróis celebrados,
estes, de agora, são os próprios anti-heróis, amargando, séculos depois, a
frustração anunciada, n’Os Lusíadas, pelo Velho do Restelo. No Jornal de Letras,
Artes e Idéias, de Lisboa, comentou-se, à época do lançamento de As naus, que o
romance seria “a sequência lógica do Canto X d ‘Os Lusíadas’, ou seja, o
necessário decrescendo que, desglorificando, nos reconcilia e aproxima dos vultos
que povoam a nossa memória escolar”.
Como segundo exemplo ilustrativo, lembro que, nas narrativas canadenses
referidas, Maria Chapdeleine, de Lous Hémon,3 e Le Survenant, de Germaine
Guèvremont,4 o tema da viagem aparece numa forma inusitada. Na verdade, a
permanente mobilização das personagens masculinas representa uma fuga ao contato
amoroso com a mulher, o que faz dos homens um ser em constante deslocamento,
como se tais personagens fossem incapazes de ver a mulher como objeto do desejo.
É o que ocorre, por exemplo, no Maria Chapdeleine, quando a personagem François
Paradis, um andarilho nas matas, morre durante uma tempestade de neve, deixando
Maria na vã espera de um casamento anunciado mas que jamais aconteceria. No Le
Survenant, o homem foge quando a tímida Angélina confessa seu amor com a singeleza
da frase: “Se você quiser, Survenant...”.
Essa fuga ao contato amoroso, marca do medo do homem diante da
mulher, caracteriza-se, na verdade, como uma representação metafórica do
episódio histórico da Conquista Inglesa de 1760, quando se dá a capitulação de
Québec e Montreal e o Canadá torna-se uma colônia britânica. Desapossado de
sua classe dirigente, o Canadá passa por uma ruptura política, econômica, social
e lingüística. Assim, a história marcará os canadenses-franceses com a humilhação
de sobreviverem, buscando a agricultura, o artesanato e o pequeno comércio.
Tudo isso decorre da angústia do arrebatamento do território, fazendo surgir,
nas narrativas canadenses-francesas da segunda metade do século XX, um
recobrimento metafórico que faz do homem, da personagem masculina, um ser 1
2
Camões, 1970
Antunes, 1988.
viajante, em fuga desesperada, justamente para não ter de confrontar a figura 3
Hemon, 1956.
feminina que lhe provoca um medo incontornável. 4
Guevremont, 1974.
278 da palavra
Feitas essas considerações introdutórias ao tema, passo, então, à leitura
do poema “Ode marítima”,5 do heterônimo Álvaro de Campos, em que a viagem
se desloca do exterior para o interior do eu poético, numa busca do desejo
inconsciente.
da palavra 279
Parecem nítidas as imagens que apontam o rumo de uma busca interior,
na direção de um lugar diferente, desconhecido. E tais circunstâncias revelam a
íntima conexão que as aludidas metáforas estabelecem com o desejo. Basta
atentar para os termos que sustentam as metáforas para observar-se que “o
paquete vem entrando” o que faz o eu poético confessar o tremor que toma
conta de sua carne e de sua pele. É interessante verificar como o próprio texto
revela a natureza metafórica do significante “navio” quando afirma:
Assim, o poeta tenta delinear essa “outra coisa”, que provoca “a mesma
ânsia doutra maneira” de um modo peculiar, vendo-a entrando num cais, “Um
grande cais cheio de pouca gente / Duma grande cidade meio-desperta”, que
ele, significativamente situa “Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do
Tempo”, o que, de resto, parece sugerir a irrupção do desejo numa vertente que
não se define claramente para o sujeito mas que lhe impõe uma busca que parte
para o mais íntimo de seu ser.
Se insistirmos numa pauta psicanalítica na leitura, poderemos encontrar
outras sugestões muito significativas para essa ideia do desejo ardentemente
buscado. Assim, logo depois de trazer à tona o significante “cais”, articulando-
o, na importante imagem dos “navios entrando”, é de se notar o modo como o
poema caracteriza o cais. Ele traz toda a sugestão do “útero materno”. Senão,
vejamos o texto na sua clareza:
280 da palavra
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa,.
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento.
E só fica um grande vácuo dentro de nós,,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma saciedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubessem como sê-lo...
da palavra 281
Essa entrega completa, total, absoluta à figura do marinheiro, tal como
insinuada nos versos anteriores, é que gera o surgimento do lado feminino do eu
poético. Nesse ponto, é bom lembrar os sinais infantis indestrutíveis aos quais o
adulto se liga, assim como os desejos infantis recalcados que reagem aos
mergulhos no inconsciente, pois, como ensina Juan-David Nasio, nas suas
considerações sobre o etapa do Édipo no menino, a “fantasia mais típica do
desejo de ser possuído é uma cena em que o menino sente prazer em seduzir um
adulto para se tornar seu objeto. Essa fantasia é uma fantasia de sedução sexual
em que o menino sedutor imagina-se seduzido pela mãe, por um irmão mais
velho ou até mesmo, ainda que isso os surpreenda, pelo próprio pai. Com efeito,
um menino pode desempenhar o papel passivo, eminentemente feminino, de
ser a coisa do pai e fazê-lo gozar”.8
Essa posição diante do ser com quem o poeta quer identificar-se gera
uma idolatria que o leva, voluntariamente, a ser uma vítima diante da majestade
do outro:
Não é por outro motivo que Eduardo Lourenço vê, na “Ode marítima”,
manifestações da sexualidade de Fernando Pessoa. Nesse passo, o poema parece
confirmar aquela afirmação de J.-D. Nasio, de que, na evolução do Édipo, o
“menino pode desempenhar o papel passivo, eminentemente feminino, de ser a
coisa do pai e fazê-lo gozar”, de vez que não é difícil identificar a figura do pai
nas referências ao marinheiro. Em alguns momentos, essa identificação é,
inclusive, explícita, como nos versos em que o poeta faz alusão à figura paterna
proscrita, tal como acontece no chamado acidente do simbólico:
282 da palavra
São bastante significativas as alusões ao “Fulano-de-tal”, com letra
maiúscula, ao “marítimo, nosso conhecido”, ao “homem que andava conosco”.
Mas o confuso e labiríntico mundo penetrado, mundo do inconsciente, no qual
se busca desesperadamente o desejo, espelha o turbilhão em que o sujeito
mergulha, num choque de situações que dão bem uma mostra de como se convive
nele com o paradoxo e a confusão. Nesses termos, se o marinheiro pode encarnar
a figura do pai que intercepta a busca daquele desejo que quer restaurar a antiga
e perdida unidade com a mãe, é de se notar também uma outra passagem do
poema em que o marinheiro ganha um nome próprio e, aí, ele passa a ser o pai
com quem o eu se identifica. Trata-se da referência que o poeta faz à figura do
marinheiro inglês Jim Barns, a quem atribui o apelo ao eu para que mergulhasse
nas águas. Entretanto, é preciso notar que essas águas que o chamam enviam-
lhe um “chamamento confuso”, o que, em termos metafóricos, é uma bela
referência ao mundo interior, ao inconsciente. Vejam-se, pois, os versos:
É importante ter em mira que esse “Grande Pirata” que estava a morrer,
tendo quinze homens debruçados sobre ele, continua a indiciar a figura paterna,
só que, agora, esse pai tem todas as características do pai da tradição religiosa
cristã. Embora o poeta tenha dito que essa “canção do Grande Pirata” seria “uma
da palavra 283
linha reta mal traçada dentro de mim” – um claro traço da incerteza quanto a essa
presença de um pai Jesus Cristo – vai-se verificar que, ante as agruras do que a
imaginação da mente profunda produziu, o poeta se dá conta da inviabilidade
dessa busca e do preço que teria de pagar por ela. Assim, ante o terror que já lhe
afiguram as ações do pirata como o “paladar do saque”, a “chacina inútil de
mulheres e de crianças”, a “tortura fútil... dos passageiros pobres”, a “sensualidade
de escangalhar... as coisas mais queridas dos outros”, o eu poético sente a
necessidade de renunciar ao seu desejo. Até mesmo porque forças mais altas se
levantam contra esse apetite, tal como se pode ver nos versos seguintes:
284 da palavra
Despeço-me no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpático de proletário dos mares,
.........................................................................
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer espécie de deveres.
Lá vai ele tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Fica bem patente nos versos a mudança de rumo exibida pela metáfora
do navio. Agora tudo é naturalidade, é humildade, é tranquilidade. É a prevalência
do escrúpulo, da honestidade. Como se vê, o mundo do inconsciente ficou para
trás, submerso, novamente, nas suas profundezas insondáveis. Para substituir
esse mundo ameaçador, veio a poesia. Anton Ehrenzweig delineia esse
mecanismo criador, dizendo que “o processo de elaboração secundária (a criação
literária) ajuda a mente de superfície a recuperar a carga de energia perdida e
essa carga de energia passa a ser usada como um prazer estético”.9
Para finalizar, e me valendo do psicanalista alemão citado, diria que a
“Ode marítima” é um exemplo do que ele chama de “elaboração secundária em
um estilo”, ou seja, elaboração de um texto literário. Como Ehrenzweig pontua,
o texto artístico oferece “uma gratificação inconsciente aos desejos recalcados
na nossa mente profunda”. Mas, acentua o autor, devido “à enorme pressão
que os desejos inconscientes exercem contra as forças da censura do superego”,
a mente de superfície vê-se tomada de uma emoção dionisíaca dolorosa. Essa
sensação é afastada pelo prazer estético presente na elaboração literária que
compensa a perda da gratificação inconsciente, funcionando, assim, como um
mecanismo substituto. É nesse sentido que se pode compreender as preciosas
articulações linguísticas de que Fernando Pessoa se vale na urdidura metafórica
de seu poema. Numa palavra, diria que o eu poético desce ao inconsciente,
debate-se por entre suas ameaçadoras e dionisíacas forças, mas faz retornar a
claridade do mundo através de seu poema. Permito-me, nesse passo, por
ilustrativos, ler seus versos finais:
da palavra 285
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh’alma...
REFERÊNCIAS
286 da palavra
da palavra 287
288 da palavra
Nietzsche, Freud e Marx:
Ricouer, Foucault e a questão
da hermenêutica
Ernani Chaves1
da palavra 289
Foucault, intitulada justamente “Nietzsche, Freud e Marx” e proferida, em 1964,
no Colóquio “Nietzsche”, realizado na Abadia de Royaumont, na França. Gostaria
então de mostrar um pouco da confrontação possível entre as posições desses
dois grandes pensadores de nossa época, a propósito da questão da hermenêutica.
I
Partindo da ideia de que o problema filosófico contemporâneo por
excelência é o da linguagem, Ricouer pode justificar assim, seu interesse por
Freud. Desta perspectiva, ao lado das investigações de Wittgenstein, da filosofia
lingüística dos ingleses, da fenomenologia oriunda de Husserl, das pesquisas de
Heidegger , dos trabalhos dos exegetas do Novo Testamento como Bultmann,
dos trabalhos de história comparada das religiões e de antropologia, Ricouer
alinha a Psicanálise. E desde o início do primeiro capítulo do livro, já deixa
enunciar sua tese: as “vissicitudes das pulsões”, diz ele, “só podem ser atingidas
nas vissicitudes do sentido”. Com isso, Ricouer antecipa sua vinculação da
problemática da linguagem e da interpretação em Freud aos seus próprios
pressupostos teóricos, ou seja, a ideia, que vem da Fenomenologia de Husserl e
que se amplia com Heidegger, de que a interpretação supõe a busca do sentido.
Entretanto, qual é a grande tensão, a “tração extrema” que marca a
modernidade, como nos diz Ricouer, senão aquela que existe entre a
hermenêutica como “restauração do sentido” - este é o lado onde o próprio
Ricouer se coloca (1977, p. 33) - e a hermenêutica oriunda da “escola da
suspeita”, cujos mestres, é ele ainda quem nos diz, são Freud, Nietzsche e Marx?
Para nos esclarecer acerca desta tensão, Ricouer parte da ideia de Deutung
ou ainda de Auslegung, tal como enunciada no livro fundamental de Freud acerca
do tema: Die Traumdeutung, A Interpretação dos Sonhos, de 1900. Ele nos diz que
devemos a Nietzsche a introdução do conceito filológico de Deutung na reflexão
filosófica. De todo modo, Nietzsche o fez, continua ele, a partir de um novo
conceito de Vorstellung, “representação”, que teria implodido a posição kantiana
sobre o tema: não se trata mais, a partir de Nietzsche, como o era ainda para
Kant, de saber como uma representação subjetiva pode ter uma validade objetiva,
mas de referir-se a “uma nova possibilidade que não é mais nem o erro no
sentido epistemológico, nem a mentira no sentido moral, mas a ilusão (...)” (1977,
p. 32). Trata-se portanto, de um deslocamento do conceito de símbolo como
“duplo sentido”. Se uma hermenêutica da restauração do sentido supõe a
existência necessária do sentido e, desse modo, símbolo e sentido caminham
juntos, na escola da suspeita, nessa hermenêutica da destruição, mais do que o
lugar do sentido está em questão o próprio ato de interpretar e com isso,
desaparece do horizonte, toda ideia de uma hermenêutica geral, de um cânon
universal para a exegese e, em seu lugar, surgem teorias separadas e opostas,
dizendo respeito às regras mesmas da interpretação. A consequência disso, para
Ricouer, seria o rompimento do que ele chama de “campo hermenêutico”, ou
seja, dessa esfera de atuação específica do símbolo ou do duplo sentido, no
interior do campo maior e mais vasto da própria linguagem.
290 da palavra
O tema de Ricouer é o pensamento de Freud e sua ambição é examinar se
Freud está inteiramente do lado dos “mestres da suspeita” ou se a Psicanálise
pode ainda também ser entendida como “busca do sentido”. A argumentação
de Ricouer começa confrontando Freud com a hermenêutica do sentido e
alinhando-o aos seus companheiros de “suspeita”, Nietzsche e Marx. Ao final
do livro - que provocou reações bastante inflamadas - Freud está situado a
meio-caminho entre uma e outra atitude hermenêutica. Entretanto, cabe-nos
no momento apenas perguntar, com Ricouer, o que liga Freud a Nietzsche e a
Marx. Em outras palavras, em que consiste a “escola da suspeita” por oposição
à “escola da reminiscência”, o outro nome que Ricouer dá à hermenêutica como
“restauração do sentido”.
Ricouer começa por “recuperar”, como se diz hoje, Freud, Nietzsche e
Marx. Marx deve ser libertado da redução ao economicismo e da absurda teoria
da consciência como reflexo; Nietzsche, do biologismo e da ideia de um
perspectivismo incapaz de enunciar-se a si mesmo sem contradição e Freud,
por sua vez, de um confinamento na psiquiatria e da redução a um pansexualismo
simplista. E se podemos indicar entre eles, malgrado as grandes diferenças, um
ponto em comum, este deve ser, de início, o da ideia da consciência como “falsa”:
“O filósofo formado na escola de Descartes sabe que as coisas são duvidosas,
que não são tais como aparecem. Mas não duvida de que a consciência não seja
tal como aparece a si mesma: nela, sentido e consciência do sentido coincidem.
Depois de Marx, Nietzsche e Freud, duvidamos disso. Após a dúvida sobre a
coisa, ingressamos na dúvida sobre a consciência” (1977, p. 37). Assim sendo, a
teoria da ideologia, o conceito de vontade de poder e o de pulsão formulariam,
em cada um dos três pensadores, o meio pelo qual eles pretendem “destruir” o
edifício da filosofia moderna da consciência que se erigiu a partir de Descartes.
Entretanto, mais uma vez Ricouer “recupera”, a sua maneira, Nietzsche,
Freud e Marx. E desta vez, a partir da ideia de “destruição” presente em Ser e
Tempo, de Heidegger. Não se trata, portanto, de dizer que os “mestres da suspeita”
são os “mestres do ceticismo”. Muito pelo contrário, pois segundo Heidegger, o
momento da destruição é fundamental e constitutivo de “toda nova fundação”.
E assim, torna-se imperioso para Ricouer, justamente para indicar as limitações
da “escola da suspeita”, dizer em que consiste a “nova fundação” da “escola da
suspeita”: a invenção de uma arte de interpretação! E, com isso, todos os três se
dirigem para o horizonte de “uma palavra mais autêntica”, de um “novo reino
da Verdade”, vencendo “a dúvida sobre a consciência através de uma exegese
do sentido”. A partir deles, ainda Ricouer, “a compreensão se torna uma
hermenêutica: doravante procurar o sentido não significa mais soletrar a
consciência do sentido, mas decifrar suas expressões”.
A “escola da suspeita”, nesta perspectiva, torna-se também, aos olhos de
Ricouer, na “escola da astúcia”. Em vista disso, instaura-se uma nova relação
entre o patente e o latente, na qual a categoria fundamental da consciência não
é mais a clareza e a distinção, mas a relação entre o que se mostra e o que se
oculta, entre o que se manifesta e o que se simula, em outras palavras, a “ilusão”
da palavra 291
torna-se agora constitutiva da própria consciência. A “escola da suspeita”,
portanto, nos ensinaria, fundamentalmente, a não apenas suspeitar, mas também,
insidiosamente, astuciosamente, a nos indicar algo que vai além da suspeita:
Freud, através da dupla entrada do sonho e do sintoma neurótico, nos conduz à
decifração da “econômica das pulsões”; Marx, a partir dos limites da alienação
econômica fomentada pela ideologia, nos conduz a uma outra “economia”, a
“política” e Nietzsche, a partir do problema do “valor”, nos conduz, do lado da
“força” e da “fraqueza” da vontade de poder, para o desvendamento das máscaras
e ilusões. Processo de “desmistificação”, que se apresenta em cada um desses
autores, com objetivos diferentes, mas que, no fundo, remetem a uma única
coisa, qual seja, a da consciência como máscara, como veículo de representações
ilusórias, que nos aprisionam, seja à alienação de classe, seja aos imperativos
morais, seja às injunções do recalque. Assim, revolução, transvaloração e processo
analítico se constituiriam numa espécie de “grande astúcia”, através da qual a
“escola da suspeita” acabaria por se legitimar. Esta é, grosso modo, a posição de
Ricouer, que aponta, como pretendi mostrar, uma espécie de insuficiência, de
incompletude, por parte da “escola da suspeita”, da qual deveríamos, com os
pressupostos fenomenológicos, também “suspeitar”. Sem desconhecer a
importância de Nietzsche, Freud e Marx, Ricouer assinala, entretanto, os
impasses de suas respectivas posições para enfatizar a sempre necessária “busca
do sentido”. No outro extremo desta posição, podemos situar Michel Foucault.
II
No Colóquio “Nietzsche” de Royaumont, em 1964, onde estiveram
presentes grandes intérpretes de Nietzsche, oriundos da Alemanha (como Karl
Löwith) da Itália (como Gianni Vattimo, mas também Giorgio Colli e Mazino
Montinari, organizadores da edição crítica de Nietzsche) e da própria França (Jean
Wahl, Gabriel Marcel, Jean Beaufret, Gilles Deleuze e Pierre Klossowsky, entre
outros), Foucault, já então o conhecido autor de História da Loucura na Idade Clássica
retoma, por outras vias, como veremos, a mesma questão de Ricouer, qual seja, o
conceito de interpretação em nossa época e o papel desempenhado na formulação
de uma nova hermenêutica, por Nietzsche, Freud e Marx.
Comecemos pelo final, ou seja, pela posição de Foucault diante da
hermenêutica como “restauração do sentido”. Digo, do “final”, porque esta
questão só vai aparecer explicitamente, no debate que se seguiu à exposição de
Foucault. E dentro de um contexto bem específico, uma vez que falar de uma
her menêutica do sentido na perspectiva de Ricouer é falar do papel
desempenhado na história da interpretação, da exegese religiosa, em especial,
da exegese bíblica. Ora, para Ricouer ainda, a “escola da suspeita” ao se opor à
hermenêutica como “restauração do sentido”, se opõe a toda fenomenologia do
sagrado: “o contrário da suspeita, dizendo de modo brutal, é a fé” (1977, p. 33).
Mas, não se trata, evidentemente, da fé ingênua, mas da fé do hermeneuta, isto
é, “de uma fé racional”, na medida em que se põe a caminho da interpretação.
292 da palavra
Pois bem: uma das eminentes figuras que acompanhou a exposição de
Foucault era um conhecido filósofo da religião, o vienense e judeu Jacob Taubes
(1923-1987), que desde 1975, era professor na Freie Universitât, de Berlim.
Taubes perguntou a Foucault porque ele havia excluído as técnicas de exegese
religiosa de sua exposição e, mais ainda, afirmava, ao contrário do que dissera
Foucault, que era a Hegel (e não à tríade Nietzsche, Freud e Marx), que devíamos
o deslocamento do conceito de interpretação em nossa época. A resposta de
Foucault foi a seguinte (1967, p. 194; 1994, p. 575): ele não se referiu à exegese
religiosa, embora reconhecesse sua importância, “porque na brevíssima história
que retracei, me coloquei ao lado dos signos e não do sentido” e, acrescenta,
que “o corte do século XIX bem poderia ter acontecido sob o nome de Hegel”,
embora existam outros aspectos tão “importantes quanto à filosofia hegeliana,
para concluir, de maneira lapidar: “é preciso não confundir história da filosofia
com arqueologia do pensamento”.
Ora, por isso é que resolvi começar pelo final, ou seja, para mostrar que o
duplo ponto de partida de Foucault, o privilégio do signo sobre o sentido e o
método (não uma história da filosofia, mas uma arqueologia do pensamento),
se constitui numa distância bastante grande em relação a Ricouer. Poder-se-ia
dizer, grosso modo, que Foucault, que já havia assinalado os impasses da
Fenomenologia em As Palavras e as Coisas, assuma um ponto de partida ainda
impregnado pelo Estruturalismo.3 Embora, tanto quanto Ricouer, Foucault
colocava, naquela época, a questão da linguagem no centro de seu pensamento.
Entretanto, sua aproximação do Estruturalismo, fazia-o valorizar o signo e não
o sentido. Por outro lado, ao dizer que faz “arqueologia” e não “história da
filosofia”, Foucault demarca também sua perspectiva diante da tradição
universitária na qual ele mesmo foi formado4. Talvez, não por acaso, na sua aula
inaugural no Collège de France, em 1971, ele tenha feito o elogio de seu professor
Jean Hypolite. Foucault entendia talvez, que a grande obra de Hypolite sobre a
Fenomenologia do Espírito, de Hegel, fosse algo mais do que uma obra de História
da Filosofia e sim uma escavação aprofundada no solo do pensamento hegeliano
e com isso, ao mesmo tempo, revolvia o solo do próprio pensamento ocidental.
Não que Foucault quisesse dizer que o livro de Ricouer sobre Freud pudesse ser
restringido a uma obra de História da Filosofia. Mas que, ele mesmo, quando
3
escrevia sobre filósofos, não o fazia a partir dos pressupostos de leitura,
Sobre Foucault e a Feno-
menologia neste período, ver historicamente assentados na universidade francesa.
LÉBRUN, 1985. Há um afasta-
mento progressivo de Fou- Ao afastar-se da questão do sentido, Foucault afasta-se de toda tentativa
cault em relação a Fenome- de entender a hermenêutica como “restauração do sentido”. E, com isso, não
nologia, tendo como cerne a
questão do “sujeito”: ao “su- há, do ponto de vista em que ele se coloca uma “escola da suspeita” em oposição
jeito do tipo fenomenológi-
co, trans-histórico”, que não a uma “escola da reminiscência”, pura e simplesmente porque, segundo ele, a
“é capaz de dar conta da his- história das técnicas de interpretação não mostra a suspeita contra a
toricidade da razão”, Foucault
opõe o corte operado por reminiscência, mas sempre a suspeita, inegavelmente a suspeita (1967, p. 183;
Nietzsche (1994c, p. 436).
4
Para a concepção de “arque- 1994a, p. 564). E isso em dois aspectos: a primeira suspeita é a de que a
ologia” em Foucault, a refe- linguagem nunca diz o que diz, aquilo que os gregos chamavam de “allegoria” e
rência fundamental ainda é
MACHADO (1982). “hypnoïa” e a segunda suspeita é a de que a linguagem ultrapassa sua forma
da palavra 293
propriamente verbal e que há muitas outras coisas no mundo que também falam,
o que os gregos chamavam de “semaïnon”. Estas duas suspeitas, que fundam o
pensamento ocidental junto com os gregos, nos acompanham até hoje diz Foucault:
“Creio que cada cultura, quero dizer, cada forma cultural na civilização ocidental
teve seu sistema de interpretação, suas técnicas, seus métodos, suas maneiras de
suspeitar que a linguagem quer dizer outra coisa do que ela diz e de suspeitar que
há linguagem para além da linguagem” (1967, p. 184; 1994a, p. 565).
Foucault inicia então seu texto estabelecendo um modelo de comparação
para que compreendamos melhor a renovação de Freud, Nietzsche e Marx, nos
lembrando de que, no século XVI, por exemplo, o trabalho da interpretação se
baseava no império das “semelhanças”: “Lá onde as coisas se assemelham, lá
onde isso se assemelha, alguma coisa quer ser dita e pode ser decifrada; sabe-se
bem a importância do papel desempenhado na cosmologia, na botânica, na
zoologia, na filosofia do século XVI, da semelhança e de todas as noções que
gravitam em torno dela, como satélites” (1967, p. 184; 1994a, p. 565). Assim,
é a episteme da semelhança (e aqui Foucault antecipa a linguagem de Les mots e les
choses, livro no qual já se encontrava trabalhando naquela época), que domina
no século XVI e a teoria do signo e das técnicas de interpretação nesta época
repousam sobre uma definição perfeitamente clara de todos os tipos de
semelhança que fundam, por sua vez, dois tipos distintos de conhecimento: a
“cognitio”, a passagem de uma semelhança a outra e a “divinatio”, o
conhecimento em profundidade, que ia de uma semelhança artificial a outra
mais profunda. Apesar da crítica que Descartes e Bacon fizeram à rede de
semelhanças, Foucault não reconhece neles e em nenhum de seus pósteros, o
privilégio de ter, de fato, instaurado uma nova técnica de interpretação, pois
apenas Nietzsche, Freud e Marx fundaram, diz Foucault, a possibilidade de
uma nova hermenêutica. Este é o ponto de maior convergência entre Foucault
e Ricouer. Entretanto, repito, Foucault não oporá, como Ricouer, uma escola da
suspeita a uma escola da reminiscência. Isso porque nesta época ele já se afastara
da Fenomenologia, para se inscrever mais radicalmente na tradição que tenta
pensar a partir da constatação e da afirmação da “morte de Deus”. Em outras
palavras, se Foucault não se interessa pelo sentido, é porque, como veremos, já
não há mais nenhum sentido a encontrar.
Qual deslocamento então foi operado por Nietzsche, Freud e Marx na
concepção de signo, de tal modo que eles fundam uma nova “arte de interpretar”?
Os argumentos de Foucault poderiam ser resumidos da seguinte maneira:
1. pela negação de uma profundidade ideal, uma vez que se abre um novo
espaço de repartição dos signos: o espaço da superfície. Aqui, por exemplo,
Foucault relembra uma passagem da abertura do Capital, de Marx, quando este
diz que deverá , à diferença de Perseu, se afundar na bruma para mostrar, de
fato, que não há nem monstros nem enigmas profundos, pois tudo que há de
profundo na concepção burguesa da moeda, do capital, do valor, não passa de
“superficialidade”.
294 da palavra
2. os signos não se reenviam mais uns aos outros (como na episteme da
semelhança renascentista), mas por sua inesgotável profusão, pelas suas infinitas
facetas, abrindo portanto a possibilidade de uma interpretação infinita, sempre
inacabada; neste ponto, Foucault lembra a diferença entre “começo” (le
commencement) e “origem” (l’ origine) em Nietzsche. O “começo”, ao contrário da
“origem”, remete ao caráter infinito da interpretação, a uma abertura que lhe é
irredutível. Como sabemos, alguns anos depois, em 1971, Foucault, em
“Nietzsche, a genealogia e a história”, refinará a distinção nietzschiana entre
“começo” e “origem”: aquele, recoberto com mais intensidade pelos termos
Entstehung (proveniência, ponto de surgimento) e Herkunft; (emergência, entrada
em cena das forças em confronto, num jogo perpétuo, que deixa suas marcas no
corpo); esta, como busca metafísica, Ursprung, do que é sempre dado antes como
verdadeiro, belo e bom (1994b, p. 136; 1979, 15).
3. ao negar qualquer referência a um significado absoluto, a chave da
hermenêutica moderna é que tudo já é interpretação, que todo signo não remete
a uma coisa, mas sempre a um outro signo (o que não quer dizer, evidentemente,
que todas as interpretações sejam verdadeiras); aqui, por sua vez, podemos
lembrar de Freud. Com efeito, pergunta Foucault, o que ele descobre por trás
dos sintomas senão outros signos, os “fantasmas”, com sua carga de angústia,
isto é, um cerne que já é no seu próprio ser, uma interpretação? E, em decorrência
da distinção entre “começo” e “origem”, ele dirá que, em Nietzsche, “não há
um significado original” (1994a, p. 572; 1967, p. 190).
4. a negação de qualquer referência a um significado absoluto submete a
interpretação à tarefa de interpretar-se a si mesma: “Não se interpreta o que há
no significante, mas se interpreta no fundo: quem interpreta” (1994a, p. 573;
1967, p. 191).5 Disso, Foucault tira uma dupla consequência: primeiro, que o
princípio da interpretação nada mais é do que o intérprete e segundo, que a
interpretação não se dá num tempo linear e homogêneo, mas sim num tempo
que lhe é próprio, num tempo circular. Enfim, uma vez que não há crença em
signos imóveis, irreversíveis e absolutos, a vida da interpretação seria uma
espécie de “eterno retorno” das interpretações ou ainda, segundo uma famosa
afirmação de Nietzsche: “não há fatos, somente interpretações”.
da palavra 295
Foucault se refere à questão da interpretação. Interpretação e perspectivismo
6
Posteriormente, Ricouer
vai nuançar bastante sua inter-
no sentido nietzschiano se constituiriam assim, nos grandes antípodas, para pretação de Nietzsche, além
de utilizar largamente a Arque-
Foucault, da hermenêutica enquanto restauração do sentido. ologia do saber, de Foucault, para
seus próprios projetos teóri-
cos (RICOUER, 2000). Para
uma leitura crítica da interpre-
tação foucaultiana de Nietzs-
REFERÊNCIAS che, que remete aos mesmos
textos que estou comentando,
ver Marton, 1985.
FOUCAULT, Michel (1967), “Nietzsche, Freud et Marx”. In: Nietzsche. Cahiers
de Royaumont. Paris: Éditions de Minuit.
(1979), “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do Poder.
Rio de Janeiro: Graal.
(1994a). “Nietzsche, Freud et Marx”. In: Dits et écrits. Paris:
Gallimard, vol. I.
(1994b). “Nietzsche, la généalogie, l’ histoire”. In: Dits et écrits.
Paris: Gallimard, vol. II.
(1994c). “Structuralisme and Post-Structuralisme”. In: Dits et écrits.
Paris: Gallimard, vol. IV.
LEBRUN, Gérard (1985). “Transgredir a finitude”. In: RIBEIRO, Renato Janine
(Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense.
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Foucault. Rio de
Janeiro: Graal, 1982.
MARTON, Scarlet (1985). “Foucault, leitor de Nietzsche”. In: RIBEIRO, Renato
Janine (Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense.
RICOUER, Paul (1977). Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago.
(2000). La mémoire, l´histoire, l’ oublie. Paris: Éditions du Seuil.
296 da palavra
Para que fenomenologia “da”
educação e “na” pesquisa
educacional?
da palavra 297
Assim, partilhei com o mestre as minhas inquietações, mas fui logo
advertido por ele de que a fenomenologia só é um qualificativo da pedagogia
porque constitui uma teoria da experiência humana alargada. Era, pois, minha
tarefa, num valor de tentativa, pôr em ordem e justificar um discurso sobre as
práticas pedagógicas na universidade e elaborar uma crítica da educação. Daí
em diante persegui a ideia de tornar visíveis abordagens epistemológicas que
norteiam a docência e fui buscar um método e/ou filosofia (fenomenologia) para
que as atividades educacionais se mostrassem (phainomenon) na sua clareza
(aletheia) à consciência intencional dos sujeitos (visée de la conscience), sobretudo,
através de minha “existência” (Dasein) como professor (ser/pessoa de
possibilidades) que se desoculta mundanamente e se auto-conhece nas relações
inter-pessoais, aberto às coisas e aos outros (ser com mit-sei), no espaço e no
tempo (Kairós) social.
Para que fenomenologia “da” educação e “na” pesquisa educacional? Esta
foi a interrogação introdutória, porém essencial a uma boa conversa com o meu
instigador. Ora, se introduzir (introducere) é a ‘ação de levar para dentro’, a questão
me possibilitou um deslocamento eficiente numa direção que eu mesmo escolhi.
Certamente, Benedito Nunes me instigou a lavrar um tento ao escolher
conscientemente um procedimento de investigação organizado (methodus)
importante para alcançar a realização de minha perspectiva.
Como todo problema filosófico - cuja resposta é desconhecida, porém a
sua essência é a necessidade de conhecer -, retomei as práticas educacionais como
quem retorna às coisas mesmas tendo em vista que essas próprias práticas se
apresentam a mim como algo que existe e que precisa ser “novamente”
investigado para encontrar o sentido único, o significado próprio, a forma
verdadeira de educare.
Eis aí uma afecção (significado na tradição filosófica), indispensável ao
conhecimento intelectual, cujo artigo teria de se iniciar com aquela indagação
que se impôs objetivamente e foi assumida subjetivamente:
298 da palavra
A essência da educação é compreender o sentido global da existência
humana inacabada para que, nesta existencialidade, o projeto humano se realize
buscando o seu ser-possível. Não há educação, mas alienação, se nós, seres
humanos, vivermos sem perceber o significado compreensivo de que as nossas
vidas realmente têm com relação ao inesgotável mundo. Isso supõe que
precisamos “estar sendo” e, do mesmo modo, necessitamos qualificar uma
educação num processo contínuo do refazer-se.
Devemos, sim, considerar a educação como um produto cultural, isto é,
aprendizagem da cultura, mas,é por meio da aprendizagem que alcançamos a
esfera da humanização propriamente dita e nos tornamos diferentes do resto
dos entes que habitam o mundo, visto que somos, pelo trabalho, capazes de
criação cultural, acrescentando sempre algo de novo à natureza e aprimorando
o nosso mundo-vida-educacional:
da palavra 299
próprio homem) e Sein (presença existencial). O Dasein designa o homem, ente
singular e concreto; não o homem em si mesmo substancializado na tradição
ontológico-metafísica, mas aquele que, ao se encontrar aí, coloca o seu Ser em
questão; portanto, o Dasein pertence ao campo ôntico do existente, daquilo tal
qual é (ação e abertura), ou seja, “o ente que temos a tarefa de analisar somos
nós mesmos” (HEIDEGGER, 1993 p. 67).
O Dasein é o Ser situado, engajado numa dada realidade concreta; sua
essência é se lançar no mundo-vida e neste se fazer presente, colocando a sua
própria existência em questão. O homem realiza sua essência na existência,
uma vez que o seu caráter mais universal e particular de existir é a sua própria
essência:
300 da palavra
reconheçamos que, entre os fenômenos culturais, a experiência educacional,
por sua dimensão, extensão, amplitude e profundeza, é a mais significativa a
uma fenomenologia da educação. Mas, se a fenomenologia da educação é um
processo permanente de elucidação da experiência pedagógica, não se pode
negar que a educação habita sutilmente nossa vida cotidiana e, por assim dizer,
está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos admitir.
Ao considerar a educação um fenômeno próprio dos seres humanos,
devemos começar por reconhecer que não há como procurar o seu sentido, sem
refletir acerca da existencialidade humana, isto é, precisa-se compreender a
educação a partir das relações humanas vivenciadas “com” e “no” mundo,
sobretudo porque a educação é, sem dúvida, experiência universal essencialmente
constitutiva do homem engajado efetivamente no mundo.
A aprendizagem humana não ocorre somente na esfera do intelectual, do
lógico, do psicológico, etc. Aprendemos com a totalidade de nosso corpo, com
nossa sensação, percepção, imaginação e intuições estimuladas pela
intersubjetividade. Aprendemos vendo a nós mesmos ou vendo outros corpos
que se aproximam do nosso e juntos formamos novos corpos-videntes.
Aprendemos sentindo o outro ou sentindo a nós mesmos, pois nosso corpo é
tátil. Aprendemos ouvindo os próprios sons que nosso corpo emite como
ouvindo outros sons comunicados por outros corpos, uma vez que nosso corpo
é sonoro. Aprendemos, portanto, significando a existência da corporalidade do
“ser-no-mundo” visto que nosso corpo em potência esboça um ‘tipo de reflexão’,
“[...] este saber, como todos os outros, só se adquire por nossas relações com o
outro [...]” (MERLEAU-PONTY, 1999 p. 141).
Nosso modo fundamental de ser e de estar-no-mundo, de se relacionar
com o Outro e de ele se relacionar comigo, forma uma estrutura cuja
complexidade expressa o fenômeno humano com o qual se origina também o
fenômeno da aprendizagem, e esta só se permite numa unidade indissociável
entre o teórico e o prático proposta aos agentes da educação embricados no
contexto homem-mundo.
Isso tudo esclarece uma pesquisa de natureza qualitativa, sobretudo de
modalidade fenomenológica existencial-hermenêutica, cujo caráter é a
interpretação reflexivo-crítica acerca do sentido da experiência [educacional]
vivida pelos sujeitos em sua própria realidade cultural a partir das suas diversas
dimensões (sociais, econômicas, políticas, éticas e técnicas), bem como a
clarificação dos aspectos existenciais destes sujeitos.
Ao pretendermos usar o método fenomenológico ? cujo termo técnico é
usualmente conhecido como “descrição fenomenológica” ? lidaremos com aquilo
que é significativo ou com a experiência consciente, uma vez que, ao tentarmos
explicar a essência do fenômeno na sua própria existência, o seu sentido e a sua
estrutura manifesta, fá-lo-emos através de uma consciência aberta e livre dos
“prejuízos do mundo”.
O fenômeno (entendido como aquilo que se mostra em si mesmo), que
vai se revelando a partir do estudo em processo, ressignificará uma terminologia
(signos) do cotidiano dos sujeitos envolvidos e permitirá também apreender
uma nova maneira de dar sentido (através do logos) a esses signos constantes no
da palavra 301
mundo-vida [educacional] daquela realidade. E, por assim dizer, a própria palavra
fenomenologia, por sua origem e formação, compõe-se de dois vocábulos gregos
(fenômeno e logos) e significa “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se
mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 1993 p. 65).
Segundo Merleau-Ponty (apud BICUDO; ESPÓSITO, 1997 p.26-27) a
descrição fenomenológica constitui-se de três passos fundamentais:
1. A percepção assume a primazia do processo reflexivo. Isto quer dizer que o mundo
percebido é o fundamento, sempre suposto, de toda a racionalidade, de todos
os valores, de toda a existência. Tal tese não destrói a racionalidade, nem o
absoluto. Procura apenas traze-los para a terra, para o chão. Primazia da percepção
significa que a experiência da percepção é nossa presença no momento quando
as coisas, as verdades, os valores são constituídos para nós.
2. [...] a redução fenomenológica, que ilustra a comunicação das convenções.
Aqui também há três níveis de análise que constituem a redução:
2.1. A ideia de epoché derivada de Husserl. No primeiro nível, o pesquisador
suspende as proposições características da construção teórica.
2.2. No segundo nível, há a criação de uma perspectiva gestáltica radical, na qual
o observador e o sujeito são os pontos focais da descrição. Esse processo é
frequentemente referido como localização do temático nos dados da descrição.
2.3. No terceiro nível, o pesquisador tenta localizar as fontes pré-reflexivas do
tema, derivadas da descrição, indicando o que a experiência consciente era antes
da reflexão e do julgamento sobre ela.
3. O terceiro passo da descrição é a interpretação fenomenológica como uma
forma de legitimização comunicativa.
302 da palavra
revelando-me como “ser no mundo” (idem, p. 9), isto é, sou consciência
encarnada num mundo que agora tanto o mundo quanto o “eu” tem sentido
para mim.
Promover a redução, para Husserl, é voltar às coisas mesmas, é voltar ao eidos,
por isso toda redução é necessariamente eidética na medida em que procuramos uma
essência, um sentido sem o qual nada tem sentido. Mas, “as essências de Husserl
devem trazer consigo todas as relações vivas da experiência...” (idem, p. 12), ou
melhor, uma consciência intencional é aquela que se abre à experiência do mundo
e o apreende tal como ele é, extraindo-lhe o seu sentido essencial.
Heidegger também aguçou essa discussão quando procurou o “ser dos
entes”, isto é, o sentido que faz com que todas as coisas ou pessoas sejam
verdadeiramente o que são. Para Heidegger existe um “ente” que se distingue
dos demais: o Dasein, cujo privilégio é o de compreender-se a si mesmo. Contudo,
numa determinada aproximação, só o homem do ponto de vista de seu ser,
como Dasein, conceito mais importante de Ser e tempo (cf. NUNES, 2002 p. 8), é
capaz de significar o mundo e de dar sentido ao seu próprio ser. Por isso, o
sentido é aquilo em que “se apóia a compreensibilidade de algo” (HEIDEGGER
apud NUNES, 1992, p. 172-173), alguma coisa que se abre ao ser-aí numa relação
de pertença que a torna interpretada, pois ele sabe o que fazer dela, bem como
compreende a si próprio quando sabe perfeitamente acerca de seu estar-no-
mundo. A fenomenologia será, pois, esse esforço de interpretação das coisas e,
fundamentalmente, dos humanos que se revelam “no”, “com” e “para” o mundo.
Essa compreensão, conduzida pela epoché fenomenológica, exige a
“suspensão de todo o juízo” que temos de algo para alcançar a sua genuinidade,
a própria essência das coisas. Deste modo, tudo quanto sabemos sobre o homem
e sobre o mundo, através da atitude ingênua do senso comum ou mediante
qualquer filosofia, dogma ou até mesmo conforme o conhecimento científico
deve ser colocado fora de ação – “posto entre parênteses” – para que possamos
redescobrir o “ser dos entes”, o significado em toda a sua riqueza original da
experiência vivida, presente nas situações históricas em que são percebidas ou
expressas.
Tudo isso se acha em relação direta com a apreensão da estrutura
fenomenal da educação que, uma vez simbólica e intersubjetiva, deve ser
aprendida por meio da experiência íntima dos sujeitos que a projetaram
intencionalmente. Para tanto, é preciso encontrar o “princípio do princípio”
educacional vivido humanamente. É aí que a Fenomenologia põe-se (ao educador
e ao pesquisador) como necessária, isto é, como método de rigor ao indicar um
caminho lógico e como Filosofia ao “reaprender a ver o mundo”.
Se a descrição do discurso dos sujeitos envolvidos, de suas experiências
humanas [educacionais] vivenciadas para posterior interpretação (3º passo) e o
alcance dos significados atribuídos por estes sujeitos à (sua) práxis, qualificam
um modelo de pesquisa qualitativa de tipo fenomenológica, esta terá, como
apoio teórico-metodológico, a fenomenologia existencial-hermenêutica que se
caracteriza pela união do ‘conceito existencial de situação’ (somos no mundo
sempre afetados de alguma forma) com a ‘interpretação’ (o conhecimento mais
original é a compreensão interpretativa do real).
da palavra 303
Desse modo, esta fenomenologia, consequentemente, constitui-se também
como hermenêutica da existência, por renovar continuamente – no movimento
do compreender e interpretar – o projeto humano e nele o seu ‘fazer pedagógico’
inseparável da interpretação e, sobretudo, da linguagem e do diálogo crítico.
Compreende-se, pois, a importância que foi ganhando o conceito de
interpretação não só como simples método ou teoria metodológica, porém como
Filosofia, ou seja, elucidação sistemática das questões que determinam todo o saber e
o fazer humanos que, para Gadamer (2002 p. 391), “... é o que oferece a mediação
nunca acabada e pronta entre homem e mundo, e nesse sentido a única imediatez
verdadeira e o único dado real é o fato de compreendermos algo como algo”.
Se ocorrer a pesquisa de campo, podemos realizar entrevistas (e a
hermenêutica destas) com as pessoas inseridas na modalidade educacional em
estudo, a fim de coletar um material necessário que expresse, por exemplo, o
sentido da vontade de aprender dos educandos, a idiossincrasia dos educadores,
as escolhas e o envolvimento do professor e aluno com os problemas sócio-
culturais.
A coleta de dados (significante-significado) pode ser realizada através de
entrevistas fenomenológicas – um dos instrumentos que atendem mais de perto ao
estudo do vivido – com os sujeitos que, diretamente envolvidos, devem se
manifestar acerca de alguns signos (valores, ações sociais, adesões, engajamentos
políticos, etc.) relacionados às suas vivências educacionais tanto como alunos,
professores, diretores de escolas, etc. onde atuam, isto é, são vivências a serem
descritas e sobretudo a reflexão dessas mesmas experiências que estão
condensadas de vivos sentidos.
É importante salientar, desde já, que a análise dos dados coletados, isto
é, a descrição fenomenológica, deverá caminhar na direção de análise de discurso,
objetivando situar o fenômeno investigado a partir do contexto vivido.
No entanto, numa perspectiva descritiva sobre o que se pretende investigar,
uma fenomenologia da educação, lembrando o historiador Gerardus Van der
Leeuw e a sua Fenomenologia da Religião (apud HOLANDA, 2004 p. 53), não
pode deixar de:
304 da palavra
se origina na inquietação humana; procuraremos clarear os problemas de fundo
da educação global do homem com uma preocupação radical com o rigor e a
evidência; garantiremos uma mediação dos sujeitos (professor e aluno) com os
saberes sistematizados, com a cultura e com o mundo. Entretanto, sabendo de
antemão que há sempre um horizonte de possibilidades a ser conquistado, a se
revelar e a dizer; à educação, então, retomaremos a cada instante, e toda e
qualquer compreensão fundante que dela tivermos jamais se dará por acabada
na ordem existencial.
Decerto, um caminho para o fundamento da educação e às pesquisas
educacionais se encontra na fenomenologia – daí a importância fundamental da
primazia da percepção intencional, da redução fenomenológica (da epoché, da
suspensão do juízo, da fidelidade ao que se dá de modo evidente) e da
interpretação – e é nela que a educação procurará o seu sentido essencial, a sua
reta direção para alcançar os fins e objetivos que deseja.
Assim sendo, a fenomenologia – compreendida para além de método – é
uma atitude intencionalmente consciente, crítica e criativa das experiências
vivenciais humanas que, aqui, está presente também nas práticas pedagógicas;
sem a fenomenologia, essas práticas estariam desorientadas em seus fins próprios
e as pesquisas educacionais seriam estéreis sem essa atitude investigativa que
se abre à possibilidade de refletir o fenômeno, rompendo com os cercos do
conhecimento estabelecido.
CONCLUSÃO
Refletir sobre a docência no ensino superior, analisando os determinantes
do ensinar e do aprender que se concretizam no espaço acadêmico, exige de
nós, professores inquiridores do saber, preparar “caminhos” para tal
empreendimento.
Numa descrição essencial do processo ensino e aprendizagem, a
característica fundamental desta relação não é a simples transmissão de
conhecimentos do professor ao aluno, mas assegurar comportamentos ativos de
sujeitos cognoscentes, preparados para o julgamento crítico, capazes de construir
e reconstruir por conta próprias novas ideias. Para tanto, é necessário apreender
procedimentos adequados (methodus) que possibilitem o exercício da atividade
pensante e permitam a pesquisa na universidade.
Busquei o método fenomenológico com o intuito de aprofundar e
fundamentar criticamente os problemas da educação superior, evitar desvios da
boa qualidade de ensino, fortalecer as práticas pedagógicas no sentido de conduzir
a educação como um processo de constante libertação do ser humano e estimular
o prazer e o gosto pela pesquisa.
Como professor universitário, mergulhado numa prática donde emerjo
ainda insatisfeito por não poder reestrurá-la, por perceber que muitas vezes a
própria prática não dá conta da teoria, pois há rupturas; procurei uma teoria que
me ensinasse a ir em direção às próprias coisas, que me deixasse “ouvir” a ordem
das próprias coisas (do ensinar/aprender/transmitir/produzir conhecimento) e
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“ver” o movimento delas no próprio mundo (sociedade/Universidade/sala de
aula,etc.). A fenomenologia pode estar na base da busca individual de muitos
professores-pesquisadores por mudanças de sentido; acreditei nela como certo
estou de que a verdadeira educação não separa ação da reflexão, teoria da prática,
consciência do mundo. Para completar a sua rigorosidade metódica, a
fenomenologia é uma atitude refinada para trabalhar o sentido essencial não
somente da educação, mas o aprimoramento ético da ciência, da filosofia e da
existência humana.
REFERÊNCIAS
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