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Marina Massimi Maria do Carmo Guedes (organizadoras) HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL NOVOS ESTUDOS Revisao André Lufs Masiero educ Si Sao Paulo 2004 Ficha catalogrética elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvea Kfourl / PUC-SP Histéria da Psicologia no Brasil: novos estudos / orgs. Marina Massimi, Maria do Carmo Guedes ; revisio André Luis Masiero. - Séo Paulo EDUC; Cortez, 2004. 262 p. ; 23 cm ISBN 85-283-0300-4 (Educ) ISBN 85-249-1088-7 (Cortez) 1. Psicologia - Brasil - Histéria. 1. Massimi, Marina. Il. Guedes, Maria do Carmo. Ill, Masiero, André Lut cop 150.981 EDUC - Editora da PUC-SP Diregso Maria Eliza Mazzili Pereira Deniza Rosana Rubano Producéo Editorial Magali Oliveira Fernandes Preparacéo e Revise Tereza Lourenco Pereira Editoracao Eletrénica Artsoft Informatica Capa Sara Rosa Realizagao: Waldir Antonio Alves educ Seis Rus Bartira, 317 - Perdizes (08009-000 - So Paulo ~ SP 11) 3873-3359 Tol: (11) 3864-0111 educ@pucsp.br Fax: (11) 3864-4290 Site: www.pucep. br/educ E-mail: cortez@cortezeditora.com.br Site: www.cortereditora.com.br Rua Ministro God6i, 1197 0015-001 ~ Séo Paulo ~ SP Te Fe APRESENTAGAO Marina Massimi A presente coletanea visa apresentar 0 estado da obra de pesquisas realizadas até o momento no que diz respeito Historia da Psicologia no Brasil. Nao pretende ser um apanhado exaustivo, mas apenas um trabalho que pretende colocar algumas pinceladas no grande afresco que ao longo das titimas décadas estd sendo realizado pelos historiadores da Psicologia, com o objetivo de re- compor o percurso histérico que no contexto sociocultural brasi Ieiro levou a constituicgo das formas de conhecimento psicolégico e da ciéncia psicolégica enquanto tal Com efeito, recentemente assistimos a um aumento qualita tivo e quantitative das investigacdes na area, contando com a ibuig&o, seja de pesquisadores mais experientes, seja de jo- vens pesquisadores em formacao, que estdo elaborando teses de doutorado, dissertagées de mestrado e monografias de iniciagao cientifica dedicadas a estudos historicos em Psicologia. Além do mais, a disciplina “Histéria da Psicologia” comparece de uma for- ma cada vez mais freqliente nos curriculos dos cursos de gradua- G80 @ pés-graduacao em Psicologia, fato este que acarreta a ne- cessidade de produzir material adequado para 0 uso didético na perspectiva histérica. A coletanea estrutura-se em partes: abre-se com uma contri- buigdo sobre a historiografia geral da Psicologia, prosseguindo com textos que tracam o percurso histérico da Psicologia no Bra: no pals, de abordagens eapeciticas, teis como a psicendlise. As contribuleSee alo apresentadas em ordem cronoldgica (no que diz respeito & colocacao temporal do tema tratado em cada uma), res- peitando assim o critério temporal, postulado essencial para traba- thos de natureza historiografica (© primeiro capitulo, elaborado por Deise Mancebo, visa de- monstrar, numa perspective focaultiana, que a Psicologia, assim como qualquer outro tipo de sujeito cultural, constitui-se no interior da Historia, e como tal é por esta continuamente fundada e refun- dada. Apés reconstituir as origens da ciéncia psicolégica no con- texto do process mais amplo de consolida¢ao da ciéncia moderna, Mancebo descreve as crises do paradigma cientifico da modernida- de e as repercussées no que diz respeito & Psicologia. Prope cami nhos para a constituigao de uma relacdo adequada entre Psicologia e Histéria, bem como alerta acerca das armadilhas inerentes a esta colaboracao, o que acreditamos ser de grande utilidade para todos ~ psicélogos ¢ historiadores - que desejam empreender a pes- quisa em Hist6ria da Psicologia com rigor e seriedade, superando amadorismos, intengdes apologéticas, interpretacdes superficiais ideolégicas, que no contribuem ao avanco efetivo desta érea de estudos. 0 segundo eo tercsiro capitulos ~ ambos de autoria de Marina Massimi - sao dedicados a hist6ria das idéias psicoldgicas na cultu- ra luso-brasileira do século XVI aos inicios do século XIX: aborda-se a producio de idéias psicolégicas no ambito do saber dos jesuitas, ordem religiosa que teve uma grande importancia no contexto do Brasil Coldnia, e a elaboragao de conhecimentos psicolégicos pela inteligéncia brasileira do século XVIII e XIX. O objetivo 6 mostrar, através deste percurso histérico, o fato de que muitos dos concei- tos utilizados pela Psicologia moderna possuem raizes no passado & que, portanto, 0 estudo da Hist6ria da Psicologia contribui ao enrai- zamento do psicélogo brasileiro em sua cultura e sociedade. 0 quarto capitulo, elaborado por Elisabeth Bomfim, descreve © processo de construgao do sentimento de identidade nacional, percorrendo as etapas mais marcantes da Histéria do Brasil, desde © Descobrimento até os tempos atuais. Apresenta um apanhado sintético das contribuigdes mais importantes acerca deste tema No quinto capitulo, Nadia Maria Dourado Rocha relata suas pesquisas acerca da Faculdade de Medicina da Bahia e de sua con- tribuigao & produgdo dos conhecimentos psicolégicos no pais. So enfocados varios tipos de documentos: em primeiro lugar, as teses de cunho psicolégico de médicos baianos, apresentadas ao longo do século XIX, cujo estudo é importante no tanto pela originalida- de de métodos e contetidos propostos, mas por permitir uma ava- lag8o adequada da vinculago desses médicos ao contexto interna- cional da Ciéncia da época, através da andlise dos temas escolhidos @ dos autores citados. Em segundo lugar, so apresentados textos elaborados por intelectuais baianos referentes ao conhecimento psi coldgico, entre eles as Investigagées de Psicologia (1854), do médico e filésofo Eduardo Ferreira Franca. sexto capitulo, elaborado por Mitsuko Aparecida Makino Antunes, proporciona uma viagem panoramica e abrangente a0 longo da Histéria da Psicologia brasileira do século XIX até a atualidade, detendo-se em alguns pontos fundamentais de virada ocorridos no decorrer do tempo, a saber: a conquista da autono- mia da Psicologia como érea de conhecimento no Brasil, sua con- solidagao como ciéncia e profissao, sua profissionalizacao, sua expansao. Visa contribuir ao importante exercicio da Psicologia de tepensar a si prépria no momento hodierno, to cheio de fermen- tos @ questionamentos. 0 sétimo capitulo, de autoria de Marisa T. D. S. Baptista, aborda a constituicao da identidade enquanto psicélogos por parte de alguns profissionais que desempenharam atividades no campo da Psicologia, em Sao Paulo, antes de 1962. Aponta para duas fases desse processo de constituigdo da identidade: a primeira, en- tre os anos 20 ¢ 40; a segunda, entre as décadas de 1960 e 1962. 0 oitavo capitulo, elaborado por Raul Albino Pacheco Filho, ¢ © nono, de autoria de Roberto Yutaka Sagawa, reconstroem o per- curso de introdugao e consolidagao da psicandlise no Brasil. O pri- meiro realiza uma anélise de natureza histérica e epistemolégica acerca das relacdes entre psicandlise, Psicologia e Ciéncia, enfati- zando a necessidade e a importancia de discussées epistemolégi- cas e metodolégicas na construcéo do conhecimento cientifico. © segundo discute a introdugao da psicanélise no contexto brasilei ro, € especialmente em Sao Paulo, seja enquanto concepeao teri ca, seja enquanto pratica clinica. Essas contribuigdes, todas elas realizadas por membros do Grupo de Trabalho em Hist6ria da Psicologia da Anpepp ~ Associa~ 80 Nacional de Pesquisa e Pés-Graduacao em Psicologia, visam proporcionar aos leitores um conhecimento histérico Util a reflexao sobre a Psicologia, seu significado e sua funcao no contexto brasi- leiro. Ao mesmo tempo, quer estimular 0 interesse pela continuida- ® HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS de das investigages na drea, lancando um desafio, neste sentido, aos estudantes em formagao e aos jovens pesquisadores. Ha muita coisa ainda a se fazer, pois, no caminho da indagacao histérica, cada meta alcancada constitui-se num novo ponto de partida Marina Massimi Professora Associ FFCLRP-USP - Campus de Ri 12 do Departamento de Psicologia @ Educacao da ‘bo Preto. E-mail: mmarina@ffcirp.usp.br i vl SUMARIO Historia e Psicologia: um encontro necessério € suas “armadilhas” .. aa Deise Mancebo As idéias psicolégicas na produgao cultural da Companhia de Jesus no Brasil do século XVI e XVII 27 Marina Massimi As idéias psicolégicas no Brasil nos séculos XVII ¢ XVIII ...49 Marina Massimi Fragmentos psicossociais na histérica construgéo da identidade nacional ........-..css- seseeeesesctsssenees TY Elizabeth de Melo Bomtim A Faculdade de Medicina da Bahia e a preocupacéio com questdes de ordem psicolégica durante os oitocentos .......89 Nédia Maria Dourado Rocha A Psicologia no Brasil no século XX: desenvolvimento cientifico e profissional ........ sree 109 Mitsuko Aparecida Makino Antunes A constitui¢80 da identidade de alguns profissionais que atuaram como psicdlogos antes de 1962 em Séo Paulo... 153 risa T. D, S, Baptista 0 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS VIll Psicandlise, Psicologia e Ciénc origens, inter-relagdes e conflitos, 205 Raul Albino Pacheco Filho IX. Psicandlise @ Psicologia no Brasil e em Sao Paulo: registros histéricos .. 231 Roberto Yutaka Sagawa HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO. NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS” Deise Mancebo Seria interessante tentar ver como se dé, através da historia, a Cconstituicao de um sujeito que néo é dado definitivamente, que néo @ aquilo a partir do que a verdade se dé na historia, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da historia e que & a cada instante fundado e refundado pela histéri. £ na direcéo desta critica radical do sujeito humano pela histéria que devemos nos divigir. (Foucault, 1991, p. 7) Constituic&o histérica dos saberes “p: (© modelo de racionalidade que preside a ciéncia moderna cons- tituiu-se a partir do século XVI, no campo das ciéncias naturais, tendo por expoentes Bacon e Descartes. Descartes, especialmente, teve a preocupagao de estabelecer paraémetros que possibilitassem uma forma de conhecimento considerado verdadeiro. Dentre outros aspectos, o conhecimento cientifico comporta, desde entao, algumas distingdes que o qualificam enquanto tal. Em primeiro lugar, 0 conhecimento cotidiano, fruto do senso comum, é jado do campo do conhecimento cientifico, ou seja, a ciéncia moderna descarta sistematicamente as evidéncias da experiéncia Imediata, entendendo-as como informagdes pouco precisas, inse- guras e engenador: 2 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Outra importante clivagem operada pela ciéncia moderna se refere a distincdo entre natureza e ser humano. A natureza é consi- derada passiva e reversivel, como uma engrenagem cujos elemen- tos se pode desmontar e depois associar sob a forma de leis; ndo deve possuir nenhuma distingo especial que 0 homem néo consiga analisar. Apresenta, assim, como pressuposto metateérico, a idéia de ordem, estabilidade do mundo, do passado que se repete no futuro, sendo, portanto, passivel de ser dominada pelo homem em sua plenitude (Santos, 1997). Com base nesses pressupostos, dentre outros, o conhecimento cientifico procurou avangar, na modernidade, através de andlises rigorosas do ponto de vista técnico e metodolégico, 0 que signifi- ‘cou alimentar @ pretensdo de um descomprometimento do conheci: mento em relacao aos valores do pesquisador. As idéias mais claras e simples, os objetos reduzidos em sua complexidade, a possi dade de quantificacdo dos fendmenos transformam-se em pré- requisitos para um conhecimento rigoroso e sistemético da nature- za, condigdo para que um saber almeje o status de cientifico. Desse modo, dentre outros desenvolvimentos caracteristicos, a preciso torna-se um atributo imprescindivel para a ciéncia mo- derna, acompanhada necessariamente pela progressiva parceliza- ¢&0 do objeto e, em decorréncia, por especializagées do conhec mento, produzido cada vez em maior numero. Por essa via, a natu- reza & desmembrada em muiltiplos campos para efeitos de investi- gacao, mesmo que a custa do cardter distorcivo do conhecimento gerado sob esta maxima Com algumas ivas no século XVIII e principalmente a partir do século XIX, esse modelo de racionalidade se estende pro- gressivamente as ciéncias sociais e humanas emergentes. Uma das principais questées tematizada nos séculos XVIil e XIX, por tedri cos de diversas procedéncias, & a das relagdes entre o “in: €0 “coletivo”. A proliferacao desses estudos ¢ justificada pela pre- eminéncia concreta da prépria dicotomia enquanto tal, fazendo jus a necessidade de novas teorizagdes que dessem conta dos interes- ses individuais (Hirschman, 1979), da vida em sociedade recém- inaugurada, bem como ao duplo processo de individualizaco/inte- gracdo em que se sustentava a formac&o dos estados modernos. Nesse universo de busca de explicagées e soluges para as tensdes surgidas com a nova clivagem instituida - individuo @ so- ciedade -, emergem, por um lado, as primeiras ciénci HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 19. com teoriza¢des sobre 0 econdmico, o politico, o Estado, o soci ©, por outro, as primeiras ciéncias psicolégicas (ou morais, como muitas vezes estéo designadas), encarregadas dos individuos, de suas paixdes, pulsdes e interesses (Mancebo, 1999a). De la aos dias de hoje, esta dualidade no campo dos saberes no se alterou fundamentalmente, malgrado os esforgos de cons- trugdes inter/multidisciplinares'. No caso das psicologias, desen- volveram-se objetos de reflexdo, classificagao e intervencao sobre aspectos os mais variados da chamada interioridade. A realidade intima @ seu funcionamento conquistaram densidade tedrica e al- cangaram modelos complexos de intervencao, de modo que a pré- pria autonomizago 0 reconhecimento dos saberes “psi” como ciéncias - conceituando “legitimidades” e “validades”, definindo autores e autoridades cientificas, ou melhor, estabelecendo as mar- gens no interior das quais devem ocorrer a produgao e a divulgagao cientificas ~ contribufram para a consolidagéo das fronteiras entre as diversas disciplinas (Mancebo, 19992). © grau de imbricacdo entre 0 processo historico que segmen- tou individuo e sociedade, bem como a necessidade também his- torica (no seu sentido mais forte) do desenvolvimento das psicolo- gias ~ considerando-se, aqui, também a psiquiatria e a psicandlise -, 6 de tal ordem que, de modo bastante recorrente, sé se reconhe. em como modernas, racionais, civilizadas © até disciplinadas as Sociedades que apresentam um certo grau de psicologizacao Foucault (1979) uma referéncia central nessa discusséo, Pois analisa precisamente os dispositivos de poder que se desenvol. vem a partir do século XVIll, articulando-os a constituico dos sa- beres humanos e sociais. Apresenta duas formas nao excludentes, mas intercomplementares, de poderes que se organizam sobre a vida. A primeira tem como eixo 0 corpo/méquina, cujos dispositivos disciplinares permitem a elaboraco e a sistematizago dos saberes constitutivos de uma anatomopolitica do corpo humano. O investi- mento na utilidade/docilidade do corpo humano tornado maquina direciona sua integracéo em sistemas sociais e econémicos. A se- *\ Slo multes as polémicas acerca do sentido a atribulr a ‘nar, pluridiscipliner, interdlsclotinr e transdisciplinar, tas, no momento, termos multidiseipl 1“ HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS gunda forma tem como eixo 0 corpolespécie. Uma biopolitica da populacdo se elabora com o conhecimento da mecanica do organis- mo vivo no que diz respeito a natalidade, a mortalidade, a satide, & longevidade, ou seja, dos processos biolégicos que possibilitam in- tervengdes e controles reguladores sobre as populacées. Em torno desses dois eixos, anatomopolitico e biopolitico, organiza-se 0 po- der sobre a vida nas sociedades modernas, conforme diz Foucault, e se elaboram saberes que, sistematizados, iréo constituir as Cién- cias Humanas e as Ciéncias Sociais. Nesta linha de raciocinio, o proprio “individuo” & apresentado como uma produgao histérica, diante da qual, a partir do fim do século XVIII, todas as ciéncias se curvaram. Foucault identifica, no mundo contemporaneo, a transformacao do espaco puiblico em lu- gar de seqiiestro e de esquadrinhamento do individuo. Esse esqua- drinhamento é possibilitado néo apenas pelas tecnologias de poder, a exemplo das que se manifestam na arquitetura das cidades, na localizagdo das pracas e dos locais de diversdo, ou na organizagao interna de fabricas, escolas, prises, etc. Os saberes médicos, juri- dicos, sociolégicos, antropolégicos, policiais e psicolégicos, que cresceram visivelmente desde o século XIX na nsia de organizar as multiddes e canalizar “positivamente” os problemas oriundos da industrializagao e da urbanizagao em larga escala, também se cons- tituiram em dispositivos centrais de codificacao e normatizagao das condutas humanas. 0 desenvolvimento desses saberes, dentre eles 0 psicolégico, s&o-nos apresentados, por Foucault, como processos de controle social, formas de sujeicdo/subjetivacéo mobilizadas pela sociedade urbano-industrial, que classificam os individuos em conceitos iden- titérios e os alocam em campos partilhados entre 0 normal 0 patolégico. Para esse autor, entéo, o individuo foi construfdo nae pela complexa intrincagao das relagdes de poder e saber, nasceu com elas e com elas se constituiu. Do mesmo modo, a emergéncia © 0 desenvolvimento das Ciéncias Humanas, na qualidade de saber préprio do homem, incluindo todas as ciéncias, andlises ou praticas com 0 radical “psico”, tomaram corpo nessa reviravolta historica dos processos de individualizagao (Mancebo, 1999b}. Pode-se dizer, sinteticamente, que a partir do século XVII, € com maior nitidez no século XIX, engendrou-se um solo epistemo- légico pleno de especializacdes, em que teorias, ciéncias, idéias e conhecimentos puderam florescer para dar conta da compreens&o HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIOE SUAS “ARMADILHAS" 15 do universo de experiéncias da interioridade humana, em especial das suas tensdes. Desse modo, o espaco psicolégico, tal como o conhecemos na modernidade, nasceu e vive precisamente da arti culagao conflitiva das formas de pensar e praticar a vida individual em sociedade. Crise do paradigma cientifico moderno e repercussées para a Psicologia Como resultado interativo de uma pluralidade de condicées, 0 paradigma dominante de ciéncia entrou em crise no século que fin- dou, Passa-se ao reconhecimento de que 0 conhecimento cientifico moderno “é um conhecimento desencantado e triste, que transfor- ‘ma a natureza num autémato (...) ou num interlocutor terrivelmente estUpido”, Dentre outros aspectos, o rigor cientifico ndo raramenté. desquslifica os objetos ~ “ao objetivar os fendmenos, os objectua- liza e os degrada, (...) ao caracterizar os fenémenos, os caricaturi- | za” (Santos, 1997, p. 32) - e, ao reduzi-lo em pequenos objetos, perde em relevancia social, em generalizagdo e em potencial expli-/ cativo. Em decorréncia das criticas que o conhecimento moderno passa a enfrentar no século XX, alguns pressupostos de um novo paradig- ma, ainda emergente, vém sendo postulados, com implicagées pro- fundas para todos os campos investigativos, inclusive a Psicologia. Primeiramente, 0 conhecimento do paradigma emergente pro- cura superar alguns dualismos bastante familiares a disciplina psi- colégica, como natureza/cultura, natureza/artificial, vivolinanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/ individual, animal/pessoa (idem, ibidem). Depois, afirma-se a ndo-neutralidade na produgao dos co- nhecimentos, e o investigador passa a ser considerado como par- te constitutiva do fendmeno analisado. Conforme Santos, a cién- cia moderna, sob cujos parémetros a Psicologia se desenvolveu, “consagrou o homem enquanto sujeito epistémico, mas expulsou-o +) enquanto sujeito empirico” (ibidem, p. 50). Um conhecimento objetivo, factual e rigoroso no tolerava a interferéncia dos valo- res humanos @ as implicagdes do investigador. Ao contrério, sob a Percepello emergente, os pressupostos metafisicos, os sistemas > 16 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRAS! Novos estupes de crengas, os jufzos de valor nao estao antes, nem depois, da explicacao cientifica da natureza oy da sociedade. Sao parte inte- grante dessa mesma explicacao. (A realidade 6 uma construcdo coletiva cotidiana, na qual individuos e sociedade se transformam mutuamente no curso de sua inevitével interagao) Passa-se a as- sumir, desse modo, a impossibilidade da objetividade, to cara a muitos no campo da investigac&o psicossocial: @ presenga do in- vestigador, a selegao do seu tema de trabalho, a escolha dos su- jeitos (amostra), a determinacao das condigées da pesquisa e das técnicas adotadas de coleta de dados (entrevista, observacées, formularios, histéria de vida, pesquisa documental e bibliografica, dentre outras), a anélise dos dados (andlises quantitativas e qual tativas - a “anélise do contetido”, a “andlise do discurso” -, den- tre outras), enfim, as partes constitutivas da construgao investi gativa constituem-se em escothas, nas quais 0 pesquisador tem ativa participagao, Hé que se considerar, ainda, as implicages metodolégicas geradas na crise da ciéncia moderna, que se encaminham no senti- do de uma fértil aproximagao da Psicologia com as Ciéncias Natu- rais, Sociais e demais humanidades. Conforme ja apresentado, na investigacdo moderna o conhe- cimento avanca pela especializacao, e as inumeras subdivisoes da Psicologia comprovam esta afirmacao. 0 conhecimento “6 conside- rado tanto mais rigoroso quanto mais restrito € 0 objeto sobre 0 qual incide, (...) 0 seu rigor aumenta na proporedo direta da arbitra- riedade com que espartilha o real” (idem, ibidem, p. 46), mesmo que & custa de evidentes efeitos negativos quanto ao seu potencial de generalizacao e sua relevancia social. A consciéncia das limita- des deste modelo encaminha, entdo, alguns programas investiga- tivos para a busca de articulacdes multi e interdisciplinares j loca- izaveis em uma significativa e volumosa producao académica de ivros revistas “especializadas”. Psicologia, Sociologia, Antropo- logia, Economia, Histéria, Pedagogia, Linglistica e outras discip! nas tém suas margens permeabilizadas diante do objetivo de am- pliar 0 conhecimento do individuo, do grupo, da sociedade e da produgao de sua existéncia material e concreta (Camino, 1996). Por fim, assume-se o caréter histérico das investigagdes, de seus resultados e métodos utilizados, o que significa afirmar que_as sociedades humanas @ os homens que as habitam existem num determinado espaco, cuja formaco social e contigura¢éo s&o espe- HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 17 cificas, que o dinamismo e a especificidade sao caracteristicas fun- damentais de qualquer questo social e que teorias e métodos psi- cossociais construfdos para tratar dos homens e das sociedades so historicamente datados. Sob esta nova perspectiva na produ 80 do conhecimento, abdica-se progressivamente do projeto até ent&o hegeménico de purificago metodolégica; o acolhimento dos “hibridos” (Latour, 1994) torna-se uma realidade em algumas pes- quisas, transformando a Psicologia numa disciplina mestiga (Serres, 1993), combinada com outros campos do saber, que Ihe ita, enfim, avangos tedrico-epistemoldgicos e, especialmen- te, ético-politicos. Em sintese, da aproximagao da Psicologia com outros sabe- res, do exercicio critico as especializagdes e as purificacdes tedrico- metodolégicas positivo-funcionais, decorrem referenciais de anéli se que afirmam o cardter histérico dos fenémenos. psicossociais. ‘Os conhecimentos psicolégicos construidos estéo embebidos no’ contexto temporal, cultural, espacial em que séo criados, e se con- sidera que as formagdes da subjetividade no podem ser compreen- | didas como desligadas da formac&o social na qual se constituem), Desse modo, “tanto os fenémenos ‘normais’ quanto os ‘patolégi 0s’, bem como a determinagao das fronteiras entre uns e outros, dizem respeito a uma dada formacdo social e s6 podem ser compre- endidos em relaco a ela” (Gentil, 1996, p. 83). Em conseqiiéncia, 0 conhecimentos alcancados sao transitérios e destinados a serem superados, modificados e esquecidos, na medida em que deixem de responder as condigdes sécio-histéricas que os favoreceram, exigiram e os fizeram florescer. Historia e Psicologia: uma hibridagdo necessaria So muitas as alternativas para uma Psicologia hibrida. Sem a possibilidade de uma extenséo maior no escopo deste texto, é pre- ciso pelo menos citar duas dessas propostas: as investigacdes que aproximam a Psicologia da Antropologia e as que a aproximam da Historia, Com a Escola dos Anais, criada na década de 1920 e assim nomeada por causa da revista que, desde 1929, reuniu as contri- bulges de seus principals representantes (Annales d'Histoire 8 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Economique et Sociale), Psicologia ¢ Hist6ria passam a habitar or- ganicamente teméticas comuns. O esforco multidisciplinar que marcou essa nova tendéncia historiogréfica ~ associada inicialmen- te aos nomes de Lucien Febvre e Marc Bloch - encaminhava-se para a definicéo dos delineamentos pelos quais as épocas se distin- guem, relevando de forma inovadora as fronteiras éticas, estéticas @ também psfquicas. Tudo o que poderia dar sentido a mentalidade de uma época - Histéria da Psicologia coletiva, da comunidade de valores ¢ hdbitos, dos gestos, dos sentimentos ~ transforma-se em objeto de investigacao e andlise. Nesta perspectiva, as teméticas analisadas ganham espessu- ra temporal. Apresentam-se como tecidos complexos, com ritmos préprios, uns mais lentos, ainda resistindo as herancas e a meméria do passado, enquanto outras conjunturas sao percebidas como ace- leradas, rompendo o presente para impor a urgéncia da mudanca Os programas investigativos multiplicam-se em questdes nas quais cabem a historia das idéias cientificas, das praticas econémicas e religiosas, das curvas demograficas, a histéria da cultura, das guer- ras, das formas de representacao da familia, da loucura, da morte, das mulheres, das criancas e da propria subjetividade. 0 vocabulé- rio, @ sintaxe, os lugares-comuns, a concepgao de espaco e de tempo, os quadros légicos, tudo 0 que diga respeito aos locais e a0 modo de produgéo das mentalidades pode ser motivo de exame, constituindo um complexo inventario, que Febvre designou outillage mental. Por seu turno, a Antropologia detém, também de longa data, experiéncias de pesquisas do que se convencionou chamar de cul- turas “exdticas”, que obrigam a um aporte avesso ao anacronismo psicolégico, segundo 0 qual poder-se-ia aplicar a todos os represen- tantes da espécie humana as caracteristicas que sao especificas daquele que os pensa. Especialmente a partir de uma certa tradicdo ‘na Antropologia, iniciada com Mauss (1974),? passa-se a perceber que a prépria categoria “individuo”, tao cara as diversas psicolo- gias, além de construida histérica e socialmente, é um valor. Nesta seqiiéncia, Louis Dumont 6 outra referéncia central. Cabe destaque, a, &fertiidade de desenvolvimentos tedricos que se deram nesta linha, em not pals, com Gilberto Velho, Roberto Da Matta, Jane Russo e Luls Fernando Dias Duarte, para citar alguns, I HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 19, Desse modo, de posse das férteis articulacdes com as cons- trugées histérica e antropolégica, torna-se possivel & Psicologia expandir a critica ao etnocentrismo, para fazer despontar uma du- pla preocupagao com a variagéo espacial e temporal das mentalida- des. A Psicologia pode e deve manter uma intima relagdo com estas disciplinas, e, mais do que se perguntar se hé uma forma geral de representacao de si e do mundo, se hd uma mentalidade ou “in- consciente coletivo” (Ari8s, 1990) a reger as trocas simbdlicas de uma época, voltar-se para o exame da forma como o homem se singulariza nesses espacos e tempos. So miiltiplas, portanto, as trajetérias possiveis de se percor- rer, uma vez que se proponha a lancar mao de construgées tedricas, que ultrapassem as margens exclusivas dos saberes psicolégicos. A Historia da Psicologia, motivo central deste trabalho, pode expor- nos diante da contextualidade dos fatos humanos, na qual 0 pano de fundo universalista dos saberes “psi” dilui-se, bem como as reni- tentes pretensdes de construgdo de um discurso verdadeiro sobre as diferentes qualidades e condigdes com que se organiza a alma, 0 comportamento, a consciéncia, dentre outros objetos.(A subjetivi- dade pode ganhar novas visibilidades diante da enunciagdo de sua historicidade, os homens podem tomer corpo num tempo e num #8paco que os definem, como pertencentes a uma dada época & pera uma dada area social, econdmica, geografica e linguistica. Hibridar Psicologia e Histéria pode, além de tudo, oferecer um Instrumento critico que justaponha a normalidade de um presente a diferenca de outras organiza¢es}- econdmicas, politicas, cultu- rals, existenciais -, que, apoiando-se na moda de passados findos, reletivizam a ortopraxe e a ortodoxia do sistema em que viverios, (Certeau, s. d., p. 13). O recurso ao passado é vital. Exige 0 con- fronto entre praticas e andlises heterogéneas. Pode fornecer a forca tranagressora da inventividade humana, politizando a criatividade, 9 inacebamento do fazer e da narracéo. Como diz Paul Veyne, “os tatos humanos no so evidentes por si mesmos”, e a curiosidade reside em se perguntar por que nao seria possivel fazer de maneira diterente da que se pensa ou jé se pensou. O apelo a Histéria pode ‘ugerir, assim, novas técnicas e objetos “psi”, distintos daqueles oristalizados em espacos privados e intimistas. Deste modo, investigagdes que remetem a disciplina psicol6gi- (08 08 seus contextos de produ&o, que exploram os paradigmas Construldos no campo palcoldgico, que snalisam hébitos ou regras 20 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS. compartithadas pela comunidade de pesquisadores de uma determi nada época, que recuperam as intengdes, as convengdes e os con- textos de producao desta disciplina, estas tém-se mostrados férteis. Tal esforgo pode ser triplice: a andlise de “orientacées, para- digmas, probleméticas e instrumentos de pesquisa” dessa disci nna; a pesquisa do processo de institucionalizacao através da qual a disciplina procura se estabilizar do ponto de vista de sua organiza- G80, @ a discussao dos primeiros esforcos de constitui¢éo do cam- po de trabalho, com os quais, em principio, os integrantes da comu- nidade cientifica se aram (Lepenies, 1983, p. 38). ilhas” no encontro /Psicologia © caminho nao é todavia tranqiiilo, e armadilhas precisam ser evitadas. Primeiramente, é necessério romper com um determinado tipo de literatura na Hist6ria da Psicologia, que persiste em ater-se a0 territério restrito da memoria pessoal ou coletiva, E verdade que, entre Histéria e meméria, as relacdes sao fortes, e muitas das ne- cessidades de rememoragao estiveram, com freqiéncia, na base de investigag6es rigorosas e originals. Mas nem por isso Hist6ria meméria sao identificdveis. A primeira estd inscrita na ordem de um saber trabalhado criticamente, “universalmente aceitavel” e, para alguns, “cientifico”. A segunda 6 movimentada pelas exigéncias existenciais de comunidades ou pessoas para as quais a presenca do passado no presente 6 um elemento essencial de seu ser coleti- vo pessoal (Chartier, 2000, p. 19). Além disso, & preciso destacar que os “depoimentos”, em geral utilizados nesse tipo de literatura, esto interna e externamen- te subordinados a restri¢des. Em outros termos, nem tudo tem o direito de ser dito: “os tabus, a loucura, 0 erro (conhecimento falso) atestam todo um esfor¢o no sentido de silenciar o que oferece pe- rigo” (Pinho, 1998, p. 184) Procedimentos demarcam as fronteiras de cada discurso, limitando, ‘ou melhor, impondo regras a sua livre circulagao. Sao os rituais de enunciago (que requerem gestos, comportamentos e circunstén- clas especificos), a engrenagem editorial, as associagées criadas para garantir a manutenco de determinado saber, os sistemas dou- trinais, educacionais etc. (Pinho, 1998, p. 184) HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS* 2 Em contraposicao a Histéria, a meméria ajusta-se as necessi- dades de construgao de uma identidade. E, neste jogo, as violén- cias, 0s erros e nao raramente as lutas que tiveram lugar tém que ser esquecidas ou interpretadas de maneira que néo impecam o sentimento de unidade, que permitam a producao de uma narrativa coerente, uma escritura harménica da disciplina. Deste modo, 6 um bom antidoto caminhar além da memoria e em prol de uma Histéria da Psicologia, caminhar na diregao de cap- tar 0 processo de constituigao da Psicologia, no qual as experién- cias, os projetos ¢ as lutas dos que se opuseram, perderam ou foram abafados também tenham presenga, o que implica realizar uma pesquisa que nao se fixe somente nos “resultados”, isto é, no projeto hegeménico, nas leis aprovadas, nos livros que ficaram, nos homes reconhecidos (Mancebo, 1999c). As contradi¢des devem ser analisadas pela Histéria da Psicologia no sentido discutido por Orlandi (1987, p. 31): 0 “espaco de dissensdes multiplas”, 0 espa- G0 em que se mantém “o discurso em suas asperezas milltiplas”. Sob tal orientacao historiografica, a leitura dos textos - espe- claimente as fontes documentais primérias - também se altera. Pri- meiro, porque nao se trata mais de Ié-los na busca de uma “unida- de" que pudesse totalizé-los, mas de multiplicé-los. Desse modo, em vez de se analisar a “estrutura interna de uma teoria”, como fazem as “descricdes epistemolégicas ou arquiteténicas, a anélise Pode se encaminhar para uma articulaco miltipla, para uma plura- idade de registros, interessando-se por intersticios e desvios” (Orlandi, 1987, p. 30). Depois, é preciso também se precaver quan- to aos perigos de se manter a independéncia soberana e solitaria dos discursos psicolégicos. Como em Foucault (1981), deve-se manter a preocupagao em estabelecer “formas especificas de arti- culagéo” entre discursos e dominios ou “ ai vos”, ‘sistemas no discursivos’ ou, ainda, em descobrir todo esse sistema de institui¢des, de pro- 880s econdmicos, de relagdes sociais sobre os quais se podem articular os textos e os conceitos que os abarcam, néo mai “teencontrar um encadeamento causal” entre, por exemplo, ‘conceit @ uma estrutura social”, mas para captar um “tipo proprio, de historicidade” em que se esté enredado, relacionada a “todo um @onjunto de historicidades diversas”. Outro aspecto cuja persisténcia deve ser evitada refere-se as Intermindvels séries de influéncies tho comuns nos manuais de “Histé- sta de Psicologia”. Conforme Lepenies, as influéncias so, sem divide, 22 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS } menos importantes que uma rede de relagSee interdaciplinares ((0."R howsra de toda dscpina deve sera histria das suas rele Cs com es outs cscipings, daquelas que sia mita como mode- ® Ios, toma como aliadas, tolera como vizinhas, rejeita como concor rentes ou despreza como inferiores. (1983, pp. 39-40) Por fim, € possivel se aperceber que, na formagao de um sa- ber especifico sobre 0 homem, no se encontra exclusivamente um suporte epistemolégico. Os textos apresentam-se associados inva~ riavelmente a um componente politico e, mais do que mecanismos repressivos, envolvem relagdes de forca, eficdcias estratégicas, té- icas politicas. Passa a fazer parte do oficio do historiador da Psico- logia a tarefa de revelar 0 regime politico inerente as praticas dis- cursivas e nao discursivas, as redes de poder, as configuracées culturais e histéricas que resultaram na produgao de objetos, méto- dos e tratamentos para a Psyché. Isto implica, de um lado, a superagdo do “modelo filosético” que postula @ leitura de “escolas”, “estilos" ou “tendéncias” do pensamento erudito e institucionalizado como uma extensa ¢ inin- terrupta cadeia de interlocutores que se sucederam e se revezaram no tempo. Significa, ainda, pér em xeque o “modelo da como philosophia perennis” (Warde, 1997, p. 290), em pro! de uma outra metodologia que secundarize as relacdes de continui- dade (sucessores e predecessores) e releve as relacdes de luta que se travaram contemporaneamente. Implica, igualmente, superar 0 entendimento de que as dindmicas disciplinares so impelidas pelo motor interno das idéias, em favor de uma compreensao “contex- tualizada” das idéias, do pensamento, das teorias. Isto significa, também, repensar radicalmente os procedimen- tos historiogréficos, j que ndo se trata mais de buscar formas de manifestagéo de um fendmeno ao longo da histéria, de partir do objeto, do sujeito, de uma teoria “plenamente” constitulda para ver como ele havia se manifestado em diferentes formagées sociais. A questo que aqui se advoga ¢ a de perceber de que maneira as iprdticas discursivas e as néo discursivas, as redes de poder consti- ® tuem determinadas configuragées culturais e histéricas que resul- tam na produgao de determinados objetos e de determinadas figu- ras sociais (Rago, 1995 Trata-se, enfim, de levar a sério a questo levantada por Rodrigues: HISTORIA E PSICOLOGIA: UM ENCONTRO NECESSARIO E SUAS “ARMADILHAS" 23 // Enquanto privilegiarmos 0 epistemoldgico e o téenico, em detrimen- { to do histérico (poltico @ micro-pottico), néo estaremos, necessa- \ fiamente,logitimando saberes-competéncias- GANTOS, Boaventura de Souza (1997). Um discurso sobre as clén- clag, G.ed, Porto, Afrontamento. 26 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS: SERRES, M. (1993). Filosofia mestica. Rio de Janeiro, Nova Fron- teira. WARDE, Mirian Jorge (1997). "Para uma historia disciplinar: Psico- Togia, crianga e Pedagogia”. In: FREITAS, M. C. F. (org.). His- t6ria social da infancia no Brasil. S80 Paulo, Cortez. Deise Mancebo Protessora titular e pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de doutora em Histéria e Filosofia da Educacao pela Pontificl idade Catélica de Sao Paulo. I AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUCAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL DO SECULO XVI E XV Marina Massimi Histéria das idéias psicolégicas, na cultura luso-brasileira: do que se trata? A elaboracdo dos conhecimentos psicolégicos ao longo do mpo nas diferentes culturas é objeto de uma drea de estudos que denomina historia das idéias psicolégicas. Indica-se com este Rome a reconstrucao de conhecimentos e praticas psicolégicas pre- ntes no contexto de especificas culturas e sociedades, expressi- vos das diversas “visées de mundo” (Chartier, 1990) que as carac- terizam. Entende-se por viséo de mundo aquele conjunto de aspira- de sentimentos e de idéias que retine os membros de um mesmo grupo e os diferencia de outros grupos sociais. O estudo da cultura brasileira dos séculos XVI ao século XVIII : de fato, a produgao de idéias e de tentativas de sinteses cultu- 6 uma caracteristica marcante desse periodo hist6rico, confor- insiado por varios autores (Hansen, 1986; Morandé, 1984; , 1995; Pecora, 1994). Analisando 0 conjunto da producéo ira colonial, delineiam-se umas tem: relevantes NO que diz respeito a conhecimentos # préticas psicoldgicas, bem eomo ee di igniticativo de alguns sujeitos culturais 28 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS especialmente expressivos e atuantes no ambito da cultura of ou no da cultura académica e popular brasileira. Com efeito, apesar da fragmentagao e do autodidatismo que caracterizam a realidade do pals daquele perfodo, constata-se a existéncia de alguns grupos ou realidades culturais que apresentam uma certa homogeneidade, podendo assim ser considerados como sujeitos culturais, ou seja, sujeitos que representam, expressam, transmitem e preservam determinados modelos culturais. Evidenciaremos, a seguir, alguns topics da produ¢ao cultural brasileira do periodo entre 0 século XVI e as inicios do século XIX, que podemos reconhecer como significativos para a histéria dos conhecimentos psicolégicos na cultura ocidental. Os jesuitas como portadores e transmissores de idéias psicolégicas Ordem religiosa recém-surgida quando da vinda de seus pa- dres missionérios ao Brasil, junto da armada do Governador Geral portugués Tomé de Souza, em 1549, a Companhia de Jesus se originara num contexto cultural muito fecundo da Europa da época. Com efeito, seus inicios aconteceram no Ambito de um pequeno grupo de docentes e alunos da Universidade de Paris, local de con- vergéncia da tradi¢o medieval e dos novos fermentos do Humanis- mo e do Renascimento; além disso, a identidade hispanica de seu fundador, Indcio de Loyola, e de varios entre os primeiros adeptos, proporcionava a colocagéo da Companhia no amago de um dos mais importantes movimentos culturais da Europa da época: a Se- gunda Escoléstica ibérica, escola filoséfica que tencionava abarcar e discutir as novas teorias dos filésofos renascentistas e, a0 mes- mo tempo, manter uma ligacdo estreita com a tradi¢ao filoséfica crist. Alguns dos membros da Companhia estiveram mesmo entre 08 mais ilustres representantes desta corrente de pensamento (Fran- cisco Suarez, Pedro de Fonseca, Luis de Molina) A proveniéncia portuguesa ou hispanica de grande parte dos jesuitas que apés 1549 chegaram no Brasil, bem como 0 fato de sua formacao espiritual e intelectual ter sido realizada no Colégio das Artes de Coimbra, que fora um dos focos do referido movimen- to filos6fico, reforga ainda mais a significagao do papel cultural que [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 29 08 jesuitas assumiram no Brasil: 0 de portadores e transmissores da tradic&o medieval e renascentista da Europa no contexto da colénia além-mar, tendo eles propiciado e em parte se encarregado de rea- zar 0 enxerto das idéias, sonhos e desilusées, riquezas e contradi- ges do Velho Mundo no terreno fecundo, virgem e desconhecido do Mundo Novo, onde irdo estabelecer sua morada. A educagao 6 reconhecida pelos religiosos ~ imbuidos pelo espirito da pedagogia humanista — como instrumento privilegiado Para criar um homem novo e uma nova sociedade no Novo Mundo.’ Por isso a educacao das criangas e a criaco de escolas se consti- tutram os objetivos prioritérios do plano missionério da Companhia No Brasil. Esse empreendimento acarretava a necessidade de for- mular conhecimentos ¢ priticas de cardter pedagégico e psicoldgico. Cabe ressaltar outro motivo que justifica o interesse do estudo do saber dos jesuitas do ponto de vista da Psicol6gicas no Brasil: uma das dimensées principais da es dade da Companhia e de sua formacao € a énfase no conhecimento de si mesmo @ no didlogo interpessoal visando & compreensao da prépria dindmica interior. O discernimento dos espiritos e a direcao itual, por exemplo, recursos utilizados na Companhia para a formacao de seus membros, so expressdes de uma atenco toda moderna para com 0 cuidado de si mesmo e tornam-se normas para ida individual e social no ambito da Companhia. Esses recursos Préticos eram aplicados a vida do individu, sendo porém funcio- ' Com ito, assim como muitos entre os europeus que viersm para as Améri ons, 08 jesuitas chegaram ao Brasil carregando consigo fermentos milenaristas ‘que, expressivos da crise cultural e social da Europa quinhentista, levavam-nos a jsperanga de que aqui, no Novo Mundo, seria possivel realizar 0 que fora imposs Vol em seu contexto de origem. As Américas seriam, entio, o contexto onde seria izar 8 “utopia”. Nesta perspectiva, a criagko de escolas seria um dos. inminhos para possibiitar a realizagao do ideal preconizado. Tal objetivo fora re- fo1gado pela constatapo — apés alguns anos de experiéncia com os indios brasil ton -, de que estes no seriam propriamente tabula rasa, como era esperado: polo ‘oontrdrio, eram portadores de ums cultura e de um ethas muito diferentes, © as vers radicalmente opostos & cultura ¢ aos ve igiosos @ morais dos euro: aus, conforme é documentado pela correspondéncia jesuitica escrita do Brasil a0 longo do eéculo XVI (Massimi et al, 1997). Daqui nasceu a necessidade urgente col8s para formago dos meninos, pois na tenra idade seria mais le que se pretendera moldar. E, pois em poucos anos os jesultas conse- {Quiram conetrult @ tornar operativas uma rede de instruc&o de primeiro, segundo & oelro grave nae diversas regi6es de aus presence m) Je crlaco do 30 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS nais ao bem-estar do grupo e destinados a favorecer a adaptacao aos diversos contextos de atuacao missionérria;? neles canalizam-se conceitos tedricos e receitas préticas prdprias de toda a tradicao classica e medieval.® Apresentamos, a seguir, as principais idéias psicoldgicas que surgiram nesse contexto, presentes no meio sociocultural do Brasil colonial. O estudo da alma e a cura das enfermidades do animo Uma importante fonte para 0 conhecimento da teoria psicolé- gica difundida no ambiente cultural da Companhia de Jesus em Portugal e no Brasil, a0 longo do perfodo colonial, sao alguns co- mentarios as obras de Aristételes elaborados pelos jesultas portu- gueses docentes no Colégio de Coimbra, os tratados assim chama- dos conimbricences (termo derivado de Conimbrica, nome latim da cidade de Coimbra) (Lohr, 1995). Tais comentérios eram baseados nos textos gregos de Aristé- teles, tendo por objetivos 0 uso didatico (visando facilitar 0 trabalho dos alunos e propor um corpo seguro e uniformizado de conhecimen- tos filoséficos) e a necessidade de assumir uma posicao cultural explicita a favor de Aristételes e de Santo Tomés, mas ao mesmo tempo acolhedora dos fermentos culturais novos do Humanismo e 2 Espacialmente daquela rea que se denominara medicina do dnimo e que, desde Platéo, visava a0 cuidado para com as assim chamadas enfermidades do énimo, caracterizadas pelo desequilirio entre as partes da alma causado pela perda da soberania da alma racional sobre as demais partes da vida psiquica do homem (vide, por exemplo, a longa discussio # respeito realizada por 2A contribuigao do estoicismo & medicina da alma é conhecida mas se pode afirmar que, ao longo de toda a Idade Média, proliferaram discuss teéricas e receitustios praticos, visando descrever, explicar, prevenit e cuidar de todos 08 aspectos daquele microcosmo que é o homem, de maneira que este fosse tum verdadeiro jardim da sadde (Schipperges, 1985), conforme a expressio u {dana época para definir 0 género lterdrio que se ocupava da ditusdo desses conhe- cimentos e dessas préticas. O Humanismo e o Renascimento, retomando as tradi- ges do neoplatonismo @ do estoicismo, dedicam-se 3 construcdo da medicina do 4nimo, considerada essencial mesmo no que diz respeito & pedagogie e & polltica, como, por exemplo, na formagao do principe. De fato, no é casual que um entre (05 tratados do humanismo italiano, dedicado ao filho do rei de Espanhe escrito por Tideu Acciarini, tivesse o titulo de De Animorum Medicamentis, AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DEJESUS 31 da Renascenca.* Das teorias dos “modernos”, aproveitavam o possi- vel e refutavam os conceitos fundados em posigées agnésticas e naturalistas.° A teoria psicolégica dos mestres de Coimbra pode ser apreen- dida pela leitura dos comentérios as obras psicolégicas de Aristéte- les, a saber: De Anima; Anima Separata; Parva Naturalia; Etica a Nicémaco; De Generatione et Corruptione.* ‘A concepeao psicolégica proposta pelos Comentarios 6 clara- mente inspirada na tradigao aristotélico-tomista: a alma é definida + Uma andlise das fontes citadas pelos comentaristas pode fornecer uma idéie is conereta acerca da estrutura do conhecimento psicolégico proposta pelos {ilésofos jesultas, verdadeira e complexa sintese entre antigos © modernos. No comentario a0 De Anima, por exemplo, além de outros tratados aristotélicos, oltam-se, entre as fontes médicas, desde Hipdcrates @ Galeno até o anatomista Imadieval Realdo Colombo e o mais recente trabalho de Vesilio (De fabricatione ‘orporis human). Entre as tontes floséficas, citam-se juntamente aos mostres aldssicos © mediovais, Platdo, Cicero, Agostinho, Alberto Magno, Santo Tomas Duna Scot, autores modernos, tals como o referido Nicolé Pomponazzi, os filéso- tos humanistas Simone della Porta, Pico della Micandola e Costantino Nifo. + As origens histéricas dos tratados Conimbricences remontam aos 10 de setem- 1585, quando, por decreto régio, ao Colégio das Artes de Coimbra fora ‘esponsabilidade da Companhia de Jesus. Todavia, somente em 1592 © primeiro tomo do Curso, na tipografia de Anténio Mariz, de Coimbra, (80m 0 titulo Commentarii Collegi Conimbricensis Societatis lesu in octo libros Pryslcorum Aristotelis Stagirita. Em 1593, foram impressos varios outros tomos, entre 08 g uns dedicados a discussie das obras psicolégicas de Aristételes: In Libro Aristotelis qui Porva Noturalie appellantur {104 p.), In Libro Ethicorum Atistotelis ad Nichomacum (96 p.), todos em Lisboa, na Oficina de Simic Lopes. §no# sucessivos, foram aparecendo os demais textos, sendo o De Anima e o fa impressos em 1598. O autor anénimo dos tratados parece ter ria dos casos 0 padre Manuel Géis. fences no século XVI uito grande, chegando a atin- 22 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS ‘como 0 ato primeiro @ substancial do corpo, a forma do corpo ¢ 0 principio de toda atividade. Inovadora, porém, é a énfase quanto utilidade conereta da ciéncia da alma - 0 que justifica a posicao prioritéria que ela ocupa entre as outras disciplinas filoséficas. Com efeito, {6 no Proémio do comentario ao livro De Anima, afirma-se que a ciéncia da alma nao é ttl apenas ao conhecimento da verda- de eterna, ndo caduca, mas também a cura das enfermidades do animo (animi morbus). A aplicagao das teorias psicolégicas no plano pratico nortea- do pela ética encontra-se nos Comentarios Conimbricenses & Etica a Nicémaco.* Este tratado é particularmente significative por ser expressao de um género de literatura muito importante ao longo da Idade Média, principalmente no Humanismo e no Renascimento, ‘Ante esta polémica, os jesuitas tiveram que se posicionar, assim como os demais 'sofos da Segunda Escoléstica. A opedo fol de defender a enciclopédia aristoré- ica em sua unidade e aprofundar a leitura e a interpretagao de Aristdteles. Acaba- ram, assim, proponde um nove aristotelism, elaborado principalmente nas univer- sidades espanholas, do qual Francisco Suarez (1548-1617) fora o representante mais significativo. Autor das Disputationes metaphysicee (1971, publicadas em Salamanca, @ que tiveram dezenove edigdes entre 1597 @ 1751, Suarez aborda a uestao da relacao entre ser finito e ser Infinito, afirmando a poss ‘ambos de modo independente um do outro. Portanto, 0 probl probleme do mundo criado, da Teologia e da Filosofia Natural, podem ser tratados de forma auténoma. O ser finito 6 aquele que o poder de Deus constitui na existén- cia real. Deus 6 0 ser por esséncia; as criaturas so seres por participagao e por dependéncia de Deus. O ser das criaturas enquanto criado 6 participa¢ao ou imita- | 80 do ser de Deus e, portanto, depende de Deus essencial ¢ intrinsecamente. | Nesse sentido, a criatura é anslogia com o seu Criador. O ser das criaturas pode ser comparado 20 ser de Deus, jd que é participaco deste. A consequiéncia da posicSo de Suarez, no plano da tearia do conhecimento, é a divisio da Metafisica em partes: a Teologia Natural, a Psicologia Racional e a Cosmologia. A Metafisica é a Filosofia primeira, ou seja, a que enuncia os principios comuns de todas as cién- cias; seu objeto é o ser real e 0 seu dominio abrange todos os seres. Os Comentarios Conimbricences so elaborados paralelamente & elaboracdo da filosofia suareziana, retletindo, portanto, a problematica acima apontada e deixan- do em aberto as solucdes possivels. ? Esta posicdo faz parte de um projeto de renovacdo da Filosofia proposto pelos padres de Coimbra. A condicéo para entrentar a res filosofica é a ordenaco da vida, pois as faculdades cognitivas no funcionam bem se antes ndo tiverem, adquiride a vis moral * 0s Comentarios Conimbricenses a Moral a Nicémaco, impressos em Lisboa em 1593, foram elaborados por Manuel de Géis, que, servindo-se dos manuscritos correntes nas aulas dos jesuitas em Portugal nendes, 1675-1578) de outros comentér [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 33, mesmo no contexto da histéria cultural de Portugal, onde se pode observar a presenca de uma significativa tradicao no dominio da ratura moral. Nas ditas disputas, destacamos os seguintes t6pi- cos de natureza psicolégica: as nodes acerca da estrutura e da dinamica psicolégica do homem (vontade, intelecto e apetite sensi- ‘as nogées acerca dos estados da alma definidos como pai x6es} as relages entre as virtudes (hdbitos) © as paixées. As cegas paixdes do coragéo humano A descrigo © a definicao conceptual de emogées, tais como 0 medo, 0 amor, a tristeza, na época denominadas paixdes, sdo te- mas recorrentes na literatura jesuitica produzida no Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII. A elaboracéo de uma teoria completa acer- ce de tais fendmenos, bem como de seu controle pelo saber da Companhia, ¢ documentada pela literatura moral e pela oratéria sagrada. No século XVII, nos Sermées de Antonio Vieira, encontram-se virias referéncias as “paixes", sendo estas reconhecidas como motores do comportamento humano individual e social. 0 saber de Vieira acerca da psicologia das paixdes fundamenta-se numa longa tradicfo teolégica, médica e filoséfica, em muitos casos exp! Mente documentada e citada,° e que, de qualquer forma, jé encon- tramos nos tratados filoséficos dos mestres de Coimbra. * As fontes citadas por Vieira séo textos clissicos ou medievais, tais como @ Mica a Nicémaco @ a Retorica, de 10 de Hipona; a Suma Teoldgica de Tomas de Aquino; mas trata-se tam: le textos produzidos pela cultura humanista e renascimental, tais como 0 De Vita triplici (1475) @ a Theologia Platonica de Marsilio Ficino; 0 De Anima et Vite Uhr! Tres (1538) de Luts Vives, ontre outros. A teoria psicossomstica tomista (508 parece constitur-se no {undamento principal da visio do formulada principalmente na Suma Theologica e no © antendimento # 0 julzo, form ‘echo cltado de 16 24 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Em sermao de 1665, Vieira declara que: As paixdes do coragdo humane como as divide e numera Aristéte- les, séo onze; mas todas ellas se reduzem a duas capitaes: amor e Gai. E estes dois affectos cegos séo os dois pélos em que se resol- ve 0 mundo, por isso t80 mal governado. Elles sé0 os que déo os merecimentos, elles os que avaliam as prendes, elles os que repar- tem as fortunes. Elles sao os que enfeitam ou descompéem, elles os que fazem, ou aniquilam, elles os que pintam ou despintam os objectos, dando e tirando a seu arbitrio a cor, a figura, a medida, @ ainda 0 mesmo sere substéncia, sem outra distingao, ou julzo, que aborrecer ou amar. (1951, tomo 4, p. 111) A descrigao da fenomenologia do amor sao dedicados os Ser- mées do Mandato, pregados entre 1644 ¢ 1670 (Assis, 1995); a fenomenologia da tristeza discute-se no serm&o pregado em Sao Luts do Maranhao, em 1654 ( paixdes u mas apéia-se também na medicina hipocrética e galénica (por exem- plo, recorre a tradicional teoria dos humores" © conhecimento de si mesmo: forca poderosa sobre as préprias agdes Para Vieira, 0 estudo desses fenémenos psicolégicos situa-se no plano de um conhecimento de si mesmo instrumental @ conver- so religiosa e ao comportamento virtuoso, em vista da qual o ser mao é considerado meio privilegiado e eficaz, conforme assinala num famoso sermao ("As cinco pedras da funda de Davi em cinco , 1676 Que coisa ¢ a conversao da alma, sendo entrar um homem dentro em sie ver-se a si mesmo? Para isto, o pregador concorre com 0 espelho que é a doutrina; Deus concorre com a luz que 6 a graga; o homem concorre com os olhos que é 0 conhecimento. (1951, v. 5, p. 607) inara na medicina grega e roma x80) origina diferente 10 de um ou outro humor 1© Na visso da teoria dos humores, que se 2 diversidade na composi¢ao dos humores do corpo (com temperamentos psicolégicos, mas um excesso ou dé pode degenerar em patologias psiquicas fisices. AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 35 Por que ¢ téo importante para Vieira 0 conhecimento de si mesmo, a ponto de identificar-se com a “conversio da alma”, ou ja, com 0 efeito mais significativo do ponto de vista humano, da experiéncia religiosa? Ele mesmo responde a nossa questo: Neste mundo racional do homem, o primeiro mébil de todas as nos- sas agdes 6 0 conhecimento de nés mesmos (...). Todos comumen- te cuidam, que as obras so filhas do pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que sio filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe, € conhece a si mesmo. idem) Os comportamentos, as agées humanas, séo expressdes da Meneira com que o homem concebe e conhece a si mesmo. Em outra enunciacdo de Vieira: “o conhecimento de si mesmo, e 0 Conceito que cada um faz de si, 6 uma forga poderosa sobre as Préprias accées” (ibidem, p. 612). Observando-se o homem a si mesmo em seu agir cotidiano, 0 Que aparece aos “olhos de seu entendimento"? O fato de que o eu @um composto de duas realidades muito diversas e irredutiveis, “um composto pouco menos que quimérico, formado de duas par- ‘tes td distantes como lodo e divindade, ou quando menos um Bopro dela” (ibidem, p. 612). Se reduzissemos o ser humano a uma 0U outra parte desse composto, haveria duas “vias” para 0 conhe- ‘tlmento de si: 0 conhecer-se a si mesmo “pela parte inferior e terre- na", pelo qual o homem produz um “conceito muito baixo de si”, Gentrado no reconhecimento da prépria fragilidade e de seu destino de corrupcdo; ou, por outro lado, 0 conhecimento “pela parte su- perior @ tdo alta", pelo qual o homem pode ensoberbecer-se, esti- Mando-se igual a Deus. Qual seré ent&o o verdadeiro conhecimento de si mesmo? Responde Vieir: igo que 6 conhecer-se e persuadir-se cada um, Que ele 6 a sua alma” (ibidem, p. 613). A alma é para o ser humano melhor espelho de si mesmo. Considerar apenas a parte corporal do homem significa reduzi-lo 4 mera dimensdo animal. Proclama ira: “eu sou a minha alma” e, portanto, “quem se conhece pela Parte do corpo ignora-se, e s6 quem se conhece pela parte da alma # conhece” (ibidem). Mi nifica dizer que “o homem é€ a sua alma” e que Re rdedeiro conhecimento de si mesmo 6 o conhecimento da a"? E 0 que #8 entende por “alma” na concep¢éo de Vieira? 36 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Ele mesmo explica as razdes de suas afirmacées, razdes estas fundadas na teologia aristotélico-tomista: a esséncia de cada ser ~ argumenta Vieira - corresponde ao que ele tem de peculiar com relag&o aos outros seres. No caso do homem, a alma é “o que 0 distingue e enobrece sobre todas as criaturas da Terra” (ibidem, p. 614). Ademais, 0 corpo humano nao especifica o ser do homem, sendo substanciaimente semelhante ao dos demais animais: “quem vé 0 corpo, vé um animal; quem vé a alma, vé ao homem” (p. 615). Com efeito, 0 corpo humano, assim como 0 animal, é uma realidade| corruptivel, mas hd no eu do homem algo que no morre: “soi alma, porque o fui, porque o hei-de-ser-porque sou” (p. 620) Nao se trata, porém, de uma antropologia dualista de sabor platonico, em que o corpo seria considerado uma sorte de pris&o da alma: 0 corpo é parte do homem, e nao sua prisdo, conforme Plato} acreditara. Todavia, para que haja verdadeiro conhecimento de mesmo, 6 preciso que 0 homem assuma como ponto de parti © que peculiarmente caracteriza-o, diferenciando-o do resto d universo. © método para alcangar o saber acerca desse objeto no 6 mesmo utilizado para 0 conhecimento da realidade natural ~ do que a ciéncia natural proporciona. Com efeito, trata-se de outr ordem de conhecimento, que se refere a realidade moral. Vieira nai pretende entéo negar no plano ontoldgico a natureza corpors de homem, mas quer em primeiro lugar afirmar que sua dimenso prof priamente psicolégica (que compreende as paixdes a os apetite: ‘tegra-se a dimensdo especificamente espiritual (0 que ele d como “homem moral"). Vieira quer colocar, portanto, um problema no ambito do nhecimento. Para compreender o ser do homem, é preciso consid rar a experiéncia humana em sua totalidade. Além disso, para c nhecer de modo verdadeiro cada uma das dimensées da experié cia humana, é preciso assumir como ponto de partida o que ha mais substancial. A razao deve realizar uma operagao semelhar aquela que os fenomendlogos chamariam de “redu¢ao fenomenol gica”: ao considerar a prépria experiéncia, 6 preciso “separar” “colocar entre parénteses” a vivéncia corporal para apreender esséncia da vida pessoal, que 6 o que ele chama de “alma”. verdadeiro conhecimento psicolégico brota entdo do a mirmos esta visada: no de uma autonomizago do campo do pi coldgico, mas, pelo contrério, de uma sua considerago do pon AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS a7 de vista de uma ordem superior da experiéncia humana, que é a ordem do espiritual. Para atingir essa perspectiva & preciso “seit” distanciar-se do que de imediato aparece como o ser do homem, Quando @ nossa subjetividade se espelha numa alteridade eo nosso 0u se depara com 0 Outro, entéio comecamos a adquirir o verdadel. fo conhecimento de nés mesmos. E por isso que “a boca do prega- dor’, semelhante @ "boce de Deus”, 6 o instrument com que a Graca “forma” os homens. E até por isso que, em varios de seus Sermées, Vieira define os pregadores como “médicos das almas”."! ra no pretende com isso afirmar a impossibilidade do izar um conhecimento da personalidade humana do ponto de ‘2 especificamente psicolégico, e de fato declara: “Nao digo que Ima se nao conhece naturaimente nesta vida, mas quando se Sonhece naturalmente, também como Deus pelos seus efeitos” Uibidem). Em plena consonancia com a doutrina tomista — Visira Atirma, assim, que conhecemos a alma pelos seus efeitos, ou seja, delas suas fun¢des psicolégicas, ou faculdades que se evidenciam 1 plano dos fenémenos. Trata-se entéo do que na perspectiva ‘omista define-se como “Psicologia empitica”, que complementa o Jenhecimento metatisico préprio da alma da “Psicologia racional”, Conhecer a alma “em seu préprio ser e substancia” 56 é pos. vel, porém, através do encontro com Deus. O “espelho perfeito” vara’ homem conhecer-se a si mesmo 6 a prépria “face de Deus” lbldem, p. 625). E a razdo disso ¢ inerente a natureza da alma: "a pea its Principals dimensdes da espirtuslidade da Companhia e de sua forma- #88 no conhecimento de si mesmo e ao didlogo interpessosl visando ® rior (vide, por exemplo, o discernimento dos expresses de uma atenedo toda moderna pata com lindo desi mesmo, que se consttiam em norms do vide nidods geek > Ambito da Companhia). Esses recursos préticos eram aplicados a vida do inclvt, 4, nando porém funcionais ao bem-estar do grupo ¢ destinados tavorecer lantacdo aos diversos contextos de atuacio missionéria. Neles se canalizam cone meric @ recetas pris proris de toda atradiko elssien« meviova, \tadamente dequela érea que se denominara de Medicine do tadane q inara de Medicine do animo (vide Nota 2 bolo dessa producto, o8 jesultas insere 2, 08 jesultas inserem-se de imedisto, sendo que desde suas ne & Companhia preacupe-se om damonsier« importncis We sve hreees agdaice para os indivicuos # para a sociedede civil. Em varios sermoes, Vi tradigl: Sarméo de Santa iri, Sermo da Glorficar&o , Serméo acho de Franolece Xavier dormindo, Terceiro ts Poe ines, entre outros, Seemto cn Quarts 28 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS raz8o 6 porque como a alma é uma imagem perfeitissima de Deus, 86 & vista do original se pode conhecer perfeitamente a copia” (p. 625) Fica claro entdo 0 motivo por que, na perspectiva de Vieira, conhecimento de si e conversao coincidam: conhecer-se a si mes- mo significa poder viver em conformidade com o préprio ser, esta conformidade sendo possfvel pela participacao do Ser criador, Ser de Deus.'? “Estou eu imaginando todas as almas dos homens uma.. Numa perspectiva jé voltada para a atuaco no campo social da Col6nia, a correspondéncia epistolar e a literatura de viagem elaborada pelos jesuitas ao longo de sua presenca missionéria no Brasil, do século XVI ao século XVINI, constituem-se numa fonte importantissima de transmisséo de idéias psicolégicas acerca de mesmo e do outro. O conhecimento do indio, adquirido pelos mis- sionérios jesuitas através da convivéncia cotidiana com eles, nor- teada pelo objetivo da evangelizacao, transmitido e difundido por meio da correspondéncia epistolar, ¢ sucessivamente organizado em tratados ¢ informes. Nesses documentos, 0 conhecimento psi-, cossocial adquirido pela exper eta é filtrado pelo crivo da, vis8o antropolégica da teologia catélica da época, especialmente] da visdo elaborada pelos tedlogos da Companhia em Coimbra e em Roma. As proposicdes dessa teologia, comparadas com os resulta- dos concretos da a¢ao evangelizadora, nao definem um modelo} univoco; contradigées, dtividas, revises estdo presentes, porém, na representacéo que o pensamento jesuita constréi acerca do| indio e do mundo social deste. Um exemplo da modalidade pela qual o conhecimento do in- dio vern sendo construido pelos missionérios & 0 “Didlogo do Padre Nobrega sobre a conversio do gentio” (Nébrega, 1988). Nesse tex- to, Nébrega utiliza a figura retérica do diélogo, comum na cultura "2 0 fildsofo josuita Francisco Suarez (1648-1617), em suas Disputationes Mete physica (1597), define Deus como o ser por esséncia e as criaturas como seres| or participacdo e por dependéncia de Deus. 0 ser das criatura enquanto criado & do ser de Deus 6, portanto, depende de Deus essencial @ 98 com 0 weu Criedor. ‘AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUCKO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 39 da época, para descrever duas visdes acerca do indio, existentes na Companhia, contraditérias entre si. A primeira 6 expressa pela per- Sonagem do irm&o Goncalo Alves, pregador nas aldeias indigenas, @ outra pela pessoa de seu interlocutor, o irmao Matheus Nogueira, ferreiro de oficio. Gongalo esta “tentado” (p. 229) a pensar que a conversao dos indios ao cristianismo soja de fato impossivel, mas Nogueira refuta esta posicao valendo-se de uma afirmacao doutri- néria de cardter universal (...) estou eu imaginando todes as almas dos homens uma, nos serem umas e todas de um metal feitas & imagem e semelhanca de Deus, @ todas capazes de gloria e criadas para ella, e tanto val diente de Deus por naturaleza a alma do Papa, como a alma do vosso escravo Papana. (\bidem, p. 237) Assumindo esse enunciado como ponto de partida, Nogueira aplica-o a0 caso dos indios, para comprovar que estes também tém Ima. A verificac&o de tal afirmacao é feita baseando-se no dado de Observacdo de que eles possuem todas as “poténcias” atribuidas Pelos filésofos a alma, a saber “entendimento, meméria e vontade” \ibidem, p. 237). Desse modo, a demonstragéo da “humanidade” do indio feita com base no conhecimento de suas caracteristicas Paicolégicas. Para Nogueira, a inferioridade cultural dos povos indigenas @m relacao a outras nacdes nao é devida a uma diversidade quanto # sua estrutura psicoldgica (por exemplo, uma pressuposta inferio- tidade intelectual), mas sim & educacio. O aspecto particularmente significativo desse enunciado, inspirado na pedagogia humanista, é 0 fato de que ele é comprovado pelo conhecimento por experiéncia direta do indio: “e bem creio que vés o vereis claro pois trataes com tiles, @ védes, que nas cousas de seu mestre, e em que elles tra- tam, tém to boas subtilezas, e to boas invengées e téo discretas palavras, como todos” (ibidem). A conclusao do raciocinio 6, entio, 4 afirmagao de que a personalidade humana e o desenvolvimento do suas potencialidades dependem do proceso educacional No que diz respeito ao objetivo especifico de nossa andlise, 6 interessante observar que a “criagao” de uma “psicologia” do indio 4 esbocada, nesse texto, para corroborar a tese acerca da sua hu- }@ que por sua vez justifica a ago evangelizadora dos teligiosos junto a ele, Essa “psicologia” 6 baseada, por um lado, em observacdes derivadas do conhecimento direto dos povos indige: ‘Nas @, por outro, é eonstrulda nos moldes do modelo cultural euro- “0 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS peu da época - a saber, a filosofia aristotélica-tomista e o humanis- mo pedagégico -, doutrinas essas que, como vimos, permeavam 0 espirito da formagao jesultica, Outros autores jesuitas - tais como José de Anchieta e Fer- no Cardim - constroem em seus escritos idéias psicolégicas acer- ca dos indios brasileiros, conforme assinalamos em varios trabalhos (Massimi, 1990). A leitura atenta desses escritos evidencia que a convivéncia entre os jesuftas e os indios, ao longo do tempo, reve- lando a diversidade cultural e social dos homens dos Novos Mun- dos, derrubou aos poucos os modelos culturais tradicionais inicial mente utilizados pelos missionérios para explicar 0s comportamen- ‘tos dos nativos brasileiros, impondo-lhes @ necessidade de uma observaciio e de uma aprendizagem de significagGes e valores alheios. (Massimi et alii, 1997) “A creanga disposta para se formarem nella quaesquer imagens” Accrenga na possibilidade de 0 homem “fazer-se a si mesmo” caracteristica do Humanismo e do Renascimento, colocando a én- fase na possibilidade de ser humano ser plasmado através da educaco, encontra nos Novos Mundos recém-descobertos o gran- de laboratério de sua realizacao. O trabalho desenvolvido pelos mis- sionérios da Companhia de Jesus, visando a criagdo de escolas para a formagao de criancas indigenas e mesti¢as no Brasil colo- "9 enquadra-se nesse contexto: no projeto missionério da Com- panhia, através da educacao seré vidvel a transformacao do ho- mem, da cultura e da sociedade. E o que declara Manuel da Nobre- ga no jé citado texto “Didlogo sobre a conversao do gentio”, quan- do, na conversa imaginada por Nébrega entre os dois jesultas, numa certa passagem em que se compara a “rudeza” dos indios a civiliza- Sao ("policia”) dos povos pagaos da Antiguidade, um dos interlocu- tores afirma que 0 fato de “terem os romanos e outros gentios mais "No Brasil, @ atuago dos jesultas no campo educacional concretiza-se na cri ‘¢80 de “Escolas de ler e escrever", para as criangas indigenas, e de Colégios ~ dentre os quais destaca-se 0 Colégio dos Meninos de Jesus, ne Bahia, fundado por Manuel da Nébrega, em 1660, como uma tentative de integragBo entre aa criangas Indigenaa @ of filhoa de portugueses e mesticos. [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 41 policia, que estes, no Ihes veio de terem naturalmente melhor en- tendimento, mas de terem melhor criago, ¢ criarem-se mais pol camente” (1988, p. 240). De modo semelhante, declarava José de Anchieta numa sua carta: “os filhos dos indios criados nisto ficardo firmes cristéos, porque é gente que por costume e criacao com sujeicio fardo dela © que quiserem” (carta de 1557, ed. 1988, p. 159). ‘O homem em sua origem é, portanto, uma tabula rasa, eo seu desenvolvimento 6 um processo em que esta tabula poderé ser preenchida, dependendo do projeto de homem e de sociedade que jeré proposto e eventualmente imposto. ‘A apresentagdo clara desse pensamento pode ser encontrada nos textos escritos j4 no século XVII por um jesuita brasileiro, padre Alexandre de Gusmao (1629-1725), pedagogo e literato, fundador do Colégio de Belém, em Salvador da Bahia, autor entre outros do tratedo A arte de crear bem os filhos na idade da puericia (1685a) ¢ da novela Histéria de Predestinado Peregrino e de seu irméo Precito (16856) Construido conforme 0 modelo dos tratados humanistas ¢ re- Rascentistas, A arte de crear bem os filhos abarca as varias dimen- da pedagogia. O objetivo do livro (de 387 paginas) é colocado Id no Proémio: a formagao de um “perfeito minino, para que nos @nnos da Adolescencia chegue a ser hum perfeito mancebo" (1685a, |, Ao definir a “puericia” (infancia) como 0 perlodo da existéncia yumana em que “a creanca (...) de sy nam tem acgam racional e, viver, necesita do alheio socorro” (p. 170), Gusmao, reto- do Aristételes, Tomas @ os humanistas, apresenta uma visdo erlanga como tabua rasa, “disposta para se formarem nella qua- (@aquer imagens” (p. 4). Encara assim a educagao como um recurso fundamental para o desenvolvimento infantil e para a formacao do homem enquanto tal: “Conforme for a primeira doutrina, conforme primeira educagam, que deres a vossos filhos, podereis conhecer, que ham de vir a ser " (p. 2). De modo que Gusmao exorta os @ducadores @ no desanimar ante a incapacidade de “lavrar” o me- Aino: nfo se deve atribuir as causas da ineficdcia 8 personalidad mas ocorre recorrer aos “politicos previstos nesta matérie 138). Com efeit Nenhu minino ha de tam ruim condigem, que nam posse ser corre- Givel @ domesticavel, {....). Nam devem o8 pays desamparer aos ‘Mhow, que sentiram de mds condigoens, descontiendo de fazer nel- 42 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS: Jes frutos, porque nenhum pode ser de tam mao natural, que doutri- nado, e domado, nam possa ser de proveito, por meio da boa crea- gam. {Ibidem, pp. 138-139) A responsabilidad pelo processo de aprendizagem da crianca depende entéo dos pais e dos educadores, comparados aos agricul- tores que lancam as primeiras sementes da doutrina na terra, que s&0 os nimos infantis, ou a pintores que pintam o painel em bran- 60, ou a escultores que dao forma a pedra. Um aspecto especialmente inovador da posic&o de Gusmao refere-se & questo da instrugao feminina. Diante do preconceito difundido na mentalidade da época sobre a inferioridade intelectual da mulher, dectar Pode vir em questam, se he conveniente, que as filhas aprendam as artes liberaes desde mininas, assim como he certo dos filhos mini- nos. Ao que respondo que nam sé he convenviente, mas grande gloria para 0 sexo feminino. \lbidem, p. 383) Cuidados com o desenvolvimento psicolégico so propostos junto com cuidados com o desenvolvimento moral: jé vimos que esta abordagem, tdo diferente da nossa, & porém prépria da tradi- ¢40 que fundamenta a cultura do século XVII. A integragao da mensdo psicolégica no conjunto das demais dimensées do ser hu- mano, inclusive a ética, caracteriza a concep¢do de homem e da Psicologia prépria desta tradigao, num continuo que desde o mundo Classico estende-se até ao século XIX (pois ¢ somente entao que cada uma dessas dimensées que compdem a Antropologia tornar- se-Go autonomas umas das outras, constituindo-se até mesmo em 4reas de conhecimento independentes). Alguns temas do tratado parecem-nos especialmente relevan- tes na perspectiva da hist6ria das idéias psicolégicas: em primeiro lugar, defesa da “importancia da boa creacam dos Mininos”, con- forme reza 0 titulo do primeiro capitulo do tratado. Citando uma afirmagao de Aristételes em Etica a Nicémaco (texto base do aristo- telismo renascentista), Gusmao afirma desde logo que “todo o bem dos mininos depende de sua boa creagam" a humanista dos séculos XV @ XVI. Conforme assinale Casalrer (1977), a tamous [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NA PRODUGAO CULTURAL DA COMPANHIA DE JESUS 43, © método de argumentacao por ele utilizado para sustentar suas posigdes entrelaca as doutrinas dos antigos e as experiéncias dos modernos. E interessante ver como a experiéncia adquirida pela Companhia nos seus dois séculos de vida é citada em numerosos ‘exemplos. Nao se trata, entdo, da apresentacao de uma mera teoria pedagdgica, mas da discussdo de resultados adquiridos através da experién A construgao do conhecimento acerca da crianga que Alexan- dre de Gusmao propée é realizada com base em métodos e doutri- nas prdprias da tradi¢ao ocidental: vimos, por exemplo, a utilizagao , método proprio da teologia catdlica desde a Idade Média (Hansen, 1986), bem como 0 recurso a conhecimentos filoséficos, Médicos e teoldgicos antigos, mas geralmente considerados ainda jos na 6poca em que Gusméo escreve, tais como, por exemplo, ia dos humores. Ao mesmo tempo, porém, sua peda- GogI2 é baseada em dados derivados do presente, sobretudo da @xperiencia pedagégica da Companhia de Jesus. Além do mais, abe aqui observar que a escolha das analogias utilizadas no discur- #0 de Gusmao parece ter sido feita segundo imagens derivadas da fetlidade quotidiana peculiar ao contexto brasileiro da época, de modo que seu uso tornava imediatamente compreensiveis para os {tores os conceitos propostos: assim, por exemplo, Gusmao se re a0 trabalho de lavrar o ouro, os metais ou as pedras precio- 18, 80 cultivo da terra, ao som da viola, a0 mundo dos animais. ‘A novela alegérica Histéria do Predestinado Peregrino e seu Jo Precito, do mesmo Alexandre de Gusmao, publicada em Evo- ‘¢m 1685, uma parabola destinada a evidenciar a importancia @duca¢ao no que diz respeito a escolha do projeto de vid: (Silva e Massimi, 1997). De fato, Predestinado e Precito so ItmBos, cada um deles escolhendo o préprio caminho, um em Irecfo do Bem (simbolizado de forma alegérica pela cidade de tte hominis dignitate, de Pico della Mirandola, invertera o sentido tradicional nidade humana no residiré mais no ser, no lugar rego de contrério, o ser do homem nasce de seu fazer. Jem anjo, nem demdnio, nem celeste, nem terreno” la mesmo escolhe 2 mesmo" yminho de formacBo; pel ‘modo, o homem crlado ym, paratt 3, v. 2). 48 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Jerusalém), outro para o Mal (a cidade de Babildnia). A determinagao do rumo a seguir e da meta a ser alcangada depende da “compa- nhia” escolhida (Predestinado escolheu por esposa a razo; Precito, a prépria vontade), mas também da Escola (o primeiro freqientou a “Escola da Verdade” e o segundo, a “Escola da Mentira”). © tema da existéncia humana como “peregrinacao”, heranca medieval que, como veremos no préximo capitulo, 6 amplamente retomada pelo Barroco luso-brasileiro, expressa a concepcao dina- mica do ser humano, que caracteriza a pedagogia de Gusméo: inse- rido na histéria e influenciado pelas circunsténcias, o homem é um ser em movimento. Sua personalidade é construlda por escolhas de tipo ético, realizadas continuamente ao longo do tempo (nas vérias fases do “percurso”): nesse sentido, a psicologia jesuftica nunca independe da moral. E esta, de fato, a qualidade de sua matriz aristotélico-tomista Desse modo, 0 ideal humanista do desenvolvimento como abertura as infinitas possibilidades do ser e da confianca na educa- 980, entendida como o processo através do qual essas possibilida- des convergem na escolha e na construgao eficaz de um certa mo- dalidade de ser homem, chegara ao Brasil por influéncia da Compa- nhia de Jesus e de seus pedagogos. £ assim que, algumas décadas apés a publicacao do tratado de Gusmao, Manoel de Andrade Fi- gueiredo, natural do Espirito Santo e ex-aluno do Colégio da Com- Panhia de Jesus, caligrafo da corte de Lisboa, escrevera em seu ro Nova escola para aprender a ler, escrever @ contar (1722), oferecido ao rei de Portugal Dom Joao V: “A boa doutrina emenda a mé natureza” (p. 2). Referéncias bibliograficas ANCHIETA, J. (1988). Cartas, informagées, fragmentos histéricos e Sermées. Belo Horizonte, Editrici; Séo Paulo, Edusp/tatiaia, ARISTOTELES (1993). Rethorique. 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Devido as condi¢des impostas pela politica cultural da Metrépole, a Inexisténcia de Universidade e de escolas de terceiro grau no ter t6rio nacional levara jovens brasileiros membros de familias mais abastecidas a realizar seus estudos no exterior, sobretudo nas Uni- versidades de Coimbra, Paris e Montpellier. Uma das conseqiién- cles mais graves desse éxodo foi a impossibilidade de se conseguir modalidades de formagao do intelectual integradas as condigdes e peculiaridades da realidade nacional; além do mais, tal situagao estimulou a tendéncia ao individualismo dos pensadores. A formagao cultural conseguida como autodidatas foi 0 ca ‘ho encontrado por varios brasi 2ar seus estudos num contexto totalmente hostil e marcado pela dosigualdade social. Esses pensadores afirmavam a dignidade cul sta que se evidencia claramente em seus escritos. Citaremos, a seguir, alguns exemplos. lano Joaquim de Souza Nunes (1734-1808), nativo do remos 8 seguir, 50 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Com que razio se poderé negar que ndo seja Fildsofo, e bom Filéso- fo, aquele a quem Deus tiver participado um entendimento perspi caz, ainda que no tenha a minima luz das platdnicas e aristotélicas ciéncias? (...) Como se define a Filosofia? Nao é a sua definicgo um conhecimento das cousas assim como séo? E sem divida que sim. Logo, concluamos, se este conhecimento pode ter um homem de bom discurso e claro entendimento, ainda que no tenha cursado as aulas, claro esté que, sem a aprender, se pode saber Filosofia. (1831, pp.29-30) E, noutro trabalho manuscrito, a Politica Brasilica (1781), de- clara solenemente, reafirmando sua dignidade ante os detratores, que a capacidade intelectual é um dom da natureza humana e néo fruto de circunstancias econémicas, sociais e politicas favordveis: no vivo to pobre, como eles cuidam; porque ainda conservo, ‘0 mais precioso que tive: que se no estado de mendigo me puseram ‘os homens, estes s6 podem fazer o que podem, e nunca podem tanto, quanto querem; a sua jurisdicdo néo passa do caduco; e o entendimento & poténcia da alma, que, por ser imortal, pertence ao foro Eterno, e deste, s6 Deus é juiz, e Senhor Supremo. (Fl. 10) Um autor brasileiro do século XVIII, 0 paulista Matias Aires Ramos da Silva de Eca (1705-1770), no Prélogo de sua obra mais portante - Reflexdes acerca da vaidade dos homens (1752) ~, comenta tristemente: “as letras parece que tém mais fortuna quan- do esto separadas do lugar em que nasceram Em Matias Aires, evidencia-se também a atitude individualista que assinalamos em Souza Nunes. No Prélogo da obra, por exem- plo, 0 autor declara: “Escrevi das vaidades mais para instrugo mi nha que para doutrina dos outros, mais para distinguir as minhas paixdes que para que os outros distingam as suas” (1993, p. 8) Se os textos produzidos pelos autores jesultas propunham-se a ensinar, corrigit, aconselhar, oferecer regras de vérias naturezas aplicdveis universalmente, as Reflexdes, de Matias Aires, pelo con- trario, tem como objetivo a observacao da experiéncia individual, colocada como ponto de partida, horizonte e termo de juizo, mes- mo da reali jualismo caracteristico da posi ‘g80 de vérios pensadores latino-americanos do século XVIII é, pos- mente, fruto da desintegraggo da visao social ampla do século XVI (Morse, 1996). ‘AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS XVII E x 5 A condi¢ao de disperséo e isolamento dos pensadores brasi- leiros acarreta a inexisténcia de escolas ou de movimentos culturais articulados, a diferenca do caso jé citado da Companhia de Jesus. Portanto, as idéias psicoldgicas emergentes nesse contexto foram Por nds reagrupadas sob alguns tdpicos, os quais emergem com uma certa constancia e que nos parecem representativos daquela visio do mundo genericamente denominada como Barroco brasileiro. Apesar de alguns autores discordarem acerca da legitimidade do uso desse termo, tradicionalmente usado pela historia cultural (en- tre outros, vide Hansen, 1997), utilizamo-lo no presente texto ape- nas como uma categoria sintética dos diversos aspectos da visao de mundo préprios do periodo entre o século XVII e 0 século XVI No contexto latino-americano (Morse, 1995; Maraval, 1997), “A vida de um homem neste mundo ‘no 6 mais que uma mera peregrinacéo” © tema da existéncia humana como transformagao, mudan- $8, movimento, caracteriza, conforme acenamos (vide Cap. P. 44), a concepgao antropoldgica dos séculos XVII e XVIII. A vida 6 concebida como fluxo constante de partes as vezes antag6nicas: a beleza faz pressentir a decadéncia, a alegria contém em si o ger- me da tristeza, hd “firmeza na inconstancia”, parafraseando um Poema de Gregério de Matos (Moscheta e Massimi, 2000). A énfase na mobilidade do homem da experiéncia humana, ue carateriza esse periodo, remete-nos por sua vez a imagem do ‘homo viator tormulada pela tradi¢éo medieval e que, como vimos, encontrara sua continuidade no Brasil na producao cultural do jesut. ta Alexandre de Gusmao. A metéfora do peregrino, proposta pelo jesuita Gusmao, é retomada por outro escritor atuante no Brasil no século XVIII: Nuno Marques Pereira, autor do Compéndio Narrativo do Peregrine de América, editado em 1728, em Coimbra, e sucessivamente reedita- do em 1731, 1760 e 1765 (Assis e Massimi, 1995). O objeto da obra 4 8 peregrina¢aio do protagonista, desta vez num contexto teal: a terras bre ‘num percurso que, de Salvador, passa por 16 terres da mineraco @ termina em Pernambu- }@ modo, @ obra 4 algo intermediério entre o género da HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS jeratura de viagem e a alegoria. A narracdo segue o modelo huma- nista do didlogo entre o Peregrine e 0 Anciéo, que é simbolo do tempo. O conceito do ser humano 6 retirado por Nuno da tradi¢éo lassica e medieval: inspirando-se na teoria hipocratico-galénica dos temperamentos, o homem é considerado um composto de: (...) quatro humores, produto da composicdo dos quatro elementos, de que necessita a criatura vivente para se conservar, que foram: terra, agua, ar e fogo; dando a terra a matéria de que foi criado; 2 4gua, para a composicao da massa; o ar, o refrigério para respirar; 0 fogo, para o calor natural. (Pereira, 1939, v. 1, p. 95) Os excessos de um desses humores na composicao psicosso- mética do individuo determinam as “enfermidades”, entre elas a tristeza. Se essa doutrina pertence a um corpo conceptual vindo dos cléssicos gregos e latinos, tendo sido enriquecido pela Idade Media e pelo Renascimento, parece-nos todavia expressivo da men- talidade contempordnea do autor o enfoque acerca da mutabilida- de, da instabilidade da vida Se bem reparamos que cousa é a vida de um homem neste mundo, acharemos que no 6 mais que uma mera peregrinacao: que vso caminhando com toda pressa para a eternidade, desde 0 inferior até © superior, tanto que chegam a ter uso da razdo: jé andando, jé navegando, jé apetecendo gldrias até possui-las, e na mesma posse temendo perdé-las. {Ibidem, p. 22) Essa afirmacao acarreta também a consciéncia de uma certa relatividade de valores e fatos humanos: © Peregrino vai por onde hé de achar cada dia novos costumes, ¢ os dove seguir e aprovar; © nao repreendé-los; pois 6 mais razdo aco- ‘a0 uso da terra, que pertencer, e querer aos mais a0 cos- ar. E peregrinendo assim, se qu ibidem, p. 23) AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS xVM E xvIN 63 to pur. afeltos por enaep Quando vem de longe: sempre traz misturas dos , toma mistur favorével" (i @S Cores que he parece, jé odiada, j4 “A cada passo se contradi “ 0 izem os homens”: @ mutabilidade e a variedade da experiéncia humana : ero nese semelhante encontra-se no texto manuscrito do bra- ‘eliciano Joa ic 3 nye eae rete 'quim de Souza Nunes, Politica Brazilica @voca outra obra mais famosa: ic ie Solorzano Pereira (1 vo este hep balina no que tivo do livro de 2 Fealidade, 0 abje- colonizagao portuguesa O manuscrito constit 3 sion nae dens a aha ers ste 8 distinguem; a sabed € a primeira e melhor riqueza; vances ’o pode a prudéncia faz a acba £8 proterdo € mui ditfcil ser verturoso: a home enime Troe engtl26 26°85, 08 tous escritos te dardo.a canhecen ree ior tesouro; a elogii : ber; como deves escrever para deletar, mavens oer esett® 0 Alta, ouve » verds o que néo vés; na resig de que de: entre outros, A Gor epectiva proposte por Nunes parece marcade pelos dita Ice peasimista om que a visbo aristotélice @ contr 64 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS: reformista ¢ reinterpretatada numa tonica estéica e um tanto fata- lista: do ponto de vista social, por exemplo, o ideal é realizar a prépria tarefa, permanecendo cada um no lugar do corpo social que Ihe foi atribuido pela Providéncia Divina. Trata-se, em suma, de se submeter & imutavel ordem hierérquica das coisas: Examina a tua inclinagao: acomoda-the os teus exercicios. Nao quei- ras ser menos, pela ambic&o de querer ser mais; que é melhor que sejas eminente em um exercicio honesto, que buscares o mais ilus- tre, para te fazeres indigno. (Fl. 92) Ou, em outro trecho: “Quem ndo quer mais do que tem, logra tudo 0 que desoja” (fl. 83). a prudéncia — virtude por exceléncia no enfoque aris- ista — no garante a felicidade, pois “no esté na tua mBo evitar as desgracas” (fl. 83), mas “a conformidade tem mais poder, para fazer ditoso o desgracado, do que a prudéncia, para o constituir venturoso” (ibidem). Nao vale a posse das virtudes por elas mesmas, se néo forem acompanhadas pelos “teus rendimen- tos” Uteis a sociedade. Da mesma forma, a nogao da estreita correspondéncia entre higiene moral e higiene fisica, propria da teoria aristotélica e da teoria dos temperamentos, é rejeitada: Persuade o discurso, que a conservacao da saiide pende da boa regulacdo dos costumes: porém vé como acaba aquele paralitico, ainda que bem morigerado: vé como vive este robusto, no obstan- te a sua intemperancal (...) Nao hé prudéncia que possa fazer certo © contingente. (Fis. 85-86) Ao descrever a situaco do Brasil, Nunes propde uma viséo de mundo e da sociedade marcada pelo pessimismo: A cada passo se contradizem os homens: e se hoje desprezam 0 que estimaro ontem; amanha estimardo 0 que desprezarem hoje. Cada mudanga da fortuna é uma variedade do discurso (...). He o mundo ‘em que todos representam o seu papel: ¢ no é muito que cada um pareca o que néo é, e que em nenhuma cena im como no caso dos d © posiolo de Nunes remete a ums concepolo a ual AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS X\ 58 ressaltam-se a mudanga, a vi lade, os aspectos contraditérios da condi¢do humana e a conseqilente instabilidade da vida social segundo Richard Morse (1995), expressées todas da crise do ideal ibérico de incorporagéo social e de universalismo, proposto pelo movimento da Segunda Escoléstica ibérica do século XVI e dissolvi do pela prepotente afirmacao do absolutismo politico. Desse abso- lutismo, o préprio Feliciano foi vitima. Com efeito, uma das obras mais importantes de Feliciano -~ os Discursos politicos-morais (1758) ~ foi proibida pela Inquisigéo pombalina por conter “doutri nas anarquistas”; devido a este veredicto, foram queimadas todas as COpias impressas do tratado. E interessante observar que, dentre as teorias anarquistas censuradas, havia a refutagéo da crenga na inferioridade mental das mulheres em relacao aos homens ~ naquela época muito difun- dida_e que até mesmo justificava a excluséo da populagao feminina das escolas do Reino e da Colénia. E possi- vel, entéo, que a Politica Brasilica (1781) fosse a ocasiao para Nunes ganhar novamente as gragas do poderoso primeiro-ministro portugues... Hé tons autobiogréficos nas observagées de Nunes acerca do fato de que a vida do individuo ~ assim como o mundo e a socieda- de - 6 submetida & condig&o de debilidade e de instabilidade: 2 racionalidade nao o faz menos fragile inconstante... Principia a viver, © @ morrer; porque assim que nasce, comeca o tempo de acabar. Se isto sucede a respeito da vida, que hé de suceder a Tespeito das honras? Recebe as ditas, como os navegantes a bonanca. Supée-nas sempre contingentes. (Fl. 69b) conhecimento humano € também marcado pela experiéncia do limite: A cléncia 6 vasta e limitada a capacidade humana. Nao faltam ho- mens que sabem muito; porém nem todos juntos sabem tudo. (...) Os nossos préprios olhos nos oferecem 0 maior desengano: quando ‘vemos umas coisas, ndo podemos ver outras; e ainda aquelas para que olhamos mais atentos, uns as véem melhor do que outros. (Fi 11) 86 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS A vaidade domina o “teatro do mundo” Anéloga percep¢do da existéncia humana é formulada pelo autor paulista Matias Aires Ramos da Silva de E¢a, em sua obra Reflexdo sobre a vaidade dos homens: "A cada passo que damos, no discurso da vida, se nos oferece um teatro novo, composto de representacSes diversas as quais sucessivamente vo sendo obje- tos da nossa atengéo e da nossa vaidade” (1752, p. 37) A vaidade nasce quando 0 homem fixa sua atengdo numa dessas “cenas” do “teatro do mundo”, como se fosse a definitiva e possulsse uma realidade ultima. A imagem do “teatro” é caracteris- tica da cultura do Barroco, que, conforme argumenta G. Bazin, ten- de “a transformar a existéncia, sob o olhar da inteligéncia, numa representacao; para o homem deste tempo, tudo é espetdculo, e antes de mais nada, a sua prépria vida” (apud Aratijo, 1998, p. 16) Outra metéfora do mundo utilizada pelo autor 6 a de um con- certo, uma grande polifonia em que tudo é submetido a mudanga e inconstancia, pois “estamos no mundo para ser alvos do tempo” Ibidem, p. 88). A sociedade dos homens forma um concerto de infinitas vozes, ¢ de infinita diversidade. Todos choram, e todos cantam; a vaidade a todos dé por que cantem, e por que chorem; todos entram como partes principais; ninguém fica destinado somente para ouvir e ver: enquanto dura agao (isto é, a vida), todos falam, depois todos emu- decem; a estétua que a vaidade enchia de ardor, e movimento, de- pois fica imével e insensivel; 0 mesmo homem, que atrafa tudo a si, depois tudo faz fugir de si: que notavel diferencal (1998, p. 92) Contrariamente ao que acontece no caso dos outros afetos peixdes"), a vaidade nao é uma paixéio do corpo e, portanto, inde- pende da composicéo humoral somatica, mas deriva do “discurso” @ do “entendimento” (ibidem, p. 15). Ela é uma espécie de “delirio”, pols “tudo no mundo s8o sombras, que passam, e 0 desejo nos finge mil objetos imortais, nas cousas é transito 0 que nos parece Permanéncia” (ibidem, pp. 34-35 A vaidade produz um conflito no ev do homem: a0 mesmo tempo em que o julzo reconhece e denuncia os delirios da veldede, #8 vontade segue-os: [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS XVII E XVII ‘7 ‘Todos nés conhecemos os delirios, a que a vaidade nos incita, mas. em por isso deixamos de os seguir. Parece que cada um de nds tem duas vontades sempre opostas entre si; ao mesmo tempo, con- denamos @ aprovamos; ao mesmo tempo, buscamos e fugimos; ‘amamos e aborrecemos. (Ibidem, p. 82) A vaidade aponta assim para a fragilidade e a limitagéo da propria razéo humana, incapaz de atingir a verdade por estar presa a dinamica das paixées: \Vemos as cousas pelo modo com que as podemos ver, isto 6, con- fusamente, e por isso quase sempre as verios como elas no sao. As paixdes formam dentro de nés um intricato labirinto, e neste se perde o verdadeiro ser das cousas (...). Tomamos por substéncia, € entidade, 0 que ndo 6 mais do que um costume de ver, de ouvir, e de entender; a vaidade, que de todas as paixdes é a mais forte, a todas arrasta, e dé ao nosso conceito a forma que Ihe parece: 0 entendimento 6 como uma estampa, que se deixa figurar, ¢ que facilmente recebe a figura, que se Ihe imprime. (Ibidem, pp. 126-127) O historiador francés Philippe Ariés assinala o tema da vaida- de como caracteristico dos séculos XVI e XVII, sendo uma condi- 80 psicolégica essencial para o advento do capitalismo. A vaidade, de fato, representa uma idéia nova da vida mortal. Sob 0 véu da melancolia que as recobre, as riquezas jé nao so desejaveis por elas mesmas, pelo prazer que elas proporcionam. (...) © mundo, infiltrado por uma so- lugdo de morte, tornou-se suspeito de uma extremidade a outra, ‘Sem divida, esta idéia comum (...) teve grandes efeitos sobre os costumes. (1990, p. 364) Do mesmo modo que em Souza Nunes, na obra de Matias Aires transparece a rejeicao da ética e da antropologia aristotélico- tomista, bem como uma certa desconfianga acerca da razéo huma- na, enfatizando-se, pelo contrério, a determinagao das paixdes e a prevaléncia das condi¢des propriamente psicoldgicas sobre as nor- mes étices quanto & conduta human: ‘As virtudes humanas muites vez um ratiro agreste, As mais das vez ¢ temperamante © que chamamos de ‘compSem de melancol ¢ humor o que julgamot ngano; # enfermidade o que cy HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS nos parece virtude. Tudo séo efeitos da tristeza; esta nos obriga a seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz refletir sobre 0 passado; quase sempre nos ocupa em considerar futuros; por isso nos infunde temor e covardia, na incerteza de acon- tecimentos felizes ou infaustos; e verdadeiramente a alegria nos governa em forma, que seguimos como por forca os movimentos dela; e do mesmo modo 0s da tristeza. (E¢a, 1993, pp. 88-89) Na perspectiva de Matias Aires, o discurso sobre a vaidade parece motivado também por motivos politicos: a constatacao da decadéncia do império portugués, apesar das ostentagdes de luxo de riqueza - sendo assim a obra uma critica mais ou menos im ta a sociedade e a politica lusitana. © mesmo tema da vaidade encontra-se também na producéo postica de Gregdrio de Matos (Moscheta e Massimi, 2000), de Gonzaga, de Cléudio Manuel da Costa, bem como nos jé citados Sermées de Antonio Vieira (Massimi, 1990). Todavia, nos autores que aqui analisamos, a mutabilidade, a antinomia entre a esséncia e 1 aparéncia, 0 sentido de incerteza e de instabilidade tornam-se dimensdes salientes e interiores de todo ser humano, caracteristi- 8s inevitdveis e inerentes a subjetividade humana, sendo ao mes- mo tempo sinais da consciéncia que os intelectuais brasileiros ti- nham acerca da dissolugo do mundo cultural e politico da tradig¢ao (Morse, 1995) © mundo ideal preconizado no século XVII pelo Vieira de A histéria do futuro,? 0 advento do Quinto Império, estava longe de 1 Trata-se da realiza¢o de uma esperanca messi8nica que considera 0 Brasil ‘como # possibilidade concreta de realizar 8 utopia politica do “Quinto Império do mundo”. Este tema encontra-se expresso num lvro escrito por Vieira na ocasiao de seu exilio em Portugal ¢ de seu processo pelo Tribunal do Santo Oficio, obra pul ‘onda pOstume @ inacabada: A histéria do futuro (1996). Nesta obra, 8 qual Vieira ribufra uma grandissima importancia, muito mais do que aos Sermées, ele ex- pprassa a convicco de ser chamado a anunciar aos seus contompordneos uma mudanga radical do processo histérico, que levaria a humanidade a um estado de paz, de tolerdncia, de unidade e de ia dom de Deus, ‘mas também fruto da iniciativa humana, e, nesta iniciativa, os portugueses assu- 1m Um papel de protagonists. a expressa a vis8o 9 da Segunda Escolést jana crence da imal politico natureae, opbe-se de matrz aritotdlco-tomiete, @ de Hatado como expresstic de AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS xvIIE x 59 acontecer. O sonho de que uma sociedade ordenada conforme & verdade e a justi¢a poderia realizar-se no Novo Mundo, mesmo que ao prego de grandes batalhas e contradigées, j4 se substituira nos pensadores brasileiros pela consciéncia da inevitabilidade do des- tino imposto pelo regime colonial. Entao, a dimensao psicoldgica, interior do homem, néo & mais concebida como o espelho da har- monia universal, conforme a retomada renascentista do ideal da Republica platénica ou da reforma ordenada aristotélico-tomista, em como 0 lugar onde mora no homem aquela fafsca divina que ultimamente garante sua imortalidade, mas como o refiigio precério € passageiro do individuo ante os absolutismos do poder e a desor- dem exterior da sociedade. O estado fisico da nossa maquina influi poderosamente nas operagées de nossa alma © médico mineiro Francisco de Mello Franco (1757-1822), formado em Filosofia e Medicina pela Universidade de Coimbra e autor de varios tratados e artigos, propde uma sorte de psicologia médica inspirada nas teorias do lluminismo e do sensualismo fran- 8s, especialmente na teoria do médico-filésofo J. Pierre Cabanis. Num livro publicado em 1813 e escrito no Brasil, Elementos de hygiene ou Ditames teoréticos e préticos para conservar a satide prolongar a vida, cujo objetivo declarado é “oferecer certos ditames para a felicidade dos povos” (1813/1823, p. XI), Mello Franco de- ‘4 concepetic do homem enquanto individuo e do Estado como produto de uma mera convengio social, art ra refrear © compor os interesses egofstas dos ‘ingulos. Nese contexto cultural (Morse, 1995), 0s movimentos populares eram concebidos como respostas aos abusos do poder politico ou religioso, numa tradi ‘¢8o que remonta & Idade Média e que, na América Latina, continuou através dos tas de inspirago crista ou amerindia, ao longo do perfodo Colonial, assim como nas comunidades eclesiais de base, nas seitas, nos movimentos riheizos e nos movimentos dos sem-terra, até o8 nossos dias (idem, irmagBo da soclabilidade intrinseca do homem, a crenga na existéncia do pam comm" fade do empenho humano para sua realizado, a ins- tagho # de transformago social, o interessa polos movimentos s0- que marcem de ‘maneira original a 60 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS fine 0 fisico como “a reciproca encadeacao de todos os sistemas de 6rgaos que formam a nossa maquina” (p. 308), sendo a dimenséo moral “tudo quanto diz respeito as fungdes e particulares afeices da nossa alma” {ibidem). Além do mais, afirma ser uma evidéncia empirica 0 fato de 0 estado fisico do corpo ter grande influéncia nas operacées da alma. Portanto: {...) @ observagao e 0 bom senso podem com 0 tempo alumiar-nos, de modo que, dado o conhecimento das impressoes feitas em tais ou tais érgaos, possamos cair na conta dos resultados morais, que devem ser a sua conseqiiéncia. (Ibidem, p. 325) Assim, as antigas doutrinas acerca das relacées mente-corpo © a tradicional teoria dos temperamentos de derivacdo hipocrética ‘so reformuladas numa perspectiva tendencialmente monista. Sen- do 0 funcionamento do organismo regulado pelas leis da natureza, conheciveis e previsiveis através da observacao e da experimenta- 940, seré possivel calcular e modificar seu dinamismo pela transfor- magao das circunsténcias fisicas determinantes, gracas a remédios @ a normas higiénicas. A satide do conjunto psicossomético, que constitui o ser humano, é definida como equilibrio ou regulacéo, sendo este entendido como harmonia da méquina corporal, cujo efeito é 0 bem-estar p: dade 6 a proliferacdo do género literério dos tratados de higiene, visando difundir junto & popula¢do brasileira regras e conselhos que proporcionam o bem-estar do corpo e do espirito. Outro livro do autor - 0 Tratado da educacéo fisica dos meni- nos para uso da na¢ao portuguesa -, publicado em Lisboa em 1790, responde a finalidade semelhante aplicada desta vez ao campo es- Pecifico da educacao da crianca, propondo-se a substituir os tradi- cionais tratados de pedagogia e afirmando a tese de que “sem a educagéo fisica, pouco se pode fazer na moral e literéria” (1790/ 1946, pp. 98-99), tese esta claramente fundada na filosofia empi- rista. De fato, a tdnica do texto 6 norteada por afirmacées tais e viver, querem dizer 0 mesmo” (p. 324) ou “a fonte das nossas idéias sao os sentidos” (p. 319). Desse modo, a Medicina propde-se a si mesma como a Cién- cia do Homem, substituindo a Etica, a Filosofia e a Teologia na tarefa de orientar individuos e sociedades rumo a felicidade. Nesse sentido, @ obra de Mello Franco constitui uma invers&o radical [AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL. NOS SECULOS XVI E XVI a consciente da tradi¢ao cultural anterior, fato este que fica explicito no tratado Medicina Teolégica, ou Suplica Humilde aos Senhores Confessores e Diretores sobre 0 modo de proceder com seus peni- tentes na emenda dos pecados, principalmente da Lascivia, Célera @ Bebedice (1794), texto polémico confiscado pelas autoridades por causa de seu contetido taxado de materialista. Os motivos da polémica podem ser derivados da consideracao do objetivo da obra, declarado no Prefacio: Ampliar a idéia do oficio dos confessores, mostrando até onde podia chegar a denominagao de médicos, com que séo decorados pela necessidade em que esto de conhecer radicalmente as doencas que, depois de inficionar 0 corpo, penalizam a alma e os faz desfale- cer em pecado. (Franco, 1794, p. 5) Mello Franco propée-se, assim, a uma transformacao de dis- ‘ursos: conceitos e praticas elaborados pela Teologia acerca do pecado sao traduzidos em conceitos e praticas da ciéncia médica Acerca da doenca. A analogia entre medicina do corpo e medi do espfrito, tradicionalmente utilizada pela Filosofia e pela Teolo- 2 adquire aqui uma significacéo nova - a medicina do corpo ndendo dar conta também da medicina da alma. A revolucio- tla afirmacao do autor de que “a experiéncia mostra que muitos Pecados humanos tém sua origem em doencas particulares do cor- Po" (ibidem, pp. 23-24) justifica a vivacidade das reacdes ao livro ‘@m &mbito catélico, e especialmente eclesiéstico,* e abre uma nova fase na histéria da cultura brasileira no que diz respeito 4 concep- gllo do homem e de seu psiquismo, fase esta que se explicitard mals clara e amplamente ao longo de todo o século XIX. # Vide Nota 2 @ Nota 11 do C 4 Foram elaboradas vérias respostas criticas, tais como O julzo critico sobre a Medicina Theologica, de trel Joaquim de Jesus (1796), em Coimbra, 0 as Disserta- Theologicas Medioinaes, dirlgides & Instrugéo dos Penitentes que no sacra- 2 da Peniténcie sinceramente provam e sue santficacdo, pare que nfo se eminem com oa abemindvels erros de um livro Intituledo Medicine Theologica, ‘duos erron refute neste obra, de Frel Mancel de Gent’Ane, de 17% tuo 62 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS © homem primitivo 6 um mero autémato 0 estudo de José Bonifacio de Andrada e Silva (1763-1838) acerca dos Indios brasileiros (Apontamentos para a civilizacdo dos Indios bravos do Brasil, de 1823, documento destinado a ser apre- sentado, discutido e aprovado no émbito da Assembléia Geral Cons- tituinte ¢ Legislativa) apresenta um plano de colonizagao dos indios, 8 ser conseguida néo mais através do poder militar, mas sim por um processo de aculturagéo. Para realizar esse objetivo é necessério, segundo o autor, “conhecer primeiro 0 que séo € devem ser natural mente os indios bravos, para depois acharmos os meios de os con- verter no que nos cumpre que sejam” (1823/1965, pp. 9-10). A seguir, ¢ esbocada uma descrigao das princ' ticas do que seria, segundo José Bonifacio, o temperamento des- "gas populagées: seriam “povos vagabundos ¢ dados a continuas guerras @ roubos”, sem “freio algum religioso e civil que coiba ia suas paixdes; donde nasce ser-Ihes insuportavel sujeitarem- 80 a leis © costumes regulares”; seriam “entregues naturalmente a preguica”, de “gula desregrada”, mais aptos a “roubar-nos, que nos (ibidem Tais comportamentos séo explicados por José Bonifacio na bese de uma teoria acerca do “homem no estado selvagem”, inspi- rada na filosofia iluminista da época (notadamente na antropologia 1709- 1751). Uma primeira caracteristica do homem no estado selvagem | Se auséncia das necessidades proprias do homem “civilizado”, que estimulam a atividade e o trabalhi (...) com efeito, o homem no estado selvatico, e mormente o Indio bravo do Brasil, deve ser preguicoso; porque tem poucas ou nenhu- ma necessidade; porque, sendo vagabundo, na sua méo esté a arranchar-se sucessivamente, em terrenos abundantes de caca ou de pesca, ou ainda mesmo de frutos silvestres, e esponténeos; por- que vivendo todo o dia exposto ao tempo, nao precisa de casas ¢ vestidos cémodos; nem de melindres do nosso Iuxo; porque final- mente nao tem idéia de propriedade nem desejos de distincses vaidades sociais, que so as molas poderosas que poem em ativida- deo homem civilizado, (Ibidem, pp. 10-11) Um segundo aspecto que diferencia o “selvagem” do “ | do” 6 jancia daquele tipo de racionslidade caracteristica do “espirito cientifico” europeu: AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS XVII E XVI 6 Por mais, uma razBo sem exercicio, e pela maior parte jé corrompida Por costumes @ usos brutais, além de apatico, o deve fazer também estupido. Falta de razéo apurada, falta de precaucéo. E como © animal silvestre, seu companheiro: tudo 0 que vé, pode, talvez, -Ihe a atengfo; do que no vé, nada Ihe importa. Para ser feliz, ‘ohomem civilizado precisa calcular, e uma aritmética, por mais gros- seira e manca que seja, Ihe é indispensdvel. Mas o indio, bravo, sem bens e sem dinheiro, nada tem que calcular, e todas as idéias abs- tratas de quantidade ¢ numero, sem as quais a raz3o do homem pouco difere do instinto dos brutos, the so desconhecidas. (Ibidem) A propria sociabilidade dos Indios 6 interpretada por José Bo- nifécio como puro produto do instinto: “sao pois as paixdes que Bo podem ser satisfeitas cabalmente sem a reunido de novos bra- gos e vontades as que obrigam os selvagens a reunir-se em tais Quais aldeias” (ibidem, p. 11) lidade de modificar a realidade humana e social as- im retratada baseia-se, para José Bonifacio, num postulado antro- poldgico ambientalista claramente explicitado: luir que seja impossivel converter lizados. Mudadas as circunstancias, mudam-se os costumes. Com efeito, o homem primitive nem 6 bom, nem é mau naturalmente; 6 um mero autémato cujas molas podem ser postas em ago pelo exemplo, educagao e beneficios. Se Cato nascera entre os sétrapos da Pérsia, morreria ignorado entre a mul tiddo de vis escravos. Newton, se nascera entre os guaranis, seria mais um bipede que passera sobre a superficie da terra. Mas um ‘uarani criado por Newton, talvez ocupasse o seu lugar. (Ibidem, p.12) A civilizagao sendo entendida como modelo a ser real necessér ado, definir a estratégia para sua concretizacdo. A proposta de atuacao, para José Bonifacio, consiste na criagao dos métodos e itar a dos meios para possi Indios” (ibidem, p. 15). Alguns dos “meios” de “ izagéo” propostos por Bonifacio — Que @ nosso ver tém uma clara significagéo psicolégica - sao: Introdug&o do concelto de propriedade idual, totalmente tranho & cultura Indigena, proftundamente comunitéria; b) a intro- Jago da inferioridade oultural através de gestos e rituals voltados a ‘pronta e sucessiva civilizagdo dos 64 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS. induzir nos nativos “altas idéias do nosso [do governo brasileiro] poder, sabedoria e riqueza” (p. 17); ) a educacdo das criangas; 4) 0 inculcar nos adultos do “principio incontestével que se deve permitir 0 que no se pode evitar” (p. 18); e) a introdugao do habito do trabalho regular - “sejam forgados a ganhar e segurar o seu sustento a custa de seus trabalhos” (p. 19). ‘Ao mesmo tempo, a adaptagéo dos Indios ao novo modelo sociocultural e, em particular, 4 nova organizagao do trabalho deve ser realizada gradualmente, “acostumando-os pouco a pouco” (p. 19) a0 novo modo de vida, estimulando neles “novas necessida- des” ("se vestir melhor, ter suas casas mais cOmodas e asseadas (1 (ibidem), através da introjegao da exigéncia do “bem-estar” prépria do homem “civilizado” ~ de maneira que os nativos “facam Grande conceito da fartura em que vivemos e a que eles podem chegar” (p. 18). Nessa perspectiva, nasce a ideologia do “carter nacional bra- sileiro”, que, conforme foi apontado na lucida andlise de Dante Moreira Leite, manipula os tracos psicolégicos na construcao de teorias e conceitos que, ao definir caracteristicas coletivas do “bra- sileiro”, refletem na verdade os interesses do poder encobertos pelo manto do discurso cientifico”: sendo assim, tal ideologia nao repre- senta “uma auténtica tomada de consciéncia de um povo, mas ape- as um obstéculo no processo pela qual uma nagdo surge entre outras, ou pelo qual um povo livre surge na histéria” (Leite, 1992, P. 329). José Bonifacio, ao esbogar esta doutrina noutro seu escrito (Pepitas, citado em Massimi, 1990), retrata os brasileiros como entusiastas do belo, amigos da liberdade e da justiga, “ignorantes Por falta de instrugao, mas cheios de talentos” e “apaixonados do sexo" (ibidem, p. 173), concluindo enfaticamente: “sero os Ate- nienses da América”. No século XIX, 0 proceso de organizacao da sociedade na- cional acarreta a necessidade de nivelar os sujeitos sociais e cultu- rais presentes no Brasil num protétipo nacional, com fungao norma- lizadora. Apés José Bonifacio, varios outros politicos e socidlogos tetomaréo essa doutrina, propondo-a como resposta ficticia (pen- samos nés) & pergunta acerca da identidade nacional: quem somos nds? A nosso ver, seria a ocorréncia desse processo um dos moti- vos que explica, pelo menos parciaimente, por que a introduc&o 8 & difusbo da Psicologia moderna no pals, nas diversas vertentes de Clénols do comportamento ov da Psicologia das diterengas indi- AS IDEIAS PSICOLOGICAS NO BRASIL NOS SECULOS xvilE xvi 65 viduais ~ com suas técnicas de avaliacao e de medida do ser huma- no -, foi em muitos casos favorecida e apoiada enquanto instru- Mento oportuno e moderno a ser utilizado nesta perspectiva ‘Na conclusio, 0 inicio de um caminho. Percorrer a histéria das idéias psicolégicas ao longo da cultura brasileira evidencia que muitos dos conceitos utilizados pela Psico- logia moderna possuem raizes no passado: langando o nosso olhar Para esse passado, podemos reconhecer nele, em sua diversidade de horizontes culturais e de concep¢des de homem e de sociedade, 08 elos de continuidade com o nosso presente, as ralzes de teorias @ métodos préprios do nosso modo de pensar. Reatar lagos com esse passado parece responder a uma exi GEncia que hoje muitos psicdlogos tem em nosso pats: possivel- mente, seria este um caminho para realizar uma proximidade maior entre o saber e a competéncia profissional do psicdlogo e a realida- de brasileira que se constitui no contexto de sua produgao, difuséo @ atua¢ao, pois, conforme assinala Simone Weil, (...) 0 enraizamento 6 talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. O ser humano tem uma raiz por sua Participacao real, ativa e natural na existéncia de uma coletividade ue conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressenti- mentos do futuro. (Bose, 1979, p. 347) Um psicélogo enraizado em sua cultura e sociedade, a nosso ver, é um agente de transformago social e no de normalizagao. A instauragéo da nova ordem mundial nos coloca hoje diante da Nnecessidade de uma escolha: atuar na dire¢do da redugdo do ser humano numa pega produtiva e homologada da sociedade globali- ada, ou atuar no sentido de afirmé-lo Protagonista da Histéria e da Sociedade. Acreditamos que o conhecimento das idéias psicolégi- cas surgidas no amago da Histéria cultural de nosso pals tenha Propriamente a fungéo de iluminar essa escolha, 66 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS Referéncias bibliogréficas ANDRADA E SILVA, J. B. (1823/1965). Apontamentos para a civi- lizagéo dos Indios bravos do Império do Brasil. 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E na “Terra de Santa Cruz”, mais tarde Brasil, fin- cava-se um marco @ iniciava-se 0 comércio do pau-brasil Assim um novo povo surgia, a bem da verdade que sob a pressao de ingleses, franceses e holandeses, o que gerava a neces- Idade de efetiva ocupacao do solo brasileiro pelos portugueses, temerosos da contestacdo do seu direito de posse, no garantido pelo simples marco de chegada. Um povo que, a principio, foi des- orito sob olhares externos: olhares de portugueses, viajantes ou ‘moredores que nem sempre afiancavam suas permanéncias na nova n HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS. Martim Afonso de Souza, uma nova miscigena¢ao, uma nova raca, uma nova estrutura social iriam ser delineadas, Portugueses, indi- genas e africanos passaram a conviver numa terra quente, onde abundavam os rios e as florestas, numa relaco de conflituosas trocas culturais, interacdes raciais € sexuais e lutas politico-sociais, sob a constante colonizacao portuguesa. Quando Portugal substituiu 0 sistema de capitanias por um governo central, em 1549, enviando Tomé de Souza como primeiro governador geral, chegaram os primeiros jesuitas: quatro sacerdo- tes, padres Manoel da Nébrega, Jodo Aspicuelta Navarro, Leonardo Nunes e Antonio Pires, e dois escoldsticos, os irm&os Vicente Rijo ¢ Diogo Jacome. Fundada em 1534, por Indcio de Loyola, como uma forma de reacdo ao avanco do movimento protestante na Europa, a Companhia de Jesus ficou conhecida por seu trabalho educacional @ seu papel na Inquisicao. Tendo obtido do rei a posse do até entao Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, tornaram-no o cen- tro da formagao missionéria para a propagagao da fé6 nos dominios Portugueses, cujo lema rezava: “Faga tudo como se dependesse de sua vontade, embora sabendo que tudo depende da providéncia divina”. A primeira fase de aco educacional e propagacao da fé foi marcada pelas dificuldades de contato com os indigenas, 0 que implicou a aprendizagem da lingua nativa, e pelos precérios meios de subsisténcia. Datam dessa época as conhecidas “Escolas de ler @ escrever”, que cresciam paralelamente ao senhoriato colonial. Manvel da Nobrega registrava, em suas cartas escritas & Metrépo- le, que seria mais fécil levar os indios a conversdo pelo medo. Aspi- cuelta Navarro, autor de varios autos e poesias, infelizmente perdi- dos, foi o primeiro a aprender o tupi, chegando a traduzir algumas oracées para a lingua nativa, Em 1553, chegaram ao Brasil mais trés padres e quatro ir- méos, dentre os quais 0 padre José de Anchieta, autor da primeira gramética de tupi-guarani, publicada em 1595 com o titulo: Arte de Gramética da lingua mais usada na costa do Brasil. Anchieta, co- Nhecedor do gosto indigena por musica, danga, canto e espeté- culo, teve 0 incentivo de Nébrega para conduzir a representagéo de autos de sua autoria. O primeiro deles, Pregacao universal, repre- sentedo pela primeira vez no natal de 1561 e, posteriormente, em quase toda costa da terra do pau-brasil, foi escrito em versos em portugues @ tupi, trazendo a descric&o do costume Indigena de FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 73 recep¢ao de um personagem importante: tudo comegava com um ritual de sauda¢ao em um local distante da aldeia, depois havia um desfile até a taba, onde tinham lugar os didlogos, seguidos do con- selho dos chefes, e por fim a despedida, com danca e misica. As representagées teatrais, as quais se faziam, em geral, no adro das igrejas, passaram a ser freqtientes, e os autos anchietanos Se multiplicaram: Na festa de Séo Lourenco; Auto de Séo Sebas- ti40; Na aldeia do Guaraparim; Auto de Santa Ursula; Diélogo de Pero Dias; Na Vila da Vitéria; Dia de Assungao em Reritiba ¢ Rece- bimento do Pe. Marcos da Costa . Além dos autos, Anchieta poeta- va em quatro linguas, sendo notério seus poemas De Beata Virgine Dei Matre Maria e De Gestis Mendi de Saa. Narrando feitos portu- gueses ¢ aliando a 6 catdlica aos costumes indigenas, Anchieta mesclava as diferentes culturas. O dominio portugués nas terras brasileiras foi questionado pela Presenca francesa no Rio de Janeiro, comandada pelo vice-almirante Nicolas Durand de Villegaignon. Pela primeira vez em terras brasfl- 8s, surgia 0 risco de conflito entre religides cristés, representadas pelos interesses dos huguenotes presentes no Rio de Janeiro, entre 1855 e 1560, e dos doze pastores comissionados por Calvino. Mas, quer pelas discordancias internas entre os huguenotes, quer pela forca portuguesa, os franceses acabaram expulsos e o catolicismo manteve-se como a religio dominante. Quando 0 jesuita Ferngo Cardim viajava pelo Brasil, provavel- mente em 1583, impressionou-se no s6 com a solidariedade e a hospitalidade dos indigenas, como também com 0 aumento das “Escolas de ler © escrever” e com a disseminagao do “canto de 6rg80". Ressaltando que os indios tinham por grande honra a hos- Pedagem e a garantia do necessério para a sustentagao de todos, 0 Jesuita descreveu o ritual de acolhida a um visitante: o intenso cho- to dos Indios por ocasiao da chegada dos héspedes, devido as ima- Qinéveis tribulagdes do visitante durante a viagem, era seguido por uma saudagao de boas-vindas, pelo servir da comida e, finalmente, pela esperada palavra de explicacao da visita por parte do héspede. E a primeira historia era registrada pelo portugués Pero de Magalhées Gandavo em Histéria da Provincia de Santa Cruz a que vulgermente chamamos Brasil (1576), seguida da obra Tratado des- eritivo do Brasil (1687), de autoria do colonizador portugués e s ‘hor de engenho.ga Mahle, Gabriel Soares de Souzt 4 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS A escoléstica e os primeiros olhares nativos Com a nova orientagao educacional jesuitica, elaborada na Ratio atque Instituto studiorum Societatis Jesu e publicada pelo Geral da Companhia, Claudio Acquaviva, em 1599, foram mudados 08 objetivos, os métodos e 0 contetido da educagao ministrada no Brasil. A Ratio studiorum, que visava ao total monopélio educacio- nal, previa a utilizacao dos mesmos programas, livros e recursos didaticos no mundo inteiro, estabelecendo, para os estudos inferio- res, as classes de Retérica, Humanidades e Gramética (Superior, Média e Inferior), e, para os estudos superiores, a Teologia, com Exegese, Moral e Casuistica aos que se destinavam ao sacerdécio, ® Filosofia e Ciéncias Exatas, aos que se destinavam as carreiras iberais. Nas terras brasilicas, j4 em adiantado processo de coloniza- 980, tal projeto no encontrou grandes obstdculos, sendo o ensino estratificado imediatamente adotado. Para formar os brancos, fi- Ihos dos senhores de engenho, cuja preferéncia tendia para a cultu- ra das terras do além-mar, mantinha-se uma educagao erudita e ‘eréria; jd para os filhos dos gentios, a educacao era essencialmen- te manual. Algum trabalho educacional era ainda previsto para os pardos os mulatos, especialmente nas irmandades e nas confra- s, que passaram a ter grande importéncia nos séculos XVII € XVIII, Quanto aos negros, nao havia, por parte dos jesuitas, nenhu- ma previsdo educacional, sendo a eles mesmos reservada a trans- missao de sua cultura, o que se fazia por rituais, cultos, brincadei- ras e, posteriormente, por suas préprias irmandades, dentre as quais ‘as de Nossa Senhora do Rosério e a de Séo Benedito. Se essas instituigées recolhiam fundos para a libertagao de escravos, isso no resultava em grande importéncia devido & imensa populaco a ser beneficiada, e @ luta cultural negra acabou por ganhar mais expresso nas suas conhecidas revoltas e fugas. No final do século XVI, os jesuftas fundaram um colégio na Bahia, constituido por trés faculdades: Teologia Dogmitica, Teolo- gia Moral e Artes (Filosofia). Dentro desse espirito de tradigo esco- \éstice @ literéria, surgiram os primeiros escritores nativos das ter- Frei Vicente do Salvador foi o primeiro prosador, FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 18 Teixeira Pinto, marcava 0 nascimento da literatura nativa, e com Gregorio de Matos re jento da sétira em terras bra- silicas. Embora portugués de nascimento, Padre Anténio Vieira, estudante do Colégio da Bahia, destacava-se pelos seus conheci- dos Sermées (1648) e pela fervorosa defesa da liberdade dos indios. Mas as riquezas dessa terra continuavam a atrair estran- geiros. Comandados pelo fidalgo Jofo Mauricio, Conde de Nassau, 0s holandeses aportaram em Pernambuco, trazendo uma relevante equipe de cientistas e artistas. Entre os cientistas estavam Marcgraf, naturalista e autor da Historia rerum Naturalium Brasilice; Piso, patologista e autor de De Medicina Brasiliense; 0 arquiteto jeter Post, autor do plano de construgao da Mauricéia; e o mate- iu Olinda (Mauricéi impulsionou 0 estudo e as artes e criou o primeiro observatério astronémico brasileiro, um local de encontro de artistas para dis- cusso de questées literdrias. Os calvinistas holandeses (1630-1654) Posicionaram escolas e missionérios em locals estratégicos, além de realizarem o primeiro sinodo reformado na América, em 1635, reunindo oito pastores e cinco ancidos dirigentes. De regresso a Holanda (1644), apés ter conquistado o Maranhao (1641), Nassau deixou substitutos, cujos objetivos exploratérios geraram grande descontentamento. Em um primeiro sinal de sentimento nativista, 08 nativos decidiram expulsar os holandeses, objetivo consumado nas batathas dos Guararapes, retratadas pelos pintores pernambu- canos em tons caracteristicos de Franz Post. Assim, os tracos e os sentimentos dos habitantes da terra brasilica, ainda que com seus olhares muito fixos nas culturas do ldm-mar, jé eram delineados na pintura e na literatura luso-brasi leiras ¢ holandesas. As entradas, que massacravam os indigenas @ despovoavam, seguiriam as bandeiras, que deixavam em seus rastros pequenas edificacdes, abrindo 0 caminho para as minas de ouro. Dos sentimentos nativistas as esperangas libertarias Sul des terrae bresileiras era bergo de uma republica cristé ‘comunista, Os guaranis dos sete povos das Missées conseguiram 76 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS nhola e, com peculiar organiza¢ao social, j6 desenvolviam uma boa produgio agricola e uma industria incipiente. No entanto, a crise ‘econémica de Portugal, acentuada pela decadéncia da cultura acu- careira e pelos maleficios do dominio espanol, havia aumentado a do capital britanico, agravada pelo Tratado de Methuen, © que eliminava as possibilidades de crescimento da emergente manufatura portuguesa. 0 ouro, que facilitava o pagamento dos produtos manufaturados ingleses, transferia-se para a Inglaterra. Pombal, ministro de D. José |, entao rei de Portugal, conhecendo a situagdo de seu pas empenha-se na aplicagao das determinaces do Tratado de Madri e na conseqiiente demarcacao de terras. A resistencia dos guaranis @ demarcacao das terras passou a ser percebida por Pombal como uma instiga¢ao jesultica, instigacéo presente também na dificil demarcacao amazénica. A situacao era agravada pelo impedimento imposto pela Companhia de Jesus 40 rei, e em conseqiiéncia a Pombal, de escolher os missionérios a serem enviados. Tais acontecimentos agravaram os desentendimen- tos entre Pombal e os inacianos, sendo os tltimos acusados de Participacao no atentado ao rei, em 1757. O ministro ordena, en- ‘to, @ tomada dos bens dos jesultas e o seu recolhimento ao Colé- gio da Bahia para expulsdo, fulminando, pelo alvard de 28 de junho de 1759, 0 ensino jesuitico em Portugal e nas colénias de além- mar. Com a expulsdo dos 445 jesuftas da Provincia do Brasil, des- morona um sistema educacional de dois séculos de duracéo. Os franciscanos, os capuchinhos e os carmelitas assumiram a educago até a criag&o das aulas régias (1772), que foram manti- das pelo “subsidio literdrio” cobrado na taxagéo de determinados produtos. Pombal, ao extinguir as capitanias, diversificou @ produ- 80 agricola, incrementou a producdo do arroz, introduziu 0 café no Rio de Janeiro e taxou a extracéo e 0 comércio de diamantes. Preocupado com a povoagao da Col6nia, 0 ministro procurou facili- tar os casamentos luso-indigenas e, ao transferir a capital da Bahia para 0 Rio de Janeiro (1763), mostrou-se preocupado em manter de mais perto 0 controle das regides auriferas. ‘A riqueza das minas que se situavam além do Rio Sao Francis- co atrafa a aten¢ao e aumentava o proceso migratério do Nordeste pare essa regio. Uma sociedade mineradora fol sendo formeda com um expressivo ndmero de trabelhadores auténomos, homens livres, mineradores @ comerciantes, todos eles fortu- nas, Em uma terra onde'vigorave a lel do male toda a FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA n gente andava armada, os emboabas — nome dado pelos paulistas aos outros colonizadores - haviam feito de Manuel Nunes Viana 0 seu lider nas terras das minas. Viana tentou impor a lei oficial, sangrentas lutas foram travadas, afastando os paulistas (1707- 1708). A criagdo de uma Capitania nas Minas (1710) e a nomeacao do governador Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho acai maram os énimos, mas a paz teve curta duragao. A partir de 1715, ‘8 gan€ncia portuguesa, impondo a obrigacdo da doacéo de um quinto do ouro e a posterior criagdo das Casas de Fundic&o (1719), agita- va ainda mais os mineiros. Felipe dos Santos foi enforcado em 1720, @ 0 conflito permanecia em toda regiéo mineradora. A tensdo aumentou na segunda metade do século XVIII, ge- rando a Inconfidéncia Mineira. Tendo por lema o verso do poeta latino Virgilio, Libertas quae sera tamen, os inconfidentes lutaram pela independéncia politica, propuseram a criaco de muites esco- las e de uma universidade em Vila Rica, além de, dentro de certas condi¢des, se posicionarem a favor da aboligéo da escravatura. Os Autos de devassa mostram na erudigéo dos inconfidentes mi Neiros os ideais libertdrios franceses. Foram registrados, na biblio- teca de Cléudio Manuel da Costa, cerca de duzentos volumes, em sua maioria relativos a assuntos juridicos, e, na biblioteca do céne- go Luiz Vieira da Silva, cerca de oitocentos volumes, dentre 08 quais textos de Voltaire, Descartes, Rousseau, Montesquieu, Crebillon e Verney, além de 43 livros de varios autores franceses, na biblioteca de Tomas Antonio Gonzaga. Considerando a dificulda- de de obtencao de livros, registra-se a importancia a eles atribuida, © que pode ser constatado pelo seu freqlente registro como patti ménio de heranca em inventérios e testamentos (Bomfim, 1988). T€o intenso quanto o sentimento patridtico era o sentimento ligioso na regiao aurifera. Simao Ferreira Machado (1967), ao re- Iatar o traslado do Santissimo Sacramento da Igreja da Senhora do Rosério para o templo da Senhora do Pilar - conhecido como a festa do Triunfo Eucaristico, resultado do empenho da populacao ‘na construgao da igreja -, mostrou em detalhes @ abundancia de ouro e diamantes nas vestimentas e enfeites dos mineiros. acontecimento havia sido anunciado por um bando de mas- garados, @, no dia da festa, as janelas das casas amanheceram enteitedas com sedas @ damescos. Apés a missa, deu-se inicio & procissdo, constituide por uma danga de turcos e crist&os com dois roe, contro deanquale lam mudsicos de suaves vozes @ varios 78 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS: instrumentos, uma danga de romeiros, uma danga de musicos, os quatro cavalheiros dos ventos (norte, sul, leste e oeste), um cava- Iheiro alemao tocando clarim, dois negros galantemente vestidos, dois pajens com roupas de ouro e diamantes encravados, que da- vam “Vivas a Ouro Preto”, duas figuras significando os morros de Ouro Preto e Ouro Fino, as sete figuras representando os planetas, estes Uitimos precedidos pela Lua e as figuras representando as estrelas d’Alva e da Tarde, além do Sol. As varias irmandades, com suas cruzes e seus andores, eram precedidas por um gaiteiro, um moleque tocando tambor e quatro negros tocando trombetas. Por fim, seguia um numeroso séquito de nobres moradores da vila com © andor, o numeroso clero das duas pardquias da vila ¢ 0 Eucaristi co Sacramento nas mos do vigério da matriz. A festa prosseguiu com nova missa e, nos dias seguintes, ocorreram cavalhadas, espetdculo de fogos de artificios, comédias, trés dias de touros, serenatas e banquete para os nobres. Entre as comédias apresentadas figuravam as pecas de Calderén de la Barca {EI Principe Prodigioso e El secreto a vocés) e uma peca de suposta autoria de Francisco de Rojas Zorrilha (E/ amo criado). A festa era uma demonstra¢ao do envolvimento das racas e do pluralismo cul tural existentes na Vila, 0 que naturalmente se fazia sob os vigilan- tes olhares dos padres. Em outra festa, a da posse de Dom Frei Manoel da Cruz no pado de Mariana, em 1745, ano da fundagao do seminério desta cidade, foi relatada a existéncia de montagens teatrais, apresenta- 0 de misica sacra, concertos musicais, dangas tipicas, que in- Clulam em seus némeros foleléricos a participagao de indios e ne- gros, além da apresentacao publica de postas e oradores sacros. A festa acabou gerando, em 1749, a publicagéo de uma coleténea de eras literdrias que reunia composicées poéticas e oratérias de dez autores da academia intitulada Aureo Trono Episcopal. No relato, editado pelo cOnego Francisco Ribeiro da Silva e escrito por um autor desconhecido em 1749, vé-se que os poetas do “Aureo Tro- no", todos padres, aproveitavam o ensejo festivo e exercitavam seus talentos, quer nos “outeiros” (reunides nos pétios nas quais glosavam os motes dados, em diferentes idiomas), quer no mural mével de poesias (poema-cartaz), Por ocasiéio da expulsto dos jesultas do Brasil, |é havia na Colénia, portanto, um movimento intelectual ¢ oultursbembrionério aquecido nas efémereseeademias literdr! on FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 79 dos Esquecidos (1714), a Academia dos Felizes (Rio de Janeiro, 1736), a Academia do Aureo Trono (Minas Gerais, 1748), a Acade- mia dos Renascidos (Bahia, 1759), a Academia dos Seletos (Rio de Janeiro, 1752), a Academia Cientifica (Rio de Janeiro, 1772) e 0 grupo de poetas da Escola Mineira e da Arcadia Ultramarina, do qual fizeram parte José Basilio da Gama, frei José de Santa Rita Durdo, Claudio Manoel da Costa, Inacio José de Alvarenga Peixoto @ Tomés Ant6nio Gonzaga. Na realidade, a Academia dos Esqueci- dos, primeira sociedade literéria brasileira, criada pelo vice-rei, 0 Conde de Sabugosa (responsavel pelo enforcamento dos soldados da guarni¢ao baiana), funcionou apenas um ano, tendo se reunido dezoito vezes. Sua produ¢ao em prosa foi a mais relevante, embora houvesse poesias, oragdes, composicdes e exercicios. A Academia Cientifica, instalada pelo segundo marqués do Lavradio, reunia os homens de conhecimentos cientificos para debates e divulgava es- tudos sobre historia natural no pafs, estimulando a agropecuéria As academias facultavam debates aos que procuravam promover a ciéncia e a arte. O sentimento nacional na nova ordem politico-social Portugal envolveu-se, por sua dependéncia econdmica, nas lutas que a Inglaterra travou com o governo da Franga e, pressiona- do, viu-se obrigado a transferir a Coroa Portuguesa para o Bra: Com o Principe Regente no pais, novas idéias, novos rumos sociais @ culturais e uma nova ordem politico-social seriam aos poucos Implantados. A abertura dos portos, a criacéio da Academia Real da Marinha (1808), a Imprensa Régia (1808), a aula de Economia e Politica (1808), os cursos médico-cirdrgicos do Rio de Janeiro e da Bahia (1808), a Academia Real Militar (1810), 0 Jardim Boténico (1810), 0 Curso de Agricultura (1812) @ 0 Gabinete de Quimica (1812) abriram espago e serviram de ponto de partida para a forma- ‘980 de novas elites intelectuais. Construir uma nova ordem, promo- Ver @ afirmagao da Corte no pais e, ao mesmo tempo, expressar 0 esenvolvimento de um sentimento nacional foram algumas das Atribulges d 18, eM que José Bonifacio, o Patriarca la Independéncia, Iria ter reaic Com 8 Indepandénaie (1822), | 80, Juntamente com @ 80 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASI Novos EsTUDOS internacioneis, manipulava as eleicbes. 0 ouro tornava-se raro, para superar a decadéncia da produ¢éo mineira foi preciso aumen- tar a exportacao cafeeira, modemizar os fatores de produgao, ge- rando 0 crescimento da imigra¢ao, o trabalho assalariado e a forma- 0 de um empresariado. Emergia uma classe média, que tivera sua origem no anterior perfodo mineratério e que demandava por educa- ‘980 como meio de ascensdo social. A Constituigo de 1823 deter- minava, além da concessdo da liberdade de culto religioso aos es- trangeiros no Brasil, fruto da pressdo inglesa, educacao para todos 08 cidadaos e ensino de Ciéncias, Belas Letras e Artes nos colégios € nas universidades. Tendo sido abolidas as corporacées de oficios, com seus jul- zes, escrivées e mestres, uma primeira lei nacional da educacéo brasileira foi publicada em 15 de outubro de 1827, prevendo um ensino de primeiro grau gratuito e universal como dever do Estado ea criagao de uma universidade. 0 cumprimento da nova lei néo chegou a ser sequer satisfatorio; as escolas de ler e escrever conti- nuavam muito aquém das necessidades, e a universidade nao foi criada. Contudo, aproveitando 0 espaco aberto, duas academias de Direito abriram suas portas: a de Recife (1827) e a de Séo Paulo (1828). Crescia, entao, um povo marcado historicamente pelo tripé racial (branco, negro e indio), com uma emergente e timida diversi- ficagao educacional superior e acrescido das novas racas, culturas @ religides dos imigrantes. 0 romantismo na literatura brasileira pro- curava expressar o pals independente nas producées de Goncalves Dias, Castro Alves e José de Alencar. Com a abdicago de D. Pedro | em favor de seu filho D. Pedro de Alcantara (1831), a fase regencial se instala. Diogo Antonio Feijé renuncia em 1845 e é substituido por Araujo Lima, criador do Imperial Colégio Pedro II, do Arquivo Publico e do Instituto Histérico @ Geogréfico Brasileiro. A estratificacao social tornava-se mais com- plexa com o crescente volume de imigrantes, com 0 ativo papel dos militares - que, com suas criticas a0 regime monérquico, assumi- rem, apés a Guerra do Paraguai, efetiva participagao politica - @ com os crescentes debates em torno da abolig&o da escravatura. Era um pais marcado pelos conflitos relativos as préticas econdmi- cas escravocratas, pelo novo movimento imigratorio @ pela necessi- dade tanto de uma politica de estimulo & produg#e do pequeno agrioultor quanto de neves reformas social summer”. pro- FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 8 gramas sociais voltados para a reforma da educacdo, a industriali- 2acHo, a construgdo de estradas de ferro e a abolicéo da escravi- do. Crescia 0 movimento cientifico e intelectual brasileiro com os académicos formados pelas Faculdades de Direito, Medicina e En- genharia, e com os pesquisadores do Arquivo Publico e do Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro. Duas institui¢des educacionais tiveram papel destacado na propulsao das idéias liberais do século XIX: 0 Colégio Caraga (MG) e a Escola de Direito de Séo Paulo. O Colégio Caraca, criado em 1820, proveniente do santuério construfdo por Irmao Lourenco (1774-1779), teve entre seus alunos, além de Afonso Pena e Arthur Bernardes, alguns dos participantes do movimento liberal de 1842. A Escola de Direito de Séo Paulo, que funcionava no conven- to anexo a Igreja Sao Francisco de Assis, numa construcaéo em taipa de pilao com embasamento de pedra, formou, entre outros: Prudente de Morais e Campos Sales, ambos na turma de 1863; Rui Barbosa, Rodrigues Alves e Afonso Pena na turma de 1870; Wenceslau Brés em 1890; Washington Luis em 1891; e Arthur Bernardes em 1900, Por ela também passou Joaquim Nabuco, que acabou se formando na Escola de Recife. Defensores da ampliacao da cidadania e do fortalecimento dos partidos, alguns deles tiveram papel relevante na abolicéo da escravatura e na Proclamagéo da Republica, ‘Criar um Estado Nacional independente, manter a unidade ter- titorial e, ao mesmo tempo, abolir a escraviddo eram desafios polé- micos. Ficaram conhecidos os debates relativos 4 emancipacao dos escravos travados entre, de um lado, Joaquim Nabuco, politico do Império, e, de outro, Miguel Lemos, médico, e Raimundo Teixeira Mendes, engenheiro, ambos membros do Apostolado Positivista do Brasil. Os positivistas criticavam Nabuco pela simpatia 4 causa im- perial, que consideravam nefasta a imediata abolicdo da escravi- do, Defendiam uma nova ordem social que, com a libertagéo dos escravos, os incorporava, imediatamente, como trabalhadores vres. Defendiam, também, o direito a uma jornada de trabalho did- tlo, a um dia de descanso semanal, ao salario, assim como a educa- lio nas escolas de instrucao priméria. Em meio @ um crescente fluxo migratério que aumentava a miscigenaclo racial @ as trocas culturais, André Rebougas, secreté- tlo da Sociedade Central de Imigraco, criava, em 1883, no Rio de Janeiro, um progeagee social em defesa de reforma agréria, do in- 82 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS. centivo a vinda de imigrantes europeus e da assisténcia e educacio ‘20s ex-escravos jé em liberdade. Sé no século XIX, o Brasil recebeu um mithao de italianos, e, embora a onda migratéria tivesse sido absorvida com relativa facilidade, ela contribuiu para algumas mu- dangas psicossociais e politicas, dentre as quais a separacao entre Igreja e Estado, a instituic&o do casamento civil, a secularizacao dos cemitérios e a toleréncia religiosa. No primeiro periodo republicano (1889-1894), marcado pela dupla referéncia ideolégica — liberalismo e positivismo -, delineava- se uma politica econdmica liberal com Rui Barbosa e uma politica ‘educacional positivista com Benjamin Constant, antigo ministro da Guerra durante o Governo Provisério, responsavel pela reforma edu- cacional de 1890. {A literatura tentava, no realismo de Machado de Assis, no naturalismo de Alulsio Azevedo @ no parnasianismo de Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, expressar as mudanoas na ordem social, no estilo de vida e na mentalidade. Surgiram as primeiras obras sobre a historia da literatura brasileira e, nelas, as primeiras concep¢ées sobre uma psicologia nacional. Silvio Rome- To, em sua Histdria da literatura brasileira, publicada em 1886, tra- zia um capitulo intitulado “Psicologia nacional ~ Prejulzos de educa- ‘go ~ Imitacao do estrangeiro”, no qual, de certa forma, 0 autor feproduzia a concepgao de Chasles (1875) de que a psicotogia de um povo estava contida em sua literatura. Influenciado pelos estu- dos de Le Play e pelo movimento que defendia a psicologia dos poves (Véikerpsychologie), a “Psicologia nacional” de Romero par- te da concep¢ao de que a psicologia de um povo ¢ revelada pelo conjunto de suas caracteristicas pecullares, por sua literatura, seus cantos, etc. Paralelamente a produeao dos bacharéis em Direito, os médi- cos, quer em suas teses, quer como resultados de pesquisas, apre- sentavam suas contribuigdes sociais, Na Faculdade de Medicina da Bahia, influenciado por Sighele ¢ Le Bon, Nina Rodrigues opés-se a0 tratamento policial dado as religides africanas, argumentando ser 0 branco catélico tdo fetichista quanto o negro. Nem por isso deixava ele de ressaltar, em suas teses africanologistas, a inferioridade do negro ¢ do mestico, denunciando a loucura epidémica de Canudos (Nina Rodrigues, 1897). Eram posigdes tipicas de um darwinismo social, préprias a0 embrionério cientificismo do final do edoulo XIX. FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 83 A identidade nacional Com 0 segundo perfodo republicano (1894-1922), iniciado com um governo que se dedicava & recuperagao financeira, 0 de Campos Salles, 0 pais obteve a moratoria européia e iniciou a “po- Itica dos governadores”, que fortalecia as oligarquias estaduais, prolongava a politica do “café com leite” e tinha na borracha e no cacau os destaques de suas exportacdes. O século XX iniciava-se com uma populaco com pouco mais que dezessete milhdes de habitantes, mais masculina que feminina, majoritariamente catdlica @ analfabeta. Foi nesse contexto que Manuel Bomfim, em A Ameéri- ¢a Latina: males de origem (1905), teceu um forte combate ao darwinismo social e fez duras criticas 4 propagada superioridade das elites e das racas. As sucessivas reformas educacionais da Republica Nova - a de Epitécio Pessoa (1901), a de Rivadévia Correia (1911) e a de Carlos Maximiliano (1915) - cuidaram dos privilégios no ensino Publico, da autonomia didética e administrativa dos institutos put 0s e da emancipagao do ensino secundério da condi¢ao de simples meio preparador para ingresso nas escolas superiores. As reformas estaduais - a saber, de Sampaio Déria (Sao Paulo, 1920), Carneiro LeBo (Rio de Janeiro, 1922), Lourengo Filho (Ceard, 1923), José Augusto (Rio Grande do Norte, 1925), Francisco Campos (Minas Gerais, 1927), Lisimaco da Costa (Parané, 1927), Carneiro Ledo (Pernambuco, 1928), Anisio Teixeira (Bahia, 1928) e Fernando de Azevedo (Rio de Janeiro, 1927, nos ensinos primario, técnico- Profissional e normal) ~ facilitaram a introdugao das ciéncias huma- has © sociais no ensino secundério, Os embates ideolégicos entre o anarquismo, 0 comunismo eo acionalismo de Pedro Lessa e Miguel Calmon, a Semana da Arte Moderna (1922), com o conseqiiente movimento modernista de Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Menotti del Picchia, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira e Villa-Lobos, 0 movimen- to de renovacao literdria e cultural, em Recife, sob coordenagao de Gliberto Freire (1923), @ 0 movimento militar tenentista contribui- tam para a renovac&o intelectual brasileira. As crescentes urbaniza- glo @ industrializagfo, aliadas ao surgimento do mercado interno Ativo, crieram condigses pera o desenvolvimento do setor terciério, ‘@ expansio da classe Média @ 0 surgimento de nicleos proletérios. oy HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS humanas e sociais, propiciando o surgimento de uma literatura es- pecifica. Em 1921, surgia 0 primeiro livro com titulo especifico em Psicologia Social. Em Pequenos estudos de psychologia social, Oli veira Vianna, reunindo uma série de artigos publicados em jornais, apresentava, em um estilo ensaistico, andlises de biografias de vu! tos da histéria brasileira e de sentiments regionalistas. Francisco Campos, como ministro da Educagao, em 1931, no sé dava as coordenadas para as reformas de ensino nos varios estados brasileiros, como também buscava implantar um sistema Integrado e uma politica que atendesse a uma organizacao nacional da educagao. Em meio aos conflitos entre educadores catdlicos ¢ ‘escolanovistas, acirrados pelas conferéncias da Associagao Brasi- leira de Educacao e pela divulgacéo do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932), as Ciéncias Humanas ¢ Socials criavam asas nas escolas de nivel superior e nas primeiras universidades brasileiras. A Escola Livre de Sociologia e Politica de Sao Paulo, criada em 1933 por um grupo de empresérios paulistas interessados na ma- nuten¢ao da influéncia politica abalada pela Revolucéo de 1930, contou, entre seus professores convidados, com a presenca de Horace Davis, Herbert Baldus, Emilio Willems, Samuel Lowrie, Redcliff-Brown e Donald Pierson. Gerada como um desdobramento do Instituto de Organiza¢ao Racional do Trabalho - Idort, a Escola Livre ministrava cursos de graduacdo em Ciéncias Politicas e So- ciais e de pés-graduacdo em Sociologia e Antropologia, objetivando preparar uma elite para, racionalmente, buscar solugées para os problemas sociais do pais. Foi nessa instituic&o que Raul Carlos Briquet ministrou, no segundo semestre de 1933, o primeiro curso superior de Psicologia Social, do qual resultou a publicagao do livro Psicologia Social (1935). Entre seus alunos, figuravam Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Oracy Nogueira e Mauricio Segall. Em 1938, a Escola Livre foi anexada a Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras (FFCL) da Universidade de Sao Paulo, que havia sido criada 1934, Pela FFCL-USP passaram professores como Paul Arbousse-Bastide, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Otto Klineberg e Aniela Ginsberg, responsdveis pela formagao de varios cientistas sociais e humanos. A antiga Universidade do Rio de Ja- neiro, criada em 1920, teve sua estrutura modificada com a criag&o da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1937, e com a anexagao da extinta Universidade do Distrito Federal (UDF), que deveu sua curta FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 85 vida, de 1935 a 1939, a divergéncias com o governo federal. Na ‘extinta Universidade do Distrito Federal, lecionaram Gilberto Freyre @ Arthur Ramos. O primeiro foi autor da notdvel obra Casa-Grande & Senzala (1933), que vasculhava a colonizacdo portuguesa, a for- Macao familiar e a arquitetura brasileira, e, admitindo a existéncia de um cardter nacional, enfatizava algumas caracteristicas comuns 80 povo brasileiro, provenientes da interacdo entre raga e ambiente, tessaltando a composi¢ao hibrida da nossa colonizacao, a explora- 80 econémica escravocrata e a estrutura agréria, em que reinava um clima de quase intoxicacaéo sexual. Arthur Ramos ministrou 0 ‘segundo curso superior de Psicologia Social, em 1936, resultando Na edi¢ao do livro Introdugao 4 Psychologia Social (1936). Estudos psicossociais de caréter regionalistas foram desen- volvidos por Louren¢o Filho, em Juazeiro de Padre Cicero (1926), ¢ por Gustavo Barrozo, em Almas de lama e aco (1930). Entre as andlises de amplitude nacional, vale ressaltar Retra- tos do Brasil, de Paulo Prado, que, publicado em 1928, ponderava ‘obre o papel da tristeza no desenvolvimento do caréter do povo brasileiro. Indo de encontro as idéias nao sé de Paulo Prado, mas também de Silvio Romero e Ronald de Carvalho, o titulo da obra de Eduardo Frieiro, publicada em 1931, O brasileiro néo é triste, j& revela sua contraposicao as idéias da tristeza do povo e inospitali- dade do clima brasileiro. Notéveis também sao as obras Ensaios de antropologia brasiliana, de Roquette-Pinto, datada de 1933, e Ra/- es do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicada em 1936. A cordialidade como um traco do caréter nacional, seguida da |ha- neza no trato, da hospitalidade e da generosidade, presentes na ‘obra de Sérgio Buarque de Holanda, so perfis que, se comparados 80 relato de Fernao Cardim, seriam possivelmente legados indigenas. Tal carater nacional foi questionado por Arthur Ramos (1948) ‘em seu “Programa da antropologia brasileira”, sob a alegacao de que, do ponto de vista antropolégico, nao se poderia falar de uma cultura brasileira, mas de culturas brasileiras, sendo ainda cedo para te Indagar sobre o ethos do caréter nacional. Em 1954, sob a orientacéo de Annita Cabral, Dante Moreira Leite apresentou, na Universidade de Séo Paulo, sua tese de douto- rado, Intitulada Cardter nacional do brasileiro, em que eram analisa- dos 08 preconceltos @ 08 esteredtipos nos conceitos subjacentes, eo cardter nacional, na literatura brasileira, com base no que se delineavam quatre #4008 Ideoldgicas: o movimento nativista, 0 86 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS romantismo, a imagem pessimista a superacéo da ideologia. Em sua conclusio, Moreira Leite reconhecia que as ideologias do caré- ter nacional brasileiro seguiam, bem de perto, as doutrinas euro- péias, tendo sido a superacao da ideologia do carter nacional uma construgo ao longo de muitos anos. No Rio de Janeiro, as Ciéncias Sociais e Politicas efetivam planos com a criagéo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros {lseb), em 1955, que reunia intelectuais como Roland Corbisier, Guerreiro Ramos, Candido Mendes, Alvaro Vieira Pinto e Hélio Ja- guaribe. Tinham por objetivo um desenvolvimento nacional inde- pendente e por base a filosofia da intervengdo consciente e racional do Estado para uma transformagao qualitativa da estrutura econd- mica e social do pals. Assim, os cientistas sociais e humanos passaram a reivindicar 0 direito ao fornecimento dos conhecimentos 4 compreensao ¢ a0 desenvolvimento da sociedade brasileira, assim como a participa- 80 nas decisées pertinentes. Com a Revolugao de 1964, foi ministrado um duro golpe con- tra as organizagées populares e as liberdades democraticas. Rea- g6es provieram de trabalhadores, estudantes e de parte da lgreja Catélica, tornando passeatas, manifestacdes e invasées de univer- idades partes do cotidiano brasileiro. As produgées das Ciéncias Sociais e Humanas, como nao poderia deixar de ser, ressentiram-se 8 principio. Contudo, retomaram seu crescimento a partir da Refor- ma Universitéria de 1968, que impulsionou a abertura de cursos de Graduacao e pés-graduagao stricto sensu nas universidades. Rele- vante papel tem sido desempenhando pelas organizages asso: vas de pesquisa, ensino e/ou pés-graduagao em Ciéncias Sociais e Humanas. Entre elas, destacam-se a Associacéo Nacional de Pes- quisa e Pés-Graduacdo em Ciéncias Sociais (Anpocs), a Associacao Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagao em Educagao (Anped) Associagao Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagao em Psicologia (Anpepp) e a Associacao Brasileira de Psicologia Social (Abrapso). Os trabalhos de consolidagao da identidade na turais. Tanto a produgao relativa a identidade nacional quanto a referente as identidades locais e regionais foram atravessadas pelas comunitérias, de classes, (0, num amplo movimento ncla ecoldgica. " it de universalizaglio @ cons FRAGMENTOS PSICOSSOCIAIS NA HISTORIA 27 E 0 povo brasileiro comega o século XX! em um pais de maio- tia urbana, mais feminino que masculino, cristo, embora no mais t8o catélico, com cerca de 52 milhdes de pessoas passando fome, com taxas de mortalidade infantil © analfabetismo alarmantes, ain- da que decrescentes, com uma devastacdo ambiental galopante com 0 gradual envelhecimento da populacdo. Mas come¢a também ‘com um consolidado sentimento de identidade nacion: Referéncias bibliogréficas AUREO TRONO EPISCOPAL (1749). Ed. por Francisco Ribeiro da Silva. Lisboa, Oficina de Miguel Menescal da Costa. BARROZO, Gustavo (1930). Almas de lama e aco. Sao Paulo, Me- thoramentos. BOMFIM, Elizabeth Melo (1988). A comunitéria educacao artistica das Minas dos setecentos. Psicologia e Sociedade, v. Ill, n. 5, pp. 192-205. BOMFIM, Manoel (1905). América Latina: males de origem. Rio de Janeiro, Garnier. BRIQUET, Raul (1935). Psicologia social. S80 Paulo, Francisco Alves. CARDIM, Fern&o (1625/1980). Tratados da Terra e Gentes do Brasil. Belo Horizonte, Edusp/ltatiaia. CHASLES, Philaréte (1875). La psychologie sociale des nouveaux peuples. Paris, Charpentier et Cie. FREYRE, Gilberto (1933). Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Maria Schmidt. FRIEIRO, Eduardo (1931). O brasileiro ndo é triste. Belo Horizonte, Os Amigos do Livro. GANDAVO, Pero de Magalhaes (1576/1980). 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O Brasil passa por uma profunda mudan- 8 politico-administrativa, vez que, num periodo de catorze anos, fol transformado de colénia portuguesa a Império. Com isso, torna- 8 crescente a necessidade de formagao de profissionais liberais que pudessem dar conta das necessidades do novo pais. O primeiro Passo, por decisdo da Assembiéia Geral, fol aprimorar as institui- (9608 existentes, ou seja, as duas escolas médico-cirurgicas instala- das em Salvador @ no Rio de Janeiro, transformando-as, em 1832, ‘@m Escola de Medicina, Nesse mesmo ano foi criada a Faculdade de Farmacia. Ainda no século XIX, foram criadas as escolas de Belas- Artes (1877), de Direito (1891) e a Politécnica (1897). Essas trés Ultimes derivaram-se da iniciativa privada, sendo reunidas em 1946, ‘ompondo a recém-fundada Universidade Federal da Bahia. Segundo Pereira (1918): eral que animava a reforma de 1832 manifesta ig8ee que mantinham a liberdade do e7 08 melos de zat em aigumas cadelras @ Inatrucolo pratica, Gerentiam a0 protessorade Independéncla, autoridede « prestigio, 30 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS davam salutar autonomia as duas faculdades, conferindo-Ihes 0 reito de eleger seus diretores, apresentando a0 Governo uma triplice da qual serie escolhido o nomeado, a atribuigdo de confec ‘onar seus regulamentos, de propor a reforma na distribuicao das matérias, e de applicar as bases das matriculas e os emolumentos dos titulos & compra de livros para a biblioteca, Além disso, afirma ainda esse professo Fundada sob os benéficos auspicios de tdo ilustres paraninfos [José ‘Avelino Barbosa, Paula Arabjo, Ferreira Franca’ e Lino Coutinhol a Faculdade de Medicina da Bahia constituiu-se desde ento um cen- tro de actividade constante pelo progresso da sciencia, pela causa do bem e da humanidade e, sobretudo, pelo culto da independéncia, da liberdade e do direito, de que foram valorosos obreiros e inteme- ratos defensores os primeiros mestres da velha esc: Santos, autor da primeira Meméria histérica da Escola de Medicina da Bahia, referente ao ano de 1854, afirma que nao s6 era usual os alunos irem a Europa para aperfeicoamento, como também havia na Escola de Medicina da Bahia um predominio das doutrinas da Escola de Medicina de Paris. Segundo ele, essa predilecao teve origem, sem duivida, na legislacdo, que “pedia como preparatorio 0 francés, mais cultivado entre nés, ou o inglés, e mais no grande numero de filhos daquela Escola, que foram chamados a professo- res d’esta” (1905, fl. 20). Com relagao ao ingresso no curso de Medicina, Santos decla- fa que, tendo iniciado seu curso em 1832, matriculou-se: “no Colé- gio de Cirurgia, fazendo exame somente de lingua francesa, peran- te a Congregaco dos Lentes, como era d’uso” (ibidem, fl. 9). Hé indicagdo de que esta prova de ingresso foi mantida, mes- mo com o surgimento da Escola de Medicina, uma vez que, na Meméria histérica do ano de 1924, Aragéo (1940) afirma que o Decreto n. 11.530? determina que o exame vestibular compreende prova escrita e oral, a primeira consistindo na tradugao de um tre- cho fécil de um livro de literatura francesa e de um outro, de autor classico alem&o ou inglés, sem auxilio de dicionéri + Antigo n, 80 do cltado decreto, promulgado em 18 de marco de 1018, [A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 1 Comentando a respeito do curso preparatério, Fonseca lamenta que neste faltem “disciplinas das ciéncias do espirito e da socieda- de” (1893, fl. 200), 0 que, segundo ele, seria em breve solucionado com a inclusdo da Sociologia e da Moral. Enfatiza ser necesséria a incluso da Psicologia, 0 que nao aconteceu em virtude da influén- ia de Auguste Comte sobre o legislador. Continuando a defesa da sua posicao, afirma: A psicologia de hoje se, de um lado, apéia-se nos dados fornecidos por este elemento estranho a formacdo das outras ciéncias que a precedem na hierarquia cientifica — a consciéncia, cuja intervencao nos dominios dela bastaria por si somente para individualiza-la distingui-la de todas as mais ~ doutro lado, firma-se exatamente no conhecimento da anatomia e da fisiologia dos sentidos, do sistema nervoso e do muscular e nos conhecimentos positives que necessa- riamente devem preceder a estes (Ibidem, fl. 201) Concluindo, propée a inclusdo da Psicologia e da Légica no quadro de estudos necessérios para o bacharelado.? Uma das condigées para a outorga do titulo de Doutor em Medicina era a defesa de uma tese, com tema definido pela Congre- {g2¢80, por sugestao do corpo docente, na primeira reunigo anual.* Esses trabalhos foram, ainda no século XIX, objeto de criticas, como a realizada por Fonseca, a seguir transcrit Estamos de acordo (e este é 0 ponto capital e de que tudo mais decorre) sobre 0 pouco ou nenhum valor cientifico da grande maio- ria das teses apresentadas pelos alunos as Faculdades de Medicina. Se entre elas hd melhores @ piores, a primeira condi¢ao para que possam ser classificadas em més, sofriveis, boas e étimas, é serem consideradas, salvo rarfssimas excecdes, como simples coleciona- mento de observacées alheias - nacionais ou estrangeiras ~ caté logo das opinides de diversos autores sobre o assunto escolhido, ‘compilago dos jornais de medicina sobre as questées de atualida- de, repeticdes de criticas feitas sobre o seu objeto. Se fossem todas escritas em boa linguagem, organizadas com mé- todo e suficientemente desenvolvidas, teriam pelo menos o valor de Cte, Atas de reunide da Congregacto da Faculdade de Medi 1083 0 18 a 92 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS vulgarizar em nosso idioma a ciéncia que seus autores adquirem em estranhas linguas. Mas s6 a meméria possui este mérito. Quanto as causas deste mal é para nds evidente que elas consistem nas disposig6es sobre o assunto estabelecidas pelos diversos esta- tutos que tém regido a Faculdade de Medicina, sem excluir os atuais que, deste ponto, outra inovagao nao fizeram sendo abc prévia. (© que atualmente a lei exige que se faga é estéril e até prejudici As teses poderiam, entretanto, constituir um meio poderoso de de- senvolver o estudo original da medicina no pais e de contribuirmos para 0 progresso geral das ciéncias médicas. (1893, fis 25 ¢ 26) Para 0 autor, a solucao seria tanto dar um caréter facultativo as teses quanto postergar a sua entrega para um ano apés a forma- tura, dando assim condigao ao candidato de melhor elaboracéo do , Vez que jé nao teria disciplinas para preparar. Esta situago perdurou até 1915, quando o Decreto n. 11.530 tornou facultativa a defesa de tese pelos alunos ao término do seu tirocinio académico, condicionando, porém, a outorga do titulo de Doutor em Medicina aos que defendessem tese ou se incorporas- sem ao corpo docente da Faculdade. Diante do exposto, qual seria entao 0 interesse ou a importén- cia desse material para a Psicologia? Material fruto de uma tarefa escolar de graduacaio, cujo tema era definido pela Faculdade, com mérito criticado por contemporaneos, docentes da Casa... E importante estudar essas teses. Nao por terem trazido con- esitos ou metodologias inovadoras, mas por permitirem avaliar a sintonia entre a producao baiana e os centros produtores do saber, tanto pelos temas trabalhados, que falam de um saber instituido, jé aceito pela comunidade académica, quanto pelos autores escolhi- dos para o “colecionamento de opiniées”, o que indica uma vincu- lag&o intelectual a determinada corrente tedrica ou prética. Federal da Bahia, Peixoto (1996) localizou cinquenta teses, apre- sentadas durante 0 século XIX, que abordaram questées psicolégi- ces, das quais apenas duas eram de concurso e, as demais, teses ‘A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 83 Merece destaque o fato de que havia teses com preocupacao de cunho psicolégico, mesmo antes da instalago da catedra de Psiquiatria, 0 que sé ocorreu em 1881. Até 0 momento, foram localizadas doze destas. Teses localizadas, (1) 1845 - Policarpo Cesério de Barros. A influéncia da musica sobre a medicina. 1849 - Rozendo Aprigio Pereira Guimarées. Theses médico-phyloséphicas. 1851 - Francisco Tavares da Cunha Mello. A/gumas con- sideragées psycho-physiolégicas acerca do Homem. (4) 1852 - Joaquim Marcelino de Brito Junior. Breve disser- tagdo sobre a hypochondria. (5) 1853 - Antonio Dias Coelho. Algumas proposicées sobre temperamentos. (6) 1857 - Cid Emiliano de Olinda Cardozo. infiuéncia da civilizagao sobre o desenvolvimento das afeccées ner- vosas. (7) 1857 - José Joaquim Goncalves. Secgdo médica: heranga temperamento lymphatico. 1869 ~ Francisco Borges de Barros, Influéncia do celiba- to sobre a saude do homem. 1873 ~ Manoel Ludgero de Oli os temperamentos. (10) 1878 ~ Guilherme Pereira Rebello. Somno. (11) 1883 ~ Leon Ferdinand Gay. Eletrotherapia. (12) 1884 - José Machado do Valle. Estudo médico psycho- logico sobre o suicidio. (13) 1885 - Sebastido Barbosa da bro. (14) 1886 - Ernesto Cameiro Ribeiro. Perturbagées psychi- cas no dominio de histeria. (15) 1887 - Raymundo da Camara Barreto Durao. Alcoolismo chronico e sues variedades ciinicas. (18) 1888 - Guarino Aloysio Ferreira Freire. Qua/ o papel que desempenha a civilizagéo no desenvolvimento de moldatiag mentale? ira. Em que consistem Iva. Physiologia do cére- 24 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS (17) 1888 - José Gabriel de Almeida Paim. Somno, sonho, sonambulismo e delitio. (18) 1888 ~ Pedro Rodrigues Guimaraes. Alcoolismo chroni- co e suas variedades clinicas. (19) 1888 - Fébio Lopes dos Santos Luz. Mipnotismo e livre arbitrio. (20) 1889 - Bonifécio Ferreita Carvalho. Da coca, seu princl- pio ativo e sua a¢éo physio-terapéutica. (21) 1889 - José Xavier Coelho. Do tabagismo e sua influén- cia sobre a mentalidade. (22) 1889 - Virgilio Martins Lopes Mendonga. Do hypnotis- ‘mo e seu valor terapéutico. (23) 1889 - Landulpho Machado Magalhées. Hypnotismo e livre arbitrio. (24) 1890 - Francisco Chaves de Oliveira Botelho. Das rela- ¢6es entre as neuropathias e as psychopatias. (25) 1890 - Eduardo Jansen Vieira de Mello. Hysteria no Homem. (28) 1890 - Manuel Sampaio Marques. Hysteria no homem. (27) 1891 - Bonifacio Ponce de Leon Castro. Neurasthenia. (28) 1891 - Alfredo Ferreira Magalhaes. O hypnotismo e a suggestéo. (29) 1891 - Felipe Nery Goncalves. A degeneracéo psiquica. (30) 1891 - Jodo Maria Carneiro Lyra. Hysteria infantil. (31) 1893 - Alberto Furtado Mendonga. Qual a melhor inter- pretacéo dada ao termo parandia? (32) 1893 ~ Elias da Rocha Barros. Estygmas da degeneracao psychica. (33) 1893 - Anténio Barreto Praguer. Da psychoterapia suggestiva. (34) 1894 - Joo Luciano da Rocha. Breves consideragées sobre a epilepsia @ seu tratamento cirdrgico. (35) 1894 - Luiz de Aratijo Aragao Bulcdo. Hystero paralisias locomotrizes. (36) 1894 - Aurélio Rodrigues Viana. Consideracdes sobre 08 principais accidentes mentaes nos histéricos (concurso). (37) 1895 - Emilio Champion. Consideragées sobre @ loucura de dupia forma ou loucura circular. (38) 1896 - Josino Correa Cotias. Theorie meoanioe des vibra- fen cuabee om aves lr cee commento mera " ‘ ‘A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 95 (39) 1897 — Julio Afranio Peixoto. Epilepsia e crime. (40) 1897 — Vital Cardoso do Rego. Relagées da actividade intellectual com a composi¢éo da urina. (41) 1898 ~ Jodo Batista de Barros Pimentel Filho. Psycho- therapia. (42) 1898 - José Mariano da Rocha. Tratamento da melan- colia. (43) 1900 - Eustéquio Daniel de Carvalho. Estudo physiolgi: co do sonho. (44) 1900 - Adriano Augusto de Araujo Jorge Filho. Alcoolis- mo e alienagéo mental, (45) 1900 ~ Jodo Pereira de Aratijo Pinho Jr. Desordens psychi- cas da menstruagéo. (46) 1900 - Ernesto Cameiro Ribeiro Filho. Alcoolismo chré- nico cérebro-espinhal e suas manifestacées psychicas. (47) 1900 - Carlos Maria de Novaes. Psychoses post-opera- toreas. (48) 1900 - Augusto Ribeiro da Silva. O Aypnotismo sob o ponto de vista médico-legal. Além dessas, no livro de registro do Memorial de Medicina Brasileira constam mais duas, relacionadas em seqiiéncia, das quais Bo ha exemplares no referido acervo: (49) 1840 - Anténio Joaquim de Mello Rocha. A enfermida- de denominada febre intermitente é uma verdadeira neu- rose? (80) 1853 - José Antonio de Freitas Jr. Influéncia do estado social na produgéo de moléstias. Quanto aos temas, a maioria buscou investigar questées 1 Gadas a psicopatologia, mesmo antes da instalacdo da cadeira de Clinica Psiquiétrica, o que ocorreu em 1881. Com relacao a me- todologia, a maioria absoluta das teses somente realizou, como Pontuado por Fonseca, um trabalho de compilacéo, “um colecio- Namento de observacées alheias” (fl. 1893, 25). Apenas uma das epresentada por Vital do Rego em 1897, expde delinea- Mento experimental, tendo buscado controlar a varidvel indepen- | de 90.10.1008" 96 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS dente - no caso, a atividade intelectual. Durante um més, ele foi experimentador e sujeito desse estudo, no qual realizou andlise da prépria urina, envolvendo-se em atividade intelectual (formal) em semanas alternadas. As referidas citagdes esto inseridas no texto, néo havendo nesta época habitualidade de constituir a bibliografia ao final do trabalho. Esse procedimento dé mesmo margem a problema de identificagdo, uma vez que a maioria dos autores foi citada apenas pelo sobrenome. Estudo preliminar realizado por Rocha (2001), que examinou os autores citados em 25 das teses existentes no Memorial da Medicina Brasileira, da Universidade Federal da Bahia, identificou 1.784 citacdes, de 1.224 personalidades, o que perfaz uma média de 71,36 por doutorando, com varia¢ao de 6 a 304. Dessas personalidades, 80% receberam apenas uma citacdo. Bénédict Augustin Morel (1809-1873), médico austriaco que cons- truiu sua carreira em Paris, foi 0 profissional mais referenciado, jé que consta de metade das teses. Procurou-se, entao, verificar ano @ local de nascimento, ocupagéo e local de trabalho de cada um deles. Dos localizados, pode-se verificar que a data de nasci mento mais remota foi 560 a.C., ¢ a mais recente, 1873 (Grand Encyclopédie, s. d.; Morel, 1997; CFP, 2001). A Franca é o pais com a maior quantidade de autores citados. Foram lembrados prin- cipalmente alienistas ¢ filésofos. A maioria dos citados trabalhou na Franca, em especial na Salpetriére, no Bicétre e na Faculdade de Medicina de Paris. Personalidades vosé Lino dos Santos Coutinho (1784-1836) Baiano, formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, foi deputado do Brasil em Lisboa, sendo signatério do manifesto de 22 de outubro de 1822, gesto de Independéncia Nacional. Foi de- putado geral do Império por duas legisiaturas, fazendo constante ‘oposic&o ao imperador D. Pedro |. Interessado por quest6es de in trugéo publica, integrou a comisséo que realizou trabalhos sencio- nados em lei de 15 de outubro de 1827, considerada por Afranio Peixoto (1946) como dnica manifestacto naclongh pele Inetrucso ‘A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 7 -— ———_- A EDUCACAO DE CORA, ‘r,s0s¢ Lino eourinHo, oad osaunzao 92 vaseer S ey te Figura 1 ~ Folha de rosto do livre Cartas sobre a educapio de Cora Autoria de Lino Coutinho, Popular. Foi o primeiro diretor da Escola de Medicina da Bahia; ocupou a pasta da Justi¢a, apds a abdicacdo de D. Pedro | (1831- 1833), Criou diversas escolas, tendo reorganizado as escolas de Me- dicina do Império ¢ a de Belas-Artes do Rio de Janeiro (Silva, 1885). Escreveu vasta correspondéncia a preceptora de sua filha Cora, nascida em 1818. Postumamente, em 1849, foram elas publica- das sob 0 titulo Cartas sobre a educagéo de Cora. Na avaliacéo de Peixoto (1946), a proposta de educagao de Cora 6 muito mais libe- ral e util que a de Sofia, personagem de J.-J. Rousseau. Consistia de orientacées referentes & formacdo de atitudes e auséncia de castigo corporal. Sua educaco, assim conduzida pela preceptora, linda anénime, foi altamente eficaz, tendo sido Cora ancestral de importante famfia balan. Para Castro (1977), as orientagées refle- m uma visio liberal; a vide familiar genhe novas dimensdes, com ‘© exaitagtio da figmas.feminine, n&o encarada como submissa eo 98 HISTORIA DA PSICOLOGIA NO BRASIL: NOVOS ESTUDOS homem. Deve-se louvar, no entendimento desta autora, a preocu- pagao em registrar 0 roteiro seguido para a educacdo da sua filha. Deve-se ressaltar, também, o fato de a educagao de Cora ter sido assumida pela figura paterna. INVESTIGAGDES PSYCHOLOGIA | Eduardo Ferreira Franca pAzIEa: vvocRAtIA DET. PF ‘054. Figura 2 ~ Folha de rosto do livro In- vestigardes de Psicologia. Autorie de Eduardo Ferreira Franca | forens Eduardo Ferreira Franca (1809-1857) Baiano, nasceu em Salvador e faleceu em viagem para a Euro- pa, para onde se deslocava em busca de tratamento médico (Blake, 1883; Oliveira, 1992). Era doutor em Medicina pela Faculdade de Paris, onde recebeu a mais rigorosa formacao naturalista, tendo sido apontado como o primeiro estudante do seu curso. Apresen- tou a tese Essa/ sur /‘influence des aliments et dee bolssons sur le moral de I'homme, De volta so Brasil, fol nomeade prof Quimica Médica @ Prinofpios Elementares de hamngete A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 99 dade de Medicina da Bahia. Exerceu a medicina com extrema com- Peténcia, sendo também grande filésofo. Durante sua vida, procu- fou encontrar elementos observaveis que pudessem explicar 0 com- portamento moral das pessoas. A partir de 1848, representou seu estado em vérias legisla- turas. Segundo Paim (in Franca, 1972), em sua atividade pol Ferreira Franca interessou-se por questdes de satide publica, tendo dedicado a esse tema dois ensaios: /nfiuéncia dos pantanos sobre o homem (1850) e Influéncia das emanagées putridas animais sobre ‘9 homem (1859). Na qualidade de deputado estadual, elaborou re- latério sobre a situacdo do sistema penitenciério da Provincia (1847) Pertenceu a diversas associagées literérias de jovens académicos. Para Paim (in Franca, 1972), foi a atividade politica, mais precisa- ‘mente a representacao em nivel nacional, que o levou a se deparar ‘com o problema da liberdade humana e a rever as concepodes apren- didas na Franca, que culminaram em sua obra mais importante, no que foi influenciado por Condillac e Maine de Biran. Investigacées de Psicologia, publicado em 1854, 6 muito pro- vavelmente 0 livro mais antigo sobre este assunto nas trés Améri- 88. No entendimento do autor, essa obra contém reflexdes sobre a paicologia experimental, sendo inten¢ao sua, nao concretizada, tal Vez em virtude de sua morte prematura, escrever outro livro dedica- do 80 que chamava de psicologia racional. Apresentada em dois volumes, com 284 e 424 paginas, respectivamente, a obra é com- posta por seis partes: 1) fenémenos da consciéncia e faculdades; 2) modificabilidade (sensibilidade, afetividade); 3) motividade (mo- vimentos); 4) faculdades intelectuais | (percepgéo interna e exter- Na, relagdes entre elas, das qualidades dos corpos e do habito); 8) faculdades intelectuais II (sensibilidade cerebral, sono e sonhos, gonsciéncia, razéo, meméria, imaginagéo, abstracéo, composi¢éo, a0, julzo, faculdade do futuro, faculdade da fé, d is, sociais e morais; e 6) vontade. Abilio Cesar Borges, Baréo de Macahubas (1824-1891) Baiano, natural da cidade de Rio de Contas, médico, com cur- to realizado na Faculdade de Medicina da Bahia e tese apresentada Faculdade do Rio de J como um dos grandes ‘educadores de eua-dpoce, Fundou os primeiros colégios particu tee do Brasil, Tinhanwma forme peculiar @ diferenciada com relaglo

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