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Universidade de Coimbra

Faculdade de Direito / Faculdade de Economia


CES – Centro de Estudos Sociais
Curso de Doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI”

A Ética da Eternidade
Em Busca de uma Ética de Longo Prazo

George Marmelstein
(georgemlima@yahoo.com.br)

Maio - 2009
2

“- Ivã, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais


modesta?
- Não, não há.
- Nenhuma?
- Nenhuma.
- Quer dizer, um zero absoluto, ou uma parcela? Não haveria
uma parcela?
- Um zero absoluto”.
Fiodor Dostoiveski, em “Os Irmãos Karamazov” 1

“Num instante tu não serás mais que cinza, esqueleto, um


nome ou nem mesmo um nome”.
Marco Aurélio, Pensamentos V, 33

“Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em


mim, ainda que esteja morto, viverá”.
João 11:25

“E esta é a promessa que Ele nos fez: a vida eterna”


João 2:25

1
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazov (Brátia Karamázavi, 1879). Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.
São Paulo: Abril Cultural, 1970, p. 137.
3

Sumário

1 Introdução ...................................................................................................................... 4
2 Ética, Religião e Razão .................................................................................................... 7
2.1 A Laicidade do Estado, o Direito Positivo e a Ética Religiosa .................................. 7

2.2 Ética Religiosa versus Ética Laica ........................................................................... 10

2.3 A Filosofia Moral Contemporânea ......................................................................... 16

3 A Ética Laica de Peter Singer e a Oração de São Francisco de Assis ............................ 21


3.1 Darwinismo, Teoria dos Jogos e Cooperação ........................................................ 22

3.2 A Ética da Reciprocidade como Estratégia Evolutivamente Estável...................... 27

4 Vivendo Para a Vida Eterna .......................................................................................... 33


4.1 Fundamentos Naturais da Ética ............................................................................. 33

4.2 A Falácia Naturalista .............................................................................................. 37


4.3 A Ética e as Emoções.............................................................................................. 39

4.4 Ética da Eternidade ................................................................................................ 45

4.5 A Ética e as Gerações Futuras (Ética Intergeracional) ........................................... 50

4.6 A Ética e o Diálogo ................................................................................................. 52

4.7 Heurística Negativa e Positiva da Ética .................................................................. 56

5 Conclusões .................................................................................................................... 60
Referências Bibliográficas................................................................................................ 62
4

1 Introdução

No presente paper, será defendido que qualquer concepção ética precisa se apegar a
alguma noção de eternidade ou, pelo menos, de uma existência temporal voltada para o
futuro. Ressalto, desde já, que a concepção de eternidade que será aqui defendida não tem
nenhum sentido teológico, espiritual ou metafísico, nem mesmo significa defender que um
ser humano pode viver para sempre enquanto indivíduo, nem que existe vida depois da morte
ou uma alma imortal capaz de sobreviver ao término da existência corporal, nem nada
parecido. Como se verá no momento oportuno, a eternidade que entendo que deve estar na
base da ética é uma mera eternidade biológica, baseada na perpetuação genética, e
funcionará não como um substituto das concepções teológicas de eternidade, mas como um
reforço para o cumprimento dos deveres éticos de longo prazo. Não se pretende especular
sobre uma ficcional e utópica vida eterna do ser humano enquanto tal, mas tão somente de
sua unidade genética, que já vem se perpetuando ao longo do tempo, como demonstram os
estudos mais recentes da biologia e da genética. Isso significa que o conceito de vida eterna
aqui adotado não englobará o organismo, mas o gene (nível micro), bem como todos os seres
vivos num nível mais macro.
Sob o aspecto prático, o desenvolvimento desse tema servirá para os seguintes
propósitos:
(a) defender que as melhores concepções éticas devem mirar conseqüências de longo
prazo, ampliando-se ao máximo o círculo de pessoas abrangidas pela rede de preocupação
ética, inclusive os membros das gerações futuras e até mesmo de outras espécies;
(b) sustentar que as concepções éticas de longo prazo bem-sucedidas são aquelas que
estimulam a cooperação entre os seres racionais e o respeito aos interesses de todos os seres
sencientes, ou seja, todos os seres capazes de sentir prazer e dor, bem como a preservação do
mundo natural e biológico para que os futuros organismos possam desfrutar de seus recursos
de forma satisfatória;
(c) sugerir alguns parâmetros objetivos de julgamento comparativo de teorias éticas
rivais, fornecendo, ainda que genericamente, algumas características negativas que nenhuma
teoria ética deveria ter, bem como algumas características positivas que as teorias éticas
deveriam perseguir.
O que me motivou a refletir sobre esse assunto foi o famoso argumento que
Dostoievski desenvolveu no seu clássico “Irmãos Karamazov”, através do personagem Ivã
Fiódorovitch, que pode ser expresso do seguinte modo: “Mas então, que se tornará o homem,
sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?”. Uma
versão alternativa da mesma idéia, que é apresentada em outra passagem do mesmo livro, diz
5

o seguinte: “se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo
é permitido”2.
O personagem de Dostoievski tenta fazer uma ligação forte entre a idéia de
imortalidade (que é uma idéia essencialmente religiosa) e o fundamento da ética, defendendo
que, se o que vale é o aqui e agora, sem perspectivas de uma vida para além da morte, então
o melhor é viver o presente intensamente, sem outras preocupações éticas além da busca do
prazer individual imediato. “Se o amor havia reinado até o presente sobre a terra, era isto
devido não à lei natural, mas unicamente à crença das pessoas em sua imortalidade”, de sorte
que “se destruís no homem a fé em sua imortalidade, não somente o amor secará nele, mas
também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não haverá então nada de imoral,
tudo será autorizado, até mesmo a antropofagia”3.
À luz do senso comum, é possível reconhecer um fundo de verdade nessa idéia. A
esperança na existência de vida futura é um dos principais argumentos religiosos para
incentivar uma conduta ética. Muitas pessoas praticam boas ações, algumas vezes em
sacrifício de seus interesses pessoais, pensando em recompensas que receberá “no paraíso”. É
inquestionável que, se existir vida depois da morte, há muito mais motivos para seguir uma
vida virtuosa.
Mas de repente veio o Iluminismo com a sua crença na razão e na comprovação
empírica das teorias e colocou em dúvida vários dogmas religiosos previstos na Bíblia. Foi
defendido claramente que o Gênesis está errado se interpretado literalmente. O mundo não
foi feito em sete dias; o homem não surgiu do barro; a mulher não foi criada a partir da
costela de Adão; o planeta Terra não é o centro do universo; nem mesmo a Via Láctea é a
única galáxia do universo, mas apenas mais uma entre bilhões e bilhões de outras…
Ora, se as observações empíricas e a racionalidade crítica demonstraram tantos
equívocos nos dogmas religiosos contidos na Bíblia, então por que a idéia de vida eterna
também não seria falsa, já que não pode ser empiricamente comprovada?
Foi diante disso que Ivã Fiódorovitch formulou o argumento antes citado, concluindo
que tudo seria moralmente permitido sem a noção de imortalidade.
Nietzsche, com seu niilismo característico, foi ainda mais além, diagnosticando a
própria morte de Deus pela boca de Zaratustra: “Será possível que este santo ancião ainda
não ouviu no seu bosque que Deus já morreu?“. E Mais: “Noutros tempos, blasfemar contra
Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias”4.

2
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazov (Brátia Karamázavi, 1879). Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.
São Paulo: Abril Cultural, 1970, pp. 81 e 580.
3
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamazov (Brátia Karamázavi, 1879). Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes.
São Paulo: Abril Cultural, 1970, p. 67.
4
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra, 1885). São Paulo: Martin Claret, 1999,
pp. 7 e 84.
6

No seu “Genealogia da Moral”, Nietzsche prosseguiu no mesmo assunto, fazendo o


seguinte questionamento provocador dirigido especificamente à ética cristã e à sua fé na vida
eterna tal como prometida pela Bíblia:
“Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê? - Esses fracos [ou seja, os cristãos] -
também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida, também o seu ‘reino’
deverá vir algum dia - chamam-no simplesmente ‘o Reino de Deus’, como vimos: são
mesmo tão humildes em tudo! Para vivenciar isto é preciso viver uma vida longa, que
ultrapasse a morte - é preciso a vida eterna para ser eternamente recompensado no
‘Reino de Deus’ por essa existência terrena ‘no amor, na fé, na esperança’.
Recompensado pelo quê? E como?...”5.
Como se vê, a “morte de Deus”, tal como diagnosticada por Nietzsche, também teria
representado a própria morte da ética de um modo geral e da ética cristã, em particular, que
se sustentava na crença em Deus e na esperança de uma vida plena no Reino de Deus.
Diante disso, só nos resta questionar: será que ser cooperativo perdeu o sentido? Será
que seguir um estilo de vida prudente e preocupar-se com o bem-estar alheio é apenas para
“os fracos”? Será que não há mais espaço, diante da entronização do racionalismo, para uma
concepção ética baseada na solidariedade e na compaixão?
Ao longo deste estudo, será defendida uma postura otimista e conciliatória entre o
racional e o humanitário, tentando demonstrar que o pensamento racional, ao invés de
refutar as concepções éticas solidárias, pode fornecer argumentos que reforçam a
necessidade de se seguir uma vida virtuosa “de amor ao outro”. Para alcançar o objetivo
previamente estabelecido, será necessário analisar algumas questões envolvendo o
pensamento racional, a laicidade do Estado e a ética religiosa, o que se fará no próximo
tópico.

5
NIETZSCHE, Friedrich. Para a Genealogia da Moral: uma polêmica (Zur Genealogie der Moral: Eine
Streitschrift, 1887). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 15 – os colchetes não estão no original.
7

2 Ética, Religião e Razão

Para a grande maioria dos seres racionais que habitam o planeta Terra, Deus não
morreu, ao contrário do diagnóstico fúnebre de Nietzsche. E mesmo aqueles que não
acreditam em Deus não concordam com a idéia de que tudo é moralmente permitido, ao
contrário do que propôs o personagem de Dostoievski, sendo capazes de seguir uma vida
moralmente irrepreensível com base em princípios fundamentais de orientação ética6. A ética
sobrevive mesmo sem a religião, e a religião sobrevive mesmo sem comprovação empírica.
Disso se conclui que: (a) a ética tem uma base racional que ultrapassa a religião e (b) a religião
se sustenta na fé e não apenas na razão, de modo que a razão dificilmente “destruirá” a
religião.
O enaltecimento da razão pelo Iluminismo não foi capaz de substituir a fé em Deus por
uma fé na razão. Apesar disso, o projeto iluminista não foi um fracasso total. Pelo contrário. A
razão ganhou muito prestígio e ocupou vários espaços, inclusive espaços estratégicos para a
vida em sociedade, como o espaço estatal, que antes era ocupado pela religião. O princípio da
laicidade do Estado é a maior demonstração desse fenômeno. Esse princípio estabelece uma
clara separação entre o Estado e a Religião, exigindo neutralidade religiosa por parte das
autoridades estatais na tomada de decisões oficiais.

2.1 A Laicidade do Estado, o Direito Positivo e a Ética Religiosa

Apesar da adoção quase generalizada do princípio da laicidade do Estado pelos países


ocidentais e até mesmo por alguns países orientais, ainda há um forte vínculo entre o direito
estatal e os valores religiosos. Muitas leis pelo mundo afora inspiram-se em concepções
religiosas bastante conhecidas, como o princípio da sacralidade da vida humana, por exemplo,
que ainda exerce influência na legislação relativa ao aborto ou à eutanásia, embora tenha
entrado em declínio nos últimos anos.
Essa relação entre o direito positivo e a ética religiosa não deveria causar tanta
estranheza, pois tanto o direito quanto a religião são instrumentos éticos desenvolvidos pela

6
Até mesmo um filósofo católico como Hans Küng admite tal fato. Para ele: “é incontestável, de um ponto de
vista antropológico, o fato de muitos indivíduos não religiosos formularem e possuírem objetivos, prioridades,
valores e normas, ideais e modelos, critérios para destrinçar o verdadeiro do falso como princípios básicos”. E
mais: “é irrefutável, sob uma perspectiva filosófica, que ao Homem cabe, enquanto ser racional, uma verdadeira
autonomia – autonomia essa que lhe permite, sem crer na existência de Deus, sentir uma confiança fundamental
na realidade e apreender o seu grau de responsabilidade no mundo: uma auto-responsabilização e uma
responsabilização perante o mundo” (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990).
Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 75/76).
8

razão humana para proporcionar uma vida melhor em sociedade. O direito e a religião
compartilham, muitas vezes, os mesmos propósitos éticos e convergem em vários pontos
importantes. Os princípios éticos mais básicos (não matar, não agredir, não mentir, não
roubar, cumprir os pactos etc.) continuam sendo o alicerce do direito contemporâneo e
surgiram originalmente como princípios religiosos, estando presentes nos textos sagrados
mais conhecidos. Por isso, ainda que os argumentos religiosos não se misturem (ou pelo
menos não deveriam se misturar) com os argumentos jurídico-políticos, tal como determina o
princípio da laicidade, sempre haverá uma confusão teleológica entre esses dois instrumentos
da ética, de modo que, na prática, será quase impossível distinguir seus fundamentos.
Vale citar um exemplo para reforçar esse argumento.
A caridade é um dos principais princípios éticos do cristianismo. É certo que quase
todas as religiões, de algum modo, pregam a caridade, mas o cristianismo fez da caridade uma
bandeira central de sua doutrina. Ora, mas se a caridade é um princípio ético de natureza
originalmente religiosa, então, nenhuma lei poderia estimular a caridade caso o princípio da
laicidade do Estado fosse levado às últimas conseqüências. Essa conclusão seria absurda, pois
a caridade é, sem dúvida, um comportamento ético que merece ser estimulado pelo Estado
por meio de políticas públicas que incentivem a sua prática, pouco importando se a sua
origem é religiosa ou não. Existem razões fortes para acreditar que as sociedades que
praticam a caridade são mais coesas e, por isso, mais estáveis, e os seus membros mais felizes.
Desse modo, ainda que se reconheça a importância do princípio da laicidade do
Estado, não há o menor sentido em defender um racionalismo radical em matéria de
legislação, pois: (a) separar o estritamente racional do estritamente religioso não é fácil nem
útil, podendo levar a um embate desnecessário entre dois instrumentos éticos que, na
maioria das vezes, possuem objetivos comuns e se reforçam mutuamente no papel de
estímulo à prática de comportamentos eticamente desejáveis7; (b) o próprio racionalismo
radical é insuficiente para solucionar todos os problemas da vida, já que as explicações
racionais são apenas tentativas sempre provisórias de descrever a realidade e, portanto,
sujeitas ao erro8, de modo que a crença na razão não deixa de ser também, em certo sentido,
um ato de fé; (c) há muitos princípios éticos de natureza religiosa que também são racionais,

7
Isso não significa reconhecer que o direito e a religião sempre cumprem esse papel de realizar objetivos éticos.
Como qualquer produto cultural, tanto a religião quanto o direito podem ser manipulados para fins pouco
nobres e o são com muita freqüência.
8
Karl Popper, um dos maiores filósofos da ciência do século XX, foi um dos primeiros pensadores a reconhecer
que existe uma semelhança entre as explicações científicas da modernidade e as explicações mitológicas da era
pré-socrática. A diferença básica é que as explicações científicas estimulam o debate crítico e racional,
permitindo a evolução do conhecimento, enquanto que os mitos se baseavam no dogmatismo e, por isso, não
podiam ser refutados. Porém, mesmo o conhecimento científico, por mais refinado que seja o seu método e os
seus argumentos explicativos, descreveria apenas uma verdade meramente provisória, pois nunca se poderá ter
certeza se uma teoria científica corresponde com perfeição à realidade (POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações
(Conjectures and Refutations, 1963). Coimbra: Almedina, 2006).
9

pois podem ser justificados com consistência e coerência, inclusive com comprovação
empírica9.
O grande significado do princípio da laicidade do Estado não é repudiar a religião ou
estabelecer um anti-clericalismo, como se fosse possível estabelecer uma linha de separação
absoluta entre o direito positivo e as crenças baseadas na fé. O principal objetivo do princípio
da laicidade é o de exigir que os agentes públicos de um modo geral não invoquem dogmas
religiosos na fundamentação de suas decisões, nem favoreçam ou prejudiquem nenhuma
concepção religiosa em específico. Do mesmo modo, o referido princípio tem a força de
justificar o reconhecimento da inconstitucionalidade de leis baseadas em dogmas religiosos
destituídos de racionalidade, se, efetivamente, a sua irracionalidade for manifesta. Mas isso
não significa que toda legislação que possa ter sido influenciada por concepções religiosas seja
necessariamente inconstitucional. A inconstitucionalidade de uma determinada lei, em
virtude do princípio da laicidade do Estado, deverá ser aferida à luz da irracionalidade e das
suas conseqüências sociais danosas e não da religiosidade em si. A título ilustrativo, pode-se
citar o mandamento bíblico “não matarás”, que corresponde basicamente às leis criminais
que condenam o homicídio. Apesar de sua origem religiosa, nem por isso a condenação
normativa do homicídio viola o princípio da laicidade do Estado, já que está alicerçada em
fundamentos racionais sólidos, uma vez que nenhuma sociedade é capaz de sobreviver se
permitir que os seus membros se matem uns aos outros sem restrições. Por outro lado, uma
lei que proibisse o uso de anticoncepcionais com base em valores de índole religiosa ou uma
lei que condenasse o homossexualismo com base em interpretações do texto bíblico seriam

9
Em um sentido semelhante, mas muito mais confiante na importância da religião do que a aqui defendida, João
Loureiro sustenta que “é indubitável que o cristianismo traz um suplemento de fundamentação e um suplemento
de motivação, importante quando se sabe que os direitos fundamentais dependem do cumprimento não apenas
de um conjunto de pressupostos, mas também de expectativas constitucionais. Além disso, em sociedades
plurais, o cristianismo contribui também para um suplemento de explicitação e densificação do texto
constitucional, sendo legítima a mobilização de seus argumentos na esfera pública, apesar das vozes em
contrário que, cegamente, continuam a fazer equivaler religioso e irracional, religioso e pura subjetividade
(LOUREIRO, João Carlos. Pessoa, Dignidade e Cristianismo. in: Jorge de Figueiredo DIAS/ José Joaquim Gomes
CANOTILHO/ José de Faria COSTA (Org.), ARS IVDICANDI: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António
Castanheira Neves, vol. I: Filosofia, teoria e metodologia, Coimbra, 2008, p. 695). Consigno, contudo, a minha
discordância quanto à afirmação “sendo legítima a mobilização dos seus argumentos na esfera pública”, pois, na
minha ótica, isso se choca com o princípio da laicidade. Os princípios religiosos que possam ser justificados
racionalmente podem até fazer parte da argumentação jurídico-política na esfera pública, mas sem a roupagem
religiosa. Os agentes estatais não devem invocar textos sagrados para justificar qualquer ponto de vista, pois,
ainda que esses argumentos entrem na discussão como um mero topoi argumentativo como outro qualquer,
passível de crítica e de refutação, muitos poderão enxergar nessa postura a defesa de um dogma, e isso
certamente retira parte da legitimidade da decisão, pois o público tem uma expectativa de que as decisões
estatais devem ser tomadas com base em dados estritamente racionais. Isso não significa dizer que os princípios
religiosos são todos irracionais, mas apenas que invocar a religião num debate público pode atrapalhar a busca
de uma racionalidade desejável e possível na fundamentação dos atos públicos.
10

certamente inconstitucionais, por violarem, entre outras normas, o princípio da laicidade do


Estado10.

2.2 Ética Religiosa versus Ética Laica

Além de afetar o espaço estatal, o Projeto Iluminista também afetou o espaço


acadêmico, que passou a ser ocupado, em grande medida, pelo pensamento racional. Nas
ciências naturais (física, biologia, neurociência etc.), falar em “Deus” virou ironicamente uma
espécie de pecado intelectual. Aqueles que defendem uma concepção religiosa do mundo ou
da vida em uma reunião de biólogos ou de físicos correm um grande risco de serem ignorados
ou até mesmo ridicularizados pela comunidade científica11.
No campo da ética, por outro lado, vive-se um período híbrido, em que o racional
tenta conviver com o religioso. É uma convivência ainda não muito bem definida: há muitos
acordos, mas também muitos desacordos. Infelizmente, os desacordos costumam ser
superdimensionados pelo discurso acadêmico, gerando uma falsa sensação de que o diálogo
cordial e o consenso são inalcançáveis, o que não é de todo verdadeiro. A ética laica e a ética
religiosa podem sim conviver harmonicamente, ainda que possam ocorrer choques pontuais
típicos de qualquer debate.
Provavelmente, foram os gregos que deram início à separação da ética e da religião.
Sócrates deixou isso muito claro quando disse que as obrigações éticas são boas por si
mesmas antes de terem sido ordenadas pelos deuses. Essa idéia está no diálogo platônico
Eutífron, que foi talvez a primeira tentativa de demonstrar que as normas religiosas são
instrumentos da ética e não o contrário.
Porém, na Idade Média, a ética voltou a confundir-se com a religião através da densa
filosofia moral de Agostinho de Hipona e de Tomás de Aquino, que ainda hoje orientam as
diretrizes éticas mais relevantes da Igreja Católica e ainda exercem alguma influência na

10
Os dois exemplos referem-se a conhecidos julgamentos realizados pela Suprema Corte dos Estados Unidos: o
Caso Griswold v. Connecticut (1965) e o Caso Lawrence v. Texas (2003). No primeiro, foi reconhecida a
inconstitucionalidade de uma lei estadual que proibia a comercialização de anticoncepcionais. No segundo, foi
reconhecida a inconstitucionalidade da lei texana que punia criminalmente o homossexualismo.
11
O documentário norte-americano “Expelled: no intelligence allowed” (2008) retratou satiricamente a
perseguição sofrida nos Estados Unidos pelos acadêmicos que defendem o chamado “Intelligent Design”, que é
uma teoria alternativa ao evolucionismo de Darwin, com alguma influência religiosa, ainda que seus adeptos
neguem essa influência. Apesar de o filme ter um viés sensacionalista com fortes propósitos ideológicos e, por
isso, conter algumas informações incompletas e equivocadas acerca da teoria da evolução, não se pode negar
que surtiu o efeito desejado que era apontar a discriminação sofrida por cientistas que ousaram criticar o
evolucionismo. Uma visão geral da polêmica gerada pelo filme pode ser conferida no seguinte endereço
eletrônico: http://en.wikipedia.org/wiki/Expelled.
Vale ressaltar que o sensacionalismo e a deturpação de informações também está presente no discurso dos
darwinistas, bastando citar, por todos, o livro “Deus, um delírio”, de Richard Dawkins, que iniciou uma guerra
ideológica entre a ciência e a religião totalmente desnecessária e infrutífera.
11

política legislativa estatal de diversos países. A existência de Deus é um ponto-chave tanto na


ética de Santo Agostinho quanto de Santo Tomás de Aquino.
Com o Renascimento e, mais intensamente, com o Iluminismo, que provocaram a crise
e o enfraquecimento da religião medieval, os filósofos passaram a tentar encontrar um
suporte de racionalidade nas normas éticas independentemente da vontade de Deus. A
filosofia kantiana talvez seja o exemplo mais notável desse projeto.

2.2.1 Immanuel Kant

Immanuel Kant construiu um elaborado modelo ético em que cada ser racional/moral
seria auto-legislador de si próprio12. A dignidade do ser racional estaria na sua capacidade de
não obedecer a outra lei senão àquela que ele mesmo elabora. A ação moral condizente com
o imperativo categórico kantiano seria a que pudesse se universalizar, ou seja, que pudesse se
tornar uma norma geral de conduta para qualquer pessoa que estivesse naquelas mesmas
condições.
O que move (ou deveria mover) o ser humano a agir moralmente é a sua boa vontade,
que constitui “a condição indispensável do próprio fato de sermos dignos de felicidade” (p.
22). Para Kant, de nada vale ter discernimento, capacidade de raciocínio, caráter,
autodomínio, moderação nas emoções e nas paixões, calma etc., se a intenção do agente não
for boa. Afinal, todas as grandes qualidades de um indivíduo podem gerar conseqüências
perversas se não forem dirigidas pela boa vontade13. E a vontade absolutamente boa é aquela
que, ao transformar-se em lei universal, não pode nunca se contradizer: “age segundo
máximas que possam simultaneamente ter a si mesmas por objeto como leis universais da
natureza” (p. 85), eis o primeiro imperativo categórico formulado por Kant. Categórico porque
é incondicional, ou seja, não depende nem de “mas”, nem de “se”. Deve ser cumprido em
todas as circunstâncias e ponto final.
É nesse contexto que Kant desenvolve o conceito de Dever, que conteria em si o de
boa vontade. Uma ação somente será considerada como moralmente boa se for praticada por

12
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008. As citações deste tópico foram extraídas do referido livro,
salvo indicação em contrário.
13
Pode-se aqui fazer um paralelo com os agentes do nazismo e o modelo de vida por eles defendido. Os nazistas
eram portadores de várias qualidades que podem ser consideradas como virtuosas, como a coragem, a
disciplina, o autocontrole, honra etc. No entanto, seus objetivos não eram nada virtuosos, de modo que os
valores nazistas perderam completamente a sua importância ética, justamente por não serem movidos por uma
boa vontade. Sobre isso, Kant certamente diria: “com efeito, sem os princípios duma boa vontade, podem elas
[as qualidades dos indivíduos] tornar-se muitíssimo más, e o sangue-frio dum facínora não só o torna muito mais
perigoso como o faz também imediatamente mais abominável ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem
isso” (p. 22).
12

dever. A ação moral kantiana deveria ser totalmente descompromissada. O único sentimento
que deveria guiar o agente moral seria o sentimento de dever.
Como se vê, na formulação kantiana, a religião não se torna necessária, ainda que Kant
invoque a idéia de Deus em diversas passagens de sua “Fundamentação da Metafísica dos
Costumes”. Quem age pensando em recompensas ou castigos divinos (o paraíso ou o inferno)
não estaria agindo moralmente segundo Kant.
A boa vontade seria boa em si mesma, independentemente das conseqüências que
promove ou realiza14. Daí se diz que a ética kantiana é deontológica, ou seja, não se preocupa
com as conseqüências da ação, mas apenas com o seu fundamento. Pode o mundo ruir, mas
se a sua ação foi guiada pela boa vontade, então você fez o certo, já que o valor moral da ação
não reside nos efeitos que dela se espera. A ética kantiana é, portanto, uma ética da
convicção.
O dever moral, segundo Kant, é um dever puro, imaculado, beatificado pela razão e só
pela razão. Até mesmo o conceito de Deus como bem supremo seria um produto “da idéia
que a razão traça a priori da perfeição moral e que une indissoluvelmente ao conceito de
vontade livre” (p. 45). Portanto, na filosofia kantiana, Deus é substituído pela razão: a
dignidade do homem consiste na sua capacidade de pensar por si próprio e de tomar as
decisões que afetam a sua vida com autonomia.
A razão, que é compartilhada igualmente por todos os seres humanos, é o principal
ingrediente da ética kantiana: “Ouse pensar” (“Sapere audere”), sugeria o filósofo alemão.
Para Kant, a pessoa que, por comodidade, opta por renunciar à capacidade de pensar por si
próprio é um covarde que pode ser equiparado a um animal domesticado. Por isso, ele
conclamava as pessoas a exercerem um senso crítico para pensar e tomar decisões com
autonomia, fugindo da preguiça intelectual de sempre seguir passiva e acriticamente a
orientação de outras pessoas15. Essa idéia sintetiza a base da concepção ética de Kant que,
como se vê, se distancia das concepções éticas religiosas, que recomendam a incondicional
obediência aos mandamentos divinos. Enquanto a religião recomenda a observância dos

14
Eis suas palavras: “Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro
duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções,
mesmo que nada pudesse alcançar a despeito de seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é
claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas
forças disponham), ela ficaria a brilhar por si mesma como uma jóia, como alguma coisa que em si mesma tem o
seu pleno valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor. A utilidade seria
apenas como que o engaste para essa jóia poder ser manejada mais facilmente na circulação corrente ou para
atrair sobre ela a atenção daqueles que não são ainda bastante conhecedores, mas não para a recomendar aos
conhecedores e determinar o seu valor” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes
(Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 23).
15
Essa idéia foi desenvolvida no texto “Resposta à Pergunta “O que é Iluminismo?”, que pode ser encontrado
em: KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Ensaios. Tradutor: Artur Morão Lisboa: Edições 70, 2002, pp. 11-
19.
13

preceitos divinos como um ato de fé, sem críticas e questionamentos, Kant coloca a sua fé na
razão, ou seja, na capacidade de os indivíduos, por si próprios, encontrarem as melhores
respostas éticas.
O homem, e, de uma maneira geral, todo o ser racional “existe como um fim em si
mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”16. Daí o segundo
imperativo kantiano: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente
como meio”17. A dignidade da humanidade consiste precisamente “nesta capacidade de ser
legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa
mesma legislação” (p. 89).
Graças a Kant, a filosofia moral passou por uma profunda revolução nas suas bases e
no seu desenvolvimento, pois se percebeu que é possível construir uma noção de ética bem
fundamentada sem apelar para argumentos religiosos.
Depois de Kant, veio John Stuart Mill, que talvez seja um dos mais influentes filósofos
morais no ocidente até os dias de hoje. Suas idéias não apenas são discutidas no meio
acadêmico, como também se transformaram na política oficial de vários países de feição
liberal, com particular destaque para os EUA. Várias decisões judiciais da Suprema Corte
norte-americana seguem, explícita ou implicitamente, as idéias de Stuart Mill18. Em razão
disso, vale analisar com mais atenção o pensamento ético deste notável filósofo inglês.

2.2.2 John Stuart Mill

Stuart Mill também defende com fervor a idéia de autonomia da vontade. Para ele,
cada um deve ser senhor de si próprio, tomando as decisões que lhe afetam com autonomia e
responsabilidade. Mill foi um dos primeiros filósofos a estender as suas conclusões também
para as mulheres: assim como os homens, as mulheres também deveriam ser “senhoras de
si”, não devendo se sujeitar aos caprichos dos seus maridos ou dos seus pais, uma idéia
explosiva para época (século XIX) e certamente contrária à doutrina oficial da maioria das
religiões até então dominantes. Eis suas fortes palavras:
“o princípio que regula as relações sociais existentes entre os sexos – a
subordinação legal de um sexo a outro – está errado em si mesmo e, portanto, é um dos

16
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 71.
17
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 73.
18
Podem-se citar, por exemplo, várias decisões em matéria de liberdade de expressão, de igualdade de gêneros
e de autonomia da vontade em que foram invocados argumentos desenvolvidos originalmente por Stuart Mill.
Os casos mais relevantes julgados pela Suprema Corte norte-americana, envolvendo essas temáticas, seguem,
em alguma medida, as idéias liberais de Mill.
14

principais obstáculos para o desenvolvimento humano; tal subordinação deveria ser


substituída por um princípio de igualdade perfeita, sem qualquer poder ou privilégio para
um lado e incapacidade para o outro”19.
No pensamento de Mill, a importância conferida à autonomia da vontade não se
restringe ao âmbito da filosofia moral. A liberdade de escolha também – e sobretudo –
deveria ser tornar a diretriz política oficial, ou seja, os Estados deveriam respeitar a autonomia
da vontade dos indivíduos sempre que o seu exercício não prejudicasse outras pessoas: “O
único objetivo legítimo do poder sobre qualquer membro da comunidade civilizada, contra a
sua vontade, é evitar que outros sejam prejudicados”. Para ele, as escolhas pessoais de cada
um, desde que tomadas de forma verdadeiramente livre e que não fossem prejudiciais aos
interesses dos outros, não deveriam sofrer interferências indevidas nem do Estado nem da
sociedade como um todo20.
John Stuart Mill se distancia de Kant em um ponto fundamental: Mill se preocupa com
as conseqüências das ações. Para ele, influenciado por Jeremy Bentham, na aferição da
qualidade moral de uma determinada conduta, seria mais importante verificar os resultados
(exteriores e objetivos) produzidos por essa ação ao invés de um mero sentimento subjetivo
de dever, tal como sustentado por Kant. Enquanto a filosofia kantiana é deontológica, a de
Mill é utilitarista. Para Kant, o que vale é a intenção do agente; para Mill, as conseqüências da
ação, ou seja, a qualidade moral de uma ação é julgada com base na quantidade de felicidade
que foi maximizada com aquele ato, incluindo também a prevenção ou redução da
infelicidade, que é um objetivo menos quimérico do que a busca da felicidade.
Desse modo, uma ação é moral, conforme Mill, se maximizar a felicidade tanto quanto
possível:
“Toda ação visa um fim qualquer, e as regras da ação, parece natural supor,
devem adquirir todo o seu caráter e orientação do fim ao qual estão subordinadas. (...)
As ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade, e
incorretas na medida em que tendem a gerar o contrário da felicidade. Por felicidade
entendemos o prazer, e a ausência de dor; por infelicidade, a dor, e a privação do
prazer”21.
Com base nessas premissas, o utilitarismo desenvolveu o princípio da maior felicidade,
que seria o fim último da ética. Afinal, se todos desejam “uma existência tanto quanto
possível isenta de dor e tão rica quanto possível em prazeres, tanto em qualidade quanto em
quantidade”, então este também deve ser o “padrão da moralidade”, que deveria ser, na sua
máxima extensão, garantida a toda a humanidade e “não apenas à humanidade, mas, na
medida em que a natureza das coisas o permitir, a todas as criaturas sencientes” (p. 44/45).

19
MILL, Stuart. A Sujeição das Mulheres (The Subjection of Woman, 1869). São Paulo: Escala, 2006, p. 15.
20
MILL, Stuart. Ensaio sobre a Liberdade (On Liberty, 1859). São Paulo: Editora Scala, 2006.
21
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e
51. As citações seguintes, deste tópico, são do mesmo livro, salvo indicação em contrário.
15

É preciso enfatizar que a felicidade que constitui o padrão da moralidade na ótica


utilitarista não é a felicidade do agente, mas de todos os envolvidos: “O utilitarismo exige que
o agente seja tão estritamente imparcial entre a sua própria felicidade e a dos outros como
um espectador desinteressado e benevolente” (p. 64).
A preocupação com os interesses dos outros está bastante presente na ética
utilitarista de Stuart Mill. Para ele, “desde que estejam a cooperar, os seus fins estão
identificados com os dos outros; existe pelo menos um sentimento temporário de que os
interesses dos outros são os seus próprios interesses”. Por isso,
“O fortalecimento dos laços sociais, e todo o crescimento saudável da sociedade,
não dá apenas a cada indivíduo um interesse pessoal mais forte na consulta efetiva do
bem-estar dos outros; leva-o também a identificar cada vez mais os seus sentimentos com
o bem deles ou, pelo menos, com um grau ainda maior de consideração prática por esse
bem. Como que por instinto, o indivíduo ganha consciência de si próprio como um ser que
obviamente se preocupa com os outros. O bem dos outros torna-se para ele um coisa à
qual se tem de dar atenção, natural e necessariamente, como a qualquer dos estados
físicos da nossa existência (...). Num estado de aperfeiçoamento da mente humana, as
influências que tendem a gerar em cada indivíduo um sentimento de unidade com todos
os outros estão em aumento permanente; sentimento que, se perfeito, faria o indivíduo
nunca pensar em qualquer condição benéfica para si mesmo, ou desejá-la, caso não
estivessem todos incluídos no seu proveito” (p. 85 e 86)22.
Costuma-se dizer que as teorias utilitaristas são maquiavélicas, ou seja, aceitam todos
os meios para que os seus fins sejam alcançados. Essa acusação certamente não pode se
aplicar ao pensamento de Stuart Mill, que entende que aquele que pratica o mal pensando
em receber algum benefício imediato para si ou para outrem “desempenha o papel de um dos
piores inimigos da humanidade” (p. 44 e 64). Até mesmo a Idéia de justiça e de direitos
desempenha um papel importante no utilitarismo de Mill. Eis suas palavras:
“Embora ponha em causa as pretensões de qualquer teoria que estabeleça um
padrão imaginário de justiça não baseado na utilidade, considero que a justiça que
fundada na utilidade a parte principal, e incomparavelmente a mais sagrada e vinculativa,
de toda a moralidade. (...)
As regras morais que proíbem os seres humanos de fazer mal uns aos outros (nas
quais nunca devemos esquecer-nos de incluir a interferência incorreta na liberdade uns
dos outros) são mais vitais para o bem-estar humano do que quaisquer máximas, por mais
importante que sejam, que apenas indiquem a melhor forma de gerir um dado setor da
vida humana. (...)
É a observância destas regras morais que, só por si, preserva a paz entre os seres
humanos. Se a obediência a elas não fosse a regra, e a desobediência a exceção, cada um

22
Stuart Mill, numa visão bastante avançada para a época, já anteviu as vantagens biológicas de um tal
sentimento de empatia: “Graças à sua inteligiência superior, mesmo sem ter em conta o maior alcance da sua
empatia, um ser humano é capaz de dar-se conta da comunidade de interesses entre si e a sociedade humana da
qual faz parte, de tal forma que qualquer conduta que ameace a segurança da sociedade em geral é ameaçadora
para a sua própria segurança e desperta o instinto (se é que é um instinto) de autodefesa. A mesma
superioridade de inteligência, aliada à possibilidade de sentir empatia para com os seres humanos em geral,
permite-lhe ligar-se à idéia coletiva da sua tribo, do seu país, ou da humanidade, de tal maneira que qualquer ato
prejudicial para eles desperta o seu instinto de empatia, e insta-o a resistir” (p. 112).
16

veria em todos os outros um provável inimigo, contra o qual teria de se manter


permanentemente em guarda” (p. 122).
Poderiam ser formuladas algumas críticas tanto à filosofia moral de Kant quanto à de
Mill, mas isso não importa neste momento. O que se pretende destacar é que também a
filosofia moral de Stuart Mill é laica, ainda que não seja ímpia23. Não há qualquer invocação da
vontade divina como fundamento das normas éticas. Para Mill, as pessoas gostam de sentir
prazer. Logo, a conduta ética é aquela que maximiza o prazer do maior número de pessoas
possíveis. E o que move o ser racional a agir moralmente não é a obediência cega aos
mandamentos divinos, mas a busca do prazer (ou a prevenção da dor) para si e para os
outros.

2.3 A Filosofia Moral Contemporânea

É lógico que nem Kant nem Mill são a última palavra em matéria de ética, pois se há
uma coisa que os dois ensinam é que a razão nos fornece instrumentos para questionar tudo,
inclusive as suas próprias teorias. Se até mesmo as doutrinas éticas de matriz religiosa podem
ser colocadas em dúvida pelo pensamento crítico, com muito mais razão as doutrinas laicas
também devem ser analisadas com o máximo rigor, até porque os seres humanos, por mais
brilhantes que sejam, são falíveis e dispõem de uma quantidade muito limitada de
informações para basear suas conclusões.
Ao contrário do que muitos pensam, a ética evolui, assim como qualquer produto
cultural pode evoluir na medida em que o conhecimento vai se acumulando. É possível
observar que a ética, pelo menos na teoria, está evoluindo a passos largos, ainda que as
evidências da realidade demonstrem o contrário. A destruição dos valores morais nesses
tempos de individualismo egoísta, motivada por uma ganância de lucros materiais sem
qualquer propósito, não deve gerar a falsa sensação de que a filosofia moral está em declínio.
Não está. Há muitos estudos de altíssimo nível sendo produzido no campo da ética. Aliás, o
avanço da ética talvez seja até um sintoma dessa patologia dos valores da nossa atual
sociedade. E o curioso é que esse fenômeno vale tanto para a ética laica quanto para a ética
religiosa, que também tem ressurgido com muita força, inclusive no meio acadêmico. Basta
ver, por exemplo, os escritos de Alasdair MacIntyre para perceber esse fenômeno24.

23
Mill defende o utilitarismo da acusação de ser uma teoria ímpia com os seguintes argumentos: “caso seja
verdade a crença de que Deus deseja, acima de todas as coisas, a felicidade das suas criaturas, e que esse foi o
seu propósito ao criá-las, a utilidade não só não é uma doutrina ímpia, como é mais profundamente religiosa do
que qualquer outra” (p. 70).
24
MacIntyre, que já foi marxista, abraçou a ética das virtudes com confessada influência da Igreja Católica e,
hoje, é um ardoroso defensor de uma filosofia moral de índole religiosa e, ao mesmo tempo, racional. Ao criticar
a concepção ética da modernidade, de feição liberal e individualista, ele tenta resgatar a ética das virtudes,
proposta inicialmente por Aristóteles e abraçada posteriormente por Tomás de Aquino, defendendo a criação de
17

Outro filósofo moral com inspiração religiosa que vem se destacando é o teólogo suíço
Hans Küng, sacerdote da Igreja Católica25. No seu “Projeto para uma Vida Ética”, Küng
defende a união de todas as religiões para tentarem construir, a partir de um diálogo
ecumênico, um ethos mundial para toda a humanidade como referência de base, pois “a
sociedade mundial não carece, na realidade, de uma religião ou de uma ideologia únicas ou
unificadas, mas sim de determinadas normas, valores, ideais e objetivos de caráter
vinculativo”26. Nesse processo, como se vê, a religião tem um papel de grande importância,
ainda que movida por um sentimento baseado numa fé racional.
Para Küng, a religião teria uma dupla face:
“as religiões podem de fato ser tirânicas, autoritárias e, na verdade, foram-no
vezes de mais: podem gerar o medo, a mesquinhez, a intolerância, a injustiça, a frustração
e a abstinência social; podem legitimar e inspirar a imoralidade, deficiências sociais e
guerras no interior de uma nação ou entre nações;
As religiões podem também atuar de forma libertadora numa perspectiva
orientada para o futuro e humanizada, e já o fizeram também diversas vezes; podem
difundir um sentimento de confiança na vida, de generosidade, tolerância, solidariedade,
criatividade, empenhamento social e podem ainda impulsionar um renascimento
espiritual e a paz mundial”27.
Küng acredita numa união entre as religiões, pois, na sua percepção, todas elas, por
mais perplexamente divergentes que sejam quando confrontadas umas com as outras,
respondem a questões fundamentais semelhantes dos seres humanos. E todas elas
proporcionam, além de interpretações do mundo, “caminhos para a salvação semelhantes:
caminhos para escapar – através de um agir com sentido e consciente das responsabilidades
dos homens nesta vida – às miséria, ao sofrimento e à culpa inerentes à existência humana,

pequenas comunidades locais onde esses valores podem florescer. Suas principais idéias estão nos livros: “After
Virtue”, “Whose Justice? Which Rationality?”, “Three Rival Versions of Moral Enquiry” e “Dependent Rational
Animals”, que compõem aquilo que se convencionou chamar de “Projeto After Virtue”. Para uma versão geral do
pensamento do referido autor: GONÇALVES, João Pedro. O Horizonte da Justiça em Alasdair MacIntyre. Braga:
Universidade Católica Portuguesa, 2007. A página acadêmica de Alasdair MacIntyre é:
http://www.nd.edu/~ndethics/about/macintyre.shtml.
25
Hans Küng, que foi ordenado sacerdote em 1954, se auto-intitula teólogo ecumênico, já que defende um
pluralismo religioso onde todas as religiões possam contribuir para a paz mundial. Em 1979, Küng perdeu a
licença concedida pela Igreja Católica para lecionar teologia em seu nome, por haver criticado o dogma da
infalibilidade papal no livro “Infallible? An Inquiry”, publicado em 1970. Continuou lecionando em Tübingen até a
sua aposentadoria em 1996 e sempre defendeu idéias polêmicas, como o fim da obrigatoriedade do celibato
clerical e uma maior participação laica e feminina na Igreja Católica. No campo da ética, tem defendido um
“Projeto para Uma Ética Mundial”, já que é impossível sobreviver em um ethos mundial (KÜNG, Hans. Projecto
para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996).
(Wiki: http://en.wikipedia.org/wiki/Hans_K%C3%BCng).
26
KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços.
Lisboa: Piaget, 1996, p. 11.
27
KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços.
Lisboa: Piaget, 1996, p. 89. Vale ressaltar que Hans Küng, apesar de ser sacerdote da Igreja Católica, é bastante
crítico quanto a alguns posicionamentos de sua igreja e defende abertamente esse tipo de auto-crítica como
forma de engrandecimento interno. Para ele, “o Vaticano, a última monarquia absolutista da Europa, não só
ainda não subscreveu a Declaração dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, como também tem
necessidade ainda de levar a cabo uma Glasnost e uma Perestroika” (p. 156).
18

em busca de uma salvação duradoura, permanente, eterna...”28. Daí, conclui que “a vida
humana em sociedade é impossível sem um ethos mundial de todas as nações; é impossível
haver paz entre as nações sem paz entre as religiões; é impossível haver paz entre as religiões
sem diálogo entre as religiões”29.
Apesar do ressurgimento do interesse acadêmico pela ética religiosa, é possível
perceber que, na esteira de Kant e de Mill, a ética laica também continua ganhando cada vez
mais espaço e tende a se desenvolver ainda mais em razão do acúmulo de conhecimento e de
troca de experiências que a tecnologia da informação proporciona. A globalização também
tem seu lado bom: permitir um intercâmbio universal de idéias, possibilitando uma
aproximação ainda que virtual de todos os seres humanos.
Um dos principais responsáveis pela evolução contemporânea da ética prática não-
religiosa é, sem dúvida, o polêmico filósofo australiano Peter Singer30.
Singer ficou famoso por sua defesa do direito dos animais, cuja argumentação principal
foi desenvolvida no livro “Libertação Animal”. Para ele, a dor é má seja quem for aquele que
sofre, razão pela qual deve ser evitada e minimizada independentemente da raça, do sexo ou
da espécie do indivíduo que sofre. Como os seres humanos não são os únicos seres capazes de
sentir dor ou de sofrer, o sofrimento dos animais também deveria ser levado em conta em
qualquer concepção ética, razão pela qual devemos trazer os animais não-humanos para o
interior de nossa esfera de proteção moral. Não podemos ignorar eticamente os interesses de
outros seres apenas por eles não serem membros da nossa espécie. Por isso, Singer defendeu
a prevenção do sofrimento e do suplício dos animais; combateu a discriminação arbitrária por
motivo de espécie (especismo31); e lutou ativamente contra o sofrimento desnecessário e a
exploração sofrida pelos animais, pois, na sua ótica, a posse de um grau superior de
inteligência não conferiria a um ser humano o direito de tratar outros seres (humanos ou não-
humanos) somente como um meio para atingir os seus fins32.

28
KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços.
Lisboa: Piaget, 1996, p. 225 – os destaques não constam no original.
29
KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços.
Lisboa: Piaget, 1996, p. 241.
30
Página acadêmica: http://www.princeton.edu/~psinger/
31
O especismo consiste em um preconceito ou em uma atitude tendenciosa em relação aos interesses dos
membros de nossa própria espécie em detrimento dos interesses dos membros de espécies diferentes. “Os
racistas violam o princípio da igualdade atribuindo maior peso aos interesses dos membros de sua própria raça
quando se verifica um choque entre estes interesses e os interesses de uma outra raça. Os sexistas violam o
princípio da igualdade favorecendo os interesses do próprio sexo. De modo similar, os especitas permitem que
os interesses da sua própria espécie se sobreponham e anulem os interesses maiores de outras espécies. O
padrão repete-se em cada um destes casos” (SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na
Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008,
p. 50).
32
Singer escreveu essas idéias nos anos 1970 e é notável perceber como elas tiveram influência e resultaram em
medidas práticas que diminuíram efetivamente o sofrimento dos animais no mundo todo, ainda que muito ainda
tenha a ser feito. Desde então, foram aprovadas inúmeras leis de proteção aos animais, foram abolidos várias
19

Ainda que esse seja um ponto nuclear da ética singeriana, suas idéias não se
restringem a isso. Singer também gerou algumas polêmicas ao defender a eutanásia
voluntária e ativa (inclusive para amenizar o sofrimento de crianças com graves deficiências
mentais, desde que fosse esse o desejo dos pais) e o aborto (sem maiores restrições quanto
ao tempo da gestação, desde que o ato cirúrgico produzisse o mínimo de dor possível ao
feto)33. Sobre essas questões, vale a leitura do seu “Ética Prática”. Para Singer, “quando
consideramos a gravidade de tirar uma vida, não devemos olhar para a raça, sexo ou espécie
do ser em questão, mas para as características do ser individual que pode ser morto, como,
por exemplo, os seus próprios desejos a respeito de continuar a viver ou o gênero de vida que
ele poderá vir a ter“34.
Outra idéia polêmica, mas bem-vinda, foi a defesa de uma ética global única para todo
o planeta, à semelhança do que Hans Küng desenvolveu no seu “Projeto para uma Ética
Mundial”. Para Singer, a globalização deveria gerar um efeito positivo: a criação de um vínculo
de solidariedade e de empatia entre todos os seres humanos de modo que cada um se sinta
responsável pelo bem-estar do outro, por mais distante fisicamente que esteja o outro e
independentemente da nacionalidade ou da etnia do outro. Essas idéias estão no seu “Um Só
Mundo”. Para ele, “somos responsáveis não só por aquilo que fazemos, mas também por
aquilo que poderíamos ter impedido. Nunca mataríamos um desconhecido, mas podemos
saber que a nossa intervenção salvaria a vida de muitos desconhecidos num país distante, e
mesmo assim não fazemos nada. Não nos consideramos responsáveis de forma alguma pela
morte dessas pessoas. Isto é um erro. Devemos considerar as conseqüências tanto daquilo que
fazemos quanto daquilo que decidimos não fazer“35.
No próximo tópico, discorrerei sobre algumas idéias de Peter Singer comparando-as
com a filosofia de São Francisco de Assis, no intuito de tentar demonstrar que é possível
justificar racionalmente uma concepção ética humanista, reforçando o argumento de que

formas de experimentos dolorosos que eram realizados desnecessariamente em animais, a indústria alimentícia
passou a ser um pouco mais atenciosa quanto aos interesses dos animais e assim por diante. No caso do Brasil,
por exemplo, o princípio da proibição de crueldade contra animais tornou-se norma constitucional (art. 225, § 1º,
inc. VII, da CF/88).
33
Ressalte-se que o próprio Singer afirmou, no seu “Escritos sobre uma Vida Ética“ (p. 12), que essas suas idéias
sobre o aborto e a eutanásia constituem uma parte “menos importante” de sua filosofia, com o que estou
plenamente de acordo. Elas são menos importantes tanto porque abrangem uma parcela muito pequena de
casos éticos (ao contrário da tese sobre a libertação animal ou do combate à pobreza, por exemplo), além de não
atingir o seu propósito principal, que é diminuir o sofrimento do mundo. A morte de uma criança, mesmo com
grave deficiência, nunca diminui o sofrimento do mundo. Pelo contrário, aumenta. Por outro lado, os
argumentos utilizados para justificar a eutanásia voluntária em pacientes adultos dotados de autonomia de
vontade são mais consistentes, pois prestigia a autonomia da vontade sem violar o direito de outras pessoas
além daquele que deseja ter uma morte digna. Mas não é o propósito deste estudo se alongar nesse tema.
34
SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria
Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 13.
35
SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria
Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 13.
20

nem toda concepção ética de matriz religiosa é necessariamente irracional. Vale ressaltar que
limitarei minha análise ao livro “Como Havemos de Viver?”, pois certamente, em outros livros,
como o “Ética Prática”, Peter Singer adotou alguns posicionamentos que certamente não são
compatíveis com a ética franciscana, especialmente no que se refere à sacralidade da vida
humana.
21

3 A Ética Laica de Peter Singer e a Oração de São Francisco de Assis

A Oração de São Francisco de Assis é, certamente, um dos mais belos cânticos


religiosos que existem, tanto por sua melodia quanto pela sua letra. Curiosamente, não foi
composta por São Francisco de Assis. Foi escrita no século XX e São Francisco de Assis viveu
entre os séculos XII e XIII. Em 1916, a Oração de São Francisco “foi impressa em Roma numa
folha, em que num verso estava a oração e no outro verso da folha foi impressa uma estampa
de São Francisco. Por esta associação e pelo fato de que o texto reflete muito bem o
franciscanismo, esta oração começou a ser divulgada como se fosse de autoria do próprio
santo”36. A autoria da letra é, até hoje, um mistério.
A ética contemporânea proposta pelo filósofo ateu Peter Singer lembra, em muitos
aspectos, os ensinamentos franciscanos contidos na referida oração. A idéia de que os animais
merecem ser tratados com dignidade, por exemplo, também era uma das principais
características da filosofia franciscana. A caridade e o sacrifício dos interesses pessoais em
favor de outras pessoas, inclusive estranhos, também estão presentes na filosofia de vida
pregada por São Francisco de Assis. Singer também propõe uma vida de poucos luxos, onde a
preocupação com o sofrimento alheio ocupa uma função primordial na sua proposta ética. Ele
critica enfaticamente a ética da ganância individual e do interesse próprio onde o essencial é
fazer dinheiro, ficar rico e se dar bem às custas dos outros. Para ele, o princípio do “que lucro
eu com isso?”, que vigora na sociedade contemporânea, debilita o nosso sentido de fazer
parte de uma comunidade e destrói qualquer laço mais duradouro entre os indivíduos, pois
cada um se vê como uma mera fonte de lucro. “A suposição é que o melhor é olharmos para
nós próprios, pois o outro aproveitar-se-á de nós sempre que possível - e a suposição torna-se
uma profecia que se cumpre a si mesma porque de nada vale ser cooperante com quem não
sacrificará o seu ganho pessoal de curto prazo a favor de benefícios mútuos de longo prazo” 37.
Porém, uma sociedade ligada apenas por laços efêmeros do interesse próprio, não pode ser
uma sociedade boa, até porque um consumismo desenfreado dos limitados bens naturais
acarretará, mais cedo ou mais tarde, a própria destruição do planeta.
De um modo geral, era isso o que defendia São Francisco de Assis. A diferença
fundamental é que os filósofos laicos tentam justificar racionalmente a sua ética, enquanto
que, em São Francisco, a mera possibilidade de uma vida eterna já seria suficiente para seguir
os ensinamentos de Cristo. São Francisco diria: “onde houver dúvida, que eu leve a fé”. A ética

36
A referida informação foi obtida a partir da Wikipédia, que cita a seguinte fonte: RENOUX. Christian. La prière
pour la paix attribuée à saint François, une énigme à résoudre. Paris: Paris Editions franciscaines, 2001.
37
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 77.
22

laica, por outro lado, defende: “onde houver dúvida, que eu leve o pensamento crítico-
racional”. “Agir eticamente é agir de um modo que se possa recomendar e justificar”, adverte
Singer, para lembrar a constante necessidade de fundamentar racionalmente os
comportamentos éticos, de forma a tentar convencer as pessoas racionais a agirem
eticamente38.

3.1 Darwinismo, Teoria dos Jogos e Cooperação

Ao justificar a sua noção de ética, Peter Singer segue um caminho que muitos acharão
perigoso: aceita a teoria da evolução de Charles Darwin para defender que a cooperação é
uma estratégia de ação bem sucedida na ótica evolucionista. Para Singer, “os seres humanos
são muitas vezes egoístas, mas a nossa biologia não nos obriga a ser assim. Pelo contrário,
leva-nos a cuidar dos nossos filhos, dos nossos familiares mais afastados e, em certas
circunstâncias, também de grupos maiores”39.
Há, nesse aspecto, um claro questionamento da idéia de egoísmo que o polêmico
biólogo da atualidade Richard Dawkins40 defendeu em seu livro “Gene Egoísta” publicado pela
primeira vez em 197641.
A base teórica de Dawkins é o darwinismo, com as contribuições fornecidas pelos seus
seguidores, em especial George Williams e William Hamilton. O ponto original no pensamento
defendido por Richard Dawkins é que, para ele, a seleção natural não operaria no nível dos
indivíduos, nem dos grupos, nem das espécies, e sim dos genes. Em outras palavras: seriam os
genes que lutam para sobreviver e que estão na base da teoria evolutiva. Os seres vivos
seriam projetados para agir de forma a aumentar a probabilidade de que seus genes, ou
cópias de seus genes, sobrevivam e se reproduzam. Para Dawkins, os organismos seriam
meras máquinas de sobrevivência – robôs cegamente programados para preservar as
moléculas egoístas chamadas genes, que fazem tudo para se perpetuar. Somente o gene
egoísta seria capaz de sobreviver, pois se o gene for altruísta o suficiente para permitir que
outro gene sobreviva em seu lugar, certamente esse gene altruísta deixará de existir. Dawkins
diz ainda que o egoísmo do gene seria uma característica boa, no sentido de que facilitaria a
sobrevivência. O gene egoísta seria mais apto a vencer a luta pela vida. Todo gene estaria
programado para sobreviver e se reproduzir e fará o que for preciso para se perpetuar. No
nível dos genes, não haveria espaço para o altruísmo.

38
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 306.
39
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 197.
40
Página acadêmica: http://richarddawkins.net/
41
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
23

Dawkins, logicamente, não nega a existência do altruísmo e da cooperação entre os


animais sociais, inclusive os seres humanos. No entanto, ele não considera que esse altruísmo
seja genuíno e autêntico, pois, no fundo, não passa de um egoísmo genético: o gene que age
de forma cooperativa nada mais está fazendo do que usar todas as armas disponíveis para se
perpetuar. No final, sempre haverá uma componente de egoísmo.
Embora as explicações desenvolvidas pela biologia evolucionista sejam bastante
plausíveis, o termo “gene egoísta” é enganador, pois, paradoxalmente, esse gene egoísta
geraria seres cooperativos, conforme reconhece o próprio Dawkins. Há um capítulo do “Gene
Egoísta” que defende claramente que a melhor estratégia de evolução a longo prazo,
considerando não o gene, mas a espécie e os grupos, não seria o egoísmo, mas a
cooperação42.
Essas idéias também foram bem desenvolvidas por Matt Riddley, no seu “A Origem da
Virtude: um estudo biológico da solidariedade”, que forneceu explicações biológicas bastante
convincentes acerca do surgimento da solidariedade entre os organismos sociais,
demonstrando que a evolução, essencialmente uma questão de competitividade, às vezes
pode dar origem a instintos de cooperação43. Para Riddley, “a revolução do gene egoísta,
longe de ser uma ordem sombria e hobbesiana para ignorarmos o bem-estar alheio, é
exatamente o oposto (...). Genes egoístas às vezes usam indivíduos desprendidos para
alcançar os seus fins”44. E o que importa para sociedade é o fato de as pessoas serem boas
umas com as outras e não os seus motivos.
É justamente essa incoerência na teoria de Richard Dawkins (ou seja, um apego
desnecessário e equivocado à idéia de “egoísmo”, gerando uma falsa impressão de que ser
egoísta é uma boa estratégia evolutiva para o indivíduo) que Peter Singer aproveita para
desenvolver uma ética que, alicerçada, pelo menos em parte, em bases darwinistas, se
aproxime, quanto aos propósitos axiológicos, dos valores de solidariedade tão caros à
humanidade.

3.1.1 O Dilema do Prisioneiro

Para justificar seu ponto de vista, Singer, na esteira de vários outros pensadores,
invoca o famoso Dilema do Prisioneiro, formulado por Albert W. Tucker em 1950, que tem
servido como modelo básico de jogo para estudar a teoria da escolha racional, que é a teoria

42
O capitulo em questão intitula-se: “Os bons rapazes terminam em primeiro”.
43
RIDLEY, Matt. As Origens da Virtude: um estudo biológico da solidariedade (The Origins of Virtue, 1996). Rio
de Janeiro: Record, 2000. Curiosamente, Dawkins disse que o livro de Ridley poderia ser considerado como a
segunda parte do seu “Gene Egoísta”.
44
RIDLEY, Matt. As Origens da Virtude: um estudo biológico da solidariedade (The Origins of Virtue, 1996). Rio
de Janeiro: Record, 2000, p. 29.
24

que procura fornecer as melhores soluções racionais em situações complexas que envolvem
incertezas e estratégias de cooperação social45.
O jogo consiste numa situação hipotética que pode ser descrita do seguinte modo:
“Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes
para os condenar, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se
um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer
em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de
sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6 meses de
cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia. Cada
prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem
certeza da decisão do outro”46.
Se cada jogador se guiar pensando unicamente nos seus próprios interesses,
certamente irá trair o seu companheiro, pois essa é a melhor estratégia de decisão individual,
seja qual for a atitude tomada pelo outro. Em outras palavras: se você trair, você tem chance
de sair livre, caso o seu companheiro não lhe entregue, ou ser condenado a apenas cinco anos
de prisão, caso o seu companheiro também o traia. Por outro lado, se você não trair, pode ser
condenado a até dez anos de prisão, caso o seu companheiro o traia. Desse modo, se você
pensar em si próprio, desconsiderando os interesses do outro jogador, é melhor trair. O pior é
que, se o seu companheiro pensar do mesmo modo, certamente a melhor solução que ele
adotará é também o trair, pelas mesmas razões já apresentadas.
Não há dúvida que, numa perspectiva egoísta de curto prazo, trair é a melhor
estratégia, pois as chances de se beneficiar são maiores. Porém, tudo muda se o jogo se

45
A teoria dos jogos é um campo da matemática que tem sido desenvolvido para analisar esse tipo de problema,
ou seja, é uma teoria que estuda a escolha de decisões ótimas sob condições de conflito. Ela foi criada “para se
modelar fenômenos que podem ser observados quando dois ou mais ‘agentes de decisão’ interagem entre si. Ela
fornece a linguagem para a descrição de processos de decisão conscientes e objetivos envolvendo mais do que
um indivíduo” (SARTINI, Brígida Alexandre e outros. Uma Introdução à Teoria dos Jogos. Bahia: Universidade da
Bahia, 2004). A Universidade de Yale disponibilizou na íntegra e gratuitamente um Open Course em “Game
Theory”, ministrado pelo professor Ben Polak que pode ser acompanhado no seguinte endereço eletrônico:
http://oyc.yale.edu/yale/economics/game-theory.
Sob um olhar crítico, deve-se reconhecer que a teoria dos jogos pode ser útil como exercício de racionalização e
de explicação, mas creio que, dificilmente, ela terá alguma utilidade prática concreta para o direito ou para a
ética a curto prazo. É que essa teoria se baseia na atribuição de valores para determinadas conseqüências e nem
todas as conseqüências desejadas pelo direito ou pela ética podem ser matematizadas. Como atribuir valores
para a liberdade, para a vida humana, para família etc.? Como decidir uma questão de eutanásia, ou de aborto,
com base na teoria dos jogos? Talvez os problemas ético-jurídicos estritamente comerciais possam ser, de algum
modo, solucionados pela teoria dos jogos, já que é possível encontrar, com mais facilidade, o equilíbrio de Nash.
Mas aquelas que envolvem direitos ou valores não econômicos possuem um componente ético que não segue a
lógica matemática e que, portanto, dificilmente podem ser transformadas em fórmulas numéricas. De qualquer
modo, é tentador pensar numa função normativa para a teoria dos jogos, onde o papel do direito seria o de
estabelecer mecanismos para que o equilíbrio de Nash fosse atingido e observado. O direito, então, funcionaria
como um mecanismo para incentivar os comportamentos que gerem uma situação em que todos os envolvidos
possam ganhar o máximo possível. Dentro da lógica nashariana, o direito deveria punir aqueles “jogadores” que
se desviem do equilíbrio e premiar aqueles que sigam essa estratégia. Como se disse, esse tipo de especulação
não passa de um exercício de racionalização. Por enquanto, é improvável tirar algum proveito imediato e
concreto para os problemas mais complexos da ética com base em qualquer teoria matemática.
46
Fonte: Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_dos_jogos).
25

repetir ao longo do tempo. Se forem jogadas várias partidas, a traição certamente não é uma
boa opção, pois o companheiro vai perceber que você não é de confiança e também vai trair.
No final, os dois se prejudicam se adotarem uma postura egoísta. Eis o grande paradoxo do
Dilema do Prisioneiro: quando cada pessoa age racionalmente perseguindo seus próprios
interesses individuais pode acabar pior do que se estivesse agindo pensando de forma não-
egoística. Logo, se a ação racional deve mirar a satisfação dos próprios interesses, então é
melhor agir pensando também no comportamento esperado do outro. No fundo, a
cooperação e honestidade são as melhores políticas - eis a lição deixada pela teoria dos
jogos47.

3.1.2 Tic for Tat (“Pagar na Mesma Moeda”)

O professor de ciência política e políticas públicas Robert Axelrod48, da Universidade


de Michigan, desenvolveu uma competição, simulada por sistemas computacionais, para
tentar definir qual seria a melhor estratégia de ação no Dilema do Prisioneiro caso o jogo se
repetisse por várias jogadas.
A estratégia vencedora de todas as competições, desenvolvida por Anatol Rapoport,
foi extremamente simples e pode ser resumida na frase “pague na mesma moeda” (em inglês:
“Tic for Tat”). Dito de outro modo: “a. Na primeira jogada, cooperar; b. em cada jogada
subseqüente, agir segundo aquilo que o outro jogador fez na jogada anterior” – eis a
estratégia vencedora de todas as competições do Dilema do Prisioneiro. Assim, dentro da
lógica do Tic for Tat, se você cooperar e o outro jogador também cooperar, aja assim
indefinidamente sem mudar sua linha de ação. Se, em algum momento do jogo, o outro
jogador mudar de estratégia, faça o mesmo, como forma de punição, até que ele resolva
voltar a cooperar. A cooperação mútua é, portanto, uma solução estratégica ótima para todos
os envolvidos, pois é onde se atinge o chamado “equilíbrio de Nash”, que nada mais é a
situação em que cada jogador não tem incentivo para mudar de estratégia se os demais
jogadores também não o fizerem49.

47
Uma vasta bibliografia envolvendo a evolução da cooperação, a teoria dos jogos e o dilema do prisioneiro,
desenvolvida por Robert Axelrod e Lisa D’Ambrosio foi disponibilizada no seguinte endereço eletrônico:
http://www.cscs.umich.edu/research/Publications/Evol_of_Coop_Bibliography.html.
48
Página acadêmica: http://www-personal.umich.edu/~axe/.
49
É lógico que o Dilema do Prisioneiro é uma simplificação extremamente reducionista dos dilemas que ocorrem
na vida real, já que se trata de um jogo estritamente lógico-matemático, cujas soluções podem ser antecipadas
por um sistema de processamento de dados relativamente simples. Já os problemas da vida costumam ser muito
mais complexos, uma vez que as suas conseqüências não podem ser antecipadas com facilidade e, portanto,
sempre haverá um componente de incerteza nas escolhas adotadas. Na vida real, há mais “jogadores”, mais
opções de ação e muito mais fatores em jogo do que a mera preocupação com o prêmio ou com o castigo. Há
laços afetivos, econômicos, éticos que também são levados em conta e, muitas vezes, não podem ser
matematizados. Além disso, o Dilema do Prisioneiro foi “montado”, de fato, para favorecer estratégias
26

Para Singer, a verdadeira importância do resultado descoberto por Axelrod ainda não
foi devidamente valorizada fora de um círculo restrito de especialistas, apesar de ser capaz de
alterar profundamente as nossas vidas e até mesmo a política numa visão mais macro.
Em primeiro lugar, a competição demonstrou que as “estratégias simpáticas”, ou seja,
aquelas em que nunca se é o primeiro a agir de forma não-cooperativa, saem-se melhor do
que as estratégias “más”. Isso significa que o comportamento não-egoísta pode desempenhar
melhorias das nossas perspectivas de sobrevivência e de deixar descendentes, ou seja, os
seres humanos que agem de forma altruísta conseguem viver tão bem, ou mesmo melhor, do
que aqueles que agem de modo completamente egoísta. Com isso, conclui-se: (a) ao agir em
seu favor, a estratégia Tic-for-Tat também cria um ambiente em que as outras estratégias
simpáticas podem se desenvolver, já que as estratégias simpáticas, em geral, apóiam-se
mutuamente; (b) em contraste gritante com as estratégias simpáticas, as estratégias más
estragam as possibilidades de outras estratégias más que jogam contra elas, de modo que, ao
jogarem entre si, as estratégias más acabam por obter péssimos resultados; (c) quando se
defrontam estratégias simpáticas e más, as estratégias simpáticas terão bons resultados se
forem provocadas para retaliar pela primeira ação egoísta da outra50.
Desse modo, usando uma lógica estritamente de acordo com a teoria dos jogos e com
a descoberta de Axelrod, Singer elabora as seguintes estratégias de ação para uma vida ética:
1. Comece por manifestar vontade de cooperar, assumindo uma postura
amigável;
2. Faz bem a quem te faz bem (cuidar de quem cuida de nós) e puna aquele que te
faz mal, para não ser explorado;
3. Preserve a simplicidade;
4. Seja clemente;
5. Não seja invejoso.
Talvez o único princípio que possa ser questionado à luz da ética cristã é a segunda
parte do item 2 (punir a quem te faz mal). Afinal, o cristianismo recomenda que devemos
amar até mesmo nossos inimigos e fornecer o outro lado do rosto diante de uma agressão 51.

cooperativas de longo prazo, demonstrando que as estratégias simpáticas saem-se melhor do que as estratégias
egoístas. Certamente, se o “prêmio” para a traição fosse maior, talvez fosse aconselhável trair em algum
momento dentro da lógica do interesse próprio. Isso sem falar que o Dilema do Prisioneiro representa aquilo
que, em teoria dos jogos, chama-se de “jogo de soma diferente de zero”. Isso significa que é possível que todos
os jogadores envolvidos podem vencer ao mesmo tempo, assim como todos podem perder ao mesmo tempo,
dependendo da estratégia adotada pelos jogadores. Na vida real, há jogos de soma diferente de zero, mas
também há muitos jogos de soma zero, onde a vitória de um representa, necessariamente, a derrota do
adversário.
Por isso, o Dilema do Prisioneiro deve ser visto tão somente como um exercício simulado de compreensão das
atitudes humanas e não como uma verdadeira reprodução do que ocorre na vida real. Sua lição maior, contudo,
é válida: mesmo que você seja egoísta, talvez valha a pena pensar em ser cooperativo.
50
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 249.
51
É certo que há várias interpretações sobre essa passagem do Novo Testamento. De qualquer forma, o
cristianismo defende, de um modo geral, que não devemos fazer mal nem mesmo àqueles que nos fazem mal.
27

“Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”, diz a oração franciscana. Para Singer, se não
castigarmos aqueles que praticam ações não-cooperativas estaremos estimulando a prática
de condutas não-cooperativas e os egoístas se aproveitarão da nossa boa vontade52. Isso
representa, segundo ele, “uma refutação experimental do famoso ensinamento de Jesus
sobre dar a outra face. (...) Dar a outra face é ensinar aos candidatos a vigaristas que a vigarice
compensa”53. Por isso, devemos estabelecer alguma forma de punição para aquelas pessoas
que não cooperam e que traem a nossa confiança54.
Mas há um detalhe importante que concilia o Tic-for-Tat com o pensamento cristão,
que é o perdão: se a pessoa que cometeu um ato não-cooperativo mostrar disposição de
voltar a cooperar, devemos ser clementes e perdoá-la. “É perdoando que se é perdoado”,
conforme já sugeria a Oração de São Francisco de Assis. Ou, como dizia o João Paulo II, “posto
que a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, exposta às limitações e aos egoísmos
pessoais e de grupo, deve exercer-se e de certo modo completar-se com o perdão, que cura
feridas e restabelece em profundidade as relações truncadas”55. Perdoar quando o outro
demonstra arrependimento sincero é uma forma de restabelecer o equilíbrio de Nash, de
modo que todos possam sair beneficiados no longo prazo.

3.2 A Ética da Reciprocidade como Estratégia Evolutivamente Estável

Por detrás da estratégia “pagar na mesma moeda” está a idéia de reciprocidade, que
orienta a grande maioria das concepções éticas, inclusive religiosas, que seguem a chamada
“regra de ouro”: não faça aos outros aquilo que gostaria lhes fizessem ou, numa versão
alternativa, faça aos outros aquilo que gostaria que lhes fizessem56.

52
Vale ressaltar que, para Singer, não devemos seguir à risca o princípio do “pagar na mesma moeda” se o mal
causado puder resultar na destruição definitiva de ambas as partes. Nesse caso, ainda que exista a capacidade de
retaliar, não faz sentido fazê-lo, mesmo que possa (p. 262). Para evitar uma situação de mútua destruição,
Singer recomenda o desenvolvimento de um conceito de imparcialidade e de um sistema que produza decisões
imparciais acerca daquilo que constitui o tratamento equitativo (p. 270). Do mesmo modo, Singer, como
qualquer pessoa de bom-senso, rejeita a “lei do Talião”, do “olho por olho, dente por dente”.
53
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 252.
54
Essa idéia de que se devem evitar as pessoas agressivas não é, contudo, estranha à Bíblia. Eis um trecho dos
Provérbios: “não tenha companheirismo com alguém dado à ira” (22:24); “se fores companheiro de pessoas
sensatas, ganharás entendimento; mas, se andares com gente tola, ver-te-ás em apuros” (13:20). Esses
conselhos bíblicos não deixam de ser uma forma de retaliação àqueles que não são cooperativos.
55
apud LOUREIRO, João Carlos. Pessoa, Dignidade e Cristianismo. in: Jorge de Figueiredo DIAS/ José Joaquim
Gomes CANOTILHO/ José de Faria COSTA (Org.), ARS IVDICANDI: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
António Castanheira Neves, vol. I: Filosofia, teoria e metodologia, Coimbra, 2008, p. 701.
56
A regra de ouro é comum há várias religiões. Confúcio, por exemplo, dizia: “aquilo que não desejas para ti, não
o faças aos outros”. No Judaísmo, o Rabi Hillel desenvolveu a idéia de que “não faça aos outros aquilo que não
queres que os outros te façam a ti”. No Cristianismo, tem-se: “o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-
lho”. Hans Küng defende que “o imperativo categórico de Kant poderia ser entendido como uma modernização,
28

Na Oração de São Francisco, há um belo trecho em que se sugere que devemos antes
compreender do que ser compreendido; antes amar do que ser amado. Compreender o outro
talvez seja um dos princípios éticos mais importantes para uma vida em sociedade. É um
ponto comum na filosofia moral a idéia de que uma característica essencial do pensamento
ético é a nossa disponibilidade para nos colocar no lugar dos outros antes de pronunciar um
juízo moral. Assim, para se pensar eticamente é necessário nos imaginarmos na situação de
todos aqueles afetados pelas nossas ações, levando em conta as preferências que eles
possuem.
Na verdade, a ética nada mais é do que a preocupação com o outro e,
conseqüentemente, significa compreender os desejos do outro. Viver eticamente é viver
levando em conta os interesses do outro. É ter a consciência de que o outro não deve ser visto
como um mero objeto, mas como um fim em si mesmo, merecedor da mesma consideração
que reservamos a nós próprios. “É pensar sobre as coisas que se encontram para além dos
nossos próprios interesses. Quando penso eticamente torno-me apenas um ser, com
necessidades e desejos próprios, certamente, mas a viver no meio de outros que também têm
necessidades e desejos”57.
A ética da reciprocidade insere-se naquilo que os biólogos chamariam de “estratégia
evolutivamente estável”58, para usar uma expressão de John Maynard Smith. A estratégia
evolutivamente estável é aquela estratégia comportamental que, se adotada pela maior parte
dos membros da população, não pode ser derrotada por outra política comportamental
adversária, numa competição onde a vitória significa a sobrevivência. A pressão evolutiva
penalizará aqueles elementos da população que se afastem da estratégia evolutivamente
estável e favorecerá os que adotarem a estratégia comportamental vencedora.
Logicamente, os comportamentos éticos não são regidos por leis biológicas da
natureza, mas pela evolução cultural. Enquanto a evolução biológica é aleatória, a evolução
cultural pode ser consciente e dirigida pelos seres racionais. Mas, de qualquer modo, talvez
seja possível extrair da idéia de “estratégia evolutivamente estável” pelo menos uma linha
geral de direcionamento das teorias éticas para excluir de plano as estratégias destrutivas e
não-cooperativas. Não se deve seguir uma concepção ética que não seja uma estratégia
evolutivamente estável.

racionalização e secularização desta regra de ouro” (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt
Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 111).
57
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 307/308.
58
Em inglês: Evolutionary (or Evolutionarily) Stable Strategy.
29

“É dando que se recebe”, diz a oração franciscana, numa síntese bastante feliz da ética
da reciprocidade, cujo viés utilitarista é inegável, mas nem por isso menos nobre59. Aliás, é
esse tipo de pensamento que Richard Dawkins chama de egoísmo, já que, mesmo quando age
de forma cooperativa, o indivíduo estaria pensando apenas no que seja melhor para a sua
perpetuação genética. É o chamado “egoísmo recíproco”, em que “uma mão lava a outra”60.
Para Singer, contudo, é um erro pensar dessa forma. “Não se deve ver tais
recompensas intangíveis como a negação da motivação altruísta do indivíduo”61. Afinal de
contas,
“quem se importa com o ‘verdadeiro significado’ deste tipo de altruísmo, se o que
nos interessa é compreender como as pessoas podem ser motivadas a agir eticamente?
Se os doadores de sangue são movidos por um sentido de obrigação para com a
comunidade ou uma consciência da aprovação social, isso não significa que as suas ações
não são éticas ou mesmo altruístas. Agir ética e altruisticamente, nos sentidos
moralmente importantes destes termos, consiste, entre outras coisas, em ser movido por
um sentido de obrigação para com a comunidade, ou um desejo de fazer o que granjeará
a aprovação daqueles cujas opiniões respeitamos. Seria absurdo negar que uma ação é

59
Stuart Mill, na sua defesa da ética utilitarista, sugeriu que “na regra de ouro de Jesus de Nazaré vemos o
espírito completo da ética da utilidade. Fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, e amar o próximo
como a si mesmo, constituem a perfeição da moralidade utilitarista” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism,
1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 64). Os defensores do cristianismo certamente
não concordariam com Stuart Mill, pois, na ética cristã, a ação do sujeito que realiza boas obras pensando em
tirar algum proveito disso teria um valor moral menor do que o daquele sujeito que age altruisticamente. Eis
uma passagem do Novo Testamento que bem ilustra isso: “1. Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante
dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos
céus. 2. Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas
sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua
recompensa. 3. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita; 4. para que a tua
esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 5. E, quando orardes, não sejais como os
hipócritas; pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em
verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 6. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando
a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (Mt 6, 1-6). Assim, na
ética cristã, a intenção do agente serviria para graduar a quantidade de recompensa merecida pelo ato: quanto
mais altruísta e desinteressada a ação, maior seria a recompensa. Aquele que faz o bem apenas para que Deus
lhe recompense na vida eterna receberá uma recompensa menor do que aquele que faz o bem por genuína
compaixão. Ambos serão recompensados, mas não na mesma medida. (Devo ao amigo André Dias Fernandes,
juiz federal no Ceará, as informações apresentadas aqui nesta nota de rodapé).
60
Do ponto de vista filosófico, a idéia do egoísmo recíproco é bastante antiga. Já estava presente, por exemplo,
no Tratado da Natureza Humana, de David Hume, que defendia uma concepção de justiça em que o respeito ao
outro seria condicionado pelo respeito dos outros aos nossos próprios interesses. Assim, dizia Hume: “é
unicamente do egoísmo do homem e da sua generosidade limitada, juntamente com a parcimônia com que a
natureza providenciou a satisfação de suas necessidades, que a justiça tira a sua origem” (p. 571). “Foi portanto a
preocupação do nosso próprio interesse e do interesse público que nos fizeram estabelecer as leis da justiça” (p.
572). “O interesse próprio é o motivo original do estabelecimento da justiça; mas uma simpatia com o interesse
público é a origem da aprovação moral que acompanha esta virtude” (p. 576). “Sendo os homens naturalmente
egoístas ou dotados apenas de uma generosidade limitada, não são facilmente induzidos a realizar uma ação no
interesse de estranhos, a não ser que tenham em vista uma vantagem recíproca que não teriam esperanças de
obter senão mediante esta ação” (p. 600). As citações são todas de: HUME, David. Tratado da Natureza Humana
(A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
61
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 194.
30

ética meramente porque as pessoas que a realizam podem, de fato, se beneficiar com
ela, caso sejam movidas pela expectativa de um ganho pessoal - e ainda mais absurdo se
elas nem sequer tiverem consciência dessa expectativa” 62.
Nesse aspecto, é patente a influência de Stuart Mill no pensamento de Peter Singer.
Ao seu tempo, Mill dizia:
“Honra seja feita àqueles que conseguem renunciar por si mesmos aos deleites
pessoais da vida, quando mediante tal renúncia contribuem de forma válida para o
aumento da quantidade de felicidade no mundo; mas aquele que o faz, ou professa fazê-
lo, com qualquer outro objetivo, não é mais merecedor de admiração do que o asceta
empoleirado no seu pilar (...)
A moralidade utilitarista reconhece, de fato, nos seres humanos o poder de
sacrificarem o seu maior bem em prol do bem dos outros. Apenas recusa admitir que o
sacrifício é, em si, um bem. A moralidade utilitarista considera desperdiçado qualquer
sacrifício que não aumente, ou tenda a aumentar, a quantidade total de felicidade” 63.
Essa lógica de dar pensando em receber ou de sacrificar-se pensando na utilidade de
tal conduta também não seria uma atitude moralmente relevante para Immanuel Kant, pois,
como se viu, a sua ética é inspirada unicamente por um sentimento de dever que não se
interessa por recompensas ou castigos. Para Kant, somente o ato moral puro e desinteressado
possuiria um verdadeiro valor moral. O dever moral “deve eliminar totalmente a influência da
inclinação e com ela todo o objeto da vontade”64. Assim, a ação daquele que fizesse caridade
pensando em sentir um prazer íntimo por espalhar alegria a sua volta ou por se satisfazer com
o contentamento dos outros, não teria, contudo, qualquer valor moral, por mais amável que
fosse essa conduta. A caridade somente teria um autêntico valor moral se o agente fosse uma
pessoa sem qualquer inclinação para ajudar as outras pessoas e mesmo assim ajudasse
exclusivamente por dever de agir moralmente65. O agente moral kantiano é insensível e frio
por natureza e faz o bem não por inclinação, mas por puro respeito ao dever, mesmo com
prejuízo de todas as inclinações, tal qual uma máquina previamente programada para adotar
a conduta previamente estabelecida.
Singer critica a noção kantiana de dever moral, defendendo que o cumprimento do
dever pelo cumprimento do dever em si, tal como proposto por Kant, é irrealizável, pois é
hostil à natureza humana, já que os seres humanos são seres físicos providos de desejos. Além
disso, “por muito que encorajemos as pessoas a cumprir o seu dever pelo dever, o verdadeiro

62
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 196.
63
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e
62/63.
64
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 31.
65
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 28/29.
31

objetivo por detrás desse encorajamento é pô-las a fazer o seu dever devido às boas
conseqüências que advirão do fato de elas o fazerem”66.
Para Singer, sem uma preocupação com as conseqüências dos atos, um forte sentido
do dever pode levar ao fanatismo moral rígido, o que certamente não é desejável. A história
tem inúmeros exemplos que demonstram que o sentimento de dever canalizado para o mal é
a pior ameaça à dignidade humana. Vários nazistas que foram julgados por crimes contra a
humanidade demonstraram uma forte pré-disposição para seguir o seu sentimento de dever,
mesmo quando isso ia contra o seu senso de empatia por suas vítimas. Por isso, conclui
Singer, “abandonemos, de uma vez por todas, a idéia de Kant de que o valor moral se
encontra apenas quando cumprimos nosso dever pelo dever (…). Então, podemos construir
uma descrição da ética que assenta, em ver de se afastar, na nossa própria natureza enquanto
seres sociais”67.
O que Singer quer dizer é que até mesmo uma noção de dever moral que seja
consciente das boas conseqüências que a ética trará para a humanidade merece ser
estimulada. Como diria Mill, “o motivo nada tem a ver com a moralidade da ação, embora
tenha muito a ver com o valor do agente. Quem salva um semelhante de se afogar faz o que
está moralmente correto, quer o seu motivo seja o dever, ou a esperança de ser pago pelo
seu incômodo”68.
De fato, parece ser muito mais condizente com a racionalidade uma concepção ética
em que o agente moral tem plena consciência de que a sua ação é boa por produzir bons
resultados e não por ser um mero dever sem sentido. E se ele sabe que a sua ação produzirá
bons resultados, inclusive para si, nada mais natural do que aceitar que essa ação gere um
sentimento íntimo de prazer que servirá como uma motivação extra para as boas ações.
Afinal, por que existe um sentimento de cumprimento do dever moral? Parece óbvio que o
dever moral só faz sentido porque produz bons resultados a longo prazo.

66
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 326.
67
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 329. Vale ressaltar que o próprio Singer descarta qualquer
vinculação entre o nazismo e a ética kantiana, já que, de fato, o nazismo foi uma clara violência do segundo
imperativo categórico kantiano, que obriga que tratemos a humanidade sempre com um fim em si mesmo.
68
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e
65. Em uma nota explicativa, Mill faz uma distinção entre a intenção do agente e o motivo do agente. Embora o
motivo seja irrelevante para aferição da qualidade moral da conduta, a intenção é de suma importância, pois, se
o agente pratica uma determinada conduta, em princípio correta, com a intenção de prejudicar ainda mais o
outro, certamente essa atitude não é moralmente boa. É o caso do sujeito que salva uma pessoa de morrer
afogada com o intuito de lhe infligir tortura para que sofra ainda mais. Daí, Mill esclarece que: “a moralidade da
ação depende inteiramente da intenção – isto é do que o agente quer fazer. Mas o motivo, isto é, o sentimento
que o faz desejar tal coisa, quando não tem importância na ação, não tem nenhuma moralidade; embora faça
uma grande diferença na nossa avaliação moral do agente, especialmente se indicar uma disposição habitual boa
ou má – uma inclinação de caráter da qual sejam passíveis de resultar ações úteis ou prejudiciais” (p. 66).
32

Por fim, a parte final da Oração de São Francisco de Assis faz menção à vida eterna. É
como se sugerisse o seguinte: se você seguir esses ensinamentos, viverá eternamente. É
precisamente aqui que entra a idéia da ética da eternidade, que formularei no tópico
seguinte.
33

4 Vivendo Para a Vida Eterna

4.1 Fundamentos Naturais da Ética

O que significa viver para a vida eterna? Reformulando a pergunta: como pensar em
vida eterna sem pensar em religião? Por mais paradoxal que possa parecer, a teoria da
evolução talvez tenha uma resposta. É uma resposta não-metafísica e, por isso, sujeita à
refutação empírica. Mas não pretende, de modo algum, substituir as versões metafísicas e
espirituais fornecidas pela religião. É um argumento a mais para fundamentar a necessidade
da ética, que serve de reforço a outras concepções teológicas de eternidade. Não pretendo
cair no erro do reducionismo e achar que tudo se resume a uma sobrevivência de genes, até
porque a teoria da evolução pode estar errada e nem por isso as teorias éticas cooperativas
devem ser vistas como equivocadas69.
Esse reducionismo é a base da chamada “sociobiologia”, que defende que todo
comportamento humano, incluído o rancor, a agressão, a xenofobia, o conformismo, a
homossexualidade etc., é influenciado basicamente pelas predisposições genéticas dos
indivíduos, ou seja, pelo “fator genético”70. Daí porque seria melhor “retirar a ética das mãos
dos filósofos e colocá-la nas dos biólogos”71. A sociobiologia tem sido refutada com
veemência tanto por biólogos quanto por não-biólogos, pois não há qualquer evidência direta
do controle genético sobre comportamentos sociais específicos, sendo bastante arriscado
tirar conclusões precitadas tão graves numa fase ainda inicial do estudo do genoma
humano72. Parece ser auto-evidente que, em temas éticos, o fator cultural exerce muito mais
influência do que o fator genético. Mas isso não significa que a própria cultura e a própria
ética não possa ser analisada sob uma ótica evolucionista. Vale dizer: os valores sociais
participam de processo meio aleatório de seleção, onde os valores “mais aptos”
“sobrevivem”, isto é, tornam-se a mentalidade dominante, geralmente por produzirem
conseqüências sociais mais bem sucedidas. É com base nesse pressuposto evolucionista que
tentarei desenvolver uma ética de longo prazo que tenha algum sentido nos dias de hoje.

69
Em matéria de ética, nunca é prudente se apegar a um único fundamento, pois, se esse fundamento não se
mostrar sólido, a ética corre o risco de perder o sentido, abrindo margem para especulações semelhantes
àquelas utilizadas por Dostoievski ou por Nietzsche, tal como citado no início deste texto. O melhor então é criar
uma rede de argumentos capazes de convencer as pessoas a agirem corretamente, mirando o bem-estar global
de longo prazo e não o egoísmo próprio.
70
WALLACE, Robert A. Sociobiologia: o Fator Genético (The Genesis Factor, 1979). São Paulo: Ibrasa, 1985
71
WILSON, Edward O. Sociobiology: the New Synthesis. Cambridge: Harvard University Press, 1975, apud CELA-
CONDE, Camilo J. Ética, Diversidade e Universalismo: a herança de Darwin. In: CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.).
Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p; 80.
72
GOULD, Stephem Jay. Darwin e o Grandes Enigmas da Vida (Ever Since Darwin: reflections in natural history,
1987). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 249/259.
34

A hipótese é relativamente simples: hoje estamos vivos porque nossos antepassados


souberam adotar a melhor estratégia de sobrevivência diante das informações de que
dispunham e das condições ambientais específicas em que viveram. Somos fruto de uma
história evolutiva de sucesso. Os pais dos nossos pais tiveram pais cujos pais fizeram o que era
correto para sobreviver e assim sucessivamente. Talvez eles tenham tomado decisões sem
pensar na nossa existência atual, mas certamente adotaram um estilo de vida que permitiu
que nós surgíssemos. Do contrário, não estaríamos vivos. Se tivesse havido qualquer ruptura
nessa cadeia hereditária, ou seja, se um só de nossos ascendentes tivesse cometido algum
erro fatal, nossa existência não teria sido possível. Aliás, apenas um número infinitamente
pequeno de organismos foi capaz de deixar uma herança genética que até hoje sobrevive e há
estudos demonstrando que, a cada dia, extingue-se uma espécie vegetal ou animal, o que
reforça a idéia de que os seres vivos são mesmo raros e preciosos.
Para que a linha da vida não se quebre, os organismos precisam adotar uma estratégia
comportamental de sucesso. A noção de vida eterna, num sentido biológico, está, portanto,
ligada à idéia de “estratégia evolutivamente estável”, já mencionada, juntamente com a
perpetuação genética daí decorrente.
Por detrás de tudo isso, está, como é óbvio, algumas idéias da teoria da evolução, que
podem assim ser sintetizadas: no quadro da seleção natural, qualquer característica que
permita fazer crescer a proporção de certos genes nas gerações seguintes acabará por
caracterizar a espécie. Essas características podem ser adaptações orgânicas, mas, quando os
organismos estão implicados em relações com outros organismos, também podem ser
comportamentos sociais. Desse modo, é bastante plausível acreditar que alguns de nossos
comportamentos podem ter sido influenciados, pelo menos em alguma medida, por objetivos
que conduziram até nós e que, através de nós, se perpetuam73.
Se voltarmos a um período muito remoto e talvez hipotético em que a vida era um
mero aglomerado de células, perceberemos que, de certo modo, ali estavam os nossos
primeiros antepassados, cuja missão biológica consistia basicamente em sobreviver e se
duplicar, deixando descendentes cuja missão seria idêntica. Essa vida rudimentar, é lógico,
não agia eticamente, pois não tinha capacidade de raciocínio, nem de reflexão. Ela não
aprendia com os seus erros, nem formulava abstratamente teorias de ação rivais para serem
testadas. O ensaio e erro não eram conscientes e, por isso, o organismo corria muitos riscos: o

73
Esse parágrafo foi um resumo, com ligeiras adaptações, da introdução elaborada por Marc Kirsch no livro
CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Fundamentos Naturais da Ética (Fondaments Naturels de l’Éthique, 1993). Lisboa:
Piaget, 1996.
35

erro quase sempre era fatal para a sua sobrevivência. O seu sucesso evolutivo foi fruto do
acaso ou, para os que acreditam numa intervenção divina, fruto de um desígnio superior74.
Na medida em que as formas de vida foram se tornando cada vez mais complexas,
começaram a surgir “sensores” cerebrais que davam um sentido finalístico às ações das
espécies. Talvez o princípio de sobrevivência mais rudimentar para essa fase da evolução
biológica foi este: busque o prazer e evite a dor, que está presente em praticamente todas as
espécies mais complexas. O sistema nervoso pode ter sido o primeiro instrumento capaz de
antecipar as tentativas mal-sucedidas de sobrevivência. O prazer significava sucesso evolutivo;
a dor, a morte. Embora já existisse aqui uma convivência entre espécies e até mesmo algumas
técnicas rudimentares de mútua cooperação, ainda não há nesse processo um componente
ético a orientar as condutas dos organismos, já que não havia consciência nem liberdade de
escolha nem linguagem nem memória nem teorias nem raciocínio nem reflexão. Pode-se dizer
que havia apenas um mundo 1 (dos fatos) e um mundo 2 (das sensações), para utilizar a
metáfora popperiana75. As espécies irracionais vivem nesse estágio até hoje.

74
Vale ressaltar que, até hoje, os cientistas não conseguiram apresentar explicações convincentes sobre como
surgiram essas primeiras formas de vida, por mais simples que fossem. Apesar do livro de Darwin se chamar “A
Origem das Espécies”, ele não apresentou qualquer explicação definitiva sobre como a vida se originou, mas
apenas como as espécies evoluíram e ainda assim com vários erros que foram apontados posteriormente por
seus seguidores, que, logicamente, também estão sujeitos ao erro.
75
Popper desenvolveu a metáfora dos três mundos com uma finalidade prática inegável: tentar demonstrar a
objetividade do conhecimento e ajudar a esclarecer o complexo problema “mente-corpo”. Nas palavras do
próprio Popper, “para compreender as relações entre o corpo e a mente, temos de admitir primeiro a existência
do conhecimento objetivo como um produto objetivo e autônomo da mente humana, e em especial o modo
como usamos esse conhecimento como um sistema fiscalizador na resolução de problemas fundamentais”
(POPPER, Karl. O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente (Knowledge and the Body-Mind Problem, 1996).
Trad. Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 12). Assim, ele concebeu a existência de três
mundos:
Mundo 1 – é o mundo físico e natural, que temos contato por meio de nossos sentidos. Ou seja, o Mundo 1 é o
que normalmente conhecemos por mundo;
Mundo 2 – é um mundo psicológico, dos estados mentais, que está dentro das nossas cabeças (como os
pensamentos, as emoções, os desejos, os sentimentos de um modo geral etc.). O mundo 2 não é um mundo
“palpável”. A leitura mental, solitária e silenciosa, que você faz ao olhar o texto no seu computador, bem como
os pensamentos vagos, sensações, enfim, tudo o que se passa no interior do seu cérebro, faz parte do mundo 2.
O seu mundo 2 é só seu. Quando se diz que “os autistas vivem no seu próprio mundo“, esse mundo é o mundo 2.
Mundo 3 – é o mundo dos produtos da mente humana que ganham “existência” própria uma vez exteriorizados.
É aqui que está o conhecimento objetivo, abrangendo as hipóteses e teorias, os problemas não resolvidos, os
argumentos a favor e contra qualquer hipótese etc. Todas as informações produzidas pela razão fazem parte
desse mundo 3. A matemática, a física, a biologia, o direito, a religião, a música, a arte, a literatura: tudo isto está
nesse fantástico mundo 3, que é uma criação tipicamente racional, feita pelos seres humanos (é certo que, hoje,
os computadores também estão contribuindo para a expansão do mundo 3. Mas como os computadores são
criações humanas, então as informações e teorias desenvolvidas por sistemas de informática são, de certo modo,
também criações humanas, ainda que indiretamente).
O mundo 3 não faz parte do mundo físico. O computador que você tem à sua frente e que pode pegar e sentir
pertence ao mundo 1. Mas as informações nele contidas fazem parte do mundo 3. O mundo 3 é fruto da razão,
da linguagem e da memória coletiva exteriorizada e “existe” apenas num sentido metafórico. Quando entramos
em uma biblioteca podemos falar sem medo: é um mundo de informações que tem lá dentro! Esse “mundo de
informações” faz parte do mundo 3.
36

Algumas espécies desenvolveram uma capacidade cerebral que lhes permitiram sentir
outras sensações além do prazer e da dor. O sentimento de empatia é talvez o mais notável: a
capacidade de se preocupar com o outro, que é uma característica muito visível entre os
animais sociais, desde mamíferos, aves e até peixes e répteis76. O sentimento de gratidão
também pode ter sido uma importante ferramenta evolutiva: retribuir aqueles que nos
ajudam e evitar aqueles que traíram a nossa confiança - eis a receita de sucesso de inúmeras
espécies. Para isso, foi necessário que fossem desenvolvidas capacidades cerebrais que
permitissem o reconhecimento do outro, bem como capacidades para memorizar o que o
outro fez no passado e agir conforme essa percepção.
No ser humano, a capacidade de se preocupar com o outro também é inquestionável.
Primeiro, veio a preocupação mais óbvia: cuidar dos filhos. Aqueles que desenvolveram a
capacidade de sentir afeto pelos seus descendentes tiveram mais chances de se perpetuar
geneticamente. Por outro lado, os pais desnaturados, que deixam sua prole à mercê de
predadores em um ambiente hostil, certamente desaparecem com o passar do tempo. Há,
pois, uma tendência natural de que apenas as espécies que cuidam de seus filhos alcancem “a
vida eterna”, ou seja, a perpetuação genética. Aliás, se há um princípio universal na natureza
humana certamente é este: cuide do seu filho, pois a morte de seus descendentes significa a
sua extinção.
Esse cuidado para com os descendentes foi se ampliando com o passar do tempo,
talvez muito mais por razões culturais do que propriamente biológicas. Os parentes mais

É preciso não confundir o Mundo 3 com o Mundo das Idéias de Platão ou das Essências de Aristóteles ou o Reino
dos Fins de Kant, por exemplo. O Mundo 3 é produto do intelecto. Logo, é um mundo em constante evolução, já
que o conhecimento racional vai-se acumulando gradualmente. No Mundo 3, não está a “verdade absoluta” ou a
“essência das coisas”, mas apenas o conhecimento humano objetivado, que é sempre limitado e falível, pois
sempre há conhecimento novo a ser adquirido ou descoberto. As idéias que estão no Mundo 3 são idéias em
evolução. É como se fosse uma biblioteca onde a cada dia são acrescentados novos livros, ou então como a
internet, que vai sendo alimentada com informações diariamente. Para compreender melhor essa construção
dos mundos de Popper: POPPER, Karl. O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente (Knowledge and the Body-
Mind Problem, 1996). Trad. Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 2009).
76
Isso já havia sido mencionado por David Hume: “nenhuma qualidade da natureza humana é mais notável,
tanto em si mesma, como nas suas conseqüências, do que a tendência natural que temos para simpatizar com os
outros e para receber por comunicação as suas inclinações e sentimentos, por muito diferentes, ou mesmo
contrários, que sejam dos nossos” (p. 372). Hume, porém, esqueceu-se de mencionar que não apenas a natureza
humana, mas a natureza de várias outras espécies, também são dotadas do mesmo sentimento. Nesse aspecto,
Stuart Mill foi mais preciso ao dizer que os seres humanos “apenas diferem dos outros animais em dois aspectos.
Primeiro, em serem capazes de ter empatia, não apenas com as suas crias, ou, como alguns dos animais mais
nobres, com algum animal superior que seja amável para com eles, mas com todos os seres humanos, e mesmo
com todos os seres sencientes. Segundo, em terem uma inteligência mais desenvolvida, o que confere um maior
alcance a todos os seus sentimentos, sejam eles de preocupação consigo mesmo ou de empatia”. Para Mill, o
sentimento de justiça decorreria da mesma fonte e teria uma função semelhante: “o sentimento de justiça é o
desejo animal de repelir ou retaliar um mal ou dano que nos é feito, ou é feito a alguém por quem sentimos
empatia, alargado de maneira a incluir todas as pessoas, por meio da capacidade humana de empatia alargada, e
a concepção humana de interesse próprio inteligente” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad.
F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 112 e 114).
37

próximos, como irmãos e primos, tornaram-se também objeto de preocupação afetiva.


Depois, essa preocupação estendeu-se aos amigos e, depois, aos demais membros do grupo.
De acordo com António Damásio,
“a história da nossa civilização é, de certo modo, a história de uma tentativa
persuasiva de oferecer os melhores de entre os nossos sentimentos morais a círculos cada
vez mais largos de humanidade, para além das restrições do grupo, de forma a abranger,
eventualmente a humanidade inteira. Está bem de ver que estamos muito longe de
atingir esse ideal”77.

4.2 A Falácia Naturalista

Um ponto de extrema importância que precisa ser destacado com ênfase é este: não
se pode confundir essa tendência natural de se sentir empatia pelo outro – nem qualquer
outro tipo de tendência natural – com a ética, sob pena de se cair na armadilha da falácia
naturalista. A falácia naturalista foi apontada inicialmente por David Hume e desenvolvida
posteriormente por G. E. Moore, no seu “Principia Ethica” e consiste em confundir o que é
com o que deve ser. O fato de a realidade ser de uma determinada forma não significa dizer
que ela necessariamente deve ser assim. A ética não deve descrever como são as ações
humanas, mas sim deve prescrever princípios normativos que indiquem como devem ser as
ações humanas.
Lembrar constantemente a falácia naturalista é fundamental para não se cair no erro
do darwinismo social que já provocou conseqüências nefastas para a sociedade, como por
exemplo:
(a) ao defender que o papel da ética é “acelerar a evolução”, permitindo uma seleção
artificial dos seres humanos “mais aptos”, por meio da eugenia e do extermínio de pessoas
supostamente “inferiores”, tal como previa o projeto nazista;
(b) ao defender que o Estado deveria intervir o mínimo possível na sociedade, já que a
luta pela sobrevivência seria a principal causa do progresso social, dentro da lógica de um
“laissez-faire” ético, onde os mais fortes teriam o direito de explorar os mais fracos, por ser
essa a “ordem natural das coisas”, tal como sugeria Herbert Spencer;
(c) ao criar uma situação de conformismo e de resignação em nome de um inevitável
determinismo natural, como se o natural fosse irremediável, e os seres humanos estivessem
predeterminados a obedecerem comandos genéticos pré-programados;
(d) ao servir como suporte para a pseudo-justificação de medidas discriminatórias em
nome de “diferenças naturais” supostamente insuperáveis nos seres humanos, como a

77
DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for
Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 188.
38

tentativa de se defender que a inteligência ou os talentos pessoais são pré-determinados


geneticamente e, por isso, as pessoas não deveriam ser tratadas com igualdade, nem
deveriam ser criados mecanismos para compensar essas desigualdades;
(e) ao sugerir uma mera ética da sobrevivência, em que o papel da ética seria tão
somente desenvolver mecanismos para permitir a sobrevivência das espécies, sem nenhuma
preocupação com a qualidade de vida das pessoas.
O papel da ética é precisamente o contrário de todos esses pontos. Mesmo que a
teoria da evolução seja verdadeira, isso não significa que a ética deve seguir os seus
mandamentos como se os seres humanos nada pudessem fazer para mudar a realidade. O
que difere os seres racionais das demais espécies é a capacidade de refletir sobre a realidade,
exercer um juízo de valor sobre ela e, partir daí, adotar medidas concretas capazes de, se for o
caso, alterá-la. Não se revoltar diante de uma injustiça natural e não lutar para transformá-la,
quando se é possível transformá-la, é uma atitude indigna de um ser dotado de capacidade de
raciocínio, de reflexão e de vontade consciente.
A ética, assim como a justiça e o direito, não são fenômenos controlados pela
natureza, nem mesmo por genes, mas sim por seres racionais, que podem até estar
influenciados por fatores naturais, ambientais ou genéticos, mas possuem a capacidade de se
revoltar contra isso. O papel da ética – e, pela mesma razão, da justiça e do direito – é fazer
com que a convivência entre os seres racionais se dê de forma harmoniosa e equilibrada, sem
a implacável dominação do mais forte sobre o mais fraco, que é o que costuma predominar
no mundo natural.
Somente o ser racional, já dizia Kant, tem a capacidade de agir conforme princípios
ditados pela razão (prática), que é a mola propulsora da vontade, ou seja, da “faculdade de
escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como
praticamente necessário, quer dizer como bom”78.
Com otimismo, Stuart Mill dizia que “a maioria dos grandes males absolutos do mundo
são em si mesmo elimináveis, e serão por fim reduzidos ao mínimo, se o conhecimento
humano continuar a melhorar”. Para Mill, os grandes males do mundo seriam as fontes do
sofrimento físico e mental: a indigência, a doença e a crueldade, a indignidade, ou a perda
prematura de objetos de afeto. Assim, “todas as grandes fontes do sofrimento humano
podem, em grande medida, ser conquistadas pelo emprego e esforços humanos, muitas delas
quase inteiramente”79.

78
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 50.
79
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 44 e
60/61.
39

O ser racional que se deixa escravizar pelas leis da natureza quando pode mudá-la pela
vontade racionalmente dirigida perde a sua capacidade de ser legislador de si próprio
(autonomia) e, portanto, a sua dignidade.
Se os mais fortes têm mais chances de vencer a “luta pela vida” imposta pela seleção
natural, a finalidade da ética é fazer com que os seres fragilizados tenham iguais chances de
sobrevivência e de ter uma vida decente, tranqüila e feliz. Se, por exemplo, as pessoas sentem
uma tendência natural para sentir mais simpatia pelos seus compatriotas do que pelos
estrangeiros, cabe à ética tentar demonstrar que esse tipo de comportamento não se justifica
moralmente, pois todo ser humano merece ser tratado com igual respeito e consideração. Do
mesmo modo, se existe um impulso natural para que cuidemos de nossos parentes, nem por
isso o nepotismo deixará de ser moralmente errado. Nem tudo o que é natural é ético. Nem
tudo o que pode ser explicado racionalmente é necessariamente justo. Como disse John
Rawls, seguindo uma tradição filosófica bem antiga, fatos naturais não podem ser justos ou
injustos, éticos ou anti-éticos. É a forma como os seres humanos lidam diante desses fatos
naturais que faz com que eles possam ser considerados como justos ou injustos, certos ou
errados80.

4.3 A Ética e as Emoções

O sentimento de empatia, assim como o sentimento de dor e de prazer, de medo, de


vergonha, de gratidão, de culpa, de ciúme, de indignação e de repúdio, fazem parte do mundo
das sensações e funcionam como uma “antena” para orientar os seres sencientes a agirem de
tal forma a se perpetuarem geneticamente. Essa “antena” tem sido um eficiente mecanismo
de sobrevivência não só para os seres humanos, mas para várias outras espécies. Isso pode
explicar porque sentimos tanto prazer com a alimentação ou com o sexo, por exemplo, ou
então porque temos tanta ojeriza à dor e à fome. É provável que esses sentimentos tenham
sido “moldados”, pelo menos em alguma medida, pela evolução para servir como relevantes
ferramentas de sobrevivência. Nenhuma teoria ética pode deixar de aproveitar essas emoções
como catalisadores das ações humanas e indicativos precários e provisórios de uma conduta
ética.
Quem defendeu muito bem essa perspectiva foi António Damásio, o famoso
neurocientista português, que pesquisa há bastante tempo o papel das emoções na tomada
de decisões comportamentais.
No seu livro “Ao Encontro de Espinosa”, Damásio tentou explicar a função das
emoções como dispositivos cerebrais que funcionam para alertar o organismo a respeito das

80
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice, 1971). Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
40

situações que podem ameaçar a existência: “os sentimentos orientam os esforços conscientes
e deliberados da auto-conservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à
maneira como a auto-preservação se deve realizar”81. Isso porque, “a evolução teria dotado
os nossos cérebros com os dispositivos necessários para reconhecer certas configurações
cognitivas e desencadear emoções que levariam à solução de problemas e das oportunidades
postos pelas configurações” (188). Dentro dessa linha de raciocínio, Damásio especula que “os
seres humanos equipados com um repertório de emoções e cujos traços de personalidade
incluiriam estratégias de cooperatividade teriam sobrevivido mais facilmente e deixado, por
isso, mais descendentes” (187).
Apesar disso, António Damásio não considera que os sinais emocionais devam
substituir a razão. O papel desses sinais seria meramente auxiliar, funcionando como uma
ferramenta para aumentar a eficiência do raciocínio e aumentar a sua rapidez82. Não se trata,
portanto, de confiar nos sentimentos e de lhes dar a possibilidade de serem árbitros do bem e
do mal. Trata-se sim “de descobrir as circunstâncias nas quais os sentimentos podem, de fato,
ser um árbitro, e de combinar inteligentemente circunstâncias e sentimentos de forma que
eles possam guiar o comportamento humano”83.
Muitas vezes, os nossos sentimentos nos estimulam a adotar uma postura ética. O
cuidado com os filhos é um exemplo notório. Outras vezes, porém, nossos sentimentos são
“maus conselheiros” e podem nos encaminhar para uma direção anti-ética, por uma questão
de preconceito gerado pelas falsas generalizações que o nosso natural mecanismo de
pensamento indutivo nos conduz. Como explicou Damásio, os nossos cérebros continuam
equipados com a maquinaria biológica que nos leva a reagir de um modo ancestral, ineficaz e
inaceitável, em certas circunstâncias, sendo a raiva um exemplo ilustrativo desse fato84.

81
DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for
Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 96. As próximas citações
deste tópico serão do mesmo livro, salvo informação em contrário.
82
DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for
Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 172. Como explica
Damásio: “talvez o papel mais fundamental dos sentimentos no que diz respeito à ética sempre tenha sido,
desde o seu aparecimento, o de manter mentalmente presente a condição da vida, de forma que essa condição
pudesse desempenhar um papel principal na organização do comportamento. E é precisamente porque os
sentimentos continuam a ter esse papel que julgo que eles devem ser ouvidos quando a coletividade social
discute a avaliação, desenvolvimento e aplicação de instrumentos culturais tais como as leis, a justiça e a
organização sociopolítica” (p. 190).
83
DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for
Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 204. No seu “O Erro de
Descartes”, Damásio assinalou: “No que têm de melhor, os sentimentos encaminham-nos na direção correta,
levam-nos para o lugar apropriado do espaço de tomada de decisão onde podemos tirar partido dos
instrumentos da lógica” (DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1995, p. 13).
84
DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for
Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003, p. 57.
41

Nesse aspecto, também se pode invocar o pensamento de David Hume, que


demonstrou que as nossas impressões nem sempre são confiáveis, pois funcionam
indutivamente, com base na observação de fatos que se repetem na natureza. É que nossas
impressões costumam gerar expectativas equivocadas em nossas mentes. Tendemos a fazer
inferências nem sempre corretas a respeito da realidade e, por força do costume e do hábito,
julgamos que é verdade o que é apenas uma falsa generalização que fantasiamos por
acreditar que “os casos de que não tivemos experiência se assemelham àquele que
experimentamos”85, quando, na verdade, “a razão jamais pode mostrar-nos a conexão de um
objeto com outro, ainda mesmo com a ajuda da experiência e da observação da sua
conjunção constante em todos os casos passados” (p. 12886). Seríamos, portanto, como
aqueles mentirosos que, “pela freqüente repetição das suas mentiras, acabam por acreditar
nelas e recordá-las como se fossem realidades” (p. 12187).
David Hume, porém, não acreditava no poder da razão para nos ajudar a escapar
dessas falsas generalizações, já que todo nosso raciocínio se baseia na indução e, como se viu,
o pensamento indutivo não se sustenta do ponto de vista lógico. Daí porque
“não é somente em poesia e música que devemos seguir o nosso gosto e
sentimento, mas igualmente em filosofia. Quando estou convencido de um princípio
qualquer é apenas uma idéia que me fere mais fortemente. Quando dou preferência a
uma série de argumentos em relação a outra, não faço outra coisa senão decidir de
acordo com o que sinto relativamente à superioridade da sua influência” (p. 140).
Para Hume, “a razão é, e deve ser apenas escrava das paixões; não pode aspirar a
outro papel senão o de servi-las e obedecer-lhes” (p. 482). Isso valeria até mesmo para os
juízos éticos, já que todas as paixões, hábitos, disposições de caráter que tendem a favorecer-
nos ou a prejudicar-nos causam-nos prazer ou mal-estar. Em razão disso, “visto que se admite
que há um prazer ou um mal-estar que acompanha sempre os méritos ou deméritos, isso é
tudo o que é necessário para o meu desígnio” (p. 349).
Kant defendeu justamente o oposto. Afinal, questionou o filósofo de Königsberg, se os
instintos devessem governar os homens, estabelecendo os meios para se alcançar a

85
HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva
Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 125.
86
Hume defende que “não há nada num objeto considerado em si mesmo que nos dê qualquer razão para tirar
uma conclusão para além dele; e que mesmo depois da observação de uma conjunção freqüente ou constante
de objetos, não temos qualquer razão para fazer qualquer inferência a respeito de qualquer objeto de que não
tivemos experiência” (p. 179). Por isso, “a razão, por si só, jamais pode gerar uma idéia original” e “a razão,
enquanto distinta da experiência, nunca pode fazer-nos concluir que uma causa ou qualidade produtora é
absolutamente necessária para qualquer princípio de existência” (p. 198). Todas as citações são de HUME, David.
Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
87
Eis alguns exemplos contemporâneos desse fenômeno: “todos os políticos são corruptos”; “todos os
muçulmanos são terroristas”; “todos os homossexuais são devassos” e por aí vai.
42

felicidade, para quê então teria sido desenvolvida a razão no ser humano88? A razão parece
ser um instrumento muito raro, precioso e poderoso para se deixar escravizar pelas emoções.
Portanto,
“se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que
respeita aos seus objetivos e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma
– a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com muito
maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão, nos foi dada como faculdade prática,
isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu
verdadeiro destino deverá ser produzir um vontade, não só boa quiçá como meio para
outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era
absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na
repartição das faculdades e talentos” 89.
Mas talvez Kant leve a crença na razão longe demais, chegando ao ponto de dizer que
uma ação somente teria conteúdo moral quando o agente age contra as suas inclinações
imediatas. Toda vez que existisse uma coincidência entre a emoção e a razão, a conduta
humana seria moralmente irrelevante. A pessoa que cuida do filho porque ama o filho não
estaria fazendo mais do que o seu dever biológico e, portanto, a sua ação seria indiferente do
ponto de vista moral. A conduta humana somente teria valor moral quando houvesse
sacrifício emocional, ou seja, quando os sentimentos fossem deixados de lado em favor da
razão90. “Nada esperar da inclinação dos homens”, defendia Kant91. Tudo o que é empírico (e

88
Eis seu argumento completo: “Quando consideramos as disposições naturais dum ser organizado, isto é, dum
ser constituído em ordem a um fim que é a vida, aceitamos como princípio que nele se não encontra nenhum
órgão que não seja o mais conveniente e adequado à finalidade à que se destina. Ora, se num ser dotado de
razão e vontade, a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua conservação, o seu bem-estar, numa palavra, a
sua felicidade, muito mal teria ela tomado as suas disposições de escolher a razão da criatura para executora
destas intenções. Pois todas as ações que esse ser tem de realizar nesse propósito, bem como toda a regra do
seu comportamento, lhe seriam indicadas com muito maior exatidão pelo instinto, e aquela finalidade obteria
por meio dele muito maior segurança do que pela razão; e se, ainda por cima, essa razão tivesse sido atribuída à
criatura como um favor, ela só lhe poderia ter servido para se entregar a considerações sobre a feliz disposição
da sua natureza para a admirar, alegrar-se com ela e mostrar-se por ela agradecida à Causa benfazeja, mas não
para submeter à sua direção fraca e enganadora a sua faculdade de desejar, achavascando assim a intenção da
natureza; numa palavra, a natureza teria evitado que a razão caísse no uso prático e se atrevesse a engendrar
com as suas fracas luzes o plano da felicidade e dos meios de a alcançar; a natureza teria não somente chamado
a si a escolha dos fins, mas também a dos meios, e teria com sábia prudência confiado ambas as coisas
simplesmente ao instinto” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur
Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 24).
89
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 25/26.
90
O exemplo kantiano que melhor esclarece esse aspecto é o do suicídio versus o dever de viver: “conservar
cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas
por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum
valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida conforme
ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem
esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que
desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo,
mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica
dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p.
28).
43

os sentimentos são empíricos) é não só inútil “mas também altamente prejudicial à própria
pureza dos costumes”92.
O rigorismo da moral kantiana tem sido criticado, com razão, por vários filósofos
morais ao longo do tempo. Talvez quem tenha melhor retrato o absurdo dessa rigidez foi
Friedrich Schiller que, com seus dois “dísticos elegíacos” satirizou esse aspecto da moral
kantiana de maneira bastante espirituosa. Eis suas palavras:
“Escrúpulos da consciência
Amigos, que prazer servir-vos! Mas faço-o por amável inclinação. Portanto,
nenhuma virtude tenho e sinto-me profundamente desgostado.
Solução do Problema
Que posso fazer quanto a isso? Tenho de ensinar-me a detestar-vos, e, com
desgosto no coração, servi-vos como ordena o dever”93.
Nessa disputa entre Hume, que supervalorizava as paixões, e Kant, que supervalorizava
a razão, é possível encontrar um meio termo. Kant está certo quando defende a importância
da reflexão racional no processo de definição dos juízos éticos, já que os sentimentos podem
nos levar a cair na chamada falácia do desejo ou da esperança (wishful thinking), que é a
forma de pensamento que consiste em tomar como verdade o que se deseja que seja
verdade. Stuart Mill dizia com razão que “a humanidade está sempre predisposta a acreditar
que qualquer sentimento subjetivo, para o qual não há outra explicação, é uma revelação de
uma realidade objetiva”94. Mas não é preciso ser tão insensível quanto ao papel dos
sentimentos nesse processo de formação dos juízos éticos, já que as emoções podem
funcionar como um poderoso mecanismo para a criação de vínculos de afetividade e
cooperação entre as pessoas ao longo da evolução biológica, que são ótimos catalisadores das
condutas éticas – e talvez tenham sido desenvolvidos mesmo para esse fim.
Além disso, a razão não é infalível, nem perfeita, nem suficiente para solucionar todos
os problemas, em todos os tempos e lugares, especialmente os problemas éticos, cujas
conseqüências de longo prazo são marcadas pela incerteza, enquanto que a razão é sempre
alicerçada em um número limitado de informações fragmentadas e manipuláveis. Sob esse
ponto, Hume certamente está certo ao dizer que para o homem de melhor bom senso, a

91
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 68.
92
“o que constitui o valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor superior a todo o preço, é que o
princípio da ação seja livre de todas as influências de motivos contingentes que só a experiência pode fornecer.
Todas as prevenções serão poucas contra este desleixo ou mesmo essa vil maneira de pensar, que leva a buscar
o princípio da conduta em motivos e leis empíricas; pois a razão humana é propensa a descansar das suas fadigas
neste travesseiro e, no sonho de doces ilusões (que lhe fazem abraçar uma nuvem em vez de Juno), a pôr em
lugar do filho legítimo da moralidade um bastardo composto de membros da mais variada proveniência que se
parece com tudo o que nele se queira ver, só não se parece com a virtude aos olhos de quem um dia a tenha
vista na sua verdadeira figura” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung
zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 68/69).
93
apud POPPER, Karl. Busca Inacabada: autobiografia intelectual (Unended Quest: an intellectual
autobiography, 1976). Lisboa; Esfera do Caos, 2008, p. 269.
94
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 100.
44

autoridade das opiniões nunca é completa, “pois mesmo um tal homem deve ter consciência
de se ter enganado muitas vezes no passado, e deve recear outro tanto no futuro” 95. Também
está certo Mill quando dizia que
“se temos instintos intelectuais, levando-nos a ajuizar de determinada maneira,
bem como instintos animais que nos levam a agir de determinada maneira, não há
qualquer necessidade de os primeiros serem mais infalíveis na sua esfera do que os
últimos na deles: pode muito bem dar-se o caso de os juízos errados serem
ocasionalmente sugeridos por aqueles, tal como as ações erradas poderão
ocasionalmente serem sugeridas por estes”96.
Nenhuma teoria ética deve se basear unicamente nas emoções, pois os sentimentos
nem sempre nos levam a agir eticamente, já que as sensações são subjetivas, individuais e,
muitas vezes, egoístas, ao passo que a ética deve ser objetiva, social, cooperativa. As emoções
visam o imediato, enquanto que a razão pode mirar conseqüências de longo prazo. O que nos
torna seres racionais é precisamente essa capacidade de refletir sobre nossas emoções e
controlar nossos impulsos que se afastem de uma noção ética desenvolvida por nós e para
nós. Mas nenhuma teoria ética deveria tratar os sentimentos com indiferença, como se
fossem inúteis e sempre atrapalhassem. Os mais recentes estudos neuropsicológicos
demonstram precisamente o contrário. Há fortes razões para crer que a emoção e o
sentimento desempenham um papel no raciocínio e esse papel é geralmente benéfico – e
quando o papel é benéfico, a presença da emoção e do sentimento é indispensável. António
Damásio demonstrou que pacientes que sofreram lesões cerebrais e perderam a capacidade
de sentir emoções sociais, como a empatia ou a vergonha, por exemplo, são capazes resolver
problemas lógicos como qualquer outra pessoa e até mesmo conseguem, em laboratório,
resolver problemas sociais e morais apresentados numa situação hipotética. Porém, de pouco
lhes serve toda esta sabedoria formal, lógica e racional quando enfrentam a realidade, pois a
sua indiferença emocional não lhes fornece nenhum estímulo para agir moralmente. Ao não
usar a experiência emocional acumulada ao longo de suas vidas, suas decisões
comportamentais na vida real costumam ser desastrosas, gerando problemas familiares,
financeiros e afetivos de um modo geral97. Por isso, “se fôssemos incapazes de sentir empatia

95
HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva
Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 225.
96
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 100.
97
DAMÁSIO, António. Ao Encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia do sentir (Looking for
Spinoza. Joy, Sorrow and the Feeling Brain, 2003). Minra-Sintra: Mem Martins, 2003. Damásio chega a defender
que, na ausência de emoções e sentimentos normais, especialmente na ausência de emoções sociais (como o
embaraço, a vergonha, a culpa, o desprezo, a indignação, a simpatia, a compaixão, o espanto, a admiração, a
gratidão e o orgulho), a emergência de comportamentos éticos seria improvável, pois, em tais circunstâncias, a
construção cultural daquilo que deve ser considerado bom ou mau seria mais difícil. As emoções e os
sentimentos, na sua ótica, terão sido um alicerce necessário para os comportamentos éticos muito antes dos
seres humanos terem iniciado a construção deliberada de normas inteligentes de conduta social (p. 183/184). É
preciso lembrar, contudo, que não se deve confundir os sentimentos naturais de cooperação com a ética, sob
pena de se cair no já comentado erro da falácia naturalista.
45

– de nos colocarmos na posição dos outros e de ver que o seu sofrimento é como o nosso -, o
raciocínio ético não nos levaria a lado nenhum. Se a emoção sem razão é cega, então a razão
sem emoção é impotente”98.
A partir desses dados, é possível extrair as seguintes conclusões parciais acerca da
função do sentimento na elaboração e realização das condutas éticas:
(a) para os problemas éticos do dia-a-dia, com os quais já estamos acostumados e que,
por isso, não demandam uma reflexão mais profunda e exigem respostas imediatas, as nossas
emoções, vale dizer, o nosso pensamento intuitivo exerce uma função muito importante, pois
é capaz de nos fornecer, quase automaticamente, uma linha de conduta que, em geral, é
confiável, prudente e razoável;
(b) para os problemas éticos mais complexos, que não estamos preparados para
resolvê-los de imediato, o papel das emoções é apenas secundário, funcionando ora como um
indicador provisório de uma boa conduta, ora como um catalisador de nossa vontade;
(c) os juízos éticos abstratos podem ser formulados até mesmo por pessoas insensíveis,
pois qualquer pessoa que tenha capacidade de raciocínio lógico está habilitado, em tese, para
desenvolver soluções que possam ser justificadas racionalmente. Por outro lado, ainda que as
emoções não sejam imprescindíveis para a formulação de juízos éticos abstratos e hipotéticos,
elas são essenciais para motivar o agente a agir conforme essa solução, sendo fundamentais
para a realização prática da ética.
Por isso, pode-se dizer que o papel da ética é nos fornecer argumentos de reflexão
para que possamos avaliar se nossos sentimentos estão nos levando para o lado certo ou
errado, sobretudo quando colocamos os interesses dos outros na balança de nossas decisões.
Quando os sentimentos nos levam para o caminho da ética, é melhor embarcar neles com
razão e tudo. Se a razão é o motor da ética, a emoção é seu combustível.

4.4 Ética da Eternidade

A ética é uma construção teórica (cultural) que faz parte do mundo do conhecimento
objetivo e racional (o Mundo 3 popperiano). As diversas concepções éticas, inclusive aquelas

98
SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria
Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 17. Não se pode deixar de fazer uma
analogia dessa idéia com a famosa passagem bíblica da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, cuja poesia
não é capaz de afastar a sua racionalidade: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver
amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e
conheça todos os mistérios e toda a ciência: ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas,
se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue
meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso se aproveitará. O amor é paciente, é
benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente,
não procura seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas
regozija-se com a verdade”.
46

de natureza religiosa, foram desenvolvidas pelos seres humanos para proporcionar uma vida
melhor em sociedade, ainda que, muitas vezes, as teorias sejam manipuladas para
satisfazerem interesses de grupos e de pessoas específicas.
Dentro desse processo de desenvolvimento de teorias éticas, somente aquelas
concepções éticas que funcionam na prática sobrevivem e merecem ser seguidas. As
sociedades que seguiram condutas éticas destrutivas e não-cooperativas certamente
desapareceram (ou desaparecerão) e não deixaram (ou não deixarão) descendentes para
contar a história.
Aqui podemos aproveitar uma parte da ética kantiana, que é a idéia de universalidade.
Como se viu, Kant dizia que uma conduta será ética se puder se transformar em uma lei
universal de conduta. Mas Kant não disse qual a sanção para o descumprimento dessa lei
universal de conduta, nem forneceu qualquer motivo para obedecê-la, exceto uma sanção
interior provocada pelo sentimento de descumprimento do dever (“a lei moral dentro de
mim”).
Além dessa sanção subjetiva, há outro efeito de longo prazo: se você não agir de tal
forma que a sua conduta possa se tornar uma lei universal, certamente você, ou melhor, os
seus futuros descendentes perderão um lugar na vida eterna, pois, ao seguir uma ética não-
cooperativa, você terá mais dificuldades de perpetuar seus genes.
O próprio Kant tinha alguma noção desse fenômeno, ainda que, logicamente, não
tivesse qualquer contato com a idéia de gene, que foi desenvolvida algumas décadas depois.
Mas ele tinha uma noção de que uma conduta auto-destrutiva não cumpriria o requisito
moral da universalidade. Um de seus exemplos mais conhecidos é o do sujeito que, por estar
em apuros financeiros, questiona se deveria pedir dinheiro emprestado mesmo sabendo que
não poderá cumprir o pacto. Caso o sujeito tivesse em mente apenas a satisfação de seus
interesses imediatos, certamente não hesitaria em pedir emprestado o dinheiro para escapar
das dívidas já vencidas. Porém, se ele pensasse nas conseqüências futuras de seu ato, talvez
chegasse à conclusão de que poderia se prejudicar ainda mais, já que perderia a confiança dos
seus pares e nunca mais conseguiria realizar qualquer negócio. Assim, mesmo que estivesse
pensando em seus próprios interesses, esse sujeito chegaria à conclusão de que talvez fosse
melhor não assumir um compromisso que não pode cumprir.
O sujeito moral kantiano, para resolver de maneira mais segura o problema de saber
se uma promessa mentirosa é conforme ao dever, precisaria perguntar a si mesmo: “ficaria eu
satisfeito de ver a minha máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa não
verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como para os outros)?”
Raciocinando assim, a conclusão seria óbvia: se todos fizessem uma promessa
mentirosa quando se achassem numa dificuldade, uma tal lei universal impediria a existência
de qualquer tipo de promessa, “porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às
47

minhas futuras ações a pessoas que não acreditam na minha afirmação, ou, se
precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda. Por conseguinte, a minha
máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente”99.
Essa lógica utilizada por Kant é uma lógica muito semelhante à lógica
conseqüencialista. O respeito ao dever moral, já que alicerçado na razão, não é uma regra
sem sentido. O ser racional, ao se convencer que deve agir moralmente, tem plena
consciência de que vale a pena agir de tal forma para que sejam colhidos benefícios de longo
prazo. Kant, naturalmente, não concordaria com isso, pois ele insiste em afirmar a ação moral
não se interessa pelas conseqüências nem pelos motivos da ação. Eis suas palavras:
“não preciso pois de perspicácia de muito largo alcance para saber o que hei-de
fazer para que o meu querer seja moralmente bom. Inexperiente a respeito do curso das
coisas do mundo, incapaz de prevenção em face dos acontecimentos que nele se venham
a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: - Podes tu querer também que a tua máxima
se converta em lei universal? Se não podes, então deves rejeitá-la, e não por causa de
qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas porque ela não
pode caber como princípio numa possível legislação universal” 100.
O argumento é forte e convincente, mas Kant deu um salto arbitrário ao não
responder a seguinte questão básica: mas por que essa conduta (assumir compromissos
irrealizáveis) não pode se tornar uma lei universal? Quais as razões que conferem a uma
máxima o seu caráter universal? A resposta é simples, mas, ao respondê-la, temos que
assumir necessariamente uma postura conseqüencialista. Pode-se dizer que a promessa
mentirosa não é uma ação ética porque, entre outras coisas, não é uma estratégia
evolutivamente estável. Ela não sobrevive numa perspectiva de longo prazo, sendo destruída
por outras estratégias melhores, especialmente pelo Tic for Tat (aliás, é até curioso que Kant
tenha usado a expressão “pagar na mesma moeda” para justificar a destruição da promessa
mentirosa).
Kant sabia disso perfeitamente quando afirmou, com base em argumentos
nitidamente conseqüencialistas, que “a universalidade de uma lei que permitisse a cada
homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à idéia com a intenção de o não
cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade que com ela se pudesse ter em
vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais
declarações como de vãos enganos”101.

99
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 35. O destaque foi acrescentado para reforçar a idéia de
reciprocidade.
100
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 36.
101
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten,
1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 64.
48

É justamente por isso, ou seja, pelas conseqüências danosas que provoca em longo
prazo, que esse princípio de fazer uma promessa irrealizável não pode se tornar uma lei
universal102. E é importante que o agente moral saiba disso. O sujeito que atingiu um estágio
moral tão elevado quanto o proposto pelo o deontologismo kantiano, ou seja, que cumpre as
leis morais seguindo o seu puro sentimento de dever sem pensar nas conseqüências, é tão
confiante de si que sua arrogância pode ser fatal, já que é um passo para o fanatismo. O
melhor é nunca perder a humildade intelectual e meditar constantemente sobre os benefícios
de longo prazo que uma ação moral pode produzir. Agir tão somente por uma observância do
sentimento de dever é tão irracional quanto agir apenas pensando no prazer imediato. Tal
atitude não é digna de um ser racional.
O dever moral, portanto, não é nem deve ser um sentimento cem por cento puro e
totalmente indiferente aos resultados produzidos pela ação. O deontologismo kantiano, na
verdade, pode ser, com vantagens, transformado em uma ética conseqüencialista de longo
prazo103. Ao levar em conta o ser humano concreto – racional e emocional – os argumentos
kantianos deverão ser revistos e, uma vez ocorrendo isso, sua ética se aproxima da ética
utilitarista, pelo menos em parte, já que a sua utilidade não é o prazer, mas os benefícios
globais que ela gera104.
O dever moral nasce de uma reflexão racional que se preocupa com as conseqüências
de longo prazo e estimula o sujeito a segui-lo mesmo que os benefícios de curto prazo não lhe
sejam favoráveis. Se todos seguirem o dever moral, as relações sociais se estabilizam

102
Stuart Mill também percebeu isso. Ao elogiar Kant, dizendo que “este homem notável, cujo sistema de
pensamento permanecerá por muito tempo um dos marcos da história da especulação filosófica”, diz que,
quando tenta justificar o seu primeiro imperativo categórico, Kant “fracassa, de forma quase grotesca”. Tudo o
que demonstra “é que as conseqüências da sua adoção universal seriam de tal ordem que ninguém escolheria
sofrê-las”. Por isso, “para dar algum significado ao princípio kantiano, o sentido que lhe é conferido tem de ser
que devemos moldar a nossa conduta por uma regra que todos os seres racionais pudessem adotar com
benefício para o seu interesse coletivo” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo
Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 47 e 113/114).
103
R. H. Hare também sugeriu, no artigo “Could Kant have beem Utilitarian?” que Kant poderia ter sido
utilitarista, embora não tenha sido. A teoria formal kantiana, segundo Hare, pode certamente ser interpretada
de tal forma que permita que ele possa ser considerado como uma espécie de utilitarista, de modo que os
desacordos de Kant com os utilitaristas podem ser bem menores do que os filósofos morais costumam bradar
(HARE, R. H. Sorting Out Ethics. Oxford: Claredon Press, 1997, p. 147/166). Para os utilitaristas, não há, em
verdade, um choque entre a ética utilitária e a ética deontológica, já que esta pode ser útil se canalizada para o
bem, vale dizer: o próprio deontologismo é capaz de servir aos propósitos do utilitarismo. A esse respeito, Mill
diria que “se a crença na origem transcendental da obrigação moral concede alguma eficácia acrescida à sanção
interna, parece-me que o princípio utilitarista beneficia já dela” (MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism,
1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 82).
104
O próprio Kant afirmou: “é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza um
único caso em que a máxima de uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha baseado puramente em
motivos morais e na representação do dever (...). nunca podemos penetrar completamente até aos móbiles
secretos dos nossos atos, porque, quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos
seus princípios íntimos que não se vêem” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes
(Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 42).
49

indefinidamente no tempo e todos serão beneficiados no final. Por outro lado, aqueles que
não cumprem o dever o moral colherão os frutos negativos desta conduta mais cedo ou mais
tarde, ainda que possam receber alguma vantagem imediata.
Qualquer concepção ética, para ter alguma chance de sucesso a longo prazo, precisa
ter como mira a idéia de eternidade, isto é, precisa valorizar o futuro, por mais distante que
seja. As concepções éticas que se preocupam apenas com o aqui e com o agora
provavelmente não terão seguidores daqui a mil ou um milhão de anos. “Se alguém propõe
uma ética tão nobre que tentar viver à sua luz constitua um desastre para todos, então -
independentemente de quem a propôs - não é uma ética nobre de todo, é uma ética estúpida
que deve ser firmemente recusada”, diria Peter Singer105.
Nesse aspecto, Stuart Mill está errado quando defende que o remorso é “a sanção
derradeira de toda moralidade”106. O sentimento subjetivo de desaprovação, a nossa
consciência moral, a vergonha etc. são meras sanções internas que funcionam apenas como
uma espécie de combustível para motivar a prática das condutas éticas. A sanção derradeira
da ética, ainda quando não acumulada com as sanções jurídicas e sociais, é muito mais séria: é
a derrota biológica numa perspectiva de sobrevivência de longo prazo.
Isso não significa, contudo, que quem age segundo a máxima do “aja de tal modo que
sua ação possa ser considerada como uma estratégia evolutivamente estável” está
necessariamente agindo eticamente. Pode ser que existam estratégias evolutivamente
estáveis que não sejam éticas107. No entanto, qualquer noção de ética tem que ser uma
estratégia evolutivamente estável, pois esse é um pressuposto básico ditado pelas leis da

105
SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To Live?,
1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 305.
106
MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 80.
107
Kant, por exemplo, cita o caso da caridade. Uma sociedade em que as pessoas não praticassem a caridade
poderia até subsistir, “mas embora seja possível que uma lei universal da natureza possa subsistir segundo
aquela máxima, não é contudo possível querer que um tal princípio valha por toda a parte como lei natural. Pois
uma vontade que decidisse tal coisa pôs-se-ia em contradição consigo mesma: podem com efeito descobrir-se
muitos casos em que a pessoa em questão precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela, graças a tal
lei natural nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesma toda a esperança de auxílio que para si deseja”
(p. 65). Em outra passagem, Kant invoca seu segundo imperativo categórico para justificar a caridade: “Ora, é
verdade que a humanidade poderia subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos outros, contanto que
também lhes não subtraísse nada intencionalmente; mas se cada qual se não esforçasse por contribuir na
medida das suas forças para os fins dos seus semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativa e não
positiva com a humanidade como fim em si mesma. Pois que se um sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins
têm de ser quanto possível os meus, para aquela idéia poder exercer em mim toda a sua eficácia” (p. 75). Todas
as citações são de KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik
der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008.
No fundo, se for analisada a questão da caridade numa perspectiva de longo prazo, certamente se concluirá que
uma sociedade que não trata a caridade como um dever moral ou que não estimula a cooperação entre os seres
racionais tem muito menos chances de sobreviver do que uma sociedade em que há um vínculo de afetividade e
de compaixão entre as pessoas. Estratégias não-cooperativas estão fadadas ao fracasso. Sob esse tema, numa
perspectiva biológica evolucionista, vale conferir: RIDLEY, Matt. As Origens da Virtude: um estudo biológico da
solidariedade (The Origins of Virtue, 1996). Rio de Janeiro: Record, 2000.
50

natureza108. A ética da reciprocidade, por exemplo, é uma ética que cumpre esse requisito e
talvez isso justifique a predominância histórica das religiões que recomendam a observância
da regra de ouro.

4.5 A Ética e as Gerações Futuras (Ética Intergeracional)

Nenhuma concepção ética pode deixar de pensar nas gerações futuras, nem na própria
“vida” do planeta, pois é nele que convivemos. As teorias éticas devem ser estabelecidas com
vistas a objetivos de longuíssimo prazo, considerando o valor intrínseco e permanente de
todas as riquezas ecológicas, não apenas para o presente, mas, sobretudo, para o futuro109.
Os efeitos das escolhas que tomamos e dos atos que praticamos agora, neste
momento presente, podem se prolongar no tempo e podem afetar não apenas os habitantes
atuais do planeta, mas também os habitantes futuros. Dependendo da dimensão do ato,
podem ser causados danos permanentes ou de difícil e longa recuperação que atingem de
uma forma direta as gerações futuras, já que muitos bens naturais não são regeneráveis ou
não são renováveis ou são de demorada regeneração/renovação. Se a ética deve mirar os
efeitos de longo prazo e deve ter como base a preocupação com os interesses de todos os
afetados pelos nossos atos, a conclusão óbvia é a de que o círculo ético deve ser alargado
para que sejam incluídos os seres que ainda virão.
Temos que ter consciência de que a capacidade do ambiente para satisfazer as
necessidades humanas é limitada. Portanto, ao usufruirmos dos bens naturais, devemos
também pensar na possibilidade de os nossos descendentes satisfazerem as suas próprias
necessidades e terem um nível de bem-estar ótimo, talvez até melhor do que temos hoje.
Quem talvez tenha melhor captado e divulgado essa idéia foi Hans Jonas, um filósofo
alemão da contemporaneidade que desenvolveu a noção de “ética da responsabilidade”, em

108
Sobre isso, Kant diria: “alguma ações são de tal ordem que a sua máxima nem sequer se pode pensar sem
contradição como lei universal da natureza, muito menos ainda se pode querer que devam ser tal” (KANT,
Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad:
Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 66).
109
A esse respeito, vale citar o conselho de Hans Küng: “até à data, a Ética, enquanto reflexão sobre o
comportamento moral do ser humano, tem chegado sempre tarde demais: na maior parte dos casos,
interrogamo-nos acerca do que deveríamos fazer depois de já o termos feito. Para o nosso futuro, porém, será
determinante que perguntemos o que deveríamos fazer antes de o termos feito. A Ética, ainda que circunscrita
temporal e socialmente, não deveria apenas consistir numa reflexão em tempo de crise; quem observa
constantemente pelo espelho retrovisor o troço de estrada percorrido esquece-se de olhar para o caminho à
percorrer à sua frente” (p. 40). Em outra passagem, Küng complementa essa idéia: “Qual deveria ser, pois, a
máxima a adotar com vista a um futuro comum? Qual seria o nosso ideal ético para o terceiro milênio? Qual a
palavra de ordem para a nossa estratégia futura? Respota: palavra-chave para a nossa estratégia futura deverá
ser a responsabilização dos seres humanos relativamente ao destino deste planeta, ou seja, um sentido da
responsabilidade à escala planetária” (KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990).
Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996, p. 61).
51

um famoso livro publicado logo depois do acidente de Chernobyl. Partindo de uma justa
preocupação com a não-destruição da humanidade em decorrência das novas tecnologias e
dos danos causados à natureza, Hans Jonas defendeu o desenvolvimento de uma ética
orientada para o futuro, que pretende proteger os nossos descendentes das nossas ações
presentes e não permaneça circunscrita ao âmbito imediato e interpessoal de nossos
contemporâneos. Para ele, a ética precisa deixar de pensar apenas no momento presente,
devendo ser capaz de impedir um desastre ecológico e antropológico irreversível que as ações
humanas são capazes de provocar com as técnicas de destruição recentemente adquiridas.
Por isso, a ética deve ser repensada para fornecer instruções de autovigilância em face do
desmesurado poder humano. Isso significa, entre outras coisas, que a humanidade tem a
obrigação ética de, entre outras coisas, conservar este mundo físico de tal modo que as
condições para tal existência permaneçam intactas.
A partir daí, Hans Jonas desenvolveu uma versão adaptada do imperativo categórico
kantiano, que poderia ser expresso do seguinte modo, nas suas próprias palavras: “age de tal
modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana
autêntica na Terra”, ou, na sua forma negativa, “age de tal modo que os efeitos de tua ação
não sejam destrutivos para a futura possibilidade dessa vida”, ou, simplesmente, “não ponha
em perigo as condições da continuidade indefinida na Terra” ou, finalmente, “inclua em tuas
considerações presentes, como objeto também de tua vontade, a futura integridade do
homem”110.
O tom alarmista de Hans Jonas talvez deixe transparecer um medo paranóico e
exagerado (heurística do medo), mas não é por menos. O mundo nunca esteve tão perto de
um colapso quanto no século XX, que viu duas guerras mundiais sangrentas e desumanas;
acompanhou uma longa guerra fria que separou a humanidade em dois blocos inimigos;
assistiu a um crescente desenvolvimento de armas de destruição em massa, cujo potencial
destrutivo ultrapassa qualquer noção de bom senso; presenciou dois ataques nucleares com
milhares de vítimas civis; sofreu acidentes ambientais sérios e irreversíveis, ora provocados
pelos próprios seres humanos ora pela impossibilidade de controle da natureza; sentiu os
efeitos danosos dos acidentes radiativos de grande magnitude, como bem demonstrou
Chernobyl; e tardiamente tem se conscientizado de um risco concreto de catástrofes
ambientais provocadas pelo aumento do buraco na camada de ozônio e pelo esgotamento
das fontes de energia e de recursos minerais, decorrente de um consumismo insustentável.
Tais ameaças e riscos se estendem até os dias de hoje e foram ainda mais potencializados
pelas pesquisas genéticas, atômicas e pelo aquecimento global, que pairam como uma
“espada de Dâmocles” na cabeça da humanidade.

110
JONAS, Hans. El Principio de Responsabilidad: ensayo de una ética para la civilización tecnológica.
Barcelona: Herder, 1995, p. 40.
52

Isso não significa que se deva abrir uma guerra contra a ciência ou contra a tecnologia.
Não há qualquer incompatibilidade absoluta entre as inovações tecnológicas e o necessário
respeito ao ser humano e à natureza que deve pautar todas as atividades sociais. Pelo
contrário. É o próprio conhecimento científico que tem sido capaz de detectar as principais
ameaças ao Planeta e sugerir soluções para minorar os problemas causados pelo avanço
tecnológico e pelo desenvolvimento econômico. Por isso, não é preciso defender a destruição
de todas as formas de tecnologias, como fizeram os ludistas no Século XIX, quando viram seus
empregos serem ameaçados pela automatização da indústria, mas tão somente exigir que o
método científico seja utilizado de forma “prudente para uma vida decente”, como bem
sugeriu Boaventura de Sousa Santos, tentando, acertadamente, contribuir para a legitimação
ética do método científico ao invés de combatê-lo111.
Há, ainda, outro efeito importante que surge a partir daí. É que a ética, que sempre
tem sido tratada como um assunto de foro privado, tem que buscar uma institucionalização
para poder surtir o efeito desejado de forma eficaz, devendo ser tratada como “um assunto
de interesse público e de primeira ordem”112. Vale dizer: a ética precisa se transformar em
direito para proteger a humanidade dela própria, pois somente a normatização jurídica é
capaz de gerar sanções legítimas e efetivas para estimular os indivíduos a agirem eticamente.
É preciso, pois, “passar da ética ao direito”113.

4.6 A Ética e o Diálogo

O pressuposto básico de qualquer pensamento ético é a capacidade humana de


raciocinar e de auto-refletir sobre os nossos próprios atos e sentimentos. A dignidade do ser
humano está na sua autonomia de vontade, ou seja, na sua capacidade de refletir, escolher e
agir em conformidade com nossas escolhas, e, por isso, é inegociável – não tem preço. Não
tratar os outros como objeto significa, em essência, respeitar a sua autonomia da vontade.
Kant e Mill demonstraram com muita clareza a importância da liberdade de escolha
consciente e pensada como nota distintiva dos seres racionais114. E se essa auto-reflexão

111
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as
ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.
112
KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços.
Lisboa: Piaget, 1996, p. 69. Para Küng, “os princípios e normas éticas podem e devem – em nome do bem-estar
dos seres humanos -, se introduzidos nos debates e nas tomadas de decisões concretas, enquanto critérios de
avaliação e de distinção” (p. 115).
113
CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa:
Instituto Piaget, 1999, p. 22.
114
Eis as palavras de Kant: “são rejeitadas todas as máximas que não possam subsistir juntamente com a própria
legislação universal da vontade. A vontade não está pois simplesmente submetida à lei, mas sim submetida de
tal maneira que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma e, exatamente por isso e só então
submetida à lei (de que ela se pode olhar como autora)” (p. 71). “Todo o ser racional deve considerar-se como
53

racional for incrementada com o diálogo intersubjetivo e produtivo tanto melhor, pois quanto
mais pessoas participam do debate maior é a quantidade de informações disponíveis para se
chegar à melhor solução e mais fácil se torna a compreensão dos interesses alheios, o que
certamente fortalece os elos sociais.
A ética do discurso desenvolvida pelo filósofo alemão Jürgen Habermas pretendeu
reformular a ética kantiana de modo a incluir a comunicação intersubjetiva na sua base,
tentando transformar o raciocínio moral em um acontecimento público em que todos
intervêm de forma conjunta e não em uma reflexão meramente privada e particular115.
Daí, a sua “fórmula-síntese” (Princípio “D”): “as únicas normas que têm o direito de
reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes
envolvidos num discurso prático” (p. 16). Em outros termos: “todas as normas em vigor teriam
de ser capazes de obter a anuência de todos os indivíduos em questão, se estes participassem
de um discurso prático” (p. 34).
A isso se soma um princípio de universalização (“U”) preocupado com as
conseqüências dos atos, algo que já havia sido apontado pelos utilitaristas: “no caso das
normas em vigor, os resultados e as conseqüências secundárias, provavelmente decorrentes
de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor da satisfação dos interesses de
cada um, terão de poder ser aceites voluntariamente por todos” (p. 16).
Para Habermas, o fato de os seres humanos estarem entrelaçados em múltiplos
esquemas de dependência social implica que os sujeitos dotados da capacidade de linguagem
e de ação só se constituem como indivíduos na medida em que, enquanto elementos de
determinada comunidade lingüística, crescem num universo partilhado intersubjetivamente.
“Ninguém, por si só, consegue afirmar a sua identidade” (p. 19). Logo, “o sujeito dotado de
capacidade de juízo moral nunca pode por si próprio, mas sim em conjunto com todos os
outros indivíduos envolvidos, verificar se um modo controverso de conduta pode servir o
interesse coletivo enquanto prática geral” (p. 61). Somente uma argumentação conduzida de
modo intersubjetivo, e em que todos os indivíduos afetados possam participar, torna possível
a validade geral das normas morais. Para que o debate chegue a um consenso racional, todos
os participantes devem se guiar pela seguinte máxima: “que a tua ação seja orientada para o
entendimento comum e que conceda aos outros a liberdade comunicativa de poderem tomar
uma posição face às pretensões de validade” (p. 168).

legislador universal por todas as máximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às
suas ações” (p. 79). “Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza
racional” (p. 83). A heteronomia da vontade, por sua vez, é a “fonte de todos os princípios ilegítimos de
moralidade” (p. 90). Todas as citações foram extraídas de: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos
Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785). Trad: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2008.
115
As informações acerca da ética do discurso foram extraídas de HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do
Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999. As citações ao longo deste tópico
foram extraídas do referido livro, salvo indicação em contrário.
54

O papel das normas éticas, na teoria habermasiana, não é tão diferente da ética
utilitarista de Stuart Mill: garantir o respeito da dignidade individual e proporcionar a
cooperação entre os indivíduos, enquanto membros de uma comunidade. Esses dois objetivos
correspondem basicamente aos princípios de justiça e de solidariedade: “enquanto um
postula respeito e direitos iguais para cada indivíduo, o outro reclama empatia e cuidado em
relação ao bem-estar do próximo. Em sentido moderno, a justiça diz respeito à liberdade
subjetiva de indivíduos alienáveis; em contrapartida, a solidariedade prende-se com o bem-
estar das partes irmanadas numa forma de vida partilhada intersubjetivamente” (p. 19). “As
normas morais não conseguem proteger uma coisa sem a outra: nem conseguem preservar os
direitos e liberdades iguais do indivíduo sem o bem-estar do próximo e da comunidade a que
pertencem” (p. 71). E assim conclui:
“nas argumentações, os participantes têm de partir do pressuposto pragmático de
que, por princípio, todos os indivíduos envolvidos tomam parte, enquanto sujeitos livres e
iguais, numa procura cooperativa da verdade, na qual apenas o imperativo do melhor
argumento deve ser contemplado. É neste fato universal que se baseia o princípio da ética
do discurso: só aquelas normas que possam obter a anuência de todos os participantes de
um discurso prático é que poderão reclamar validade” 116.
Habermas tem toda razão quando diz que, através da comunicação, torna-se mais fácil
descobrir os pontos de vista centrais para uma melhor correção ou compensação das
fragilidades que afetam os seres humanos. Do mesmo modo, parece ser inegável a utilidade
da ética do discurso para o desenvolvimento de uma concepção ética que pretenda alcançar
um grau de universalidade e de legitimidade que possa valer para todas as pessoas do
planeta.
Mas Habermas também se equivoca em alguns pontos. Em primeiro lugar, é um erro
achar que a ética do discurso substitui ou supera o ponto de partida kantiano “meramente
interior e monológico, segundo o qual cada indivíduo empreenderia in foro interno a avaliação
de suas máximas de conduta” (p. 23). A reflexão individual e privada sempre será o ponta-pé
inicial de qualquer processo discursivo. O raciocínio subjetivo continua a ter uma grande
importância. Para demonstrar isso basta dizer que a própria ética do discurso não foi
construída dentro dos pressupostos procedimentais que ela própria propõe. Ela é fruto de
uma construção meramente subjetiva, desenvolvida “in foro interno” na mente privilegiada de
Habermas e de outros filósofos. A ética do discurso está alicerçada em diversos elementos
materiais e leva a diversas conseqüências substanciais que não foram produzidas seguindo as
suas próprias regras. A teoria de Habermas é a prova maior de que o intelecto humano é
capaz de produzir bons argumentos éticos fora de um contexto intersubjetivo 117.

116
HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto
Piaget, 1999, p. 62.
117
Logicamente, Habermas tem consciência disso. Ele próprio afirma que o discurso prático é um método “não
ao serviço da produção de normas justificadas, mas sim da avaliação da validade de normas encontradas,
55

É um grande exagero afirmar que “uma máxima que inicialmente ‘se afigura boa e
correta’ ao indivíduo só adquire a sua qualidade moral quando todos a aceitam como uma
máxima válida para todos os indivíduos” (p. 43). Não existe nenhuma máxima tão consensual
assim, a não ser em uma perspectiva ideal e, por isso, meramente imaginária. A própria ética
do discurso não teria qualquer qualidade moral já que não é aceita com unanimidade por
todos os seres racionais. E, com isso, deixaria de ser universalmente válida.
Há um caráter paradoxal nessa idéia. Habermas pretende criticar o individualismo,
mas, ao exigir um consenso universal, acaba por dar ao indivíduo um poder muito grande. Se
eu me enquadro no conceito de ser racional nos moldes idealizados pela ética do discurso
posso me tornar censor de toda e qualquer norma moral, já que a validade dos juízos morais
dependerá da minha aprovação. Logo, o meu “voto moral” individual tem o peso de invalidar
qualquer comportamento cujas conseqüências eu não aceite. No fundo, quando o contexto
comunicativo é encarado realisticamente, o indivíduo isolado tem um poder maior na ética do
discurso do que nas éticas individualistas que se guiam pelo princípio majoritário ou do
consenso possível.
Além disso, Habermas dá o mesmo salto arbitrário cometido por Kant, ou seja, não
explica porque que as pessoas racionais aceitariam consensualmente qualquer concepção
ética, nem diz o que pode ser considerado como “o melhor argumento”. Certamente é pelas
conseqüências que ela produz, diria Habermas, já que “uma norma só conseguirá obter
anuência de motivação racional da parte de todos, se todos os indivíduos participantes ou
potencialmente envolvidos levarem em linha de conta as conseqüências e efeitos
secundários, para si e para os outros, decorrentes da observância geral da norma” (p. 95).
Mas que conseqüências seriam essas? Para Habermas, não cabe aos filósofos morais
responder a essa questão, pois isso deveria ser definido pelos participantes do discurso. O
papel das teorias éticas seria meramente “explicitar as condições que possibilitam aos
intervenientes encontrar, por si mesmos, uma resposta racional” (p. 124).
Não há dúvida de que não vivemos, felizmente, um “governo dos filósofos” tal como
propunha Platão. Logo, não há mesmo qualquer sentido em atribuir à filosofia uma
autoridade de fornecer respostas definitivas e em última instância para as questões morais. As
teorias éticas, por si sós, não possuem qualquer validade normativa. Qualquer teoria ética
precisa passar por um processo de reconhecimento social ou de institucionalização para
adquirir validade social ou jurídica. Mas isso não significa que os próprios filósofos não
possam participar do grande debate democrático e, na qualidade de membros ativos da

problematizadas e refletidas hipoteticamente” (p. 36). Portanto, o discurso não produz nada, nem substitui a
reflexão individual. Não há, a meu ver, que se falar em uma superação da ética individualista, até porque “as
questões éticas não existem de modo algum uma cisão absoluta com a perspectiva egocêntrica” (HABERMAS,
Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999,
p. 106).
56

comunidade discursiva, fornecer alguns critérios capazes de ajudar os debatedores a


chegarem a uma solução razoável118. É o que proponho a fazer no próximo tópico, não na
qualidade de filósofo, mas de um estudioso de filosofia moral e membro de uma comunidade
ética global.

4.7 Heurística Negativa e Positiva da Ética

Nem a ética, nem a justiça, nem o direito são teorias prontas e acabadas. Jamais o ser
humano criará uma concepção definitiva de justiça ou de ética, pois as teorias estão sempre
sujeitas a melhorias e evoluem conforme o conhecimento humano se acumula e se
desenvolve119. O máximo que se pode estabelecer são concepções éticas melhores do que
outras, mas nunca definitivas. E uma teoria ética será melhor do que a outra se obedecer aos
seguintes parâmetros negativos e positivos (que são meramente sugestivos, sem nenhuma
pretensão de taxatividade):

1 - Heurística negativa (o que a ética não deveria ser):


(a) não deve contribuir para a destruição do mundo físico-natural;
(b) não deve provocar sofrimento desnecessário nos seres sencientes;
(c) não deve impedir a expansão do conhecimento objetivo;

2 - Heurística positiva (o que a ética deveria ser):


(d) deve colaborar com a preservação do mundo físico-natural, inclusive as suas
espécies biológicas;
(e) deve proporcionar o máximo de prazer e bem-estar possível para as criaturas
sencientes;

118
Peter Singer, no texto “Especialistas em Moral”, que pode ser considerado com um marco na redefinição do papel dos
filósofos morais, sustenta que “há razões para esperar que quem domine os conceitos e os argumentos morais e, além disso,
disponha de muito tempo para recolher informações e pensar sobre a mesma chegue mais freqüentemente a uma conclusão
bem fundamentada do que quem não domine os conceitos e os argumentos morais e disponha de pouco tempo. Desse
modo, parece que pode existir uma especialidade em moral” (SINGER, Peter. Escritos sobre uma Vida Ética (Writings on na
Ethical Life, 2000). Trad. Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 23). Na
sua ótica, os filósofos teriam algumas vantagens sobre o homem comum, como o domínio de ferramentas argumentativas e a
capacidade de detectar inferências inválidas, além de tempo para meditar sobre os problemas éticos com mais profundidade.
Mas isso certamente não lhe dá qualquer autoridade para dar a última palavra em questões morais. Os argumentos
filosóficos poderiam ter uma força argumentativa relevante no processo de tomada de decisões, mas não são suficientes por
si sós para garantir a validade de uma regra moral.
119
Essa idéia também já estava presente em Stuart Mill: “os corolários do princípio de utilidade, como os
preceitos de qualquer arte prática, permitem um aperfeiçoamento sem limites, e, num estado progressivo da
mente humana, o seu aperfeiçoamento está em permanente curso (...). Informar um viajante sobre o seu destino
final não implica proibir a utilização de marcos miliários e sinais pelo caminho. A proposição de que a felicidade é
o fim e a meta da moralidade, não significa que não tenha de ser estabelecida uma rota para esse objetivo, ou
que as pessoas que o procuram não devam ser aconselhadas a tomar uma direção em vez de outra” (MILL, John
Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 73).
57

(f) deve permitir a expansão do conhecimento objetivo, especialmente daquele


conhecimento que possa trazer benefícios éticos.

Como se vê, uma teoria ética da eternidade afeta tanto o mundo 1 quanto o mundo 2
quanto o mundo 3, para invocar mais uma vez a metáfora popperiana. A ética “para um
mundo melhor” deve ser, na verdade, uma ética para “os mundos melhores”. Uma ética que
leva em conta apenas o mundo 1 (mundo físico) é uma ética naturalista que pode cair no erro
da “falácia naturalista”, com conseqüências funestas para a humanidade como um todo,
como bem demonstra o exemplo do darwinismo social. Uma ética que se preocupa apenas
com o mundo 2 (mundo das sensações) é uma ética emotivista que pode cair no erro do
relativismo moral e, conseqüentemente, da arbitrariedade e do subjetivismo, onde “vale
tudo”, até mesmo oprimir o semelhante, o que certamente não é aceitável. Uma ética que se
preocupa apenas com o mundo 3 (mundo das teorias racionais) pode cair no erro de um
deontologismo radical, alheio às conseqüências que a ação pode acarretar, o que leva ao
perigo do fanatismo e da idolatria, inclusive religiosa. Melhor então é uma ética que se
preocupa tanto com a ação e resultados (mundo 1), quanto com os sentimentos e valores
subjetivos (mundo 2) e com a razão e valores objetivos (mundo 3).
E justamente por ter consciência de que nunca será definitiva, por ser sempre
construída à luz de um conjunto finito de conhecimento que está sempre em expansão, e
também por ter consciência de que a mudança é permanente e o futuro imprevisível, a ética
da eternidade tende a ser tolerante e pluralista, sem ser contudo anárquica, onde “vale tudo”
(“anything goes”). Ela tenta compreender toda forma de ética que caiba dentro dos
parâmetros negativos e positivos por ela estabelecidos e julgará qualquer concepção à luz
desses parâmetros. Ter a consciência e a humildade para reconhecer que o saber humano
será sempre limitado e que não se pode ter certeza absoluta sobre nada neste mundo é o
primeiro passo para aceitar uma ética sempre aberta e pluralista, que não exclua outras
concepções éticas, mas antes busque nas outras referências éticas uma possibilidade de
aperfeiçoamento e de auto-correção constante.
Muitos estilos de vida e formas de cultura certamente atendem à ética da eternidade -
e todos merecem ser respeitados. Aliás, até mesmo aquelas pessoas que optam por não
seguir uma ética da eternidade também merecem ser respeitadas, pois o mais importante é o
respeito à autonomia da vontade. Nenhuma concepção ética pode deixar de respeitar a
liberdade de escolha dos indivíduos, salvo quando essa escolha afeta negativamente o
interesse de outras pessoas, ocasião em que deverão ser estabelecidos mecanismos de
julgamento imparcial (justiça) para definir quais interesses merecem ser respeitados,
protegidos e promovidos. Esses critérios imparciais e institucionais de julgamento e de
58

solução de conflitos éticos rivais deveriam seguir, sempre que possível, os parâmetros acima
estabelecidos.
Ressalte-se que uma noção de eternidade e de universalidade de uma teoria ética não
significa necessariamente que a ética deva ser uniforme para todos os povos e pessoas, nem
mesmo significa a construção de normas éticas imutáveis para todos os tempos e lugares.
Universalidade não significa uniformidade, nem padronização120; eternidade não significa
imutabilidade, nem dogmatismo. Aliás, a constante mudança para melhor através da reflexão
consciente deve ser uma marca característica de qualquer concepção ética de longo prazo
que deseje se adaptar e evoluir na medida em que o próprio ser humano se desenvolve.
Habermas, nesse sentido, entendo que o princípio da universalização, enquanto regra
de argumentação, tem que ter um sentido operacional para sujeitos finitos dotados de
faculdade de juízo que é dependente dos variados contextos. Assim, “ele apenas pode exigir
que, no momento da fundamentação das normas, sejam contempladas as conseqüências e os
efeitos secundários que presumivelmente podem resultar do cumprimento geral de normas
no interesse de cada indivíduo, tendo como base a informação disponível e as razões
existentes na altura”121. Por esse motivo, “o princípio da universalização tem de ser formulado
de modo a não exigir nada impossível; tem de libertar o indivíduo que participa na
argumentação da atitude de tomar em consideração, logo no momento da fundamentação
das normas, o enorme número de situações futuras e completamente imprevisíveis”122.
R. M. Hare também sugere que os juízos morais devem ser universalizáveis, mas não
no sentido de que devam abarcar todas as situações possíveis em todos os lugares e em todas
as épocas de forma padronizada. Uma ação ética universalizável é aquela que podemos
prescrever independentemente do papel que desempenhamos na sociedade. É preciso levar
em conta o interesse de todos os que podem ser afetados por nossas ações. Só depois de
levarmos em conta as conseqüências globais de nossas ações, pode-se tomar uma decisão
ética e, se a reflexão ética for sincera, devemos nos conformar com o seu resultado mesmo
que ela possa nos prejudicar à primeira vista. Nesse processo, não se pode ignorar os efeitos
de longo prazo (promoção de laços familiares, criação de relações recíprocas etc.). O ideal é
que cada uma de nossas ações seja objeto de uma reflexão ética particularizada e tópica.

120
Lucien Séve, sobre esse assunto, diria que “o universalismo ético não poderia significar, sem desonrar a si
mesmo, a uniformização despótica das culturas por um qualquer constrangimento exterior. É do interior de cada
nação que se manifestam as novas exigências de universalidade e é no interior de cada indivíduo que se abrem
laboriosamente novas abordagens particulares” (CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Uma Mesma Ética para Todos?
(Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 200).
121
HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto
Piaget, 1999, p. 137. Vale ressaltar que essa idéia está muito próxima do conceito de “conhecimento objetivo”
adotado por Karl Popper, ainda que Popper e Habermas estejam em lados opostos do debate epistemológico.
122
HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto
Piaget, 1999, p. 137/138.
59

Porém, como tal atitude é impossível na prática, podemos nos guiar por algumas regras
morais previamente estatuídas, não como repositórios de verdade moral absoluta, mas como
guias geralmente fiáveis em circunstâncias normais123.
Stuart Mill também reconhecia que “não existe qualquer doutrina ética que não
tempere a rigidez das suas leis, permitindo uma certa margem de manobra, sob a
responsabilidade do agente, para dar conta das peculiaridades das circunstâncias”. O
problema é que, “em qualquer doutrina, aproveitando esta abertura, infiltram-se o auto-
engano e a desonestidade casuística”124.

123
apud SINGER, Peter. Como Haveremos de Viver? A Ética numa Época de Individualismo (How Are We To
Live?, 1993). Trad: Fátima Aubyn. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 309. Habermas também pensa assim: “as normas
válidas devem a sua universalidade abstrata ao fato de só passarem na tese da universalização sob uma forma
descontextualizada. Nesta versão abstrata, elas só encontram aplicação sem reservas em situações-padrão,
quando as características das mesmas foram contempladas, na qualidade de condições de aplicação, nos
componentes condicionais da regra. Todas as justificações de normas têm de, por sua vez, operar sob as
limitações normais de um espírito finito, isto é, não podem a fortiori levar explicitamente em consideração todas
as características que irão descrever futuramente as constelações de casos particulares não previstos. É por esta
razão que a aplicação de normas exige, por direito próprio, uma clarificação argumentativa” (HABERMAS, Jürgen.
Comentários à Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik, 1991). Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 113).
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MILL, John Stuart. Utilitarismo (Utilitarism, 1871). Trad. F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 75.
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5 Conclusões

Costuma-se falar que a ética é um conflito entre os interesses pessoais e os interesses


dos outros. Quem age eticamente não age pensando apenas em si, mas, sobretudo, no bem-
estar de outras pessoas, quase sempre sacrificando uma parte de seus próprios prazeres e
interesses para beneficiar estranhos. Respeitar os desejos de todas as outras pessoas, ainda
que em detrimento do interesse próprio, é a base da ética. Essa idéia é correta, mas pode ser
melhorada. A ética pode ser vista também como um conflito entre os interesses pessoais
imediatos (de curto prazo) e os interesses gerais de longo prazo.
A busca consciente e racional dos interesses gerais de longo prazo também beneficia,
como é óbvio, a pessoa que age eticamente. Portanto, agir eticamente não significa
necessariamente agir contra os próprios interesses, ainda que os prazeres subjetivos de curto
prazo possam ser eventualmente sacrificados em favor de benefícios futuros para todos.
A ética não deve mirar o prazer individual imediato, pois para isso existe a emoção,
que, nesse aspecto, funciona melhor do que a razão. A ferramenta natural para nos permitir
sentir prazer ou dor – e agir conforme esse sentimento – não é a razão, mas a emoção. É aqui
que está o retumbante erro do utilitarismo clássico de Bentham e Mill, que confundiram
prazer com felicidade. O prazer não é nem deve ser o principal objetivo ético. A ética tem sim
uma função utilitária, mas a busca do prazer não é certamente o seu “fim último”. O papel da
ética, enquanto mecanismo racional, é estabelecer linhas de conduta que visem um benefício
geral de longo prazo, tanto para a natureza, quanto para o bem-estar das pessoas quanto
para a evolução do conhecimento objetivo, que, por sua vez, deve também contribuir para
aprimorar os julgamentos éticos. Os sentimentos podem ser um indicativo provisório de que a
conduta atende aos interesses gerais mais duradouros, mas nem sempre são totalmente
confiáveis.
No campo da ética, o que a razão tem de melhor do que a emoção é a capacidade de
avaliar os efeitos de longo prazo. Para os problemas mais básicos da vida, que não geram
conseqüências danosas para o futuro nem exigem muita meditação, o instinto tem sido muito
útil e eficaz para nos fornecer respostas rápidas e automáticas “prontas para usar”. Porém, os
sentimentos tendem a favorecer apenas nossos interesses de curto prazo, o que pode
ocasionar resultados nem sempre benéficos numa perspectiva mais macro. A razão, por outro
lado, força-nos a meditar para além dos nossos desejos imediatos. Ela nos obriga a levar em
conta os interesses dos outros como se tivessem o mesmo peso dos nossos, ainda que, muitas
vezes, nossos próprios desejos contaminem essa avaliação. Ao ponderar todos os interesses
em jogo e optar por adotar uma estratégia comportamental que maximize a satisfação dos
interesses de todos os afetados, devo imaginar que, numa comunidade de pessoas racionais,
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todos agirão da mesma forma. Ao pensar assim, posso me convencer de que vale a pena
adotar uma conduta ética, pois essa atitude me compensará no futuro. E se, no meio desse
“jogo de cooperação”, algum jogador se afastar da estratégia comportamental ética, é preciso
estabelecer mecanismos sociais e institucionais de punição para que esse jogador perceba
que não vale a pena agir de forma não-cooperativa. As estratégias comportamentais não-
cooperativas devem ser penalizadas, pois impedem a coesão e a harmonia na sociedade e,
portanto, merecem ser “destruídas” ou dominadas pelas estratégias cooperativas.
Dessa forma, já para concluir, pode-se dizer que as concepções éticas de curto prazo,
onde o que vale é o prazer imediato mesmo em detrimento dos interesses dos outros, pode
ser uma fonte de êxtase, dinheiro e talvez até mesmo felicidade individual. Por outro lado, é
uma concepção ética fadada ao insucesso evolutivo. Daqui a alguns milhares de anos, os
eventuais sobreviventes serão aqueles que tiverem antepassados que, em suas vidas, agiram
de acordo com uma ética da eternidade, ainda que inconscientemente. Enfim, no final,
somente uma concepção ética que tenha como base a noção de estratégia evolutivamente
estável sobreviverá. E qualquer concepção ética que se pretenda duradoura deve ter como
princípio a cooperação, a honestidade, a mútua confiança, a preocupação com o outro e o
estímulo de laços afetivos fortes entre as pessoas para que todos se sintam responsáveis pelo
sucesso evolutivo uns dos outros e se ajudem reciprocamente. O nosso papel enquanto seres
racionais é fazer com que essa jornada “rumo à eternidade” se torne a mais agradável
possível para todos - num sentido bem amplo e aberto da palavra todos.
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