Marcos Silva
Professor Adjunto de História da Educação.
Unversidade Federal de Sergipe.
A década de 1970 tem recebido uma menor atenção do que os tumultuados anos
sessenta, caracterizados no cenário internacional pelo seu engajamento político. No entanto,
apesar da politização ter arrefecido, os anos setenta trouxeram decisivas contribuições para
o Mundo Moderno.
O ano de 1973 foi um marco, tendo em vista a Crise Econômica, que se seguiu à elevação
do preço do barril de petróleo pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de
Petróleo), tornando-o indicativo de uma crise que haveria de atingir proporções globais.
A subida ao poder, durante esta década, de importantes chefes de Estado que, de uma forma
ou de outra, estavam ligados a movimentos religiosos (Jimmy Carter, Menahem Begin e
Ruhollar Khomeini) e a eleição do Papa João Paulo II, revela as raízes da manifestação
política de um fenômeno que hoje em dia é constatado em todos os ramos de atividade
humana, desde o propriamente religioso e místico, passando pelo artístico e econômico,
chegando até mesmo à atividade científica.
A partir de então, impactando todo o mundo, este movimento passou a ser visto por muitos
como uma resposta e repercussão da problemática social do avançado processo de transição
iniciado durante a década de 1970.
Esta transição tem sido interpretada como uma verdadeira mutação civilizacional, em vista
da abrangência dos processos em curso, pois atingem a maioria dos aspectos das sociedades
atuais.
Segundo Paulo Fernando C. de Andrade1, pesquisador do ISER, tudo isto significa uma
"nova cultura" em formação e os paradigmas, que representam esta nova cosmovisão,
impõem reconsiderar "o espaço dado anteriormente à mística".
Em função de tudo isto esta volta ao Sagrado traz um "novo" tipo de religiosidade, peculiar
à pós-modernidade, que assume, segundo o estudioso inglês das religiões John Allan2, a
conotação de busca, uma aventura. Intitulo esta "nova" flexão da religião como a "Busca do
Numinoso", uma vez que o termo parece o mais adequado para significar esta complexa
religiosidade pós-moderna.
Uma aplicação interessante do termo, foi feita por Carl Gustav Jung5 ao procurar explicar o
que entendia por Religião:
"... Otto, cansado das análises exclusivamente racionais ou acadêmicas das idéias de Deus e
da religião, ousa inovar substancialmente penetrando no próprio núcleo de experiência
religiosa viva, tal como esta se manifesta antes de qualquer interpretação ética ou racional
d o tip o ‘D eus é b o m , p erfeito , incriad o , etc.’. A essa v ivência d o sagrad o em sua b rutal
imediatez, Otto denomina de numinoso (de numen = ‘d eus’). T o d a religião tem o rigem na
experiência do numinoso, do divinoso, por assim dizer. O numinoso é o sagrado vivido em
seu impacto primeiro e direto, algo tão irracional quanto a pura experiência sensível da luz
(o luminoso), anterior a qualquer interpretação racional."7
4. Um mistério fascinante;
Por outro lado, as muitas facetas e/ou formas que se procura sintetizar com o termo
NUMINOSO, revelam-se presentes nos mais variados epifenômenos correlatos. Se não,
veja-se o que diz Márcio Fabri dos Anjos11, depois de reconhecer que o "imaginário" de
Deus está passando por mudanças: "As figuras de Deus, que se desenham, por exemplo, a
partir do ecumenismo, do feminismo, dos movimentos carismáticos, da ecoteologia, dos
contex tos de ‘nova era’, rem etem com o sem pre a ex periências de D eus relacionadas com
práticas e posturas de vida."
Confirmando ainda mais esta perspectiva, dentro do próprio movimento ecumênico, existe
a preocupação de que as "teologias transcendentais das religiões" se aproximam
demasiadamente das teses da New Age, conforme observação de Faustino Teixeira12.
Mesmo diante de uma variedade de epifenômenos que compõem a "Busca do Numinoso", é
possível identificar uma "estrutura fenomenal" com um sentido, revelando a necessidade
daquilo que Ricardo Sasaki13, reconhece:
Do numinoso
Por numinoso quero entender o fenômeno religioso em toda a sua complexidade, chamando
a atenção para o óbvio: o fenômeno é fenômeno humano; os homens, em vivendo, vivem
uma determinada forma, a que damos o nome de religiosa. Que forma é esta, a religiosa?
Por religião quero entender a forma humana de se achar relacionado com Deus, e por Deus
quero entender o que transcende todo existente do universo.
O numinoso traduz a incorporação, pelo homem, do divino. Incorporação, digo, porque faz
do divino algo que lhe diz respeito em profundidade.
O que vem a ser a experiência do numinoso? Para mim, a palavra melhor que temos é
mistério. A experiência do numinoso se explicita como iniciação ao que está para além do
domínio do homem. Queria acreditar que o que impele o homem ao numinoso é a
resistência que opõe à configuração vivida das relações sociais: ele busca uma nova forma
de ser e, dentro de si, se descobre para além de si mesmo. Este para além de si mesmo
parece configurar uma outra realidade que, esta sim, tem o domínio completo dele e de todo
o universo: Deus. A experiência da fragilidade total o leva à experiência do todo-poderoso.
Não se trata de uma experiência racional, produto da capacidade de teorizar, explicar,
abstrair. Trata-se, com efeito, de uma imersão numa realidade plena, que não lhe é própria
mas cujo acesso lhe é dado, transfigurando-o. A experiência mística não tira o homem de
sua realidade própria mas lhe permite perceber o para além, a profundidade da ligação que
tem com Deus, ligação, ela também, própria de sua realidade, ainda que raramente
percebida na sua intensidade. Não há palavra melhor para traduzir isto que a palavra
transfiguração: tudo continua sendo o mesmo mas a figura (a impressão que as coisas nos
causam; de fingere, "fingir", i.e. (a)parecer) se tornou outra. Tem-se uma ficção: fez-se,
criou-se. E o criar parece que pede: -de onde? - Do nada? - Não! O criar não se faz do nada:
o criar é a descoberta das mil possibilidades que somos todos. O numinoso é a experiência
desta efusiva criação, dimensionada pela presença de Deus.
Mais do que simples experiência religiosa, o numinoso nos chama para descobrir a
constitutivo de nossa própria realidade: uma realidade que se recria incessantemente,
fazendo-se sempre outra do que era, pela graça de Deus. Graça é a presença atuante de
Deus. O homem não se transforma em Deus: o homem se percebe num mundo
infinitamente mais vasto do que a experiência anterior lhe proporcionara, - o mundo de
Deus! Ultrapassando todas as experiências vividas, sente que tem a vida em abundância,
em totalidade. Esta experiência é intraduzível. Toda experiência, na verdade, é intraduzível:
não dá para passá-la de um para outro. O que dá para passar é uma tentativa de descrição. A
experiência mística, esta até a descrição falha: o reboliço que o numinoso causa é de
proporções inimagináveis.
A busca do numinoso, qualquer que seja a razão imediata, traduz a ânsia do homem de se
encontrar em profundidade, rejeitando a última explicação, a última experiência.
Nós somos o próprio mistério! Não conhecemos nem a nós mesmos! De dentro de nós
jorra, abundante, incessante, a água da vida. O numinoso indica essa fluência do ser, do
viver, compreendida como transcendendo o humano, demasiadamente humano.
A efervescência das novas religiões e do pentecostalismo pode ser pensada a partir destas
premissas. Os desejos coletivos, que ninguém resolve, se expressam e se reforçam em
manifestações coletivas, criando uma realidade virtual (de virtus: força, vigor), para além
das experiências materiais (aquilo que, pela experiência, já está dado).
Por outro lado, o comunitário se realiza nos limites do individualismo, o que não é uma
contradição. O sagrado é proposto como uma instância de resolução dos problemas
individuais. Não se cria uma cultura de comunidade e não se faz da religião o lugar novo
para transformação de toda a vida social. Pelo contrário, as novas expressões religiosas
parecem exacerbar, ao extremo das possibilidades, o individualismo resultante do caráter de
mercadoria, que o capitalismo confere a toda a realidade. Perde-se, com isto, a
numinosidade do numinoso. A nova religiosidade parece realizar o ópio do povo.
1
Paulo Fernando Carneiro de Andrade. Novos paradigmas e teologia latino-americana. Em: ANJOS, Márcio
Fabri dos. (Org.) Teologia e Novos Paradigmas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 62.
2
John Allan. A Busca Espiritual. Em: As religiões do mundo / tradução de Manuel Cordeiro. São Paulo:
Companhia Melhoramentos, 1996. p. 404.
3
RUDOLF OTTO, filósofo e historiador das religiões alemão (Peine, 1869 - Marburgo, 1937). Elimina a
explicação racionalista do fenômeno religioso, substituindo-a por uma fenomenologia, que baseia as relações
entre D eu s e o s ho m en s n u m ‘tem o r’ fu nd am ental. A sua o b ra m ais importante foi, A Idéia do Sagrado, onde
tentava d em o n strar q ue a relig ião se inicia co m o ‘sentid o d o d ivino ’, o u seja, d e u m a m isterio sa d ivind ad e
simultaneamente fascinante e aterrorizadora. DICIONÁRIO ENCICLOPÉDIO KOOGAN LAROUSSE
SELEÇÕES & AS RELIGIÕES DO MUNDO. (1996)
4
Hugo Schlesinger e Humberto Porto. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995,
p. 1902.
5
Carl Gustav Jung. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 9
6
Gilberto de Mello Kujawski. O Sagrado Existe. São Paulo: Ática, 1994, p. 37
7
Idem, p. 38
8
Karen Armstrong. Uma história de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo.
9
Aldo Natale Terrin. Nova Era: A religiosidade do pós-moderno. São Paulo: Loyola, 1996.
10
Ricardo Sasaki. Entenda a Sua Época: Religião. Caderno Mais. Folha de S. Paulo, 13 de Abril de 1997.
11
Márcio Fabri dos Anjos, Encruzilhadas da ética teológica hoje. Em: Anjos. Márcio Fabri dos. (Org.) Ob.Cit.
p. 175.
12
Faustino Teixeira. Novos Paradigmas Resultantes do Diálogo Inter-Religioso. Em: Anjos. Márcio Fabri
dos. Ob. Cit. p. 113
13
Ricardo Sasaki. Ob.Cit