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Todo escritor é um estrangeiro

Paulinho Assunção

O rio que corre pela minha aldeia não é um rio. É um arroio, um riacho, um ribeiro,
um córrego. E o nome dele é Confusão. Dizem as lendas — e as lendas são a face inventiva
da verdade — que os primeiros povoadores da região mineira onde se acha hoje São
Gotardo, divididos em dois grupos, de repente se perderam, confundiram caminhos e
veredas, entraram por onde não deveriam ter entrado, foram quando deveriam ter voltado.
Tenho, assim, nas minhas origens, na imagem desses viajantes extraviados, razões e
motivos topográficos, geográficos ou simbólicos para o jogo e o simulacro, para confundir
as pistas e embaralhar os rumos. Tal como aqueles primeiros exploradores da região onde
nasceu a minha cidade, aprendi que a literatura, como eu a entendo, se alimenta dos
caminhos embaralhados, que ela é um jogo no interior do idioma, um jogo no qual o
melhor lance (ou o mais prazeroso) é o perder-se, é estar onde não se previa, é andar como
quem extravia. Diria mais: escrever, para mim, é sempre usar bússolas enlouquecidas.
Nas vésperas dos meus 53 anos, vejo-me estética e ideologicamente um escritor
mínimo, um escritor mínimo no corpo de um homem mínimo. Embora desde os vinte e
poucos eu sobreviva da palavra — como repórter, redator, revisor e tantos outros ofícios
afins ou tangentes ao exercício da palavra —, exerço até hoje a minha escrita como aqueles
primeiros exploradores topograficamente desmemoriados do antigo Arraial da Confusão, lá
onde os altiplanos do cerrado mineiro, de repente, de modo abrupto, formam um vale, um
corte, uma incisão na geografia. Volto então a insistir: para mim, escrever é se perder e
entendo o escritor como um estrangeiro e a literatura como um estado de estrangeiridade.
Digo mais: os pés humanos são também escreventes e andar é igualmente um modo de
escrever. Daí eu não encontrar diferenças de princípio entre o transeunte a pé no corpo das
cidades e o escritor no seu espaço íntimo.
Nada tem a ver o ato de escrever com aquele propalado clichê de que escrever é um
ato solitário. Escrever, na verdade, é talvez o mais íntimo dos atos, mas nada tem de
solitário. O ato de escrever, pelo menos como eu o entendo, é o momento da mais profunda
e avassaladora conexão com o mundo. É a intimidade não isolada, é a íntima porção de
tempo contagiada pelas coisas do mundo. Nos arredores e nas margens de uma folha em
branco de papel, tudo o que entendemos por mundo vem participar do ato de escrever. Ali
acontece a íntima comunhão — e, aqui, destituo da palavra comunhão qualquer resquício
de religiosidade. É, talvez, aquela comunhão implícita no trecho de uma carta de Paul
Celan a Hans Bender, quando o poeta diz: “Je ne vois pas de différence de principe entre
un poème et une poignée de main”. Em outras palavras: é o poema (e eu diria: a escrita)
posto no mesmo patamar de um aperto de mão.
Os primeiros livros — Todas as vezes em que me perguntam quantos livros eu
publiquei, preciso ir aos arquivos e contá-los. São poucos, em torno de uma dúzia, mas
jamais tenho deles uma noção numérica. Eles se confundem com os livros a fazer, com os
livros a caminho, com os livros abandonados ao meio, com aqueles que possuem apenas
uma única frase no seu corpo ainda feito de deserto. Os dois primeiros — “Cantigas de
Amor & Outras Geografias” (Poesia, 1980, Coordenadoria de Cultura de Minas Gerais) e
“A Sagrada Blasfêmia dos Bares” (Poesia, 1981, Editora Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro) — são livros que hoje me atravessam com o punhal frio do desconforto, do
incômodo, do mal-estar. Não os renego, pois de nada adiantaria renegá-los, mas de uma
coisa estou certo: não os levaria comigo para uma ilha deserta. Até percebo alguma
qualidade no segundo, sobretudo naquilo que ele possui de uma “épica do lírico”, o espaço
do bar como pretexto para uma jornada de um dia no corpo mais vasto dos tempos
ditatoriais. Sobretudo naquilo que ele traz como adesão à estética cabralina, certos recursos
estilísticos como os vocábulos espelhados ou a opção pelos substantivos. Mas o livro teve
uma edição tão precária, contém tantos erros de revisão e tantas gralhas que o tornam quase
ilegível hoje em dia.
Aquela momentânea adesão à estética cabralina e certa opção pela linguagem em
sua crua matéria, quase uma obsessão nesse período, vem de uma época, 1971, quando fui
limpador de letras em São Paulo. Não creio que essa profissão tenha sido um dia
catalogada, mas posso dizer, com todas as letras: aos vinte anos, eu fui limpador de letras
na cidade de São Paulo. Limpador de tipos de máquina de escrever em meu primeiro
emprego na Rua da Consolação, 41, bem diante da Biblioteca Mário de Andrade. Durante o
dia, limpava tipos de máquina de escrever numa empresa chamada Organização Ruf; de
noite, era o último a sair da biblioteca. Como não podia comprar livros, eu os copiava em
cadernos e, assim, encontrei um modo de possuí-los, de sentir-lhes o gosto, de sentir deles a
íntima carnadura. Copiei, palavra por palavra, tudo o que encontrei de Cabral, trechos e
trechos de Joyce, Lorca, Oswald e Mário, os Campos e as fontes onde beberam os Campos.
Vasta e interminável listagem de um copista jovem e pobre, procedente do mais fundo de
Minas Gerais, um sujeito que, de repente, se vê em trânsito pela mais cosmopolita das
cidades brasileiras e enfiado na Babel de uma biblioteca que jamais vira ou freqüentara. Era
ali que eu me aturdia diariamente pelas prateleiras da seção de livros raros, lá onde
encontrei a primeira edição daquele Oswald de Andrade que disse: “Aprendi com o meu
filho de dez anos que a poesia é a descoberta das coisas que nunca vi”.
Creio que há um momento na vida de um escritor em que é preciso caminhar sobre
as águas. Minha caminhada eu a empreendi em 1983, quando escrevi “Diário do Mudo”.
Neste livro, escancarei as minhas dívidas (e também as minhas dúvidas), pus sobre a mesa
as faturas, percorri de modo até mesmo autofágico tudo o que absorvera até aquele
momento. Mas se do ponto de vista poético o livro é uma caixa de ressonâncias, uma caixa
de ecos dos compósitos e sedimentos da minha formação, o que o motivou vem de bem
antes. O que o motivou foi um carro de madeira que eu via na minha infância, a engenhoca
de um mudo pelas ruas de São Gotardo. Naquele carro, que crescia e crescia a cada vez que
saía à rua, tudo funcionava mediante polias, roldanas, cordames e mancais. Era uma feérica
representação do mundo do fazer. Aquele homem, destituído da voz, achara um meio de se
expressar através de uma engenhoca na qual pequenos bonecos representavam lavadeiras,
tipógrafos, serralheiros, boiadeiros ou simplesmente o povo em dia de festa. Assim que o
carro andava, tudo se movia. Por isso mesmo, em homenagem a tão impressionantes
mecanismos, costumo definir “Diário do Mudo” como uma engenhoca de palavras.
O livro recebeu o Prêmio Nacional Cidade de Belo Horizonte de 1983 e, no ano
seguinte, foi publicado pela Editora Comunicação. Costumo dizer que um autor é duas
vezes premiado quando é escolhido por uma comissão julgadora que respeita e admira. Foi
o que senti quando Laís Corrêa de Araújo, Melânia Silva Aguiar e João Etienne Filho o
escolheram. E sentiria o mesmo, em 1998, quando meu livro de contos “Pequeno Tratado
Sobre as Ilusões” saiu vencedor de outro concurso nacional, o Prêmio Minas de Cultura
(Guimarães Rosa), selecionado por Luiz Vilela, Sônia Coutinho e Ana Cecília de Carvalho.
Este livro, aliás, teve um tortuoso caminho. Escrito em 1985/86, com 67 histórias, ele
permaneceu onze anos na gaveta, período em me dediquei integralmente ao jornalismo, boa
parte como repórter da Agência Estado na sucursal de Belo Horizonte. Um pouco antes do
concurso, já fora do jornal, reduzi o livro para 29 histórias e o inscrevi com aquela
insegurança de estar entrando em um baile com uma roupa fora de época. Nada me garantia
que aqueles contos, guardados por mais de uma década, pudessem ainda dizer alguma
coisa. Ao que parece, os contos disseram, mas o livro só seria publicado em 2003, não aqui,
mas em Portugal, pela editora Campo das Letras. Entre escrevê-lo e publicá-lo — e
publicá-lo em outro país — passaram-se 16 anos.
Escrever, fazer — A frase que direi pode ter algo de pompa, mas não a resisto:
gozosos são os caminhos da escrita. E gozosos são os modos de fazê-la, sem perder de vista
a idéia de que esse fazer acontece naquelas frações de tempo do espaço íntimo. E fui fazer
livros à mão, fazê-los como quem levanta uma casa no ar, fazê-los através de uma editora
— a Edições 2 Luas — que é também uma ficção, que é também uma personagem, como
são personagens (e não heterônimos ou pseudônimos) os autores que assinam vários desses
livros ou livretos, como Lucas Baldus, Vicente Gunz, João Serenus ou Rubem Focs. São
personagens que escrevem aquilo que eu escreveria (ou não), tão fora de lugar quanto eu,
tão tortos quanto eu. E fui fazer esses livros à mão, escrevê-los e diagramá-los, dobrá-los e
cortá-los, costurá-los e colá-los, ilustrá-los e distribui-los em um lento, sinuoso e labiríntico
processo sempre na contracorrente da pressa, a contrapelo da produção em série. Um
exemplar de cada vez, cinco de vez em quando, dez quando é possível. E publiquei “Noite
de Palavras”, “Romances”, “Rostos”, “Escreventes”, “Saberes”, “Outras Águas”, “Namor
— Imaginações para Namorados”, “Livro dos Quereres”, “A Flauta e o Automóvel”,
“Kafka em Belo Horizonte” e alguns de outros autores como Lucia Castello Branco, Maria
Gabriela Llansol, Ruth Silviano Brandão, Roberto Correia dos Santos, Vera Casanova,
Jaime Rocha, Eliane Marta Teixeira Lopes e Ângela Santoro.
Para mim, esses livros, nascidos da artesania, são cartas, cartas em busca de
destinatários. Desconheço a equação secreta que desvenda o modo como um livro chega a
um leitor, ignoro quais caminhos ele percorre, mas, ao chamar de cartas os livretos da
Edições 2 Luas, dou-lhes, mais que um nome, uma condição, um estado. Talvez um dia eles
sejam reunidos em um único livro, um livro único porém sempre imperfeito, como é
sempre imperfeita a escrita, no seu dizer, no seu expressar. Sim, pois a imperfeição é da
natureza da arte. Uma arte perfeita seria da ordem das divindades e as divindades, há muito,
deram baixa das milícias humanas e se tornaram entidades contemplativas. Prefiro então a
via humana do fazer. Fazer como faz o carpinteiro, o mestre carapina, o jardineiro, o
amolador de tesouras e facas, todas essas profissões em desuso ou extintas, como o
limpador de letras que fui em São Paulo.
De todos as maneiras, entre o meu primeiro livro e o próximo, entre os que estão na
correnteza do mercado e os que viajam clandestinos pelos correios, feitos pela artesania da
Edições 2 Luas, nada mudou em essência. O que aconteceu foi o livro que veio depois de
outro livro, o livro que sempre há dentro de outro livro, um mesmo e sempre distinto livro.
Afinal, o que há dentro de um escritor a não ser andaimes e estaleiros para a construção de
livros? O que pode sair da autópsia de um escritor a não ser essas paisagens dos campos da
Mancha, lá onde um Quixote, embriagado de livros, faz do mundo as suas páginas e de suas
páginas o mundo — o seu e o mundo dos outros?

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