Você está na página 1de 196

III – 1 de Junho de 2005 – 31 de Dezembro de 2005

eli miguel
BAIRRO NEGRO

Negro bairro negro


Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar Menino pobre o teu lar
Os meninos vão correndo Queira ou não queira o papão
Ver o sol chegar Há-de um dia cantar
Esta canção
Menino sem condição
Irmão de todos os nus Olha o sol que vai nascendo
Tira os olhos do chão Anda ver o mar
Vem ver a luz Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem Se até dá gosto cantar
Só quem souber cantar Se toda a terra sorri
Virá também Quem te não há-de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender

Haja o que houver

Negro bairro negro


Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar


Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

José Afonso
Prayer

Some days, although we cannot pray, a prayer


utters itself. So, a woman will lift
her head from the sieve of her hands and stare
at the minims sung by a tree, a sudden gift.

Some nights, although we are faithless, the truth


enters our hearts, that small familiar pain;
then a man will stand stock-still, hearing his youth
in the distant Latin chanting of a train.

Pray for us now. Grade I piano scales


console the lodger looking out across
a Midlands town. Then dusk, and someone calls
a child's name as though they named their loss.

Darkness outside. Inside, the radio's prayer -


Rockall. Malin. Dogger. Finisterre.

Carol Ann Duffy


OS ESTIVADORES Ode marítima é o que chamo à ode

escrita ali sobre a pedra do cais


A natureza é certo que muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Ruy Belo, Homem de Palavra(s)
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão


podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa


eles são a moderna divindade
e o que dantes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo o resto


compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto

o muro oposto da gravidade

Foto: da net
CANTO SEGUNDO

Esta manhã mal saí do portão


parecia-me ter esquecido alguma coisa em casa.
Dois passos até ao damasqueiro
e toca a regressar.

Agora que nada resta para fazer


fico sentado diante da janela
e pergunto-me a mim mesmo: Queres isto? Queres aquilo?

Deitei fogo a páginas de livros, a calendários


e mapas. Para mim a América
já não existe, a Austrália igualmente,
a China na minha cabeça é uma fragrância,
a Rússia uma alva teia de aranha
e a África o sonho de um copo de água.

Ivan Durrant
Há dois ou três dias sigo os passos de Pinela, o camponês,
que procura o mel das abelhas selvagens.

Tonino Guerra, O Mel. Trad.: Mário Rui de Oliveira


A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas


a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira


pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas


como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.


A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos


Del mar azul las transparentes olas Y huyen abandonándome en la playa
a la terrena, inacabable lucha,
como en las tristes playas de la vida
me abandonó inconstante la fortuna.

Rosalia de Castro

Del mar azul las transparentes olas


mientras blandas murmuran

sobre la arena, hasta mis pies rodando,


tentadoras me besan y me buscan.

Inquietas lamen de mi planta el borde,


lánzanme airosas su nevada espuma,
y pienso que me llaman, que me atraen
hacia sus salas húmedas.

Mas cuando ansiosa quiero


seguirlas por la líquida llanura,
se hunde mi pie en la linfa transparente
y ellas de mi se burlan.
SESTA ANTIGA

A ruazinha lagarteando ao sol,


O coreto de música deserto
Aumenta ainda mais o silêncio.
Nem um cachorro.
Este poeminha
É só o que acontece no mundo...

Mário Quintana
Baldio

O menino que fui debruça-se furtivo


de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso dolorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoroçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedra ao gala-galas
e salta sobre velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.
Max Lyonga

Rui Knopfli
Eugénio SERÃO PALAVRAS SÓ...

Diremos prado bosque


primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens.

Diremos mãe amor


um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração.

Diremos terra ou mar


ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro


Luís de Camões
51
49
— Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
"Mais ia por diante o monstro horrendo Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Dizendo nossos fados, quando, alçado,
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Corpo, certo, me tem maravilhado!
Não que pusesse serra sobre serra,
A boca e os olhos negros retorcendo
Mas, conquistando as ondas do Oceano,
E, dando um espantoso e grande brado, Fui capitão do mar, por onde andava
Me respondeu, com voz pesada e amara, A armada de Neptuno, que eu buscava.
Como quem da pergunta lhe pesara:

52
50
— Amores da alta esposa de Peleu
— "Eu sou aquele oculto e grande Cabo, Me fizeram tomar tamanha empresa.
A quem chamais vós outros Tormentório, Todas as Deusas desprezei do céu,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Só por amar das águas a Princesa.
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Um dia a vi, coas filhas de Nereu,
Aqui toda a Africana costa acabo
Sair nua na praia, e logo presa
Neste meu nunca visto Promontório,
A vontade senti de tal maneira,
Que pera o Pólo Antárctico se estende, Que inda não sinto cousa que mais queira.
A quem vossa ousadia tanto ofende.
55
53
— Já néscio, já da guerra desistindo,
— Como fosse impossível alcançá-la,
Uma noite, de Dóris prometida,
Pela grandeza feia de meu gesto,
Me aparece de longe o gesto lindo
Determinei por armas de tomá-la,
Da branca Tétis, única, despida.
E a Dóris este caso manifesto.
Como doudo corri, de longe abrindo
De medo a Deusa então por mi lhe fala; Os braços pera aquela que era vida
Mas ela, cum fermoso riso honesto, Deste corpo, e começo os olhos belos
Respondeu: — "Qual será o amor bastante A lhe beijar, as faces e os cabelos.
De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

56
54
— Ó que não sei de nojo como o conte!
— Contudo, por livrarmos o Oceano Que, crendo ter nos braços quem amava,
De tanta guerra, eu buscarei maneira,
Abraçado me achei cum duro monte
Com que, com minha honra, escuse o dano."
De áspero mato e de espessura brava.
Tal resposta me torna a mensageira.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Eu, que cair não pude neste engano,
Que eu polo rosto angélico apertava,
(Que é grande dos amantes a cegueira) Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo,
Encheram-me com grandes abondanças E, junto dum penedo, outro penedo.
O peito de desejos e esperanças.
57 59

— Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano, — Converte-se-me a carne em terra dura,


Já que minha presença não te agrada, Em penedos os ossos se fizeram,
Que te custava ter-me neste engano, Estes membros, que vês, e esta figura
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? Por estas longas águas se estenderam.
Daqui me parto, irado e quase insano Enfim, minha grandíssima estatura
Da mágoa e da desonra ali passada, Neste remoto cabo converteram
A buscar outro mundo, onde não visse Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Quem de meu pranto e de meu mal se risse. Me anda Tétis cercando destas águas." —

58 60

— Eram já neste tempo meus Irmãos Assim contava, e cum medonho choro
Vencidos e em miséria extrema postos, Súbito de ante os olhos se apartou.
E, por mais segurar-se os Deuses vãos, Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Alguns a vários montes sotopostos. Bramido muito longe o mar soou.
E, como contra o Céu não valem mãos, Eu, levantando as mãos ao santo coro
Eu, que chorando andava meus desgostos, Dos anjos, que tão longe nos guiou,
Comecei a sentir do fado inimigo A Deus pedi que removesse os duros
Por meus atrevimentos, o castigo. Casos, que Adamastor contou futuros.

Os Lusíadas, V, 49-60
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto


O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,


SANTO ANTÓNIO Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Nasci exactamente no teu dia – Que é essa a santidade boa,
Treze de Junho, quente de alegria, A que fugiu deveras ao demónio.
Citadino, bucólico e humano, És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa, Que até já o Diabo perdoou,
És o santo do povo. Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
Tens uma auréola de cantigas, No que – aos peixes ou não – a tua voz pregou,
E então Vale este sol das gerações antigas
Quanto ao teu coração – Que acorda em nós ainda as semelhanças
Está sempre aberto lá o vinho novo. Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
Dizem que foste um pregador insigne, As danças
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa, E o vinho tinto.
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra? Nós somos todos quem nos faz a história.
Que de hoje em diante quem o diz se digne Nós somos todos quem nos quer o povo.
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa. O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
Qual santo! Olham a árvore a olho nu É haver sido tais quando aqui andámos,
E não a vêem, de olhar só os ramos. Bons, justos naturais em singeleza,
Chama-se a isto ser doutor Que os descendentes dos que nós amámos
Ou investigador. Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
Qual Santo António! Tu és tu. O amante a quem ama,
Tu és tu como nós te figuramos. E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Valem mais que os sermões que deveras pregaste Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
As bilhas que talvez não concertaste. Ó eterno rapaz.
Mais que a tua longínqua santidade
(Qual santo nem santeza! Atira risos naturais à morte,
Deita-te noutra cama!) E cheio de um prazer que mal é seu,
Santos, bem santos, nunca têm beleza. Em canteiros que andam enche a rua.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Em fantasia, promoveu-te a manjerico. Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
És o que és para nós. O que tu foste Esquece a doutrina e os sermões.
Em tua vida real por mal ou bem, De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Que coisas, ou não-coisas se te devem Foste Fernando de Bulhões,
Com isso a estéril multidão arraste Foste Frei António –
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem, Isso sim.
Essa prolixa nulidade, a que se chama história, Porque demónio
Que foste tu, ou foi alguém, É que foram pregar contigo em santo?
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual Fernando Pessoa, Poemas Dispersos
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até já que te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu –


O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Carmen 7

Perguntas-me, Lésbia, quantos beijos me serão


suficientes e mais que suficientes.
Quantos os grãos inúmeros de areia líbica
que estão em Cirene produtora de lasarpício,
entre o oráculo ardente de Júpiter
e o sagrado sepulcro do velho Bato,
quantas as estrelas que, na noite silenciosa,
contemplam os amores furtivos dos homens
- tantos os beijos teus suficientes ao louco Catulo;
em tão grande número que os não possam contar os curiosos,
nem fazer-lhes feitiço os maldizentes.

Gaius Valerius Catullus. Trad.: Agostinho da Silva


[...] Os homens, esses valem,
conforme os deuses concedem,
pela coragem ou pela arte...

Píndaro (séc. VI-V a.C.)


À TÍLIA

Peregrino, senta debaixo da ramagem,


Descansa; eu prometo – sequer o sol selvagem
Aqui pode avançar. Porém os raios justos
Deverão as sombras aquietar nos arbustos.
Aqui sempre sopram brisas frescas do campo,
Rouxinóis e negras aves cantam seu canto.
Abelhas obreiras recolhem mel das flores
Perfumadas para brindar as mesas nobres.
E a todos os homens meu murmúrio sereno
Cobre facilmente de adocicado sono.
Maçãs não carrego, mas sou árvore farta
Das Hespérides no jardim, meu amo exorta.

Jan Kochanowski. Trad. Aleksandar Jovanovic


In Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro
C'est le temps

C’est le temps,
de se parler,
si encore on peut se parler,
et de se donner,
si encore

on peut se donner quelque chose.


C’est le temps
Günter Rolf
et bientôt on restera
sans lui.

Alojz Ihan

In Hommage aux poètes des Balkans


Cruzeiro Seixas
– O poema é aqui,

quando levanto o olhar do papel

e deixo as minhas mãos tocarem-te,

quando sei sem rimas e sem metáforas que te amo

José Luís Peixoto

Chagall
Rumor de água

Rumor de água
na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância


minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão.

Rumor de água
no tempo e no coração.

Rumor de nada.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


ALEGORIA SEGUNDA
De poetas e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo:
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe: saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.

Dizias ontem que o verão ardia


nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo:
o verão não morreu, esta pedra é o verão.

E tudo permanece. E tudo é teu.


Tu és o sangue, o verão e a pedra.

Albano Martins, Paralelo ao Vento


A Vaidosa

Dizem que tu és pura como um lírio E narram o cruel martirológio


E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
Vivo louco de dor e de martírio. E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida, Porém eu sei que tu, que como um ópio
E que o maior prazer da tua vida, Me matas, me desvairas e adormeces
Seria acompanhar-me ao cemitério. És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito amor
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, próprio.
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino, Harpa
E não tens coração como as estátuas. 1874
Porto

Cesário Verde,

O Livro de Cesário Verde

Mina Anguelova
Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden Amo as horas sombrias do meu ser
em que os meus sentidos se aprofundam;
nelas encontrei, como em velhas cartas,
o meu dia a dia já vivido,
ultrapassado e vasto como numa lenda.
Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden,
in welchen meine Sinne sich vertiefen;
Elas me ensinam que possuo espaço
in ihnen hab ich, wie in alten Briefen,
p'ra uma intemporal Segunda vida.
mein täglich Leben schon gelebt gefunden
E por vezes sou como a árvore
und wie Legende weit und überwunden.
que, madura e rumorosa, sobre uma campa
cumpre o sonho que a criança de outrora
Aus ihnen kommt mir Wissen, daß ich Raum
(abraçada por suas cálidas raízes)
zu einem zweiten zeitlos breiten Leben habe.
perdeu em tristezas e canções.
Und manchmal bin ich wie der Baum,
der, reif und rauschend, über einem Grabe
den Traum erfüllt, den der vergangne Knabe Rainer Maria Rilke. Trad.: Ana Hatherly
(um den sich seine warmen Wurzeln drängen)
verlor in Traurigkeiten und Gesängen.

Rainer Maria Rilke, Die Gedichte


De algumas perguntas...

De algumas perguntas tememos o som e o desenlace


delas, noite adiante, resguardo nenhum.
Sabemo-las assim lentas, um cristal
mais afiado, um abandono mais duro.

Eduardo Pitta
Andreas Biesenbach

- Ce qui embellit le désert,


dit le petit prince,
c'est qu'il cache un puits quelque part...

Antoine de Saint-Exupéry, Le petit Prince


ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente


aquilo que vejo e observo
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
théo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
arles
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
sulfurosas cores cintilanddo sob o mistério
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
por fim théo
um pedaço de pão théo
em auvers voltei a cara para o sol
que o padeiro teve a bondade de fiar
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
o mistral sopra mesmo quando não sopra
num movimento de incendiado girassol
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arles continuou a arder quando tentei matar aquele
Al Berto, O Medo
que viu a minha paleta tornar-se límpida
Van Gogh
Canção

Depois, tudo estará perfeito:


praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Pus o meu sonho num navio


e o navio em cima do mar; Cecília Meireles, Viagem
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas


do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,


a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Choararei quanto for preciso,


para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
quando é doce fazer anos

Sofia Almeida
a praia é a mesma... o tempo passou...

Areia Branca revisitada em 2005


POEMA BREVE

Arndt Norbert Inda percorro os dias


e as noites sem sono

e o que perpassa é o sonho

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo


vai tão pequena a teia, que lamento

… sola est non territa virgo,


sed tamen erubuit

Ovídio, Metamorfoses, VI: 45-6


Vai tão pequena a teia, que lamento
ter perdido o meu tempo em outros jogos,
pois com talento e tempo poderia
abandonar a fria geometria
e desenhar figuras, tão reais
que nelas revelasse
carne menos subtil, pele rosada,
a verdade maior da fantasia.
Um cisne, por exemplo, feito signo forma de gente, não de bicho abjecto.
do amor incendiário que conduz Sozinho agora, e solto, enquanto acaba
deuses à terra, procurando gente; mãe-sol de riscar linhas no horizonte,
uma nuvem ali, de onde cai chuva lamento que não saibas que se esconde
ou luz, mas que simula uma princesa em cada feia aranha,
pedacinhos de sol, moedas de ouro; mais bela e cintilante do que a lua;
cavalos, aves, gado, e um golfinho; depois recolho ao centro do meu verso
por baixo, em singular moldura, com esta reflexão modesta e triste:
o tortuoso corpo da serpente. de tudo quanto viste e mal ouviste,
Mas, pequeno que sou, receio a inveja em mim, do que mais gostas é da baba.
da sociedade, ou de um poder mais alto,
que em mim veja rival ou parasita
e me transforme em bicho repelente; António Franco Alexandre, ARACNE
preferias alguém menos ligeiro,
Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,


Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,


A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo


Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,


A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen


LERAM-ME HOJE S. FRANCISCO DE ASSIS

Leram-me hoje S. Francisco de Assis.


Leram-me e pasmei.
Como é que um homem que gostava tanto das cousas
Nunca olhava para elas, não sabia o que elas eram?

Para que hei-de chamar minha irmã à água, se ela não é


minha irmã?
Para a sentir melhor?
Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe qualquer
cousa -
Irmã, ou mãe, ou filha.
A água é a água e é bela por isso.
Se eu lhe chamar minha irmã,
Ao chamar-lhe minha irmã, vejo que o não é
E que se ela é a água o melhor é chamar-lhe água;
Ou, melhor ainda, não lhe chamar cousa nenhuma,
Mas bebê-la, senti-la nos pulsos, olhar para ela
E tudo isto sem nome nenhum.

Alberto Caeiro, Poesia


À NOITE

Quando o Sol se vai e é chegada a lua


o pai corre fechos, persianas,
vai trancar o portão que dá p'rà rua.
Depois eu adormeço, mas os meus sonhos
não cabem na casa e eu saio
para riscar a noite com um fio de luz,
cavalgar mistérios até de manhã.

À noite, uma simples brisa


escancara portas e janelas
e não há chave, fecho ou tranca
que encerre a porta larga dos meus sonhos.

Álvaro Magalhães, O Reino Perdido


y en la tremolación que hay en mi mano...
Vergüenza
Es noche y baja a la hierba el rocío;
mírame largo y habla con ternura,
que ya mañana al descender al río
la que besaste llevará hermosura!
Si tú me miras, yo me vuelvo hermosa
como la hierba a que bajó el rocío,
y desconocerán mi faz gloriosa Gabriela Mistral
las altas cañas cuando baje al río.

Tengo vergüenza de mi boca triste


de mi voz rota y mis rodillas rudas;
ahora que me miraste y que viniste,
me encontré pobre y me palpé desnuda.

Ninguna piedra en el camino hallaste


más desnuda de luz la alborada
que esta mujer a la que levantaste,
porque oíste su canto, la mirada.

Yo callaré para que no conozcan


mi dicha los que pasan por el llano,
en el fulgor que da a mi frente tosca

Turner
Orfeu do avesso

De pé sobre o abismo
e não morri:

Canto gregoriano
muito limpo
não me chegou:
o fim
Catedral
sobre o risco,
sobre um azul tão grande
que afundar-me podia
Ao fundo do mais fundo
mergulhei
Andreas Wagner e não morri:
amei

Ana Luísa Amaral, Epopeias


O sol no castelo de Almourol

Vi poisar o Sol
no castelo de Almourol.
E inventei uma história
com sombras e clarões,
príncipes e ladrões,
fadas e fadistas,
espadas e turistas,
reis e rainhas,
rios e tainhas,
água e aguardente
de medronho
a correr
no rio
do sonho.
Tudo isto,
quando o Sol
se pôs
no Castelo de Almourol,
que rima com rouxinol,
que rima com Sol.

Matilde Rosa Araújo


bagagem
As coisas melhores

(embora sem ver)


As coisas melhores são feitas no ar, e ficar muito quietinho a ser,
andar nas nuvens, devanear, os tecidos a tecer,
voar, sonhar, falar no ar, os cabelos a crescer.
fazer castelos no ar E isto tudo a saber
e ir lá para dentro morar que isto tudo está a acontecer!
ou então estar em qualquer sítio só a estar, As coisas melhores são de ar
a respirar a respirar, só é preciso abrir os olhos e olhar,
o coração a pulsar, basta respirar!
o sangue a sangrar,
a imaginação a imaginar, Manuel António Pina
os olhos a olhar.
Cada árvore é um ser para ser em nós

Cada árvore é um ser para ser em nós


Para ver uma árvore não basta vê-la
a árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses

António Ramos Rosa, Cada árvore é um ser para ser em nós


QUADRO

tanto oiro na tarde

escorrendo do poente

as silhuetas das árvores

são fímbrias de poemas

e quantos horizontes

me esqueceram?

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo


Petit poème des poissons de la mer

Je le leur redis une fois, je leur dis une seconde

Je me suis penché sur la mer Mais j'eus beau crier à la ronde


Pour communiquer mon message Ils n'ont pas voulu entendre raison!
Aux poissons:
«Voilà ce que je cherche et que je veux savoir.» Je pris une bouilloire neuve
Excellente pour cette épreuve
Les petits poissons argentés Où la mer allait obéir.
Du fond des mers sont remontés
Répondre à ce que je voulais. Mon coeur fit hamp, mon coeur fit hump
Pendant que j'actionnais la pompe
La réponse des petits poissons était: À eau douce, pour les punir.
«Nous ne pouvons pas vous le dire
Monsieur Un, qui mit la tête dehors
PARCE QUE» Me dit: «Les petits poissons sont tous morts.»
Là la mer les a arrêtés.
«C'est pour voir si tu les réveilles,
Alors j'ai écarté la mer Lui criai-je en plein dans l'oreille,
Pour les mieux fixer au visage Va rejoindre le fond de la mer.»
Et leur ai redit mon message:
«Vaut-il mieux être que d'obéir?» Dodu Mafflu haussa la voix jusqu'à hurler en déclamant ces
trois derniers vers,
et Alice pensa avec un frisson: «Pour rien au monde je n'aurai voulu être ce Ils souffrent ni vivants ni morts.
messager!» Pourquoi?

Celui qui n'est pas ne sait pas Mais enfin les obéissants vivent,
L'obéissant ne souffre pas. On ne peut pas dire qu'ils ne sont pas.

C'est à celui qui est à savoir Ils vivent et n'existent pas.


Pourquoi l'obéissance entière Pourquoi?
Est ce qui n'a jamais souffert
Pourquoi? Il faut faire tomber la porte
Lorsque l'être est ce qui s'effrite Qui sépare l'Être d'obéir!
Comme la masse de la mer.
L'Être est celui qui s'imagine être
Jamais plus tu ne seras quitte, Être assez pour se dispenser
Ils vont au but et tu t'agites. D'apprendre ce que veut la mer...
Ton destin est le plus amer.
Mais tout petit poisson le sait!
Les poissons de la mer sont morts Il y eut une longue pause.
Parce qu'ils ont préféré à être «Est-ce là tout? demanda Alice timidement.»
D'aller au but sans rien connaître
De ce que tu appelles obéir.
Antonin Artaud, «L'Arve et l'Aume: tentative
Dieu seul est ce qui n'obéit pas, anti-grammaticale contre Lewis Carroll»,
Tous les autres êtres ne sont pas Oeuvres Complètes
Encore, et ils souffrent.
Último Jardim

Tardes no meu jardim


tão lúcidas, quietas,
quase inquietas,
com pequeninos sóis
em cada pétala molhada,
com sombras fugidias...
(Tal os dias
sumindo-se um a um...)

E as canções
que não foram cantadas?
E as rosas decepadas
pelo simum?
E os riscos na parede?
E a sede
numa taça vazia?

E a noite que começa


fria, fria...!

Saúl Dias, Vislumbre


Os olhos do poeta
O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros de miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, Poemas


LA VITA DELL'OMO

VIDA DO HOMEM
Nove mesi a la puzza: poi in fassciola
Tra sbasciucchi, lattime e llagrimoni: Nove meses no fedor, depois nas faixas,
Poi p'er laccio, in ner crino, e in vesticciola, por entre crostas, beijocas, lagrimonas,
Cor torcolo e l'imbraghe pe ccarzoni. depois à trela, na andadeira, em camisinha,
pára turras na testa, cueiros por calções.
Poi comincia er tormento de la scola,
L'abbeccè, le frustate, li ggeloni, Depois começa o tormento da escola,
La rosalìa, la cacca a la ssediola, o á bê cê, a vergasta e as frieiras,
E un po' de scarlattina e vvormijjoni. a rubéola, a caca na cagadeira
e um pouco de escarlatina e de bexigas.
Poi viè ll'arte, er diggiuno, la fatica,
La piggione, le carcere, er governo, Depois o ofício, o jejum, a trabalheira,
Lo spedale, li debbiti, la fica, a pensão a pagar, as prisões, o governo,
o hospital, as dívidas, a crica,
Er zol d'istate, la neve d'inverno...
E pper urtimo, Iddio sce bbenedica, o sol no Verão, a neve no Inverno…
Viè la morte, e ffinissce co l'inferno. E por último – e que Deus nos abençoe –
vem a morte, e acaba no inferno.
Roma, 18 gennaio 1833

Giuseppe Gioachino Belli. Trad. Alexandre O’Neill


Giuseppe Gioachino Belli
Imagem da net
S (esse)

Sentinela. Sentinelas.
Direi de meu tempo que havia um S
havia uma sombra e um silêncio Ou talvez selva. Talvez serpente.
havia um S de sigla e de suspeita S de sebo e de sebenta: seco seco.
com suas seitas e seus sicários.
E também senão. E também senil.
Não sei se signo não sei se sina
não sei se simplesmente sujo. De meu tempo direi
Ou só servil. Ou só sevícia. que havia um S
sem sentido.
Havia um S de Saturno
havia um susto E também Setembro. E também solstício.
havia um S de soturno Saga e safra.
sobre um S de sol. Ou talvez semente. Ou talvez segredo.

De meu tempo direi Havia um S de sal e sílex


que havia um S havia um silvo
de sepulcro. Havia uma sílaba ciciada.
E também o sonho: entre suar e ser.
(Como um soluço como um soluço.)

De meu tempo direi


que havia um S
de sol e som.
Havia Setembro e um assobio
contra um S de sombra e de silêncio.

Manuel Alegre, 18 de Janeiro de 74


OFERENDA

Em ti, amor, procuro


e em ti, abraço o que me foge
pois bem sei, meu amor, amante amor
que ao nos amarmos nós queremos ser
São rosas desfolhadas pela noite de nós o que em vão ser nos destruísse.
as oferendas que faço ao meu amor. E bem sei, bem sei, fêmea de mim,
São raivas soterradas as palavras que num e noutro só sabemos ver
que segredo velando o meu amor. o que de nós em nós não tem lugar.
Os gestos são de medo, os do afago.
E a secreta angústia do desejo E és para mim, bem sei, todo o mistério
a porta que me fecha para a vida. e eu sou a busca dele que te procuro
pelo caminho que o teu corpo afirma.
São rosas desfolhadas meu amor.
São raivas soterradas meu amor. Amor,
desgosto só de me não seres
Amor de carne, que eu guardo e quero e peço
pasmo de sangue a revelar-me a ferida neste vão abraçar-te solitário
na luta de encontrar para perder, pra sem mim ir sugando a tua carne
furor que me devolve corpo a corpo pra sem ti ir fingindo a minha vida
ao espaço onde não ter é ter chegado, - as oferendas que tive e desfolhei
de olhos fendidos e com dedos ocos, - as rosas derramadas pela noite.
em frente ao sonho sem saber sonhar.

Hélder Macedo
Bjorn Rorslett
O funcionário cansado
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
A noite trocou-me os sonhos e as mãos São as palavras cruzadas do meu sonho
dispersou-me os amigos palavras soterradas na prisão da minha vida
tenho o coração confundido e a rua é estreita isso todas as noites do mundo uma noite só cumprida
estreita em cada passo num quarto só
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só António Ramos Rosa, Viagem Através de Uma Nebulosa
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado


um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Liers
Summertime

Olho a sua boca. Tanto


que vem o punhal da luz
levar-me os olhos.
O carvão, a cinza dos
meus olhos. Os seus.

A sua boca, o sulco


onde me pergunta e eu
respondo. A morrer,
a olhar anavalhado
o seu brilho bravio.

Sons de sirenes, uivos,


estrondos, desabamentos,
ravinas donde rompe
o amor. A sua boca. Edward Hopper

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição


A CARPA Sobre uma colagem de Marina Obo

Fundolho escamado superficiando olho prà carpa.


Vem do fundo do olho que foi ao fundo.
Movindo das profundas move manualetas,num abr'olhos
de peixespanto.
Dizque tacteia águas que estão na água,
trevas que estão na terra. Podeserque.
Carpabricolada,reactiva nossa gula das jóias,
tão segura da sua completude está,
tão cor é na desluz que a encerra (escrínio).
Nada nadando,a carpa vem ao de cima
devolver o olhar com que a vimos.
Olho na carpa de olhos em nós.Por ela e por nós.
Peixespelho,troço de maravilhoso,
atenção!,
a carpa vai fechar a luz.
Fechou.Agora, no escuro, a carpa travestindo-se
para novos feéricos espectáculos pela mão de Marina Obo.
Oh, as Carpas amestradas!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas


La signora dell'ultima volta

L'ultima volta che la vide non sapeva che era l'ul-


tima volta che la vedeva.
Perchè?
Perchè queste cose non si sanno mai.
Allora non fu gentile quell'ultima volta?
Sì, ma non a sufficienza per l'eternità.

Vivian Lamarque

Foto: nasa
FRENTE AL MAR

Me empobrecí porque entender abruma,


Oh mar, enorme mar, corazón fiero Me empobrecí porque entender sofoca,
De ritmo desigual, corazón malo, Bendecida la fuerza de la roca!
Yo soy más blanda que ese pobre palo Yo tengo el corazón como la espuma.
Que se pudre en tus ondas prisionero.
Mar, yo soñaba ser como tú eres,
Oh mar, dame tu cólera tremenda, Allá en las tardes que la vida mía
Yo me pasé la vida perdonando, Bajo las horas cálidas se abría...
Porque entendía, mar, yo me fui dando: Ah, yo soñaba ser como tú eres.
«Piedad, piedad para el que más ofenda».
Mírame aquí, pequeña, miserable,
Vulgaridad, vulgaridad me acosa. Todo dolor me vence, todo sueño;
Ah, me han comprado la ciudad y el hombre. Mar, dame, dame el inefable empeño
Hazme tener tu cólera sin nombre: De tornarme soberbia, inalcanzable.
Ya me fatiga esta misión de rosa.
Dame tu sal, tu yodo, tu fiereza.
¿Ves al vulgar? Ese vulgar me apena, Aire de mar!... Oh, tempestad! Oh enojo!
Me falta el aire y donde falta quedo, Desdichada de mí, soy un abrojo,
Quisiera no entender, pero no puedo: Y muero, mar, sucumbo en mi pobreza.
Es la vulgaridad que me envenena.
Y el alma mía es como el mar, es eso,
Ah, la ciudad la pudre y la equivoca;
Pequeña vida que dolor provoca,
Que pueda libertarme de su peso!

Vuele mi empeño, mi esperanza vuele...


La vida mía debió ser horrible,
Debió ser una arteria incontenible
Y apenas es cicatriz que siempre duele.

Alfonsina Storni, Irremediablemente


EXPLICAÇÃO DA ESPERA

Quando me sentarei ao sol


Despido
Líquen vivendo
Da inclinação dos ramos?

Quando crescerei como nuvem


Mão leve sobre a fronte
Da doença?

Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência?

Daniel Faria, Poesia


O espírito da matéria

Também as catedrais são sinfonias:


Rege a massa coral da arquitectura
a divinização da partitura;
e ambas se irmanam por analogias!

O alegro, o adágio, o andante, a tessitura,


o arco, o fuste, o florão... Alegorias
que, pela execução das harmonias,
Timbram exatas, no esplendor da altura!

E, pelos olhos, as orquestras se ouvem.


E, pelo ouvido, a torre se levanta,
para que os sonhos da matéria louvem!

E na sua amplitude sacrossanta,


a alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,
fulge na pedra, quando a pedra canta!

Martins Fontes
O TEMPO

Seria já... ou ontem?


Não me lembro

O que interessa o tempo


neste caso?
Se não fosse Agosto era Dezembro
As horas que se gastam não refazem

Seria já... ou ontem?


Não me lembro

Os anos voam
num instante de asa
E nós não o querendo vamos sendo
e sem dar por isso a vida passa

Maria Teresa Horta, Destino

Christian Buth
HOMEM

Homem que vens de humanas desventuras,


Que te prendes à vida e te enamoras,
Que tudo sabes e que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras;

Que te debruças pálido nas horas


Das tuas infinitas amarguras
E na ambição das coisas mais impuras
És grande simplesmente quando choras;

Que prometes cumprir e que te esqueces,


Que te dás à virtude e ao pecado,
Que te exaltas e cantas e aborreces,

Arquitecto do sonho e da ilusão,


Felice Applauso
Ridículo fantoche articulado
Eu sou teu camarada e teu irmão.

António Botto, Canções


à la mystérieuse reste plus peut-être, et
pourtant, qu'à être fantôme
parmi les fantômes et plus
ombre cent fois que
J'ai tant rêvé de toi que tu perds ta réalité. Est-il encore temps
l'ombre qui se
d'atteindre
promène et se
ce corps vivant et de baiser sur cette bouche la naissance de la
promènera
voix qui
allégrement
m'est chère? J'ai tant rêvé de toi que mes bras habitués en
sur le cadran
étreignant ton
solaire de ta vie
ombre à se croiser sur ma poitrine ne se plieraient pas au
contour de ton
corps, peut-être. Et que, devant l'apparence réelle de ce qui me
Robert Desnos, Corps et Biens
hante et me gouverne depuis des jours et des années, je
deviendrais une ombre sans doute.O balances sentimentales.
J'ai tant rêvé de toi qu'il n'est plus temps
sans doute que je m'éveille.
Je dors debout, le corps exposé à toutes
les apparences de la vie et de l'amour
et toi, la seule qui compte
aujourd' hui pour moi,
je pourrais moins
toucher ton front et tes lèvres que les premières lèvres
et le premier front venu. J'ai tant
rêvé de toi, tant marché,
parlé, couché avec
ton fantôme qu'il ne me
Lusitânia no Bairro Latino

Estralejam foguetes e morteiros.


Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
3
[...]

Georges! anda ver meu país de romarias


E procissões! António Nobre, Só
Olha estas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faze-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.
Que hão-de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão
Amadeo de Souza-Cardoso
Logo atrás de ti

Esta dor não passa quando adormeço


chora ao pé de mim
irremediável

alguém nos toca no ombro e


damos por nós mais sozinhos

o meu lugar na morte


é junto da janela Anna L. Zentner
logo atrás de ti

Mário Rui de Oliveira


Hiroshima - 6 de Agosto de 1945 - 8 h 15 m
É a vida
Sobe-se numa corrida.
Correm-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética

É uma escada em caracol


e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos,


mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe.


Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.
As crianças com as suas vozes brancas
riscam alegremente o céu azul
A MINHA TARDE
passam as aves em seu voo rasante
desde sá de miranda até jorge de sena
Disponho do vento disponho do sol disponho da árvore E o tempo passa assim. Sou eu e o passado
arranjo pássaros arranjo crianças Era novo. Não tenho a razão pelo meu lado
tenho mesmo à minha disposição o mar
talvez com tudo isto possa formar uma tarde Ruy Belo, Homem de Palavra[s]
uma tarde azul e calma onde me possa refugiar
Mas e as ideias as doutrinas os problemas?
Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo
como pretender ter resolvido o mínimo problema?
E as ideias, que só servem para dividir?
As ideias têm húmeros inúmeros
e é difícil caminhar no meio da multidão
Podia dizer (mas não me deixa descansado):
Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado
Deixai os pássaros cantar as crianças brincar
o tempo não urge o coração não arde
Quem sou eu? Eu só e minha tarde Andrea Schauerte
y eres sobre el piano dulzura emocionante;
das al alma las mismas nieblas y resonancias
LLUVIA que pones en el alma dormida del paisaje!

Oh lluvia silenciosa, sin tormentas ni vientos, Federico García Lorca


lluvia mansa y serena de esquila y luz suave,
lluvia buena y pacifica que eres la verdadera,
la que llorosa y triste sobre las cosas caes!

Oh lluvia franciscana que llevas a tus gotas


almas de fuentes claras y humildes manantiales!
Cuando sobre los campos desciendes lentamente
las rosas de mi pecho con tus sonidos abres.

El canto primitivo que dices al silencio


y la historia sonora que cuentas al ramaje
los comenta llorando mi corazón desierto
en un negro y profundo pentagrama sin clave.

Mi alma tiene tristeza de la lluvia serena,


tristeza resignada de cosa irrealizable,
tengo en el horizonte un lucero encendido
y el corazón me impide que corra a contemplarte.

Oh lluvia silenciosa que los árboles aman Gonzalo Espinosa Mendez


Encontro no poente
Encontro no poente
essa calma luminosa que rói a ilusão
os pretextos subtis e brandamente ilesos
a que a razão resiste.
Soberanamente se elevam os pássaros
pouco
ou do maior encanto lhes atendo as penas.
Há porém um problema maior
a verificação experimental da existência
seu decorrer coeso.
Procuro a haste que delicadamente retém
o lacerado pranto de Actéon
e abandonada talvez a poesia
tento o encontro da maior
contradição -
adequado entender da felicidade.
Isto que digo:
que de muito podermos contrafeitos
em si do nada é feito o sinal gasto.
Ou que dádiva de encontro, o aliado
menor mal sujeito
que em Elêusis cantávamos sob as oliveiras

Maria Alzira Seixo, Letra da Terra


DEFINIÇÃO

O sal é o mar servido à mesa nas suas praias domésticas


de linho.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


UM INSTANTE

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente.

Ferreira Gullar
OH YES

OH SIM
there are worse things than
being alone
but it often takes decades há coisas bem piores
to realize this do que ser sozinho.
and most often mas às vezes levamos décadas
when you do a percebê-lo.
e ainda mais vezes
it´s too late
demasiado tarde
and there´s nothing worse
e não há nada pior
than
do que
too late.
demasiado tarde

Charles Bukowsky
Charles Bukowsky

Trad. de Amélia Pais


A un olmo seco ardas en alguna mísera caseta,
al borde de un camino;
antes que te descuaje un torbellino
y tronche el soplo de las sierras blancas;
Al olmo viejo, hendido por el rayo
antes que el río hasta la mar te empuje
y en su mitad podrido,
por valles y barrancas,
con las lluvias de abril y el sol de mayo
olmo, quiero anotar en mi cartera
algunas hojas verdes le han salido.
la gracia de tu rama verdecida.
El olmo centenario en la colina
Mi corazón espera
que lame el Duero! Un musgo amarillento
también, hacia la luz y hacia la vida,
le mancha la corteza blanquecina
otro milagro de la primavera.
al tronco carcomido y polvoriento.

António Machado, Poesias Completas


No será, cual los álamos cantores
que guardan el camino y la ribera,
habitado de pardos ruiseñores.

Ejército de hormigas en hilera


va trepando por él, y en sus entrañas
urden sus telas grises las arañas.

Antes que te derribe, olmo del Duero,


con su hacha el leñador, y el carpintero
te convierta en melena de campana,
lanza de carro o yugo de carreta;
antes que rojo en el hogar, mañana,
BRAÇOS ABERTOS

Separei os braços
E exilei o peito

Doeu-me tanto
Que não sei chorá-lo

Daniel Faria, Poesia


DEUS NÃO VIVE AQUI

Estas paredes estão geladas.


No quarto ao lado,
alguém suspira,

mas o quarto está vazio, desde que tu


Deus não vive aqui, partiste,
não nos contempla pelos vitrais das suas meu pai das ilhas assombradas.
naves incendiadas.
Por isso dizemos, em voz baixa,
É meio-dia neste país de lágrimas. em surdina,
O sol está parado nas doze lanças de dizemos que amámos,
luz insuportável. num dia de feroz claridade,
É meio-dia sobre o rio amargo, num cais de estacas febris,
cujas barcas dormem na brancura terrível as têmporas que explodiam,
desta hora. todas as veias queimadas pela neve das
estepes sem fim.
Quem arrancou os crisântemos que
morrem na casa abandonada? Por isso,
Dói este silêncio, esta ausência, este deixa para sempre os desertos desta vida, e
relógio de pêndulo com passos de fantasma. desce,
meu irmão das estrelas,
desce as margens do rio amargo, e
ouve,
ouve aquele que murmura nos quartos vazios,
ouve a oração dos malditos,
dos aflitos,

ouve o rumor das giestas nos campos do


desamparo,
as pás que escavam os alicerces,
o machado de impiedosa pedra que brilha
sobre o gelo do Árctico,

meu irmão dos barcos naufragados,


procura-me onde o meu corpo já não está,
nem o meu nome,

aqui,
nesta casa abandonada.

José Agostinho Baptista, Esta Voz É Quase O Vento Bogdan H.


El Pi de Formentor (Electus ut cedri) Del llim d'aquesta terra sa vida no sustenta;
revincla per les roques sa poderosa rel,
té pluges i rosades i vents i llum ardenta,
i, com un vell profeta, rep vida i s'alimenta
Mon cor estima un arbre! Més vell que l'olivera, de les amors del cel.
més poderós que el roure, més verd que el taronger,
conserva de ses fulles l'eterna primavera, Arbre sublim! Del geni n'és ell la viva imatge;
i lluita amb les tormentes que assalten la ribera, domina les muntanyes i aguaita l'infinit;
com un gegant guerrer. per ell la terra és dura, mes besa son ramatge
el cel qui l'enamora, i té el llamp i l'oratge
No guaita per ses fulles la flor enamorada; per glòria i per delit.
no va la fontanella ses ombres a besar;
mes Déu ungí d'aromes sa testa consagrada Oh! sí: que quan a lloure bramulen les ventades
i li donà per trone l'esquerpa serralada, i sembla entre l'escuma que tombi el seu penyal,
per font l'immensa mar. llavors ell riu i canta més fort que les onades
i vencedor espolsa damunt les nuvolades
Quan lluny damunt les ones renaix la llum divina, sa cabellera real.
no canta per ses branques l'aucell que encativam;
el crit sublim escolta de l'àguila marina, Arbre, mon cor t'enveja! Sobre la terra impura,
o del voltor que passa sent l'ala gegantina com a penyora santa duré jo el teu record.
remoure son fullam. Lluitar constant i vèncer, reinar sobre l'altura
i alimentar-se i viure de cel i de llum pura...
oh vida, oh noble sort!
Amunt, ànima forta! Traspassa la boirada

i arrela dins l'altura com l'arbre els penyals. EL PINO DE FORMENTOR


Veuràs caure a tes plantes la mar del món irada,
i tes cançons tranquiles 'niran per la ventada Hay en mi tierra un árbol que el corazón venera;
com l'au dels temporals. De cedro es su ramaje, de césped su verdor,
Anida entre sus hojas perenne primavera
Y arrastra los turbiones que azotan la ribera,
Miquel Costa i Llobera Añoso luchador.
(Versió de 1907)
No asoma por sus ramas la flor enamorada,
No va la fuentecilla sus plantas a besar;
Mas báñase en aromas su frente consagrada,
Y tiene por terreno la costa acantilada,
Por fuente el hondo mar.

Al ver sobre las olas rayar la luz divina,


No escucha débil trino que al hombre da placer;
El grito oye salvaje del águila marina,
Y siente el ala enorme que el vendaval domina
Su copa estremecer.
Del limo de la tierra no toma vil sustento;
Retuerce sus raíces en fuerte peñascal. ¡Oh vida, oh noble ser¡
Bebe rocío y lluvias, radiosa luz y viento;
Y cual viejo profeta recibe el alimento ¡Arriba, oh alma fuerte¡ Desdeña el lodo inmundo,
y en las austeras cumbres arraiga con afán.
De efluvio celestial.
Verás al pie estrellarse las olas de este mundo,
Y libres como alciones sobre ese mar profundo
¡Árbol sublime¡ Enseña de vida que adivino,
Tus cantos volarán.
La inmensidad augusta domina por doquier,
Si dura es la tierra, celeste su destino
Le encanta, y aun le sirve el trueno y torbellino
De gloria y de placer. Miquel Costa i Llobera

¡Oh¡ sí; que cuando libres asaltan la ribera


Los vientos y las olas con hórrido fragor,
Entonces ríe y canta con la borrasca fiera,
Y sobre rotas nubes la augusta cabellera
Sacude triunfador.

¡Árbol, tu suerte envidio¡ Sobre la tierra impura


de un ideal sagrado la cifra en ti he de ver.
Luchar, vencer constante, mirar desde la altura,
Vivir y alimentarse de cielo y de luz pura...
Miró
PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
Não sei como vieste,
com que teces os dias sem memória.
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
Estás sentada no jardim,
se acordam os mortos sem os ferir,
as mãos no regaço cheias de doçura,
sem os trazer a esta espuma negra
os olhos pousados nas últimas rosas
onde corpos e corpos se repetem,
dos grandes e calmos dias de setembro.
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Que música escutas tão atentamente


Deixa-te estar assim,
que não dás por mim?
ó cheia de doçura,
Que bosque, ou rio, ou mar?
sentada, olhando as rosas,
Ou é dentro de ti
e tão alheia
que tudo canta ainda?
que nem dás por mim.

Queria falar contigo,


Eugénio de Andrade, Coração do Dia
dizer-te apenas que estou aqui,
Nos olhos de Isa

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite


Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada


E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar
E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.

Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,


Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel


Onde as abelhas constroem a tarde
Desesperadamente.
Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa, Nos Olhos de Isa Elisabetta Rogai


Pára-me de repente o pensamento

Pára-me de repente o pensamento


Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento

Pára surpreso, escrutador, atento,


Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.


Pára à beira do abismo, e se demora.
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço, que essa noite explora.


Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...

Ângelo de Lima , In Rosa do Mundo Fractal


2001 Poemas para o Futuro
CUÉNTAMELO OTRA VEZ

Conta-mo outra vez

Cuéntamelo otra vez: es tan hermoso


Conta-mo outra vez: é tão bonito
que no me canso nunca de escucharlo.
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repíteme otra vez que la pareja del cuento
Repete-me outra vez que o par
fue feliz hasta la muerte,que ella no le fue infiel,
do conto foi feliz até à morte.
que a él ni siquierase le ocurrió engañarla.
Y no te olvides de que, a pesar del tiempo y los problemas, Que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
se seguían besando cada noche. lhe ocorreu enganá-la. E não te esqueças
Cuéntamelo mil veces, por favor. de que, apesar do tempo e dos problemas,
Es la historia más bella que conozco. continuaram beijando-se cada noite.
Conta-mo mil vezes por favor

é a história mais bela que conheço.


Amalia Bautista

Amalia Bautista. Trad.: Jorge Sousa Braga


Picasso
SER LUZ
Queria ser luz para poder sentir
a tua alma sôfrega bebê-la...
Queria ser luz para poder dormir
vibrando e ardendo como aquela estrela...

Se eu fosse luz iria descobrir


mais oceano ainda a cada vela;
como os olhos das águias a fulgir
seguiria nas noites de procela...

Ser luz para doirar toda a miséria,


talhar em jóias as pedras dos caminhos,
florir as almas, acordar os ninhos...

Quando beijo a chorar a noite etérea


do teu olhar, amor, a minha cruz
é esta sede imensa de ser luz!

António Patrício, Poesia Completa


sub-soneto-crítico

paraíso não há
nem para riso
nem país para isso
nem para brisas.

ao vento o rosto
revela-se utopia
nem de noite
nem de dia.

só a lúdica crise
se revolta na onda
que leva a vela.

eles SE tomam
a sério
no se.
Sonia Delaunay

E. M. de Melo e Castro
CHILE - 11 de Setembro de 1973

LAS MASACRES

Pero entonces la sangre fue escondida


detrás de las raíces, fue lavada
y negada
(fue tan lejos), la lluvia del Sur la borró
de la tierra
(tan lejos fue), el salitre la devoró en la
pampa:
y la muerte del pueblo fue como siempre
ha sido:
como si no muriera nadie, nada,
como si fueran piedras las que caen
sobre la tierra, o agua sobre el agua.

Arnd Schultheiss
Nadie sabe dónde enterraron
los asesinos estos cuerpos,
pero ellos saldrán de la tierra
a cobrar la sangre caída
en la resurrección del pueblo.

De Norte a Sur, adonde trituraron


En medio de la Plaza fue este crimen.
o quemaron los muertos,
fueron en las tinieblas sepultados,
No escondió el matorral la sangre
o en la noche quemados en silencio,
pura
acumulados en un pique
del pueblo, ni la tragó la arena de la
o escupidos al mar sus huesos:
pampa.
nadie sabe dónde están ahora,
no tienen tumba, están dispersos
Nadie escondió este crimen.
en las raíces de la patria
sus martirizados dedos:
Este crimen fue en medio de la Patria.
sus fusilados corazones:
la sonrisa de los chilenos:
los valerosos de la pampa:
Pablo Neruda, Canto General
los capitanes del silencio.
PÉGASO a mais pura estância
das lágrimas.

À saída do estádio Sebastião Alba, A Noite Dividida


pressentimos na brisa
a chegada dos signos da noite

Indeciso, o cavalo
transpõe o fosso do horizonte,
sob a lua e um alto
expoente de pó

Inverte-se o casco percussor


à beira da fonte do Hélicon,
e o cavalo grego
deita-se para morrer

Um frémito distende-lhe as asas;


no olhar anterior ao mito,
aflui agora

Odilon Redon
What Lips My Lips Have Kissed, And Where, And Why

What lips my lips have kissed, and where, and why,


I have forgotten, and what arms have lain
Under my head till morning; but the rain
Is full of ghosts tonight, that tap and sigh
Upon the glass and listen for reply,
And in my heart there stirs a quiet pain
For unremembered lads that not again
Will turn to me at midnight with a cry.
Thus in winter stands the lonely tree,
Nor knows what birds have vanished one by one,
Yet knows its boughs more silent than before:
I cannot say what loves have come and gone,
I only know that summer sang in me
A little while, that in me sings no more.
Lois Barker

Edna St. Vincent Millay


[construir uma central
nuclear;
Desligando a TV
impeça o desvio dos nossos aviões;
dê um empurrãozinho na Habituação Social;
A esta hora as anémonas nadam evitando o lodo dê também uma olhadela pela Secretaria de Estado da
e Jesus Cristo está ainda sentado à direita de Deus Pai É a ele Cultura;
que me dirijo: para que ajude o mais possível nas nossas colheitas,
evite a poluição das águas; procure a maneira de actualizar as pensões de reforma e
acenda a luz das auto-estradas; invalidez;
faça admitir na Guarda Nacional indivíduos capazes; termine com as pequenas e grandes invejas dos nossos
fiscalize devidamente os empréstimos externos; intelectuais;
esteja ao lado dos camponeses e operários; volte a pôr a Feira do Livro na Avenida da Liberdade;
mantenha a nossa cidade limpa; tente que cada um de nós ame mais o próximo ou
acabe de vez com a inflação e o contrabando; se não for possível que ao menos façamos todos férias
não permita lock-outs; repartidas
não se alheie das graves dificuldades do Serviço Nacional de Saúde;
atenda as preces das mães solteiras;
não deixe continuar nesta situação o nosso único Zoo; Joaquim Pessoa, Amor Combate
dê coragem aos que julgam que já não há nada a fazer;
tire da cabeça dos nossos governantes a ideia maluca de mandarem
Et un sourire

La nuit n'est jamais complète


Il y a toujours puisque je le dis
Puisque je l'affirme
Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
Une fenêtre éclairée
Il y a toujours un rêve qui veille
Désir à combler faim à satisfaire
Un coeur généreux
Une main tendue une main ouverte
Des yeux attentifs
Une vie la vie à se partager.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour


Il n'y a pas d'amour heureux

Rien n'est jamais acquis à l'homme, ni sa force Le temps d'apprendre à vivre il est déjà trop
tard
Ni sa faiblesse, ni son coeur. Et quand il croit
Ouvrir ses bras, son ombre est celle d'une croix Que pleurent dans la nuit nos coeurs à l'unisson
Ce qu'il faut de malheur pour la moindre
Et quand il croit serrer son bonheur, il le broie
Sa vie est un étrange et douloureux divorce chanson
Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson
Il n'y a pas d'amour heureux
Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare
Il n'y a pas d'amour heureux
Sa vie, elle ressemble à ces soldats sans armes
Qu'on avait habillés pour un autre destin
Il n'y a pas d'amour qui ne soit à douleur
A quoi peut leur servir de se lever matin
Eux qu'on retrouve au soir désoeuvrés incertains Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri
Et pas plus que de toi l'amour de la patrie
Dites ces mots " Ma vie " et retenez vos larmes
Il n'y a pas d'amour heureux Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs

Mon bel amour, mon cher amour, ma déchirure Il n'y a pas d'amour heureux
Mais c'est notre amour à tous deux
Je te porte dans moi comme un oiseau blessé
Et ceux-là sans savoir les mots que j'ai tressés
Et qui, pour tes grands yeux, tout aussitôt moururent
Il n'y a pas d'amour heureux. Louis Aragon, La Diane française
L'anima mia si sveglierà nel sole
Nel sole eterno, libera e fremente.
POESIA FACILE

Dino Campana (1885-1932)

Pace non cerco, guerra non sopporto


Tranquillo e solo vo pel mondo in sogno
Pieno di canti soffocati. Agogno
La nebbia ed il silenzio in un gran porto.
POESIA FÁCIL

In un gran porto pien di vele lievi


Pronte a salpar per l'orizzonte azzurro
Paz não busco, guerra não suporto
Dolci ondulando, mentre che il sussurro
Tranquilo e só vou pelo mundo em sonho
Del vento passa con accordi brevi.
Cheio de cantos sufocados. Apeteço
A névoa e o silêncio num grande porto.
E quegli accordi il vento se li porta
Lontani sopra il mare sconosciuto.
Sogno. La vita è triste ed io son solo
Num grande porto cheio de velas leves
Prestes a zarpar para o horizonte azul
O quando, o quando in un mattino ardente
Doces ondulando, enquanto o sussurro
Do vento passa com acordes breves.

E aqueles acordes o vento os leva


Distantes sobre o mar desconhecido.
Sonho. A vida é triste e eu estou só.

Oh quando oh quando numa manhã ardente


A minha alma despertará no sol
No sol eterno, livre e fremente.

Dino Campana, in Dez Poetas Italianos Contemporâneos,


Selecção, tradução e notas de Albano Martins

Marlene Kremers
Essa velha ciência, a de esperar,... isso que te interessa. Gostavas apenas que
os cadernos ficassem, gravados de ti e de quem
amas,
guardados em gavetas, guardando o mundo.
Essa velha ciência, a de esperar, escreve-la
em cadernos retirados a cada viagem. Neles
anotaste os movimentos do mundo, o balanço Francisco José Viegas, O Puro e o Impuro
do mar. São só velhos, os cadernos; ainda

escreves à mão, ainda respiras por ele,


ciência antiga - onde a conservas? Linha
a linha as viagens vão passando por eles como
um mapa: aqui as ilhas, ali pequenos continentes,

provas de que o mundo não acaba à tua porta


quando o jardim desaparece entre os granitos.
Levantas a voz uma vez por outra, mas não é
Duarte belo
A fome

Aqui, onde a mão não


alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura


dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.

Luís Miguel Nava, Vulcão


Francis Bacon
"Chora, chora, mulher arrenegada;
"Lacrimeja por esses aquedutos...
LÁGRIMAS
"Quero um banho tomar d’ água salgada".

Ela chorava muito e muito, aos cantos, Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos,
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,


Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos;


- "Tu pareces nascida de rajada,
"Tens despeitos raivosos, resolutos;
e ne
Jsuis seulement amoureux de Marie Je ne suis seulement amoureux de Marie,
Anne me tient aussi dans les liens d'Amour,
Ore l'une me plaît, ore l'autre à son tour :
Ainsi Tibulle aimait Némésis, et Délie.

On me dira tantôt que c'est une folie


D'en aimer, inconstant, deux ou trois en un jour,
Voire, et qu'il faudrait bien un homme de séjour,
Pour, gaillard, satisfaire à une seule amie.

Je réponds à cela, que je suis amoureux,


Et non pas jouissant de ce bien doucereux,
Que tout amant souhaite avoir à sa commande.

Quant à moi, seulement je leur baise la main,


Les yeux, le front, le col, les lèvres et le sein,
Et rien que ces biens-là d'elles je ne demande.

Pierre de Ronsard, Second livre des Amours

Chagall
Adeus Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.
É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora! Miguel Torga
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade

Willi Schnekenburger
Somriuen en les postes diafanitats llunyanes.
SETEMBRE
Amb una delicada tristesa de germanes,
les roses de setembre s’esfullen lentament.

Aquella primavera ja és lluny per no tornar; Miquel Ferrà, A mig camí, 1926.

fugí batent ses ales en la claror xalesa.


De sos daurats ensomnis, una tristesa en resta,
i de ses flors tan belles, ni una en va fruitar.

Ara, que com una ombra l’estiu declina ja


i es va emboirant de llàgrimes sa lluminosa festa,
no sents pertot difondre’s, ànima meva, aquesta
sentor de flor marcida qui en l’aire se desfà?

Potser l’abril, d’enfora, l’últim adéu t’envia.


El seu record perfuma l’estiu en sa agonia,
encomanant als aires un mal d’enyorament.

Victoria Josephson
Tempo, subitamente solto...

Tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,


como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava, quando imaginava que amava, era a tua
tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu
rosto,
era a tua pele, antes de te conhecer, existia
nas árvores
nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto


Estamos agora em paz

Estamos agora em paz


sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento


lá de fora atirado para antes
de nós as mãos caídas
nos joelhos mas nada suplicantes
só esvaídas

conformados
com não nos conformarmos

resignados
a esperando não esperarmos
Tapiès
como se tudo fosse um imenso tanto faz

Mário Dionísio, Terceira Idade


OLHAR

Olhei quase sempre para o chão.


E aquela estrela que parava no sul, descia de
repente e caía aos nossos pés.
Recolhi-a,
ano após ano,
e com o resto da sua luz quis iluminar o
teu caminho.
Mas tu não viste as suas lágrimas que eram
as minhas,
apagando a última, sobre o chão.

José Agostinho Baptista, Biografia

Tux
AO SOL

(Oração de tradição oral)

Eu te saúdo sol. Sol das estações,


Na tua viagem pelos altos céus.
Rasto indelével no cimo dos montes,
Senhor amável de todas as estrelas.

Mergulhas sereno nas trevas do mar,


E nada te toca e nada tu sofres.
Depois te alevantas da calma das ondas,
Como jovem príncipe coroado de rosas.

Cultura Celta (gaélico escocês)


Trad.: José Domingos Morais
In Rosa do Mundo - 2001 poemas para o Futuro
LA ORILLA DEL MAR
A mí venga el lloro, pues debo penar.
No es agua ni arena la orilla del mar.

José Gorostiza
No es agua ni arena la orilla del mar.

El agua sonora de espuma sencilla,


el agua no puede formarse la orilla.

Y porque descanse en muelle lugar,


no es agua ni arena la orilla del mar.

Las cosas discretas, amables, sencillas;


las cosas se juntan como las orillas.

Lo mismo los labios, si quieren besar.


No es agua ni arena la orilla del mar.

Yo sólo me miro por cosa de muerto;


solo, desolado, como en un desierto.
A UMA OLIVEIRA

Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.

Pré-camoniana,
sazão a sazão,
foste varejada séculos a fio.

O pinho viajou.
Tu ficaste.

Ao som bárbaro de um rádio de pilhas,


desdobram toalhas
na tua sombra rala.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas


Os trabalhos da mão

Começo a dar-me conta: a mão


que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.

Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência


Refrain:
Les feuilles mortes
C'est une chanson qui nous ressemble
Toi, tu m'aimais et je t'aimais
Et nous vivions tous deux ensemble
Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais
Mais la vie sépare ceux qui s'aiment
Tout doucement, sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis.

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,


Les souvenirs et les regrets aussi
Mais mon amour silencieux et fidèle
Oh! je voudrais tant que tu te souviennes Sourit toujours et remercie la vie
Des jours heureux où nous étions amis Je t'aimais tant, tu étais si jolie,
En ce temps-là la vie était plus belle, Comment veux-tu que je t'oublie?
Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui En ce temps-là, la vie était plus belle
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui
Tu vois, je n'ai pas oublié... Tu étais ma plus douce amie
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle, Mais je n'ai que faire des regrets
Les souvenirs et les regrets aussi Et la chanson que tu chantais
Et le vent du nord les emporte Toujours, toujours je l'entendrai!
Dans la nuit froide de l'oubli.
Tu vois, je n'ai pas oublié
La chanson que tu me chantais. Paroles: Jacques Prévert
por decreto

tão mais inúteis quanto mais se sucedem


ensolaradas e mudas são as manhãs
de domingo
: eu finjo que não te espero
finges tu não nos saber

e a vida segue.
a olhos vistos se adelgaça perde o viço
empalidece
sem que haja em toda a medicina uma única
maneira - poção ventosa ou vacina -
que a possa socorrer

exceto talvez abolir - por decreto - de uma


vez por todas todas elas
: as mudas e claras e azuis e inúteis
manhãs de domingo.

Márcia Maia
Já nasceste a saber o que eu não sei

Já nasceste a saber o que eu não sei,


o que o lume na água mais procura;
se me dás de beber vou ter a sede
incessante da fonte mais impura.
Cada noite te peço que imagines
uma outra fina, elementar tortura,
como essa, de nunca mais arder
o corpo que no corpo se insinua.
Por cada gesto teu, leio almanaques
de vãs filosofias, para ter
a réplica prevista à sua altura;
por cada lábio, sou mais sábio que
toda a corte celeste talmudista;
e ainda não sei o que ao nascer sabias.

António Franco Alexandre, Duende

Cory Ench
REFERÊNCIA

Aquele que me beija


e me possui
Quantas vezes te digo me toma e me deixa
quantas vezes… ficando a meu lado
que és para mim
o meu homem amado? Quantas vezes te digo
quantas vezes…
O que chega primeiro que és para mim
e só parte por vezes o meu homem amado?
antes de eu perceber
que já tinhas voltado Que sempre me enlouquece
e só aí percebo
Quantas vezes te digo como estava perdida
quantas vezes… sem te ter encontrado
que és para mim
o meu homem amado?
Maria Teresa Horta
Kate Liu
Aquela noite de beijos e carícias indecisas...

Aquela noite de beijos e carícias indecisas... eu, capaz por uma vez de não pensar os meus gestos
Amaste-me talvez nesses momentos - só nesses momentos... e tendo apenas a voz do mais obscuro instinto.
Aquele recanto de aldeia esquecido no meio da cidade, A natureza em volta aniquilava as nossas biografias,
a noite perfeita, e não havia senão a extática presença da terra e dos astros,
a paz imensa daquela hora breve e perdidos nela, nós, tão pobres, tão abandonados,
- essa indizível magia de certas noites imensas... purificados de toda a nossa miséria,
Sim, amaste-me talvez nesses breves momentos tão Eva e Adão antes da maçã comida,
Em que fomos apenas a Mulher e o Homem nós, vivos em nossa carne bem humana,
- tu, liberta da tortura de analisar sem fim tecendo nas linhas embriagadas das nossas carícias
os teus sentimentos por este e por aquele;
o véu que nos escondia a memória dos outros.
Que importam as palavras que dissemos,
as juras que fizemos!
Que nesse momento, em cada um de nós,
as palavras do outro eram já sabidas antes de ser ditas,
e o tumulto dos nossos corpos,
e o tumulto das nossas almas,
e a maré viva da nossa perfeita comunhão,
e o espraiar-se da nossa ternura sobre o mundo,
eram a única Palavra que valia!

Adolfo Casais Monteiro


In 366 poemas que falam de amor
uma antologia organizada por
Vasco Graça Moura

Chagall
Um dia vais pla rua como quem

inocentes obstáculos povoando

a memória indelével. Continuas,


atravessas o parque e de repente
encontras o regresso já perdido
no dia do juízo. Fica aqui,
coisa inútil que alguém deixou arder,
resto de prata acesa em mil estilhaços
e espera pelo último semáforo,
Um dia vais pla rua como quem pla última canção perto da noite
já não deseja nada deste mundo: até que o vento seja o teu destino.
olhas pró céu, reparas no inferno
e todas as pessoas são iguais,
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa
Exactamente como foi, ... lugar comum e
fácil, mas as noites são grandes

e lembrar-se
Exactamente como foi, o medo de me enganar
exactamente,
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de uma forma correcta
de noite às escuras a pensar em ti

é-me tão importante


E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela
dentro das noites a pensar em ti
quinta-feira o dia do amor em vez de ser
sabendo: não te vejo nunca mais
na quarta, o erro surge-me gigante,
um peso carregado como Atlas

Ana Luísa Amaral


Por isso é que preciso de lembrar coisas
exactas, como aconteceu tudo; não só
transpor depois na ficção recolhida, sou eu
que te preciso e dos teus dias
que me foram meus

Lembrar-me exactamente como foi, o que usei


nesse dia e o que usei no outro, até que horas
tudo, se havia gente ou não
e em que dia. Porque as palavras depois se
reconstroem

O que se disse então torna-se fácil.


Assim dito parece coisa pouca,

Helana de Almeida
Celebración del viento y de los árboles

Si el espacio llorase,
como pretende la nube, El viento es el dialecto
el viento sería una historia de lágrimas. en la naturaleza.
La luz es la lengua culta.
En el polvo toco
los dedos del viento. El aire:
En el viento leo único amante
la escritura del polvo. con quien baila la rama
mientras se dispone a acostarse
El camino no puede avanzar de verdad con otro amante.
más que a través de un viento dialogante
con su propio polvo. Vientos: cuerpos que caminan
con pies invisibles
El viento posa la mano derecha como de ángeles.
en el hombro de la rosa
y se mete la izquierda en el bolsillo. Viento: palabra confusa que murmura
Viento: ladrón de perfume. el silencio cósmico.
El viento enseña silencio
aunque no cese de hablar.

Hoy,
triste por el aire enfermo,
la adelfa no ha bailado.

Al árbol le gusta entonar canciones


que el viento no recuerda.

Viento: puerto único,


movimiento perpetuo
hacia lo desconocido.

Adonis (Ali Ahmad Said),


Traducción del árabe por María Luisa Prieto
OUTONO

Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga, Diário X


words so many stories, images, proverbs, etc.
But the words aren't good enough,
the wrong ones kiss me.
Sometimes I fly like an eagle
Be careful of words,
but with the wings of a wren.
even the miraculous ones.
But I try to take care
For the miraculous we do our best,
and be gentle to them.
sometimes they swarm like insects
Words and eggs must be handled with care.
and leave not a sting but a kiss.
Once broken they are impossible
They can be as good as fingers.
things to repair.
They can be as trusty as the rock
you stick your bottom on.
Anne Sexton
But they can be both daisies and bruises.
Yet I am in love with words.
They are doves falling out of the ceiling.
They are six holy oranges sitting in my lap.
They are the trees, the legs of summer,
and the sun, its passionate face.
Yet often they fail me.
I have so much I want to say,
Como nuvens pelo céu

Como nuvens pelo céu


Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são


Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna


Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?

Fernando Pessoa, Poemas dispersos


Estrofa al vent
I eternament la maternal Natura

l'espargirà per la infinita altura

Jo escric al vent aqueixa estrofa alada quan el meu nom, obscur, serà extingit.

per a què el vent la porti cel enllà


Gabriel Alomar
jo vull seguir-la amb ma candent mirada,

plorós de no poder-la acompanyar.

Entre els hiverns, quan vibri la ventada,

el meu vers per l'espai ressonarà,

i sobre els homes sa brunzent tonada

durà el so d'un incògnit oceà.

I cantarà en la lira de les branques

i de la lluna en les crineres blanques

o en l'arquet de silenci de la nit.

Gaspar Sabater
Soneto

Amor perfeito dado a um ser humano:


Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

Esperança e desespero de alimento


Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento

Mas como usar amor de entendimento?


Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês – pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como é belo, amor, de não durares,


De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar


No mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões
Com o espírito da casa

Acabei hoje o sabonete cujo uso iniciaste aquando


o teu último banho cá em casa. Ficaram coisas que
te pertencem e que não sei se deva guardar,
a saber: um candeeiro, um desenho, uma fotografia.
Outras coisas ficaram
alguns discos e já não sei que livro. Não ferem
tanto. Há ainda a memória da pele, o amarelo dos
olhos e algumas expressões do teu português falado.
Mas estas últimas coisas já se confundem com o
espírito da casa, quero dizer-te com a poeira da
casa.

João Miguel Fernandes Jorge,


A Jornada de Cristóvão de Távora. Primeira Parte
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

Saí do comboio
A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Saí do comboio, Da casa onde a não tratavam muito bem...
Disse adeus ao companheiro de viagem,
Tínhamos estado dezoito horas juntos. Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
A conversa agradável, Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.
A fraternidade da viagem,
Tive pena de sair do comboio, de o deixar. E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Álvaro de Campos
Toda despedida é uma morte...
Sim, toda despedida é uma morte.
Nós, o comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove, porque sou homem.


Tudo me comove, porque tenho,
X-B

Nesta Cidade-Mundo
quem poderá entoar
um cântico de júbilo?

O real
O manto da invenção
Árvores de lágrimas
Florestas de papel
Impotência tudo

Um desvalor
enche o nosso coração

Ana Hatherly, Rilkeana


em fundo

Christoph Willibald Gluck


Dance of the Blessed Spirits
de Orfeo ed Euridice
Karlheinz Zoeller, flauta
Herbert von Karajan
Berliner Philharmoniker
não se conjuga nem se ama.
AS SEM-RAZÕES DO AMOR
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Eu te amo porque te amo. Amor é primo da morte,

Não precisas ser amante, e da morte vencedor,

e nem sempre sabes sê-lo. por mais que o matem (e matam)

Eu te amo porque te amo. a cada instante de amor.

Amor é estado de graça


e com amor não se paga. Carlos Drummond de Andrade

Amor é dado de graça,


é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo


bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,

Camille Claudel
OUTROS MASTROS

moldo o teu rosto


entre os barcos:
imóvel percurso
do desassossego
ermo dos claustros
a fogo e quartzo por ti erguidos
revelo a memória no meu painel
de outros mastros: de tojo
padrões arremesso à água
da viagem as grainhas
inconcluída
e vou perder-te
repousa o mar mais longe:
na orla onde as nascentes
dos teus olhos despertam
(vesperal
e frio)
José Manuel Mendes, Limiar da terra
Botella al mar

Pongo estos seis versos en mi botella al mar


con el secreto designio de que algún día
llegue a una playa casi desierta
y un niño la encuentre y la destape
y en lugar de versos extraiga piedritas
y socorros y alertas y caracoles.

Mario Benedetti
NA SOLIDÃO RENOVADA

Com os dentes.
Sem música,

sem água.

Reptilmente.

António Ramos Rosa, Nos Seus Olhos de Silêncio


A terra... O mar...

A terra é a minha passagem,


O mar o meu refúgio...

Maria do Céu Costa, Sentimentos no Silêncio


PELO FIM DA TARDE

Era um dia, pelo fim da tarde,


o sol descia sobre
o sentimento da vida.

João Miguel Fernandes Jorge,


Tronos e Dominações pelo fim da Tarde
PENSAMENTO
de um novo mundo
foi vagabundo
contrabandista
meu penssamento foi marinheiro
partiu no vento maltês ganhão
podem prendê-lo foi prisioneiro
matá-lo não mas servo não
Meu pensamento
quebrou amarras [Refrão]
partiu no vento
deixou guitarras E os reis mandaram
meu pensamento fazer muralhas
por onde passa tecer as malhas
estátua de vento de negras leis
em cada praça homens morreram
chamas ao vento
[Refrão] por ti morreram
meu pensamento
Foi à conquista

Letra: Manuel Alegre


Música:A. Correia de Oliveira e A. Portugal
tecum©
jamais a almejada
península

pura inquietação

de noite escura e a parca claridade

e raras madrugadas
faz-se a minha alma
Márcia Maia

de bruma e penumbra
quase sempre ocaso
derradeira luz sobre
um deserto de mares
imensos

assim eu sou

sempre ilha
um gato é um poema

Um cão, eu sempre disse, é prosa;


Um gato é um poema.

Jean Burden, In Assinar a Pele


Domingo

Ainda hoje a família e os amigos


Quando chega domingo,
andam pensando porque seria.
faço tenção de todas as coisas mais belas
Só não relacionam que se matou num domingo!
que um homem pode fazer na vida.
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
Há quem vá para o pé das águas
que era o que a família desejava,
deitar-se na areia e não pensar...
para que o seu futuro ficasse resolvido),
E há os que vão para o campo
Mariazinha Santos
cheios de grandes sentimentos bucólicos
quando chega domingo,
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
vai com uma amiga para o cinema.
«bom tempo para amanhã»...
Deixa que lhe apalpem as coxas
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe
pois nesse dia
lhe bordou,
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
quando ela era ainda muito menina...
são mais generosos.
Para eu contar isto
Um rapaz que era pintor
é que conheço todas as horas que fazem um dia de
não disse nada a ninguém
domingo!
e escolheu o domingo para se matar.
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo Mariazinha Santos foi para o cinema
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores! e outras menearam as ancas
— ao sol
Há mais amargura nisto como num ritual consagrado a um deus! —
que em toda a História das Guerras. até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...
Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer, Venha a miséria maior que todas
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo. secar o último restolho de moral que em mim resta;
E esta era uma das coisas mais belas e eu fique rude como o deserto
que um homem podia fazer na vida!
e agreste como o recorte das altas serras;
Então, venha a ânsia do peito para os braços!
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural E vou a grandes passadas
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores... como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
Penso isto, e vou a grandes passadas...
para que a morte o desfigurasse
E um domingo parei numa praça
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos de revolta contra o mundo.
e estranha a minha voz... Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio. quando chega domingo,
Uma vez que chovia até entrámos numa escada. não há nada melhor que ir para o futebol...
Somente sequer um beijo trocámos... E como os olhos se me enevoassem de água,
E isto porque no momento próprio continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
olhava para mim com um propósito tão sereno
— .... no entanto, conheço um homem
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito, que ia para a beira do rio
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto, e passava um dia inteirinho de domingo
que era aquela serenidade segurando uma cana donde caia um fio para a água...
de pessoa que tem a vida cheia e inteira. ... um dia pescou um peixe,
No entanto, ela nunca pôs obstáculo e nunca mais lá voltou...
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas. O pior é pensar:
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés... que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
(ela está sempre com sujeitos decentes) como se fosse uma festa?... —
e quando nos fitamos nos olhos, O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
bem lá no fundo dos olhos, tão rara e certa e maravilhosa
eu que sou homem nascido que deslumbrado se matou.
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo: Pago o café e saio a grandes passadas.
— rapaz, traz-me um café... Hoje e depois e todos os dias que vierem,
O meu amigo, que era pintor,
amo a vida mais e mais
contou-me numa noite de bebedeira:
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
— Olha,
Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe
bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim

resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,


eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca
PALMEIRA AGRESTE

Palmeira agreste, aveludado


perfume
de índias ocidentais. De que
falam as sombras
azuis, a lentidão
reconvertida, a súplice
inclinação das horas?

Albano Martins, Paralelo ao vento


OS BARCOS

Dormem na praia os barcos pescadores


Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico


Rói a solidão

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral


[...] puisque c'est elle que j'ai arrosée.

Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry


Quando falamos de amor
Agarrados ao fogo das palavras
afogamo-nos
supondo ter a margem
sob os dedos?

Quando falamos de amor


de que amor
falamos?
Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Quando esperamos realizar


a nossa
esperança
de que esperança nos cremos
portadores? A que verdade
supomos esperançar-nos?

Quando falamos da fonte


e a madrugada
sabemos se haverá água
nas manhãs?
Daqui a pouco acaba o dia

Daqui a pouco acaba o dia.


Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria?
Fosse o que fosse, estava errada.

Daqui a pouco a noite vem.


Chega em vão
Para quem como eu só tem
Para contar o coração.

E após a noite a irmos dormir


Torna o dia.
Nada farei senão sentir.
Também que coisa é que faria?

Fernando Pessoa, Poemas dispersos


MARESIA Fazendo, lentas, e desfazendo
A mesma curva humaníssima e sensível,
Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino
pequeno
Neste mar à minha frente
Sobre o chão acamado, esta palavra.
O sol repousa e os nossos olhos dormem…
AMOR.
- Caem saudades mortas como chuva miúda,
Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,
Ou ficam, extáticas, como um bafo da areia,
António Pedro
Calmas, sobre a paisagem,
In Rosa do Mundo
Como um véu de cambraia deixado…
2001 Poemas para o Futuro

Não sei se é o calor das algas,


Se é o bafo da areia que baila,
Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol
Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do Zodíaco


Em boa caligrafia,
Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!...

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,


Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior
Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia
Duma inconsciência que se não parece com nada,
Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante
CORAGEM

É preciso arranjar outros Pôr fim ao lamento deste vento

motivos tentar tirar ao anjo

outras flores e astros a túnica e o sabre

Outras abertas É preciso inventar outras paisagens


outros montes e águas

Entre a chuva cansada de um Outono outras margens

que não sabe já


qual é a terra certa Abrir e expor o coração
e finalmente deixar

É preciso pensar outras imagens correr as lágrimas

outras fissuras, sítios


e cidades
Maria Teresa Horta, Destino
Mina Anguelova
Amore, oggi il tuo nome Amor, hoje teu nome

Amor, hoje teu nome


Amore, oggi il tuo nome
a meus lábios escapou
al mio labbro è sfuggito
como ao pé o último degrau...
come al piede l'ultimo gradino...

Espalhou-se a água da vida


ora è sparsa l'acqua della vita
e toda a longa escada
e tutta la lunga scala
é para recomeçar.
è da ricominciare.

T'ho barattato, amore, con parole. Desbaratei-te, amor, com palavras.

Buio miele che odori Escuro mel que cheiras


dentro diafani vasi nos diáfanos vasos
sotto mille e seicento anni di lava - sob mil e seiscentos anos de lava -

ti riconoscerò dall'immortale Hei-de reconhecer-te pelo imortal


silenzio. silêncio.

Cristina Campo Cristina Campo. Trad.: José Tolentino Mendonça


A MÃO NO ARADO

e a pequenina vida que se concede às unhas

Feliz aquele que administra sabiamente Mais triste é termos de nascer e morrer

a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias e haver árvores ao fim da rua

Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela

Oh! como é triste envelhecer à porta morte dentro

entretecer nas mãos um coração tardio É triste no outono concluir

Oh! como é triste arriscar em humanos regressos que era o verão a única estação

o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão Passou o solidário vento e não o conhecemos

ao longo do mar transbordante de nós e não soubemos ir até ao fundo da verdura

no demorado adeus da nossa condição como rios que sabem onde encontrar o mar

É triste no jardim a solidão do sol e com que pontes com que ruas com que gentes

vê-lo desde o rumor e as casas da cidade com que montes conviver

até uma vaga promessa de rio através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

Ruy Belo,
in Poemas de Ruy Belo
ditos por Luís Miguel Cintra
com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso,
deixa o tempo fazer o resto deixa o tempo fazer o resto.

Ana Paula Inácio, Vago Pressentimento Azul Por Cima

deixa o tempo fazer o resto


fechar janelas
aplacar os barcos
recolher os víveres
semear a sorte
acender o fogo
esperar a ceia

abre as portas: lê a luz


a sombra, a arte do passarinheiro
Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.

René Char, A Religião do Girassol


Trad.: Jorge Sousa Braga
HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE NO CREPÚSCULO DA VIDA

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
pensava eu... como seriam felizes as mulheres se espantasse com a minha solidão
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar (anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
e a longitude do amor embarcado coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

por vezes um dia houve


uma gaivota pousava nas águas que nunca mais avistei cidades crepusculares
outras era o sol que cegava e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite inclino-me de novo para o pano deste século
os dias lentíssimos... sem ninguém recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
e nunca me disseram o nome daquele oceano sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua Al Berto, O Medo
Salta con la camisa en llamas

Salta con la camisa en llamas

de estrella a estrella,
de sombra en sombra.
Muere de muerte lejana

la que ama al viento.

Alejandra Pizarnik, Árbol de Diana


LE CANCRE
avec des craies de toutes les couleurs
sur le tableau noir du malheur
il dessine le visage du bonheur.

Il dit non avec la tête Jacques Prévert, Paroles

mais il dit oui avec le cœur


il dit oui à ce qu’il aime
il dit non au professeur
il est debout
on le questionne
et tous les problèmes sont posés
soudain le fou rire le prend
et il efface tout
les chiffres et les mots
les dates et les noms
les phrases et les pièges
et malgré les menaces du maître
sous les huées des enfants prodiges
CARTA DE OUTONO

Pensarás que não te escrevi antes porque o verão


consome a energia da alma com um apetite solar; e
porque as tempestades do crepúsculo incendiaram as
desafiava a sombra. Procuro uma entrada no átrio
palavras com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu
desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos
ouço aquelas aves que gastaram as asas na travessia
perdendo-me do silêncio na insistência dos passos.
do Espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso
O passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me
nas traseiras do invisível, onde um deus culpado
neste bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros;
se esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos
o teu amor gastou-se com um breve brilho de
anjos enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar;
isqueiro. Saio sem desejo dos desertos de outubro
agarram-se aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde,
e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies
gritam em direcção às nuvens com os olhos secos e
provisórias de um esquecimento de estações.
sem medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas
verdes como as folhas perenes do norte. Então,
Nuno Júdice, in Poemas em Voz Alta
ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto;
Poemas ditos por Natália Luiza
e os teus dedos tenham perdido a força antiga que
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.

Manoel de Barros
8 de Dezembro: Florbela Espanca~ Camille Claudel

AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente!


Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...


Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:


É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada


Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
MEU AMOR MEU AMOR

Meu amor meu amor


meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a crescer


nós parámos o tempo não sabemos morrer.
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor


meu pássaro cinzento,
a chorar a lonjura,
do nosso afastamento.

Meu amor meu amor


meu nó de sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento
este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar

José Carlos Ary dos Santos, Poesia Completa


Veio de longe, e mal chegou partiu para mais longe ainda

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede


E a vida... e o amor... Deixá-la ir, a vida!...

Antero de Quental, Sonetos


Uma onda
que penso.
Outra em que reparo.

A mesma em que pensei


e que retorna ao mar.

Manuel Rui, A Onda


Esplendor da tarde;
deve haver um amarelo
também a florir!

Yosa Buson
Como está sereno o Céu

Como está sereno o Céu,


como sobe mansamente

a Lua resplandecente,
e esclarece este jardim!

Marquesa de Alorna, Sonetos


De facto
não amamos como as flores
totalmente simples na sua entrega

Ana Hatherly
Eu pescador que tantas vezes faço
a mim mesmo a pergunta de Elsenor
e quais águas que passam sei que passo
sem saber a resposta. Eu pescador.

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades


Ladainha dos Póstumos Natais Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro


em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão Ferreira

Um Monumento de Palavras - CD
Jesus bleibet meine Freunde,
Meines Herzens Trost und Saft,
Jesus wehret allem Leide,
Er ist meines Lebens Kraft,
Meiner Augen Lust und Sonne,
Meiner Seele Schatz und Wonne,
Darum lass ich Jesum nicht
Aus dem Herzen und Gesicht.

- em fundo:

J.S. Bach, Cantata BWV 147


Jesus bleibet meine Freunde
The Choir of New College, Oxford
Edward Higginbottom-
solstício de inverno - uma meditação

Jules Massenet, Méditation from Thais


Anne-Sophie Mutter
Wiener Philarmoniker
James Levine-
Receita de Ano Novo

Para você ganhar um belíssimo Ano Novo


pelas besteiras consumadas
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
nem parvamente acreditar
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
que por decreto da esperança
(mal vivido ou talvez sem sentido)
a partir de janeiro as coisas mudem
para você ganhar um ano
e seja tudo claridade, recompensa,
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
justiça entre os homens e as nações,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
novo até no coração das coisas menos percebidas
direitos respeitados, começando
(a começar pelo seu interior)
pelo direito augusto de viver.
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
Para ganhar um ano-novo
se ama, se compreende, se trabalha,
que mereça este nome,
você não precisa beber champanha
você, meu caro, tem de merecê-lo,
ou qualquer outra birita,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
não precisa expedir nem receber mensagens
mas tente, experimente, consciente.
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
É dentro de você que o Ano Novo
Não precisa fazer lista de boas intenções
cochila e espera desde sempre.
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
Carlos Drummond de Andrade
III – 1 de Junho de 2005 – 31 de Dezembro de 2005

eli miguel

Você também pode gostar