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Paulo

JOSÉ Cunha
E se o Bonner fosse fanho? ta sem contestação e caninamente cumprida nas re-
dações, praticamente não freqüenta a televisão.
Nem lá dentro como repórter ou apresentador, nem

E se a Fátima fosse gaga? cá fora, como entrevistado. Não é de bom tom edi-
tar uma sonora de portador de deficiência, a menos
que a matéria se refira à deficiência em causa ou o
entrevistado seja pessoa famosa. Se possível, a edi-

A
lguma vez na vida você se lembra de ter visto ção procura disfarçar a deficiência, como se fez du-
um gago dando entrevista pra televisão? É... rante anos com as falas do deputado Inocêncio Oli-
um gago mesmo, legítimo, de nascença. Não veira, até que ele tivesse a gagueira amenizada. Os
vale gago de programa de humor nem de pegadinha. editores fogem soltando vade retros pra todo lado
Estou falando de entrevista no duro, pra valer, um quando algum repórter desavisado ousa trazer a en-
gago botando a cara em telejornal de rede. Lem- trevista de um portador de deficiência. Surdos, ain-
brou-se? Eu também não me lembrava. da vá lá, porque só precisa da voz, se ela for, diga-
mos, normal. E os mudos? Ah, de jeito nenhum,
Até a semana passada quando, no principal tele- mesmo que o entrevistado domine a linguagem dos
jornal da TV Cultura, assisti, entre curioso, divertido sinais. Não seria de bom tom. Até há bem pouco
e muito, mas muito contente, a fala de um gago no tempo o preconceito alcançava os homossexuais.
meio de uma matéria, misturada entre outras de Era raro ouvir algum deles sendo entrevistado. Pra-
não-gagos. A fala foi editada sem qualquer objetivo ticava-se (pratica-se ainda, mas em escala menor)
de brincadeira ou chacota, sem explicação ou des- uma censura disfarçada. Tal como se faz com negro
culpa, sem justificação pelo fato de estar-se ouvindo em novela, que na maioria das vezes só aparece en-
um gago e sem que o assunto da matéria tivesse coi- xugando pratos.
sa alguma a ver com gagueira ou outros problemas
de fala. Apenas mais uma "sonora" numa matéria Pouca gente percebeu, talvez tenha sido mesmo
qualquer. Sonora curta, boa, igual a dezenas que a um simples acaso, mas a falinha do gago na TV Cul-
gente vê e escuta todo dia nas várias emissoras de tura quebra um tabu de mais de 50 anos. Além de
tevê. Só que o cara era gago. Como podia ser negro. sinalizar uma possibilidade promissora: a de que es-
Ou japonês. Ou petista. sa fantástica massa de brasileiros possa exercer mais
esse direito, o de poder emitir opinião e ter presença
Onde é que nós estamos, gente? Pelo amor da assegurada no mais abrangente veículo de comuni-
santa, que vergonha! Um gago dando entrevista... cação da atualidade. Ao mesmo tempo, o gago da
Em que manual eles aprenderam que se podia fazer Cultura nos permite sonhar com uma sociedade do
isso? Onde é que nós vamos parar desse jeito? Nesse futuro, onde possamos assistir à participação mais
ritmo, a qualquer hora vamos terminar vendo um... do que justa de portadores de deficiência como a-
fanho no Jornal Nacional! presentadores e repórteres em número correspon-
dente ao percentual de sua incidência
na população.
O gago da TV Cultura nos permite sonhar com uma soci-
edade do futuro, onde possamos assistir à participação Parece sonho. E é. Portanto, o me-
mais do que justa de portadores de deficiência como lhor é esquecer o que acabou de ser es-
crito. Coisa mais boba, né? Imagina: ce-
apresentadores e repórteres em número corresponden- gos, surdos, mudos, fanhos e demais
te ao percentual de sua incidência na população. portadores de deficiência física ou men-
tal, todos na televisão, e o pior: dentro
das nossas casas! Não ia dar certo. Até
Agora falando sério: já não é sem tempo. A ver- porque, como se sabe, democracia é um troço rela-
dade é que, segundo as estatísticas, com base nos tivo. Quem disse que vale pra todo mundo? Essa
parâmetros nacionais para a caracterização deles, gentinha não conhece mesmo o seu lugar. E é pre-
pelo menos 10% de nossa população é formada pelos ciso tomar cuidado porque se der o pé vão logo que-
portadores de algum tipo de deficiência (física ou rer a mão.
mental). Isto corresponde a 16 milhões de cidadãos.
Gente a dar com pau.
Paulo José Cunha é jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo e
diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de
Pois toda essa formidável massa de brasileiros, Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Clo-
por imposição não fixada em regra escrita, mas acei- se", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail.

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