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O resgate da Tradição e a vigília do ser

A pResença de Heidegger no pensamento político de hannaH arendt

José Mendes de Oliveira (*)

introdução

A noção de tradição, no contexto do pensamento político ocidental, vincula-se ao


conjunto cronológico da teoria clássica iniciada com os filósofos gregos e interrompida
com as formulações de Karl Marx na segunda metade do Séc. XIX1. Esse corte é
estabelecido por diversos filósofos contemporâneos, que observam uma relação muito
próxima entre o declínio da tradição e a crise do mundo ocidental ou da modernidade.
Vista por esse ângulo, a história do pensamento político, antes percebida como um
processo de evolução, passa a ser entendida como uma involução. A morte ou declínio da
tradição é observado como um elemento de causalidade da crise que atinge o mundo
moderno, absorvido por crescente instrumentalização e coisificação da vida2. O mundo
“tecnificado” restringe as liberdades individuais e coletivas, e transporta para um ponto
mais distante o desejo da emancipação do homem, desejo que foi fortemente realçado no
racionalismo clássico. De acordo com John G. Gunnel, “the principal source of the modern
crisis is usually located in the past, contemporary political and social scientific inquiry is
viewed as both a symptom of a decadent tradition and a principal intellectual force that
must be confronted. Yet the problem is not considered to be merely intelectual in nature,
since it is assumed that decline of the tradition has been responsible, in some very
fundamental sense, for the debased condition of modern politics” (GUNNEL, 1979: p.34).

Em termos analíticos, a questão da modernidade tem sido objeto de estudos para


diferentes correntes interpretativas, as quais podem ser situadas dentro de um espaço
filosófico amplo ou em campos disciplinares específicos como a sociologia e a economia
política. O grupo de filósofos vinculados à Escola de Frankfurt, por exemplo, notabilizou-
se, desde a década de trinta do séc. XX, pelo desenvolvimento de ricas e expressivas
reflexões sobre o processo de racionalização da existência social e suas conseqüências
políticas (a perda da liberdade por exemplo), conduzidos sobretudo pela indignação
gerada com o fenômeno totalitário do nazismo e pelo interesse na análise da crescente
massificação nas sociedades capitalistas. Entretanto, a questão do retorno ao passado ou
de retomada da tradição filosófica não é ponto comum em todas as correntes de

(*)
Antropólogo e Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB.
1
Marcuse, a propósito, identifica a teoria marxista como negação da Filosofia. Em sua concepção a
"transição de Hegel a Marx é, sob todos os aspectos, uma transição a uma ordem de verdade
essencialmente diferente que não se presta a ser interpretada em termos filosóficos". (MARCUSE, 1978:
p.239)
2
Esses conceitos foram elaborados por Max Weber e Georg Lukács, respectivamente, para servirem à
compreensão das sociedades modernas (ou da modernidade). Um número significativo de filósofos e
cientistas sociais utilizam, quando não os conceitos, pelo menos as idéias sugeridas por eles em suas
próprias análises, de forma crítica ou não. Max Horkheimer, Theodor Adorno, Jurgen Habermas e Hannah
Arendt são alguns exemplos.

1
interpretação. Ela se apresenta com mais vigor nas elaborações de filósofos políticos
liberais como Eric Voegelin, Sheldon Wolin, Leo Strauss e Hannah Arendt3.

No caso específico de Arendt, é possível identificar não só a preocupação com a


tradição, mas alguns outros elementos que a particularizam dentro da corrente liberal.
Constata-se, em primeiro lugar, que seu pensamento político estabelece uma perspectiva
mais crítica do totalitarismo enquanto virtualidade permanente das sociedades modernas
e, em segundo lugar, verifica-se que a evolução do seu pensamento, desde a publicação
de As Origens do Totalitarismo (1951) até a publicação de A Condição Humana (1958),
seguiu uma trajetória em direção à formulação de uma teoria peculiar, não só pelo uso de
conceitos específicos (vida activa, labor, work, action etc), mas sobretudo por uma
fundamentação filosófica que visa basicamente compreender a condição humana como
princípio de explicação da existência política4.

A essencialidade dessa existência ancora-se na ação como única atividade que se


exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria
(ARENDT, 1981, p.15). A ação é capaz de revelar não só a pluralidade dos homens, mas
também a habilidade de conquistarem a imortalidade através de seus feitos e palavras.
Segundo Arendt, “a tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com sua
capacidade de produzir coisas - obras e feitos e palavras - que mereceriam pertencer e,
pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de sorte que, através delas, os
mortais possam encontrar seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles próprios.
Por sua capacidade de feitos imortais, por poderem deixar atrás de si vestígios
imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem o seu próprio
tipo de imortalidade e demonstram sua natureza divina" (ARENDT, 1981: p. 27).

O conceito de imortalidade pode ser entendido como uma trans-posição, que é,


por um lado, rompimento com os limites da natureza física e, por outro, um artifício que se
consubstancia em um espaço de interação, em uma esfera pública (public realm), onde o
exercício da linguagem ou do discurso constitui princípio de fundamentação da própria
política. Nesse caso, a política não constitui um meio segundo uma orientação teleológica,
mas parte essencial da condição humana, uma espécie de arte que dignifica os homens e
que pretende ensiná-los a compreender a própria existência.

A vinculação dessa orientação filosófica com a crítica à modernidade encontra-se,


precisamente, na eleição da filosofia clássica – portanto da tradição - como construção
contemplativa, que se preocupa com a essencialidade da existência dos homens no
mundo5, em contraposição ao pensamento moderno que se perdeu ao subjetivar
cartesianamente a razão e submeter a existência à dúvida. A consideração dessas linhas
gerais do pensamento arendtiano, especialmente como são apresentadas no Entre o
Passado e o Futuro (1954), e de forma mais elaborada em A Condição Humana (1958),
sugere interessante afinidade da construção teórica com a filosofia existencialista.
Curiosamente, em momento algum, Hannah Arendt anuncia-se como tal, embora se saiba
de sua formação acadêmica orientada por Husserl, Karl Jasper e, principalmente, Martin
Heidegger.

3
John G. Gunnel realiza um interessante estudo comparado desses autores no trabalho citado anteriormente.
4
A esse propósito, sugiro conferir as observações de François Châtelet (CHÂTELET, 1990: p.358)
5
O conceito de mundo, neste caso, aproxima-se da noção heideggeriana, ou seja, "mundo não significa o
universo físico dos astrônomos, mas o conjunto das condições geográficas, históricas, sociais e
econômicas, em que cada pessoa está imersa". (Considerações de Ernildo Stein in HEIDEGGER, 1991:
p.IX).

2
Dentre os comentaristas dos trabalhos de Hannah Arendt, apenas Noel O'Sullivan
e John G. Gunnel perceberam e fizeram alusão à influência existencialista no pensamento
arendtiano. Sullivan não indica com precisão uma corrente existencialista predominante,
mas observa que, à semelhança dos existencialistas, Arendt “acredita que as fontes do
valor e do sentido da existência só podem ser encontrados na própria ação, e que o
homem só se define agindo, ao transformar sua essência numa realidade tangível, sob a
forma de feitos” (O’ SULLIVAN, 1982: p.227). Gunnel, por sua vez, insiste um pouco mais
nessa questão, e embora não realize uma análise comparativa de Heidegger e Arendt,
identifica a correspondência entre os dois pensadores, de tal forma que bastaria substituir
os conceitos arendtianos de política e teoria política pelos conceitos heideggerianos de
Ser e metafísica para evidenciar a relação entre os dois filósofos6.

A sugestão de Gunnel parece-me apropriada se considerarmos a relação dos dois


pensadores não em termos exclusivos de uma filosofia política, mas em relação às idéias
que embasam os argumentos de ambos, destacando-se primeiramente a aceitação
comum da metafísica tradicional como filosofia autêntica, que foi interrompida pelo próprio
processo que conduziu à modernidade. Heidegger, por exemplo, admite que a metafísica
grega "colocou corretamente a temática do ser e ensaiou respostas, lançando as
sementes para a solução do problema. No entanto, o significado autêntico e as conquistas
profundas dessas primeiras especulações teriam sido alterados, posteriormente, por
razões diversas". Dentre estas razões destaca-se, principalmente, o processo de
"degeneração da problemática essencial da filosofia" (a questão do Ser) que se inicia com
os teólogos escolásticos, os quais "teriam trivializado a ontologia, passando a trabalhar
com um conceito de ser vazio e abstrato, dentro dos quadros de abordagem sobre a
lógica formal", e deságua na dissolução da Filosofia nos vários campos da ciência
moderna7. A crítica de Heidegger à degeneração da ontologia explicita a sua dificuldade
em aceitar os padrões da cientificidade que irão imperar no mundo moderno. Entendo que
essa mesma dificuldade, traduzida em termos da aversão a uma compreensão teleológica
da política, pode ser encontrada em Hannah Arendt. A esse aspecto soma-se o temor de
ambos os pensadores diante o fenômeno das sociedades massificadas, a ponto de
Heidegger sugerir ao povo alemão a recriação do grande começo do pensamento
ocidental, como forma de fugir a ameaça de duas gigantescas sociedades de massa: a
União Soviética e os Estados Unidos8.

Um outro aspecto importante da filosofia heideggeriana, que não é citado ipsis


litteris, mas ecoa nos escritos de Hannah Arendt, refere-se à noção de existencialidade ou
transcendência. O conceito faz referência à habilidade do homem, em sua singularidade
(como indivíduo), de apropriar-se por intermédio de seus atos (obras e feitos como diz
Hannah Arendt) das coisas do mundo. É a tradução de um processo em que o Ser
mostra-se capaz de objetivar-se como aquilo que ele ainda não é. Poder-se-ia de uma
outra forma interpretar o conceito como a referência à capacidade humana de criar, de
imortalizar-se em seus atos, de estar no mundo. “O homem seria, assim, um ser que se
projeta para fora de si mesmo, mas jamais pode sair das fronteiras do mundo em que se

6
Segundo Gunnel "one need only substitute politics for Being and Political Theory for metaphysics to see the
parallels" (GUNNEL, 1979: p.82).
7
Para os trechos em destaque, conferir comentários de Ernildo Stein in HEIDDEGER, 1991: p.VIII.
8
A sugestão foi feita por Heidegger em sua obra Introdução à Metafísica, publicada em 1953, e reforça a
postura do pensador em relação à filosofia clássica.

3
encontra submerso9. Trata-se de uma projeção no mundo, do mundo e com o mundo, de
tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis"10.

É relevante indicar que as reflexões heideggerianas são encaminhadas no sentido


de localizar o Ser na dependência da linguagem enquanto forma criadora e poética.
Nesse caso, o universo da linguagem através do qual o Ser se revela não se confunde
com a linguagem científica (que visa objetivar a realidade), nem com a linguagem técnica
(que pretende instrumentalizar o mundo), mas com a linguagem criativa (a linguagem da
filosofia e da poesia) que permite ao Ser habitá-la, perpetuar-se, ser comemorado e
lembrado. Não é difícil perceber as sutis afinidades dessa orientação filosófica com o
conceito de política em Hannah Arendt. De forma similar, a política é encaminhada para
se definir no universo da linguagem. A linguagem é elemento essencial não só para a
fundamentação do espaço público (public realm), mas também para a formulação da
História. É através dela que os homens estabelecem a política como o fenômeno da
pluralidade que se condensa na prática do discurso, e é através dela que os atos
históricos ou heróicos se constituem e são recordados, e tais feitos permitem a
imortalidade de seres fisicamente mortais.

Verifica-se, portanto, que a relação sugerida por Gunnel tem algum fundamento e
merece nossa atenção. Nesse sentido, meu intento, nas seções que constituem este
ensaio, é aprofundar um pouco mais o entendimento do conceito heideggeriano do Ser e
o conceito arendtiano de Política, objetivando identificar de forma mais analítica as
possíveis correlações.

Heidegger e a vigília do ser

A filosofia existencialista de Martin Heidegger pode ser entendida inicialmente


como sendo uma hermenêutica do existo, que se volta de maneira enfática para a crítica
da ontologia cartesiana fundada no Cogito. É notável na construção heideggeriana o
esforço em objetar o Cogito como primeira verdade e resgatar, a partir dessa objeção, o
Ser como questão (a questão do Ser), superando-se, assim, a pretensão cartesiana de
certeza a priori. De acordo com Paul Ricoeur, a "questão como tal, implica a negativa da
prioridade da posição de si ou da asserção de si, enquanto Cogito. Não se deve entender,
aqui, que a questão, enquanto questão, envolveria um grau de incerteza e de dúvida que
não se encontraria mais no Cogito. Essa opinião é ainda de tipo epistemológico. A
objeção contra o Cogito cartesiano consiste muito precisamente no fato de ele se apoiar
num modelo prévio de certeza pelo que se mede e satisfaz” (RICOEUR, 1978: p.189-
190). Em outras palavras, a reação vai de encontro à metafísica ou ontologia de
Descartes, por ter definido o ente em termos da objetividade das representações e ter
limitado a verdade, como certeza, às próprias representações.

Na perspectiva heideggeriana, a existência humana pode ser traduzida em termos


de um ente (tudo o que é objetivamente) capaz de se questionar, de se indagar pelo Ser,
e ao fazê-lo constituir-se em Dasein (Ser-aí). Essa condição é estritamente humana, pois
só o homem, dentre todos os entes (todas as coisas que são), seria capaz de
compreender o que o ente é, motivado por uma angústia essencial (e existencial) que

9
Em Hannah Arendt este é um aspecto da condição humana. Fugir a este mundo seria fugir à própria
condição de ser humano (ARENDT, 1981: p.9-14).
10
Considerações de Ernildo Stein in HEIDDEGER, 1991: p.IX.

4
sugere a busca do Ser11. Temos aqui a proposta de uma nova filosofia do ego na qual o
Ser não é produto do pensamento, mas ao contrário provoca o pensamento (não no
sentido da criação mas da provocação). O Ser, portanto, não se reduz a uma questão
entitativa ou a uma qualidade ôntica do ente. o Ser heideggeriano não se deixa
representar ou produzir objetivamente à semelhança do ente, pois ele constitui um
substratum anterior ao Cogito12. A questão que se formula pode ser traduzida como sendo
uma indagação a propósito do sentido de ser do sum, esquecido na interpretação
cartesiana quando o existo foi submetido ao Cogito (cogito ergo sum)13.

Essa busca do sentido do Ser (ou da verdade do Ser) associa-se, filosoficamente,


ao conceito heideggeriano de pensamento fundamental (também chamado pensamento
do Ser, originário ou essencial). Ao contrário do pensamento calculador (poder-se-ia dizer
pensamento técnico-científico), que "submete a si mesmo à ordem de tudo dominar a
partir da lógica de seu procedimento", o pensamento fundamental é concebido por
Heidegger como sendo aquele "cujos pensamentos (ou elaborações) não apenas
calculam, mas são determinados pelo outro do ente (ou seja, o Ser). Em vez de calcular
com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela vontade do ser"
(HEIDEGGER, 1991: p.50). O pensamento originário é o responsável pelo próprio
desvelamento do Ser, por sua presença em vigília, e por sua revelação nas palavras
mediante o uso da linguagem. A irrupção da linguagem é a própria irrupção do ser-aí.

O pensamento fundamental procura encontrar a palavra para revelar a verdade do


Ser na linguagem. A intenção implica o que Heidegger denomina como sacrifício, que é o
agir não teleológico (sem fins utilitários) em defesa da dignidade do Ser (da
autenticidade). Em sua concepção, a realização do sacrifício "emana da in-sistência a
partir da qual o homem historial age - também o pensamento essencial é um agir -
protegendo o ser-aí instaurado para a defesa da dignidade do ser" (HEIDEGGER, 1991:
p.50-51). Tal concepção constitui elemento de uma orientação existencialista mais geral,
para a qual a revelação do Ser encontra-se na dependência da ação e da palavra.
Preservada da influência de interesses técnicos ou calculistas, a autenticidade do agir e
falar encontra justificação no pensar (reflexivo) comprometido com o desvelamento do Ser
(Alétheia), que implica transcendência, entendendo-se como tal a capacidade do ente,
enquanto ser-aí, estabelecer projeto de mundo ou possibilidades de existência

A capacidade de estabelecer possibilidades de existência constitui uma espécie de


fundamento que envolve três modos de fundar: o primeiro enquanto erigir corresponde à
própria condição de fundar projeto de mundo. O segundo refere-se à inserção do ser-aí
no mundo enquanto ente, o que implica existir situado em meio ao ente, comportar-se em
face dele - do ente que não possui o caráter do ser-aí (que não é humano), de si mesmo e
de seu semelhante - de tal maneira que neste comportamento situado sempre esteja em
mira o poder-ser do ser-aí. Ou seja, o segundo modo faz referência aos limites das
possibilidades do Ser (ou de sua intencionalidade). Aos dois modos agrega-se um terceiro
- o fundar como fundamentar -, ou o ato de legitimação da escolha do ente. Segundo
Heidegger, "no projeto de mundo é dado um excesso de possível, em vista do qual, e do
ser perpassado pelo imperar do ente (real) que de todos os lados nos cerca no

11
Segundo Heidegger o homem é o ente que é ao modo da existência, pois somente ele existe, ou seja,
existe enquanto ser que reflete sobre a sua existência. Por exemplo, um rochedo é, mas não existe. De
acordo com esta perspectiva o homem é assinalado pela "in-sistência ex-sistente" no desvelamento do ser
a partir do ser e no ser. (HEIDDEGER, 1991: p. 45 e 59).
12
Conferir argumentação em HEIDEGGER, 1991: p.48.
13
Conferir RICOEUR, 1978: p. 192.

5
sentimento de situação, brota o porquê" (Por que assim e não assado? Por que isto e não
aquilo? Por que afinal algo e não nada?). A indagação sobre as razões do ente (ou de sua
escolha) envolve um elemento primário de revelação do Ser ou de sua verdade
ontológica. "Neste porquê, seja de que modo for expresso, já reside (...) uma pré-
compreensão, ainda que pré-conceitual, do que-ser, como-ser e ser em geral. Isto. porém,
quer dizer: já contém a resposta primordial, primeira e última para todo o questionar. A
compreensão do Ser dá, como resposta que a tudo precede simplesmente, a primeira e
última fundamentação. Nela a transcendência é fundamental enquanto tal. Porque nisso
ser e constituição de ser são desvelados, chama-se o fundamentar transcendental
verdade ontológica" (HEIDEGGER, 1991: p. 112).

Nota-se, portanto, que o fundamentar não se reduz a uma justificação sem outras
consequências. Ele é o princípio de definição do ente em termos do que o ente é e como
é no mundo, e isto implica um modo de desvelamento ou verdade. Heidegger, a esse
respeito, nos diz que "na adução do ente exigida respectivamente pelo que-ser e como-
ser do referido ente e do modo de desvelamento (verdade) que lhe é próprio"
(HEIDEGGER, 1991: p. 114-115), ele (o ente) se manifesta como causa e motivo para
uma já revelada conexão de entes. Este indagar por um fundamento compreende, assim,
a tarefa de clarificação da essência do Ser e da verdade.

O fundamento, por outro lado, pressupõe a liberdade que se antepõe à escolha


feita pelo ente. A liberdade é entendida aqui como o abismo (sem fundamento) do ser-aí.
É ela que, na transcendência, situa o ser-aí como poder-ser diante de possibilidades as
quais se escancaram diante de sua escolha finita, isto é, que se abrem em seu destino.
Esta não-essência estabelecida com a abissalidade do ser-aí é superada no existir fático,
na ação, na propriedade originária do Ser projetar mundo ou destinar-se. Em termos
heideggerianos, o ser-aí está jogado como livre poder-ser entre os entes, mas sua finitude
é determinada de acordo com as possibilidades de fundamentação (ontológica) ou
legitimação de suas ações. "A essência da finitude do ser-aí se desvela, porém, na
transcendência como liberdade para o fundamento" (HEIDEGGER, 1991: p. 114-115).

A referida liberdade não deve ser confundida com o livre arbítrio, nem entendida
em termos da substancialidade ou subjetividade do ente. A liberdade, por um lado, se liga
à capacidade de transcendência do ser-humano (de construir mundo, de destinar-se), e
assim se situa como lugar de encontro do Ser, um espaço de possibilidades do ser-aí, do
projetar-se do ente. Por outro lado, ela é passagem para o mundo através do agir. O
mundo é um acontecimento possibilitado pela própria liberdade, ou seja, ele jamais é mas
acontece como mundo. Ele é um ato criativo que implica a responsabilidade do ser-aí no
homem com o si-mesmo (como ser livre) e para com o próprio mundo que é originalmente
um espaço do ser-com ou do ser-junto. Isso faz com que a liberdade seja desvelada, ao
mesmo tempo, como a "possibilitação de compromisso e obrigação geral" (com outros
entes, incluindo o próprio homem) (HEIDEGGER, 1991: p.109).

A construção filosófica de Heidegger não se submete a fácil interpretação e gera


muitas dúvidas devido à complexidade de sua argumentação. No entanto, pode-se
afirmar, sem incorrer em erro, que a noção de transcendência envolve um aspecto da
existência que não pode ser revelada nem compreendida através de uma fuga para o
objetivo, mas unicamente por uma interpretação ontológica, constantemente renovada, da
subjetividade do sujeito que tanto procede contra o subjetivismo como recusa atrelar-se
ao objetivismo. Aquele pensar fundamental ou originário, sobre o qual falávamos
anteriormente, constitui a base dessa interpretação ontológica como indagação ou

6
reflexão permanente que perpassa toda existência. Esse pensar age de forma similar à
noção platônica das idéias, ou seja, em sua validade ele é mais objetivo que os objetos e
mais subjetivo que os sujeitos, o que em termos platônicos seria o intuitus originaris ou a
própria razão.

Todavia, a forma heideggeriana de consideração do pensar não deve ser


confundida com a concepção platônica, com qualquer concepção espiritualista, ou ainda
com a perspectiva de um racionalismo em estilo moderno. O pensar é, em verdade, o
fundamento do Ser que não constitui entidade e, portanto, não se submete ao tempo.
Enquanto o ente está sujeito às determinações do tempo, o Ser é atemporal e apenas se
deixa determinar pelo tempo quando se-dá, se projeta ou se faz presente. Cada ente,
cada coisa, tem o seu próprio tempo, mas o Ser não é considerado coisa e, portanto, só
se deixa determinar como presença através do tempo. A presença pode ser entendida
como permanente reflexão que viabiliza o desvelamento. A caracterização do Ser como
presença sustenta-se no próprio desvelamento do Ser como algo dizível ou pensável.
Segundo Heidegger, "desde o começo do pensamento ocidental junto aos gregos, toda a
dicção de ser e é se mantém na lembrança da determinação do ser como pre-s-entar que
compromete o pensamento", e o pre-s-entar pode ser percebido "em cada simples
reflexão suficientemente livre de preconceitos, sobre a pura subsistência e disponibilidade
do ser ente. Disponibilidade, assim como pura subsistência, são modos de pre-s-entar"
(HEIDEGGER, 1991: p.73).

Em sua Introdução à Metafísica (1953), Heidegger alerta-nos para o fato de que o


ente também se apresenta, mas em um sentido diferente do que ocorre com o Ser. O
ente apresenta-se em termos de um aspecto ou Aparência (no sentido de aparentar),
enquanto o Ser é fundamentalmente re-velação ou des-cobrimento. A questão
corresponde filosoficamente à unidade e ao conflito entre o Ser e a Aparência
(consideração dialética). Pode-se dizer que o Ser é o oculto que se desvela como verdade
existencial ou elucidação do ente. Para elucidar a questão, Heidegger introduz os
conceitos gregos dokei (consideração) e doxa (opinião). Eles designam, no sentido mais
amplo, a consideração em que alguém se encontra. Em outras palavras, o ente quando
aparece se dá, e assim adquire um aspecto de consideração. Esta consideração pode ser
estabelecida de diferentes pontos de vista. Nós podemos ter visões diferentes sobre o
aspecto do ente, e formularmos suposições ou opiniões a seu respeito (doxa). Como
afirma Heidegger, nem sempre os nossos pareceres encontram base na própria coisa
(ente). Doxa, por outro lado, pode significar também fama e glória, quando faz referência
a um aspecto extraordinário. Em sentido grego a fama ou a glória é o supremo ser, é o
aspecto de consideração em que alguém se mostra (à luz), se evidencia. Assim, a fama é
o "renome em que alguém se acha", que "permanece constante frente ao que morre"
(HEIDEGGER, 1987: p.130).

Entretanto, considerando-se que o Ser também é presença, estabelece-se então


um estado de tensão entre o Ser e a Aparência, porque há a possibilidade de um aspecto
apresentado encobrir ou ocultar o que o ente é na verdade. Desta forma, é fundamental
estabelecer o desvelamento do Ser. O Ser desvelado é a verdade no sentido da re-
velação. Segundo Heidegger, "para assumir a sua existência na claridade do Ser, o
homem deve primeiro dar consistência ao Ser; segundo, mantê-lo na e contra a Aparência
e terceiro, arrancar, ao mesmo tempo, o Ser e a Aparência do abismo do Não-ser"
(HEIDEGGER, 1987: p.136). Para viabilizar estes feitos o homem necessita sobretudo de
re-solução (entende-se como percepção) e pensar para abrir e desvendar esses três
caminhos.

7
A noção do pensar em Heidegger pode ser, a princípio, compreendida com
referência a uma faculdade humana que envolve a nossa capacidade de apresentar (de
fazer presente) alguma coisa diante de nós. "Tal a-presentar parte sempre de nós. Trata-
se de um livre pôr e dispor de nossa parte, mas não arbitrário e sim dependente.
Dependente do fato de, pela a-presentação considerarmos e examinarmos o
apresentado, analisando-o, decompondo-o e recompondo-o de novo" (HEIDEGGER,
1987: p.144). Há aí uma ação reflexiva através da qual se persegue alguma coisa até
fazermos dela um conceito passível de universalização. Dependendo da precisão e
segurança da análise, bem como do alcance da apreensão, o pensar pode ser superficial
ou profundo, vazio ou rico de conteúdo, facultativo ou constringente, jocoso ou sério.

Heidegger estabelece, recorrendo à filosofia pré-socrática, a relação do pensar e o


logos, entendendo-o como um conceito de duplo sentido. Por um lado logos significa
enunciado ou proposição e, por outro, com um sentido originariamente grego, significa
reunião, síntese ou coligação (conjunto, unidade). O sentido de logos não se confunde,
portanto, com a concepção intelectualista herdada de Platão e Aristóteles. O logos não
deve ser entendido apenas em termos da estrutura formal do pensar e do
estabelecimento de suas regras (a Lógica). Segundo o pensamento heideggeriano,
devemos abandonar a tendência em ver logos e leigen (coligir) estritamente vinculados à
significação formal do pensar, do intelecto ou da razão. O filósofo deseja resgatar um
pensar mais originário, mais rigoroso e pertinente ao Ser14.

Heidegger busca este pensar originário recorrendo à filosofia de Heráclito. De


acordo com este filósofo grego, os homens têm dificuldade para atingir o logos por
prenderem-se ao que ouvem sem no entanto auscultar aquilo que ouvem. Pensa-se aqui
em uma forma diferente de audição: ouvir em profundidade, desocultando. O ouvir
auscultando pretende a reunião entre o ente e o Ser, bem como a unidade dos entes na
Polis. Segundo a interpretação de Heidegger, para Heráclito "o simples ouvir se dispersa
e destrói no que se pensa e se diz, no ouvir dizer, na doxa, na aparência. O auscultar
autêntico, porém, não tem nada a ver com orelhas e palavreados mas segue aquilo que o
logos é: a unidade de reunião do ente em si mesmo". O logos, portanto, é discurso mas
discurso que fala e ouve auscultando. Assim, os homens que se atêm apenas às
aparências não são verdadeiros sábios, mas agem com e como as multidões que se
prendem aos entes como verdades e não conseguem divisar o Ser. Dirigir-se ao logos é,
portanto, ir de encontro ao Ser. Para os homens que vivem apenas a realidade do ente, é-
lhes estranho o Ser, pois dele "se apartam, por não o apreenderem e sim pensarem, que
o ente é simplesmente ente apenas e nada mais. De certo, estão acordados (com relação
ao ente) e, no entanto, o Ser lhes permanece oculto". Os verdadeiros sábios não seriam
aqueles que "perseguem cegamente uma verdade", mas tão somente aqueles que
ultrapassam a aparência do ente, buscando conhecer constantemente e de forma
exaustiva os caminhos do Ser, do não-ser e da aparência. Esta busca constitui um saber
superior, e é superior aquele que experimenta o "ímpeto alado do caminho para o Ser".
Conforme Heidegger - ainda apoiado no pensamento de Heráclito -, somente onde o Ser
se manifesta a "voz chega a ser palavra", e neste caso os poetas e os pensadores (ou
filósofos) seriam os exemplos mais adequados de sábios, pois dominam a palavra.15

14
Verificar HEIDEGGER, 1987: p.148-149.
15
Com relação aos trechos em destaque, conferir HEIDEGGER, 1987: p.139-157.

8
Heidegger assinala com veemência que o Ser, entendido como logos e enquanto
reunião originária, não se confunde com "amontoamento e entulho, em que tudo valeria
igualmente e tão pouco", mas ao contrário caberia a ele (ao Ser) "eminência e
predomínio". O Ser para poder se re-velar, tem que possuir e conservar em si mesmo
uma posição preeminente. Isto significa basicamente a negação da multidão (da
massificação) em defesa da singularidade (ou individualidade). Para Heidegger, a
eminência do Ser faz parte da existência grega e se vincula intimamente ao conceito de
Polis, o qual não deve ser tomado de forma "inocente e sentimental", pois aí o "eminente
é o mais forte". Por esta razão, "o Ser, o Logos, entendido, como a harmonia reunida, não
é facilmente e de modo igual acessível a todo mundo mas oculto, em contra-posição
àquele acordo, que significa nivelamento, aniquilamento de tensões, igualdade"
(HEIDEGGER, 1987: p.139-157). Com isto Heidegger quer reforçar a idéia de que a
reunião (na Polis e na unidade ente / Ser) não é uma simples agregação, mas reunião de
pluralidades em tensão e oscilação constante.

O entendimento da Polis como um espaço de reunião e revelação da


essencialidade humana vincula-se à própria concepção existencialista do Ser que se faz
presente em obras (ações) e palavras. Poder-se-ia dizer que é a Polis o espaço da
existência coletiva, porém erigida na preservação da individualidade, onde o Ser é (re)
conhecido por seus feitos ou, em outros termos, onde adquire fama, onde se apresenta.
Em interessante passagem de sua Introdução à Metafísica, quando realiza a análise da
Antígona de Sófocles, Heidegger posiciona-se em relação à compreensão da Polis da
seguinte forma: "Polis quer dizer a localidade, a dimensão, em que, como tal a existência
(Dasein) expande seu acontecer histórico. A polis é o lugar histórico, o espaço no qual, a
partir do qual e para o qual acontece a história. A essa dimensão histórica pertencem os
deuses, os templos, os sacerdotes, as festas, os jogos, os poetas, os pensadores, os
governantes, o conselho dos anciãos, a assembléia do povo, o exército dos guerreiros, os
navios. Tudo isso não pertence à polis, não é político por assumir uma relação com um
homem de Estado, com um general, ou com os negócios do governo. Ao contrário tudo
aquilo é político, isto é, está na dimensão do acontecer histórico enquanto por exemplo os
poetas são somente mas então realmente poetas. Quando os pensadores são somente
mas então realmente pensadores. Quando os sacerdotes são somente mas então
realmente sacerdotes, sendo os governantes somente, mas então realmente governantes.
São, porém, significa aqui: como os que instauram vigor e se tornam, assim, eminentes
no ser Histórico como criadores e instauradores. Eminentes na dimensão da História são,
ao mesmo tempo, apolis, sem cidade e lugar, solitários, estranhos, aporéticos (sem saída)
no meio do ente em sua totalidade, sem constituição e limites, sem estrutura e
dispositivos, de vez que, como criadores, são eles que devem então fundar e instaurar
tudo isso “(HEIDEGGER, 1987: p.175).

A diferença que se estabelece entre os conceitos de história com "H" e "h" é


significativa e destaca uma forma não convencional de concepção da historicidade
humana. Concebe-se uma história para designar todas as realizações humanas em
termos do ente, e outra História particular do Ser. Heidegger em sua conferência Tempo e
Ser, realizada em 1962 (em discussão às questões colocadas em Ser e Tempo de 1927),
apontou a esse respeito que o "Ser não possui história como uma cidade ou um povo",
mas seu caráter historial determina-se a partir de "como o ser acontece", de que maneira
o "ser se dá" (HEIDEGGER, 1991: p.209). Funda-se, portanto, a história do Ser com a
letra "h" maiúscula. Este caráter historial do Ser diz respeito basicamente à sua
propriedade de destinar-se ou acontecer. E este acontecer Histórico firma-se pela obra (e
também pela linguagem) onde predomina o vigor ou a insistência e incidência do Ser.

9
Este fato vincula, de certa forma, a conquista do desvelamento do Ser àqueles que teriam
o dom de divisar o Ser em obras e palavras.

Creio que esse aspecto sugere em Heidegger um certo elitismo ao valorizar a


sabedoria dos poetas e pensadores (filósofos). Em verdade, os instauradores ou
criadores da Polis, como a concebe Heidegger, são aqueles sábios capazes de efetuar
um pensar originário revelador e criador ao mesmo tempo. Opõe-se a eles a multidão
presa às aparências e impressões superficiais como já indicamos anteriormente. É
interessante observar, por exemplo, que em sua conferência Tempo e Ser, Heidegger se
refere às formulações de Platão (ser como idéa), Aristóteles (ser como enérgeia), Kant
(ser como posição), Hegel (ser como conceito absoluto) e Nietzsche (ser como Vontade
de Poder), como sendo mais que "doutrinas produzidas ao acaso", mas as próprias
palavras do Ser, que em sua concepção "respondem a um apelo" do "Se dá ser" ou
"destinar-se". Ou seja, são todas elas formulações que constituem, em parte, a História do
Ser.

O trecho da conferência de Heidegger não só ilustra o que percebo como um certo


elitismo, mas marca também outra significativa orientação do pensador: o
estabelecimento de uma relação sinonímica entre Metafísica e História do Ser, e a
consideração da Filosofia como tradução desta última. Heidegger concebe a Metafísica
como sendo a ultrapassagem do ente pelo ser-aí, ou em outros termos, "o perguntar além
do ente para recuperá-lo, enquanto tal em sua totalidade, para a compreensão"
(HEIDEGGER, 1991: p.43-44), e nesse sentido ela se situa como a própria História do
Ser. A Filosofia adquire, por sua vez, consciência de si e conquista seus temas quando
põe em marcha a metafísica. Compreendida dessa forma, a Filosofia é apresentada como
o exercício da interrogação e da compreensão. Como tal, ela deve encontrar no logos a
base de irrupção do Ser. O logos é linguagem na qual o Ser se apresenta convertido em
palavras. Segundo Heidegger, a linguagem é a poesia originária, em que um povo poetiza
o Ser, e a "grande poesia”, pela qual um povo entra na História, inicia a configuração de
sua linguagem. Em seu entendimento os gregos experimentaram tal poesia com Homero
e, certamente, tiveram outra significativa expressão na Filosofia. Diz-nos o filósofo que "a
linguagem se manifestou à existência grega, como irrupção no Ser, como configuração re-
veladora do ente" (HEIDEGGER, 1987: p.193).

O logos traduz, como acontecimento de reunião (de unidade de sentido), o


fundamento que funda o ser do homem, e viabiliza a abertura para a manifestação do
ente. "Por isso o logos se torna a determinação normativa da essencialização do discurso.
A linguagem guarda e conserva, no que se pronuncia, se diz e se pode sempre de novo
dizer, o ente respectivamente aberto e manifesto" (HEIDEGGER, 1987: p.205). Porém,
assim como o logos é o espaço de manifestação do Ser, ele também é, ao mesmo tempo,
o seu encobrimento e ocultação. Isso ocorre porque o logos é também doxa e, como tal,
envolve o pseudos, as distorções e perversões. Consequentemente, o logos só é
revelador quando sua referência é a unidade de reunião dentro do sentido do Ser, ou
seja, quando a percepção é reunitiva afastando-se do mero palavreado, do falatório e da
facilidade verbal (afastando-se das representações correntes) (HEIDEGGER, 1987:
p.194-195).

Verifica-se, assim, que o trabalho interpretativo da Filosofia implica a luta contínua


contra o pseudos, a perversão ou a aparência enganadora, buscando-se por fim a
verdade como revelação. Heidegger reitera, ainda sob a influência de Heráclito e
Parmênides, que "a revelação só se processa, operada pela obras: pela obra da palavra

10
na poesia, pela obra da pedra no templo e na estátua, pela obra da palavra no
pensamento, pela obra da polis, como o lugar da História, que tudo isso funda e protege.
(...). O de-bate da re-velação do ente e, com isso, do próprio Ser na obra, que, já em si
mesmo, se processa e ocorre, como um constante combate, é sempre um embate contra
a velação, o encobrimento, contra a aparência" (HEIDEGGER, 1987: p.210).

O conceito de existência é fundamental para se compreender melhor as


formulações da filosofia heideggeriana. O existir em obras e palavras é a forma peculiar
de ser do homem. Todas as outras coisas do mundo são, mas não existem em um
sentido humano, ou seja, não são entes capazes de ações e palavras. A metafísica
quando situa o Ser como questão está, em verdade, questionando-se sobre quem é o
homem, e a pergunta realizada gera a expectativa de uma resposta mais complexa que
as explicações antropológicas ou zoológicas. Busca-se saber sobre o sentido da
existência, ou como nos diz Heidegger, sobre o que há com o Ser. Essa curiosidade
filosófica tem, de acordo com minha compreensão, um forte apelo moral que atinge
diretamente o fundamento da existência humana (em termos da legitimação ou validade).
Isto é, em nossas obras e palavras, o que estamos priorizando? Qual é a nossa verdade?

Segundo Heidegger, quando indagamos sobre o que há com o Ser estamos


questionando sobre o que passa com a nossa existência na História, se estamos
firmemente implantados ou se cambaleamos, e na opinião do filósofo nós estamos
cambaleando. Estamos encaminhados no meio do ente (entre todas as coisas do mundo,
incluindo os homens e suas ações), mas não sabemos o que há com o Ser, e nem
mesmo sabemos que já não o sabemos. A indagação ontológica, portanto, na opinião de
Heidegger, não é mero niilismo ou infundada discussão acadêmica, ela é uma
investigação crucial para sabermos sobre o nosso destino, para sabermos do fundamento
do ente.

A crítica heideggeriana à modernidade firma-se justamente na acusação do


esquecimento do Ser no pensamento moderno. Um esquecimento viabilizado pelo apego
à razão interessada, utilitarista, teleológica e voltada exclusivamente para o domínio do
mundo. A sua filosofia existencialista é, de certa forma, proposta de resgate da tradição,
das indagações ontológicas que o período clássico da filosofia (principalmente pré-
socrática) teria privilegiado com sabedoria. Para Heidegger, a filosofia é a guardiã da ratio
desde que haja preocupação ontológica em seu interior: o homem é animal metaphysicum
enquanto permanecer animal rationale e vice-versa. O resgate da tradição é
sumariamente o apelo à guarda deste animal metaphysicum.

Heidegger e o resgate da tradição

No intróito da seção anterior, referi-me à filosofia existencialista de Martin


Heidegger como crítica à ontologia cartesiana ou do fundamentum absolutum em que o
sujeito é transferido para o Cogito. Creio que seja apropriada, neste momento, uma outra
afirmação: em verdade, sua crítica é especialmente dirigida à modernidade, a qual é
identificada pelo filósofo como sendo a época do fim da Filosofia ou do esquecimento do
Ser. De acordo com Heidegger, o fim da Filosofia revela-se como o triunfo do
equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe
corresponde. Pode-se dizer que este momento confunde-se, historicamente, com o
começo da civilização fundada no pensamento ocidental-europeu (técnico-científico-
industrial). A evolução deste pensamento técnico-científico teve lugar dentro da própria
história do pensamento filosófico, iniciando-se com a filosofia pós-socrática. Desde o

11
curvar do logos ao racionalismo até a inversão da metafísica com o pensamento marxista,
a Filosofia transformou-se, gradativamente, em "ciência empírica" do homem, diluindo-se
em diversas disciplinas (Psicologia, Antropologia, Sociologia, Logística e Semântica), cujo
único propósito é explorar cientificamente (de forma experimental ou instrumental) as
esferas do ente. Na concepção de Heidegger, a modernidade é a época da praxis na
sociedade e do domínio da cibernética, e a cibernética quer dizer técnica. Desse ponto de
vista, a cientificidade moderna resume-se à realização da humanidade na praxis social e à
tecnificação ou instrumentalização do mundo. Heidegger observa que a necessidade de
questionar a técnica tende a desaparecer, na "mesma medida em que mais
decisivamente a técnica marcar e orientar todas as manifestações no Planeta e o posto
que o homem nele ocupa" (HEIDEGGER, 1991: p.73).

A tendência tecnicista da modernidade sustenta-se na expansão das ciências, que


definem ou delimitam áreas de objeto de forma instrumental, estabelecendo hipóteses de
trabalho cuja verdade não se mede apenas em termos de seus efeitos para o progresso
da pesquisa, mas quase que exclusivamente pela "eficiência" destes efeitos
(compreensão teleológica). Ou seja, "aquilo que a Filosofia, no transcurso de sua história,
tentou em etapas, e mesmo nestas de maneira insuficiente, isto é, expor as ontologias
das diversas regiões do ente (natureza, história, direito etc), as ciências o assumem como
tarefa sua. Seu interesse dirige-se para a teoria dos conceitos estruturais do campo de
objetividade aí integrado" (HEIDEGGER, 1991: p.73). A teoria neste caso reduz-se à
suposição de categorias orientadas apenas pela função técnica ou cibernética, faltando-
lhe todo sentido ontológico. Consequentemente, passa a imperar o elemento racional e os
modelos próprios do pensamento que apenas representa e calcula.

Todo este avanço da ciência como técnica significa, para a filosofia heideggeriana,
o fim lento da História (da história do Ser) mediante o predomínio do pensar como ratio
(como entendimento e como razão) sobre o Ser do ente16. Contraditoriamente, a
expansão da racionalidade, encarada como razão instrumental, envolve grande
irracionalidade ao esquecer o essencial: o próprio Ser. A racionalização técnico-científica
domina a era atual justificando-se em sua eficácia, e essa eficácia é apenas
demonstração do prestígio da cibernética. Falta a ela um "pensamento mais sóbrio", e por
essa razão a ciência prende-se ao demonstrável sem insistir no caminho do Ser17.
Basicamente, a proposta de Heidegger centra-se no resgate do "pensamento sóbrio", ao
qual me referi no início deste ensaio como pensamento fundamental. Esse pensamento é
o elemento básico para a realização da Alétheia - o desvelamento -, que assegura a
unidade de ser e pensar no momento da presença e da apreensão. Resgatar o princípio
do desvelamento é recolocar ou re-situar o Ser no horizonte da existência humana. O
recovery é a oportunidade do homem, no presente, apreciar as possibilidades herdadas
do passado e decidir sobre o seu futuro, superando assim a "inautenticidade" de uma
existência definida de forma alheia (pode-se dizer alienada) ao Ser. De acordo com
Gunnel, "the inauthentic individual who is unreflectively absorbed in the banality of
everyday concerns and lives from moment to moment, fails to apreciate the finitude of his
existence and the extent to which he is thrown into an alien world that he did not create.
Temporality is the basic dimension of human existence, and human beings must realize
and interpret themselves in the present through choices projected toward the future an
grounded in the possibilities of the past. The authentic individual lives in terms of
conscious repetition an anticipation. Western society as a whole has fallen into

16
Conferir HEIDEGGER, 1987: p.199.
17
Conferir HEIDEGGER, 1991: p.81.

12
inauthenticity and fails to see how the catastrophies of the modern age are the culmination
of a decadent metaphysical tradition which must be surpassed by creatively remembering
the past in order to make it present and to engage the future" (GUNNEL, 1979: p.34).

A interpretação da tradição, como a propõe Heidegger, não envolve qualquer


interesse maior em estabelecer o que é verdadeiro ou falso dentro da história. O resgate e
a análise do passado visa tão somente uma explanação consistente sobre o presente e
sobre os dilemas contemporâneos. A apropriação do passado, devidamente adequada ao
horizonte do presente, respaldará o encontro com o futuro. O que se assinala é a
responsabilidade do homem com o seu destino, com a sua condição de ente e Ser. Para
Heidegger a história ocidental principia, enquanto História, com a interrogação sobre a
existência (sobre o ente, sobre o Ser), e o desvelamento inicial determina as
possibilidades essenciais da humanidade. Perder a capacidade de indagar sobre o ente
em sua totalidade é deixar-se conduzir pelo imediato e petrificar-se no aparente, sem ir de
encontro ao fundamento da própria existência.

O homem moderno atingiu esse ponto ao esquecer o Ser, ao perder a capacidade


reflexiva (puramente filosófica) em relação a sua existência como homem. O homem da
ciência e da técnica submerge em suas próprias representações e se perde, se aliena. O
homem historial (moderno), no dizer de Heidegger, permanece na vida corrente distraído
com suas criações. E assim abandonada, esquecida de sua existência, a "humanidade
completa seu mundo a partir de suas necessidades e de suas intenções mais recentes e
o enche de seus projetos e cálculos. Deles o homem retira então suas medidas,
esquecido do ente em sua totalidade. Nestes projetos e cálculos o homem se fixa
munindo-se constantemente com novas medidas, sem meditar o fundamento próprio
desta tomada de medidas e novas metas, o homem se ilude no que diz respeito à
essência autêntica destas medidas. O homem se engana nas medidas tanto mais quanto
mais exclusivamente toma a si mesmo, enquanto sujeito, como medida para todos os
entes. Neste desmesurado esquecimento, a humanidade insiste em assegurar-se através
de si mesma, graças àquilo que lhe é acessível na vida corrente. Esta persistência
encontra seu apoio, apoio que ela mesma desconhece, na relação pela qual o homem
não somente ek-siste, mas ao mesmo tempo in-siste, isto é, petrifica-se apoiando-se
sobre aquilo que o ente, manifesto como que por si e em si mesmo, oferece“
(HEIDEGGER, 1991: p.132).

Pode-se argumentar que o pensamento de Heidegger é, devido a vários aspectos,


elitista e conservador. Entretanto, é difícil negar a genuína preocupação do filósofo com o
destino do homem, principalmente na época atual. O avanço da técnica e do controle
científico do mundo, sem um fundamento existencial e ético, não é só assustador por sua
potencialidade destrutiva, mas, principalmente, pela irracionalidade que o perpassa.
Irracionalidade que, de certa forma, está fundada na alienação do homem, quando ele
não se reconhece em suas próprias criações ou desconhece as possibilidades e limites
de sua existência. A superação da civilização técnico-científico-industrial, e de suas
consequências, é vista, dentro do pensamento heideggeriano, como a única medida da
habitação do homem no mundo. Tal superação só será possível se o homem observar as
possibilidades existentes no interior de seu destino ainda não decidido (HEIDEGGER,
1991: p.74).

Encontramos em Heidegger, portanto, uma filosofia ontológica que pode ser


traduzida em termos do apelo à autenticidade conquistada por intermédio da reflexão e do
compromisso com o agir fundamentado (legitimado). Em outras palavras, acredito tratar-

13
se de uma filosofia que defende o pensar para além do simples conhecer funcional, que
pretende ultrapassar o sujeito de conhecimento para alcançar o homem como ente que se
reconhece em suas obras e palavras. Certamente a complexidade do pensamento de
Heidegger não permite uma sumarização exemplar, mas penso que, em linhas gerais,
esses são alguns dos traços marcantes de sua filosofia existencialista.

Hannah Arendt e o conceito de política

A noção arendtiana de Política ultrapassa a compreensão sociológica do


fenômeno como o encontramos nos compêndios da Ciência Política. Sua orientação
filosófica transcende a perspectiva da análise institucional ou da interpretação teleológica
do poder, para localizar a Política como aspecto essencial da condição humana,
compreendendo-se como tal as condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e
tudo aquilo que é por ele realizado em seu agir (ARENDT, 1981: p.17). De acordo com
essa perspectiva, a Política é localizada na dimensão da ação e da palavra, duas
propriedades que particularizam o homem permitindo a ele apresentar-se como ser
histórico. A ação instaura um plano essencialmente humano, onde o homem atua de
forma plural criando novas condições de existência para além dos limites biofísicos e,
principalmente, constituindo corpos políticos. A ação constitui uma das facetas do
engajamento ativo do homem no mundo, o qual é traduzido, no contexto da filosofia
arendtiana, pelo conceito de vita activa. Essa expressão engloba, além da ação, duas
outras atividades básicas da condição humana: o labor e o trabalho.

Hannah Arendt define o labor como atividade referente aos processos biológicos
humanos, ou seja, inerentes às necessidades vitais. Esses processos incorporam o
metabolismo biológico do homem e as necessidades básicas ou essenciais à vida
(alimentação e reprodução p.e.). Qualquer atividade localizada nesse contexto está
sujeita às implicações da necessidade e se volta, única e exclusivamente, para a
manutenção da vida. Nesse aspecto, o homem é situado no mesmo plano de qualquer
outro ser vivo. O trabalho é, por seu lado, uma atividade que supera hierarquicamente o
labor, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Ele tem a ver com a ação
transformadora e criadora do homem no sentido da construção de objetos duráveis ou de
um mundo artificial. Por intermédio do trabalho o homem percebe-se como produtor de
uma realidade que não se confunde com o mundo natural. O trabalho permite ao homem
um primeiro nível de transcendência de sua individualidade, viabilizando o contato ou
relação com outros homens, ainda que circunscrito ao universo do mercado. Por fim, a
ação constitui o patamar superior da hierarquia como única atividade que os homens
exercem sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela é a condição básica de
realização da Política e da História. Tomadas em conjunto, essas três atividades integram
a condição básica para o homem transcender a própria finitude ou mortalidade (ARENDT,
1981: p.16).

A noção de vita activa é o fio condutor da filosofia política de Hannah Arendt e,


particularmente, de sua análise do itinerário histórico da tradição e da crítica à
modernidade. No primeiro caso, na compreensão da Política, a expressão é trabalhada
junto aos conceitos de esfera privada e esfera pública, objetivando-se a caracterização do
espaço originário da ação política. Em termos de uma correlação, estabelece-se a esfera
privada como plano do labor e do trabalho em contraposição à esfera pública como plano
da ação. No segundo caso, na análise crítica da modernidade, a expressão é considerada
historicamente para demonstrar o processo de “funcionalização” da Política mediante a
"privatização" da esfera pública na constituição da sociedade moderna. A análise desse

14
processo permite a Hannah Arendt elucidar, teoricamente, algumas questões já
apontadas no seu As Origens do Totalitarismo, ressaltando-se a questão das "origens
do isolamento e do desenraizamento, sem os quais não se instaura o totalitarismo,
entendido como uma nova forma de governo e dominação, baseado na organização
burocrática de massas, no terror e na ideologia"18.

A abordagem da dicotomia público/privado é desenvolvida tendo como referência


o mundo helênico. Para Arendt a distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera
de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como
entidades diferentes e separadas, à semelhança do que é possível identificar na antiga
cidade-estado grega. A polis é apropriada como forma originária de um espaço
eminentemente político, onde os cidadãos se manifestam entre seus pares por intermédio
da prática discursiva. Essa esfera, concebida como espaço da liberdade, opõe-se à esfera
familiar caracterizada pela convivência motivada por necessidades e carências humanas.
Segundo Arendt, em referência à antiga Grécia, "a polis diferenciava-se da família pelo
fato de somente conhecer iguais, ao passo que a família era o centro da mais severa
desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da
vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como
também não significava submissão" (ARENDT, 1981: p. 41).

De acordo com a interpretação de Arendt, os gregos conseguiram estabelecer


sintonia plena da vita activa com a bios politikos, fazendo da polis um mundo comum que
garantia aos indivíduos excelência e reconhecimento (admiração pública, glória),
mantendo-se coadunadas a diversidade de perspectivas e posicionamentos dos
indivíduos e o compromisso e responsabilidade para com os interesses públicos. Ou seja,
"pertencer aos poucos iguais (...) significava ter a permissão de viver entre pares; mas a
esfera pública em si, a polis, era permeada de um espírito acirradamente agonístico: cada
homem tinha constantemente que se distinguir de todos os outros, demonstrar, através de
feitos ou realizações singulares, que era o melhor de todos. Em outras palavras, a esfera
pública era reservada à individualidade; era o único lugar em que os homens podiam
mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram. Em benefício dessa possibilidade, e
por amor a um corpo político que proporcionava a todos, cada um deles estava mais ou
menos disposto a compartilhar o ônus da jurisdição, da defesa e da administração dos
negócios públicos" (ARENDT, 1981: p.51).

Nesse contexto, o mundo da ação política mantinha-se protegido da ingerência


das necessidades pelo distanciamento da esfera privada. Circunscrevia-se a essa esfera
todos aqueles assuntos que fugiam ao interesse público. A esfera privada era o espaço
oposto, porém condição básica para a existência da vida pública. Nesse caso a esfera da
propriedade (vida privada) não implicava necessariamente a acumulação de riquezas
segundo o conceito moderno, mas servia como base para a liberdade do cidadão, que,
não tendo que se preocupar com necessidades, podia dedicar-se exclusivamente aos
assuntos da polis. A propriedade no universo grego significava somente a posse de um
espaço de referência (familiar sobretudo) e de exercício da subjetividade.

É oportuno ressaltar que, ao lado da oposição público/privado, é mencionada outra


distinção básica para a filosofia arendtiana: homo rationale versus animal laborans. Essa
distinção pode ser encarada como fundamento da tradição filosófica, extremamente
acentuada a partir da Escola Socrática, que concedeu à vita contemplativa um status

18
Citação de Celso Lafer na apresentação de A Condição Humana (ARENDT, 1981: p. VII).

15
superior à vita activa. Entretanto a orientação adotada por Arendt aproxima-se mais de
uma perspectiva pré-socrática. De acordo com essa perspectiva, contemplação e ação
não se opõem de forma radical nem mantêm laços de subalternidade entre si. Em Arendt,
a expressão vita activa deriva o seu significado da vita contemplativa e as inversões
hierárquicas dos termos decorrem da própria evolução do pensamento filosófico, desde a
antiguidade grega até a modernidade. A superestimação da contemplação acontece pela
primeira vez com a orientação platônico-aristotélica, passando pelo cristianismo medieval,
até sofrer nova inversão com a valorização da praxis no contexto do pensamento
moderno (principalmente com o marxismo). Porém, em ambos os casos, Arendt parece
crer que é mantida a tradicional unidade da busca da imortalidade (ARENDT, 1981: p.20).

Todavia, o fato de não se admitir a superestimação de um ou outro termo, não


elimina o princípio da hierarquia que existe entre eles. Conserva-se, dentro da vita activa,
a graduação das atividades do labor, trabalho e ação. Segundo Hannah Arendt, no
universo helênico, o labor é situado no espaço privado como atividade incapaz de gerar a
mesma excelência e reconhecimento da ação estabelecida no círculo da polis. As
atividades de subsistência circunscrevem-se ao espaço doméstico, onde são mantidas
apoiadas no trabalho escravo. Consequentemente, o escravo é percebido exclusivamente
como animal laborans e, como tal, está preso à lida doméstica, sem ter acesso ao
reconhecimento público que a vida na polis concede aos cidadãos dela participantes
(ARENDT, 1981: p.109).

É interessante observar que para o escravo não há História, porque que seu
trabalho se localiza dentre as atividades humanas sujeitas ao mesmo movimento cíclico
da natureza, a qual só adquire sentido quando situada no mundo construído pelo homem,
isto é, nos planos criadores do trabalho e da ação. Pode-se dizer que a interdição do
acesso à polis é a interdição do acesso ao discurso e, assim sendo, não há possibilidade
de expressão e memória. Consequentemente, não há participação na História. A atividade
de labor não tem permanência, caracterizando-se sobretudo por ser cíclica e efêmera, o
que a impede de ser parte do mundo, de perpetuar-se como elemento da existência
humana, de poder ser recordada ou historicizada.

Em degrau mais elevado situa-se o homo faber, cuja atividade de trabalho permite
um mundo de objetos que constituem per se uma realidade objetiva. O trabalho é, ao
contrário do labor, um elemento de transcendência da subjetividade e da condição de ser
mortal. Os homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver a sua
invariabilidade ou sua identidade no contato com objetos que não variam, por intermédio
do trabalho. Isto significa que "contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade
do mundo feito pelo homem, e não a sublime indiferença de uma natureza intacta, cuja
devastadora força elementar os forçaria a percorrer inexoravelmente o círculo do seu
próprio movimento biológico, em harmonia com o movimento cíclico maior do reino da
natureza" (ARENDT, 1981: p.150).

O trabalho distingue-se do labor, assim como o homo faber do animal laborans,


por sua potencialidade criadora que rompe com o movimento cíclico do processo vital,
onde é impossível identificar um começo e fim. A atividade do trabalho ou de fabricação
particulariza-se por instituir uma condição de reversibilidade sustentada pelo poder de
intervenção do homem enquanto criador. Ao contrário do animal laborans, o homo faber
pode produzir livremente e destruir a sua obra se esse for o seu desejo. O homo faber
distingue-se também por integrar um espaço público específico que não se confunde com
a polis: o mercado de trocas. Neste espaço, o homo faber estabelece relações com outros

16
homens, ainda que mediadas por coisas ou produtos. São relações de negócio baseadas
em trocas e permutas, mas que implicam um grau de liberdade incomparavelmente maior
que o trabalho escravo. Arendt observa que, antes da era moderna, a produção dos
artífices era uma realização isolada ou privada, mas guardava uma relação autêntica com
seu produtor. Esta característica será deturpada com o surgimento da noção de valor e
mercadoria na era industrial.

As duas atividades da vita activa - labor e trabalho - são importantes para a esfera
da ação na medida em que a subsidiam, mas por si só não podem estabelecer a Política.
Esse é um fenômeno que implica ação intersubjetiva e sua significação ultrapassa os
limites da necessidade (labor) e da utilidade (trabalho). No contexto da filosofia
arendtiana, o Ser é definido em termos da ação na esfera pública, participando de
decisões estabelecidas através da palavra (do discurso) e da persuasão. Nesse espaço
não se admite o uso da força ou da violência. Seguindo-se a referência grega, o uso do
poder de forma instrumental só é admitido no espaço privado ou no mundo externo a
polis, onde viviam os escravos e os bárbaros, ambos destituídos "não da faculdade de
falar, mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no
qual a preocupação central de todos os cidadãos era discorrer uns com os outros"
(ARENDT, 1981: p.173-176).

A noção do agir quando se refere à Política implica a significação de uma iniciativa


à qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano. A compreensão
arendtiana do agir, e do ser político na ação, é basicamente de natureza ontológica, e
encontra na filosofia de Agostinho forte inspiração. Para Arendt o agir significa tomar
iniciativa ou iniciar e, quando aplicado ao universo humano, o conceito envolve a própria
criação do homem como ser de criação. Assim, em sua concepção, a ação significa "um
início que difere do início do mundo; não é o declínio de uma coisa, mas de alguém que é,
ele próprio, um iniciador. Com a criação do homem, veio ao mundo o próprio preceito de
início; e isto, naturalmente, é apenas outra maneira de dizer que o preceito de liberdade
foi criado ao mesmo tempo, e não antes, que o homem" (ARENDT, 1981: p.187-190).

A existência humana, entretanto, não se sujeita à perspectiva evolucionária de um


único início e destino. Ela é um fenômeno plural que envolve o duplo aspecto da
igualdade e diferença, que servem como fundamento da ação e do discurso. Por um lado,
se os homens não fossem iguais não poderiam estabelecer entendimento entre si e seus
ancestrais; e por outro, se fossem exatamente idênticos não precisariam do discurso e da
ação para se comunicarem. A ação e o discurso constituem elementos essenciais da
existência humana, permitindo que os seres humanos se manifestem uns aos outros.

Aqui é importante mencionar e ressaltar o conceito de natalidade, que Hannah


Arendt utiliza inúmeras vezes em seus trabalhos. Ela o associa não só ao ato biológico da
reprodução, mas principalmente ao processo de nascimento como ato criativo na
dimensão da interação ou das relações humanas. O advento do nascimento envolve o
surgimento de algo novo a cada momento, isto é, estabelece um início repleto de
imprevisibilidade e singularidade, de forma que, a cada nascimento, uma nova história
tem começo (ARENDT, 1981: p.191). Em outros termos, poderíamos dizer que o homem
nasce em dois momentos: como ser biológico e como ser humano. Conforme Arendt, "é
com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e esta inserção é como um
segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do
nosso aparecimento físico original" (ARENDT, 1981: p.189).

17
A ação e o discurso permitem não só a inter-explicitação dos termos (a palavra
explicitando a ação p.e.), como também a revelação do agente. Essa propriedade
completa a perspectiva ontológica (de uma ontologia existencialista) que acredito existir
em Hannah Arendt. Para reforçar o argumento podemos apreciar as seguintes palavras
dessa pensadora: "se existe relação tão estreita entre ação e discurso é que o ato
primordial e especificamente humano deve, ao mesmo tempo, conter resposta à pergunta
que se faz a todo recém-chegado: Quem és? Esta revelação de quem alguém é está
implícita tanto em suas palavras quanto em seus atos; contudo, a afinidade entre discurso
e revelação, tal como a afinidade entre ação e início é maior que a afinidade entre o
discurso e o início, embora grande parte, senão a maioria, dos atos assuma a forma de
discurso. (...). Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o
ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras; e,
embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem
acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor
se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer" (ARENDT, 1981: p.191).

A revelação do agente em termos de "quem é" contrapõe-se ao "o que" alguém é


(dons, qualidades, talentos e defeitos) - que inclusive pode ocultar o "quem" -, e
permanece implícita em tudo o que se diz ou faz. Palavras e obras são as instâncias
reveladoras do agente. Na ação e no discurso os homens mostram o que são, revelam
sua identidade e apresentam-se ao mundo humano (o mundo da polis ou da esfera
pública). A qualidade reveladora do discurso e da ação, no entanto, somente ocorre na
convivência humana. É necessário que haja o reconhecimento público do que é dito e do
que é feito. Conforme Arendt, "dada a tendência intrínseca de revelar o agente juntamente
com o ato, a ação requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora (na
Grécia) tinha o nome de glória e que só é possível na esfera pública" (ARENDT, 1981:
p.192-193).

A obra e a palavra (na arte e na política p.e.) sem a revelação do agente fogem à
condição de "glória" e, dessa forma, situam-se como atos instrumentais (sujeitos à relação
meios/fins). A obra sem a revelação do produtor é apenas um objeto e a palavra sem
autenticidade uma conversa. Em ambos os casos, os atos e as palavras transformam-se
em meios para se atingir um fim e, por conseguinte, tornam-se incapazes de desvendar o
"quem" ou a identidade única e distinta do agente. A concepção arendtiana considera a
efetivação do ser na autenticidade da ação reveladora. O conceito de revelação guarda
em si a radicalidade de ser a única forma de manifestação da essência de alguém.
Embora a "essência viva" da pessoa seja inatingível fora de suas obras e palavras, ela
não se solidifica neste nível. Ela só é possível na fluidez da ação e do discurso onde
ocorre revelação. Sem o caráter revelador, ação e discurso perdem a relevância humana.
A revelação acontece, portanto, na dinâmica do intercurso e se concretiza na história de
cada indivíduo, que pode constituir-se condição pré-política e pré-histórica da História
narrada enquanto memória pública. Para que isso seja possível é necessário que as
obras ou palavras do indivíduo sejam "essenciais" ou tenham o reconhecimento público
(glória ou fama). A História enquanto "patrimônio" público constitui-se de atos e feitos
honorificados.

Essa forma de ver o fenômeno histórico conduz Arendt a admitir a não existência
de uma história da humanidade. Em sua concepção a humanidade é abstração que
jamais pode ser agente ativo. A História resume-se, mesmo que intitulada história da
humanidade, à coletânea dos atos e feitos gloriosos e não às tendências, forças ou idéias.

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Se existe um sujeito na História, este é, para Arendt, o herói que se engrandece e
permanece pelos seus atos (ARENDT, 1981: p.197-199). O conceito arendtiano de
História (escrito com "h" maiúscula) resgata a acepção grega, segundo a qual a história
compreende a imortalização do homem através de grandes façanhas e de grandes
palavras, por intermédio das quais sua existência permanece como as coisas da natureza
que perduram (ARENDT, 1992: p.74).

Por conseguinte, a revelação de alguém fundamenta a sua presença no mundo


graças aos seus feitos, desde que tornados históricos. Quando o homem nasce encontra
um passado constituído, e seu engajamento no presente só constituirá possibilidades
para o futuro se seus feitos se somarem aos existentes projetando-se historicamente. A
identidade inalterável da pessoa ou a essência humana só se torna tangível na história do
indivíduo que fala e age, e isso significa ter uma identidade merecedora de fama e glória
após a morte. Segundo Arendt, a "história real, em que nos engajamos durante toda a
vida, não tem criador visível nem invisível porque não é criada. O único alguém que ela
revela é o seu herói; e ela é o único meio pelo qual a manifestação originalmente
intangível de um quem singularmente diferente pode tornar-se tangível ex post facto
através da ação e do discurso. Só podemos saber quem um homem foi se conhecermos a
história da qual ele é o herói - em outras palavras, sua biografia; tudo o mais que
sabemos a seu respeito, inclusive a obra que ele possa ter produzido e deixado atrás de
si, diz-nos apenas o que ele é ou foi" (ARENDT, 1981: p.198-199 e 1992: p.74-76).

Há nessa argumentação a suposição de que a identidade de uma pessoa


transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir. O grande
criador é precisamente aquele que não se perde em sua obra, ou se deixa coisificar no
processo de sua produção, porque a fonte de criatividade não advém do que possa
realizar, mas do quem ele é. Na concepção de Arendt, a obra do gênio criador transcende
o produto do artesão (do homo faber) ao absorver os "elementos de diferenciação e
singularidade que encontram expressão imediata somente na ação e no discurso"
(ARENDT, 1981: p.222). A vulgarização da obra significa a própria perda da identidade
que a vincula ao seu criador. No universo arendtiano, o gênio criador aproxima-se do
intelectual (ou filósofo) que é capaz de colocar-se acima da sujeição à sua obra.

De acordo com O'Sullivan, Arendt considera como verdadeiro intelectual o


"depositário de um corpo de verdades factuais presentes na base de toda política grupal
saudável" (O'SULLIVAN, 1982: p.230), e isso se relaciona basicamente à capacidade
peculiar do intelectual em superar mentiras e falsidades através do julgamento imparcial.
Em termos da ação política, a imparcialidade é representativa e sustenta-se na
capacidade de perceber a posição dos outros, isto é, "quanto mais posições de pessoas
eu tiver presente em minha mente ao ponderar um dado problema, e quanto melhor puder
imaginar como eu sentiria e pensaria se estivesse em seu lugar, mais forte será minha
capacidade de pensamento representativo e mais válida minhas conclusões finais, minha
opinião" (ARENDT, 1992: p.299). De qualquer forma, seja na criação intelectual ou na
ação política, a obra só é autêntica (como também a palavra) se for reveladora, e para
cumprir este desiderato ela não pode se exaurir no processo de sua realização ou
produção. Ela deve perdurar ou imortalizar a identidade de seu criador através do
reconhecimento público. A garantia da imortalidade em atos e palavras é dada pela
presença entre outros, que o espaço público possibilita. A esfera pública é a garantia do
testemunho e espaço de conquista da "fama imortal", onde os homens podem revelar sua
identidade singular e distinta. Na esfera política o indivíduo aparece aos outros, e os
outros a ele, de forma explícita. A esfera política surge ou resulta precisamente desta

19
ação em conjunto, deste espaço de aparência e reconhecimento. Privar-se desta esfera,
segundo Arendt, é privar-se da própria realidade, ou em outros termos alienar-se.

A esfera pública concebida como espaço de aparência - do se fazer presente ou


do apresentar-se - é mantida pelo poder, entendendo-se como tal a ação comunicativa
locutória que viabiliza consenso sem recorrência à força, coação ou violência. Para
Arendt, o poder é a habilidade humana de agir em uníssono e pressupõe a solidariedade
organizada dos cidadãos. O conceito opõe-se idealmente à perspectiva teleológica do
poder como exercício da força ou da violência. Embora Arendt admita a existência da
dominação calcada na força, ela sublinha que nesse caso não há legitimidade e, portanto,
não há poder mas violência. A violência e a força são instrumentos a serviço da
multiplicação do vigor, que é uma qualidade individual e como tal não pode fundar o
consenso (ARENDT, 1985: p.19-31). Assim sendo, o único fator gerador de poder é a
convivência dos homens mediante a unidade de ações e palavras. "O poder só é
efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são
vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar
intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir,
mas para criar relações e novas realidades" (ARENDT, 1981: p.212).

Contudo, o consenso mantenedor da esfera política só é legítimo se respeitar a


individualidade ou a identidade singular dos indivíduos que dela participam. Para que o
consenso ocorra sem ferir o princípio da liberdade individual, a argumentação arendtiana
admite ser necessária a intervenção do perdão e da promessa (ou contrato mútuo).
Perdão e promessa constituem um código moral que serve à Política como elementos de
contraponto a irreversibilidade e a imprevisibilidade das ações. Conforme Arendt o perdão
é um ato criativo que se apresenta na esfera privada mediante a manifestação do amor, e
na esfera pública mediante a manifestação do respeito, sendo ele a "única reação que
não re-age, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionada pelo ato que a
provoca e de cujas consequências liberta tanto o que perdoa quanto o que é perdoado"
(ARENDT, 1981: p.253). Por sua vez, a promessa ou contrato mútuo é a garantia de
coesão dos membros da esfera pública e antecede a própria ação. Ela é um elemento
fundante inerente à faculdade de agir, que tem o poder de obrigar, de gerar compromisso
entre os homens, garantindo-se o princípio da solidariedade.

Em suma, por um lado, o conceito de Política em Hannah Arendt se fixa nas


referências helênicas, e segue uma orientação filosófica que o associa ao desejo humano
de imortalidade, à ação como única possibilidade de concretização deste desejo, e à
realização desta ação entre pares ou no espaço público como meio de preservação da
memória e fundamentação da História. Por outro lado, a hierarquia interna das atividades
da vita activa, bem como a excelência do animal rationale em relação ao animal laborans
(excelência e não domínio), constituem o fundamento da tradição que permitiu a
existência do espaço público na antiguidade.

A crítica arendtiana à modernidade, como veremos a seguir, direciona o foco para


as transformações ocorridas na tradição, as quais implicaram a inversão da posição
tradicional da ação e da contemplação, a alteração da tradicional hierarquia da vita activa
com a glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e a promoção do animal
laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale (ARENDT, 1981:
p.96). Na perspectiva de Arendt, essas ocorrências constituíram a principal causa do
declínio da esfera pública, e consequentemente da política, abrindo-se espaço para o
surgimento da esfera social.

20
Hannah Arendt e o resgate da tradição

A perspectiva através da qual Hannah Arendt estabelece a sua crítica à


modernidade acontece em duas dimensões: de um lado aborda os fatores de natureza
sócio-econômica e política que viabilizaram a sociedade industrial, e do outro as
transformações do pensamento filosófico que redundaram na concepção subjetivista da
consciência (cartesianismo). A consideração dessas dimensões serve à compreensão do
processo que conduziu à modernidade e à alienação do mundo.

Para Arendt o processo de expropriação e acumulação de riquezas, que


fundamentou a expansão econômica do capitalismo moderno, trouxe consigo a força
geradora da alienação ao despojar os trabalhadores da dupla proteção da família e da
propriedade. A expropriação sacrificou a "mundanidade" do homem ao substituir o espaço
que assegurava o processo vital individual e a atividade do labor por uma classe social. O
processo de expropriação quebrou a situação de contrapeso que a propriedade e a
família (esfera privada) exercia em relação à esfera pública, criando as condições
necessárias à ascensão da esfera social ou sociedade.

A propriedade era a "mais elementar condição política para a mundanidade do


homem" (ARENDT, 1981: p.265), e sua perda acarretou o eclipse do mundo político
comum. A consequência mais funesta desse processo, segundo Arendt, foi a perda do
espaço de revelação e reconhecimento que era necessário ao ser político, abrindo-se
espaço para a formação da massa solitária e alienada das sociedades modernas. A
ascensão da esfera social inaugura uma nova postura em relação ao mundo, a partir da
inversão da ordem hierárquica entre vita contemplativa e vita activa, e da inversão da
ordem das atividades internas à vita activa.

A primeira inversão compreende o percurso de substituição da ação


contemplativa, como compreensão da verdade pela ação, pelo fazer como fundamento
experimental da era técnico-científica. Essa inversão tem seus precedentes filosóficos no
processo de subjetivação da consciência e na consequente perda da fé, que podemos
identificar de forma ilustrativa no pensamento cartesiano. O subjetivismo da consciência
estabelecido no cartesianismo representou um momento significativo do processo de
alienação do homem moderno ao estabelecer a introspecção como a única certeza da
existência. Graças à introspecção, o homem moderno ensimesmou-se reforçando a perda
de sua mundanidade. A dúvida cartesiana representa de forma notável a perda da fé e a
submissão da natureza às condições da mente humana. Arendt esclarece que no
cartesianismo "a introspecção - não a reflexão da mente do homem quanto ao estado de
sua alma ou do seu corpo, mas o mero interesse cognitivo da consciência em relação ao
seu próprio conteúdo (e esta é a essência da cogitatio cartesiana, onde o cogito sempre
significa cogito me cogitare) - deve produzir a certeza, pois na introspecção só está
envolvido aquilo que a própria mente produziu; ninguém interfere, a não ser o produtor do
produto; o homem vê-se diante de nada e de ninguém a não ser de si mesmo" (ARENDT,
1981: p.293).

O pressuposto cartesiano do sum em função do cogito tem como princípio implícito


a aceitação de que a mente humana só pode conhecer aquilo que ela mesma produz ( ou
representa), e isto submete o conhecimento à apreensão matemática do mundo limitando-
se o valor das sensações ou da percepção do mundo como ele nos é apresentado.
Assim, os "objetos mundanos" são reduzidos a uma "não realidade" definida pelo fluxo da

21
consciência em termos de "relações lógicas entre símbolos criados pelo homem"
(ARENDT, 1981: p.295). O que os homens têm em comum não é mais o mundo, mais a
estrutura mental ou de raciocínio. De acordo com Arendt, é esta substituição do mundo
pelas representações que "permite à ciência moderna cumprir a sua tarefa de produzir os
fenômenos e objetos que deseja observar" (ARENDT, 1981: p.297).

Embora o pensamento esteja presente no princípio cartesiano do cogito, ele não


se confunde com a forma tradicional da busca da verdade via contemplação. Isto porque
"onde antes a verdade residia no tipo de theoria que, desde os gregos, significava a
contemplação do observador que se preocupa com a realidade aberta diante de si e a
recebe, a questão do sucesso passou a dominar, e a prova da teoria passou a ser uma
prova prática - ou funciona ou não. O que era teoria virou hipótese e o sucesso da
hipótese virou verdade" (ARENDT, 1981: p.291). O pensamento na era moderna, ao
contrário da contemplação tradicional, curvou-se aos imperativos do cientificismo e
instrumentalizou-se obedecendo aos critérios do sucesso, da industriosidade e da
veracidade, impostos pela ciência. O intervir para fazer e prever consequências passou a
ser a tônica do conhecimento, e com isto perdeu-se a possibilidade de "transcender-se o
mundo material em conceito e pensamento", pois o homem se viu preso à sua própria
mente ou às "limitações das configurações que ele mesmo criou" (ARENDT, 1981: p.301).

A predominância do fazer sobre o contemplar causou o desinteresse em relação à


questão do Ser (o que é) no contexto do pensamento moderno. A atenção voltou-se para
a questão do como (como veio a existir, como fazer, como funciona), abrindo-se espaço
para a mecanização do mundo. A perspectiva centrada no fazer deslocou a atenção do
"por que" e do "o que" para situá-la nos processos (como fazer). Em contraposição à
natureza do Ser que se apresenta ou se revela, a natureza do processo permanece
invisível, e sua existência pode apenas ser inferida da presença de certos fenômenos,
exigindo, portanto, a ação experimental ou interventiva. A ascensão da questão do
processo em detrimento da reflexão sobre o Ser é determinada pela inversão das
atividades internas à vita activa, mais precisamente pela vitória do homo faber sobre a
ação fundada na reflexão e na revelação. Os processos, entendidos como "os modelos e
as formas das coisas a serem criadas, tornam-se na era moderna os guias das atividades
de fazer e de fabricar, que são as atividades do homo faber" (ARENDT, 1981: p.313).

Essa forma de ver o mundo, ou seja, como processo, é transposta para a própria
consciência histórica do homem moderno, que passa a perceber a sua existência não em
termos de sua grandeza, feitos e sofrimentos, mas em termos dos objetos por ele
fabricados. A razão humana encontra-se então presa à realidade construída pelo próprio
homem. Em sua ilusão de raciocinar no sentido do fazer e do prever consequências,
choca-se com as ocorrências inesperadas ou improváveis que são muito comuns na
existência do homem. De acordo com Hannah Arendt, a tentativa de transportar a
perspectiva do processo para a compreensão da vida humana só realça o irracionalismo
da presunção. Para ilustrar a argumentação, ela nos indica que "a filosofia política da era
moderna, cujo maior representante é ainda Hobbes, tropeça na perplexidade de que o
moderno racionalismo é irreal e o realismo moderno é irracional - o que é apenas outra
maneira de dizer que a realidade e razão humana se divorciaram" no mundo moderno
(ARENDT, 1981: p.313)..

O pensamento na era moderna foi, portanto, reduzido à função instrumental da


fabricação ou do controle teleológico do universo, incluindo-se atividades humanas como
a política. As atitudes básicas do homo faber passaram a predominar em todos os setores

22
da vida, elegendo-se a confiança nas ferramentas, a confiança no caráter global da
categoria de meios e fins e a confiança no princípio de igualdade, como princípios básicos
da motivação humana. A evolução do processo de fabricação, com a consequente
expansão do mercado, acarretou a supremacia do valor de troca sobre o valor de uso dos
objetos, e depois de introduzir a intercambialidade e a relativização, provocou a
desvalorização de todos os valores, e estabeleceu as condições para o naufrágio do
homo faber. A perda dos valores de referência no processo de fabricação significou a
perda do princípio de utilidade, que ainda tinha o homem como marco de orientação, e
conduziu o homo faber à condição de produtor de instrumentos para fazer instrumentos,
seguindo-se o princípio da "felicidade", que consiste basicamente na circular fabricação
de instrumentos que possam estimular a produtividade, minorando a "dor" e o "esforço" no
processo de produção. Hannah Arendt observa que por detrás desse princípio de
felicidade situa-se um princípio mais poderoso calcado na promoção da vida individual e
na defesa da sobrevivência da espécie. Este princípio vigoroso alçou a vida à condição de
"critério supremo ao qual tudo mais se subordina; e os interesses do indivíduo, bem como
os interesses da humanidade, são sempre equacionados com a vida individual ou a vida
da espécie, como se fosse lógico e natural considerar a vida como o mais alto bem"
(ARENDT, 1981: p.318-324).

O princípio da vida como bem supremo, associado à defesa cristã da imortalidade


individual, viabilizaram a ascensão do animal laborans e a definitiva privatização da esfera
pública. A imortalidade apregoada pela doutrina cristã, centrada na transcendentalidade
(vida extraterrena), colocou em destaque a vida humana e alterou a relação do homem
com o mundo. O que antes era mortal passou a ocupar o lugar da imortalidade do cosmo.
Tal acontecimento teve consequências imediatas sobre o espaço político. Dado que a
política tinha como inspiração a busca da imortalidade, quando ela passa a ser uma
garantia divina, nada mais resta a não ser subordinar-se às necessidades vitais no
mundo. Com o advento da imortalidade cristã, a política desceu ao "nível de atividade
sujeita a vicissitudes, destinada a remediar, de um lado, as consequências da natureza
pecaminosa do homem, e de outro, a atender às necessidades e interesses legítimos da
vida terrena. Daí por diante, qualquer inspiração à imortalidade só podia ser equacionada
com a vanglória; toda fama que o mundo pudesse outorgar ao homem era ilusória, uma
vez que o mundo era ainda mais perecível que o homem, e a luta pela imortalidade
humana era inútil, visto como a própria vida era imortal" (ARENDT, 1981: p.327). Com a
defesa da inviolável sacralidade da vida, o antigo apoucamento do escravo, baseado no
desprezo em relação ao trabalho e o labor, deixa de ter sentido, e a ordem da vita activa é
alterada elevando-se o prestígio do animal laborans.

A promoção do animal laborans marca a formação de uma sociedade do trabalho


(ou de operários), segundo Arendt, orientada unicamente pelo interesse na
sobrevivência. O sujeito dessa esfera social são as classes ou a espécie humana e deixa
de existir a posição de destaque que o homem ocupava na esfera pública. No espaço
social, a ação, que antes revelava e dignificava, é reduzida ao fazer como uma variação
do labor e se volta totalmente para o processo vital. Conforme Arendt, o destino dessa
sociedade é tornar-se a sociedade dos detentores de empregos, onde os seus membros
se curvarão a um "funcionamento puramente automático, como se a vida individual
realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa
exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua
individualidade, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranquilizada”
(ARENDT, 1981: p.335).

23
Vista por esse prisma, a sociedade moderna constitui um espaço onde os
indivíduos são prisioneiros da própria subjetividade e, como tal, são privados de ver e
ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles. É um espaço que iguala,
normatiza e controla de forma instrumental (e burocrática) a vida dos seus membros. Aí o
comportamento substitui a ação como principal forma de relação humana, e os indivíduos
não se apresentam ou se revelam à semelhança do que era feito no espaço público.
Enclausurados em si mesmo, eles são parte incógnita de multidões (massas), e assim
desenvolvem uma irresistível inclinação ao despotismo, seja ele exercido pela figura
autoritária e carismática de um líder ou pelo governo da maioria (ARENDT, 1981: p.53).
Por isso, o totalitarismo apresenta-se como uma virtualidade permanente das sociedades
modernas, que só pode ser combatido com o resgate do pensamento não instrumental e
da liberdade da ação política na esfera pública.

O resgate da tradição em Hannah Arendt compreende, portanto, não só a busca


de referências teórico-conceituais na forma de ser do mundo helênico. Ele é percebido
também na reação enérgica à quebra da hierarquia dentro da vita activa. O pressuposto
de que essa quebra submeteu o pensamento (ou razão) aos padrões funcionais da vida é,
com efeito, o pressuposto do esvaziamento da existência humana. Quando a razão foi
reduzida à dimensão instrumental o homem perdeu, por um lado, o embasamento de
regras transcendentes (e morais) para a ação política e, por outro, o reconhecimento da
autoridade do passado mediante o qual o testemunho dos antepassados era preservado
como História. Ao perder a esfera da ação que a tradição soubera proteger, o homem
moderno perdeu a condição de ser livre, isto é, de chamar à existência o que não existia,
sem o apego aos fluxos da cognição ou à intencionalidade de um fim. A sua obra e suas
palavras se instrumentalizaram e perderam o poder revelador de outrora.
Contraditoriamente, em sua alienação, o homem moderno volta-se para si - para o interior
de sua consciência -, e ao fazê-lo perde a sua mundanidade, e ao perdê-la perde a si
mesmo.

O resgate da tradição como recuperação da reflexão contemplativa e da liberdade


de ação pode ser entendido como resistência à alienação da filosofia moderna, no que diz
respeito à existência humana e como advertência sobre os limites da ciência em oferecer
respostas adequadas às indagações existenciais humanas. No primeiro caso, a crítica é
dirigida à herança cartesiana da filosofia, quando se preocupa exclusivamente com o ego
- em detrimento da consideração da alma, da pessoa ou do homem em geral -, na
tentativa de reduzir todas as experiências com o mundo e com os outros seres humanos
às experiências entre o homem e si mesmo (ARENDT, 1981: p.266). No segundo caso, a
advertência é feita sobre a prática científica, que embora constitua uma forma de ação (o
agir experimental), não transpõe os limites do processo ou da ação instrumental. Ou seja,
“a ação dos cientistas, que intervêm com a natureza do ponto de vista do universo e não
com a textura das relações humanas, não tem o caráter revelador da ação nem a
capacidade de produzir histórias e tornar-se histórica - caráter e capacidade que, juntos,
constituem a própria fonte do sentido que ilumina a existência humana" (ARENDT, 1981:
p.377).

Em linhas gerais, esses são alguns aspectos que caracterizam ou marcam


significativamente a filosofia política de Hannah Arendt e, mais especificamente, o seu
conceito de Política. Acredito, como já mencionei anteriormente, que as argumentações
arendtianas em torno desse conceito guardam sutis vinculações com a filosofia
existencialista de Martin Heidegger, principalmente no que se refere à sua concepção do
Ser e do resgate da tradição. Na próxima seção, buscarei, à luz do que foi abordado nas

24
seções anteriores, indicar os aspectos teóricos e conceituais que julgo comuns entre os
dois pensadores.

HEIDEGGER E ARENDT: PONTOS DE INTERSEÇÃO

A confrontação da filosofia do Ser de Martin Heidegger com a filosofia política de


Hannah Arendt permite, em minha perspectiva, identificarmos um ponto de convergência
muito significativo quando consideramos os conceitos centrais de Ser e Política, pois
ambos se fundamentam no pressuposto da existência como ação. O Ser e a Política
cumprem o mesmo papel revelador da existência, viabilizando ao indivíduo as condições
básicas para a transcendência da finitude. A compreensão dessa transcendência, longe
de ser espiritualista, fundamenta-se na busca da imortalidade por intermédio da ação. A
condição de ser imortal implica, em ambas as orientações, a liberdade de se fazer
presente no mundo de forma criativa e original (singular). Tanto em Heidegger quanto em
Arendt, encontramos forte resistência em admitir a existência humana presa aos limites
da natureza física que nos é dada ou às necessidades dela decorrentes. O homem
supera limites ao ser um ente que tem ciência de sua presença no mundo.

Em ambos os autores, o conceito de história adquire um sentido muito especial,


porque a presença do homem no mundo requer a perpetuação de suas realizações (atos,
façanhas, palavras, obras), algo que só a História possibilita. A recorrência aos conceitos
de fama (Heidegger) e glória (Arendt) reforçam a perspectiva de que as realizações
humanas têm que guardar alguma verdade, cuja validade transpasse gerações. Esta
verdade não é científica ou instrumental, mas refere-se ao próprio existir em atos e
palavras de cada ser humano. A verdade existencial ou ontológica não é um apanágio da
espécie, mas a revelação singular dos indivíduos naquilo que eles possam dizer ou
construir de forma autêntica (não alienada). A linguagem (como logos) e a ação
constituem, portanto, os veículos do desvelamento (Heidegger) ou revelação (Arendt) que
permitem ao indivíduo deixar, por assim dizer, a sua marca ou lembrança para gerações
futuras.

A preocupação ontológica em Heidegger é evidente, visto que sua filosofia é assim


configurada, mas em Arendt, para percebê-la, é necessário observar com atenção a
vinculação biográfica que a pensadora estabelece entre a obra e seu criador. Vale a pena
ressaltar que a obra é significativa quando manifesta "quem é" o seu criador, e não “o que
ele é ou foi”. O mesmo princípio vale para a política, cuja ação revela o herói, aquele que
é honorificado pela memória pública e entra para a História. Em Arendt, a ação
transcende motivos e objetivos para realçar a essência, da mesma forma que o Ser
transcende a exterioridade do ente em Heidegger.

A aversão à compreensão teleológica do mundo (incluindo as relações humanas)


está presente em Heidegger e em Arendt. Heidegger ao condenar a cristalização do ente
no mundo das aparências chama a atenção para o fato de que o desvelamento do Ser só
é possível nas realizações mais sublimes, que transcendam o imediatismo da vida prática
e das representações vulgares. Arendt, de forma similar, afirma que quando atos e
palavras transformam-se em meios para atingir um fim perdem a capacidade para revelar
o "quem" ou a identidade única e distinta dos agentes, reduzindo-se, respectivamente, a
meros objetos e conversas. A noção de conversa aproxima-se da noção de doxa utilizado
por Heidegger, como aquela opinião que nem sempre é autêntica ou reveladora, que
pode inclusive ocultar. Em ambos os pensadores o discurso distingue-se da fala comum
por seu caráter não instrumental.

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Na filosofia dos dois pensadores, desvelamento e revelação são processos de
natureza intercursiva. A importância do espaço público é destacada por ambos como
esfera de con-vivência. A polis é apresentada por Heidegger e por Arendt como sendo o
espaço da presença ou o espaço onde a existência expande seu acontecer histórico. O
reconhecimento público é garantia do desvelamento do Ser no pensamento de Heidegger,
como o é também para a revelação do "quem" de uma pessoa no contexto da filosofia
arendtiana.

Um outro importante ponto de convergência de Heidegger e Arendt pode ser


encontrado no resgate da tradição realizado por ambos. Nesse aspecto, as inversões das
atividades interna à vita activa não são tratadas por Heidegger como o fez Arendt, porém,
no que diz respeito à inversão da hierarquia de vita contemplativa e vita activa, as
aproximações são mais evidentes. Creio que isso se deve ao fato de ser a perspectiva
heideggeriana puramente filosófica.

O esquecimento do Ser (Heidegger) e o declínio da esfera pública (Arendt) são


duas formas de se considerar um mesmo processo: a alienação do homem na sociedade
moderna. Heidegger e Arendt partem, em termos filosóficos, do mesmo princípio de crítica
à modernidade, considerando as implicações do subjetivismo cartesiano na instauração
do cientificismo e da consequente predominância da razão instrumental sobre o
pensamento voltado para a questão do Ser ou da essência. O que para Arendt é
apresentado como a vitória do animal laborans, e em Heidegger como o predomínio da
praxis, pode ser entendido em termos da inversão hierárquica do fazer sobre o
contemplar.

A ação contemplativa em sua plenitude, ou seja, livre das limitações formais do


pensamento instrumental, constitui o fundamento da tradição filosófica, que é tomada por
Heidegger e Arendt, principalmente em seu período pré-socrático, como exemplo de
"pensamento sóbrio" fundado no princípio da liberdade. Para eles, a cientificidade do
mundo moderno reduziu a perspectiva humana à escala dos processos. Tal fenômeno
não só implicou a automação do homem, mas, sobretudo, reduziu a possibilidade de sua
presença no mundo de forma plena e autêntica. Como podemos constatar, para
Heidegger e Arendt, a subjetivação da consciência na filosofia moderna lançou o homem
para dentro do universo de suas próprias representações, afastando-o da sua condição
de "ser presente no mundo" (a mundanidade segundo Arendt). Para Heidegger esse fato
é a principal causa do esquecimento do Ser e, consequentemente, da alienação do
homem, enquanto para Arendt ele é parte de um movimento mais amplo, de um processo
de alienação que envolve também o declínio da esfera pública.

Em termos políticos, essa alienação é extremamente nociva quando fecha os


espaços para a expressão da individualidade e alimenta tendências autoritárias.
Heidegger e Arendt demonstram verdadeira aversão às sociedades de massa (não
obstante a discutida e polêmica adesão de Heidegger ao nazismo), por entenderem que
esse tipo de sociedade destrói a liberdade de ação do indivíduo. A preocupação dos
pensadores, no entanto, parece ser mais filosófica que partidária. A individualidade e a
liberdade de expressão constituem elementos "fundantes", irredutíveis, em ambos os
filósofos. A individualidade constitui um a priori da própria existência humana e, nesse
sentido, é um conceito mais radical que o conceito liberal de indivíduo e individualidade. A
individualidade é, tanto em Heidegger quanto em Arendt, um conceito existencialista que
compreende, fundamentalmente, a liberdade de agir para fundar existência. Essa

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concepção não implica, porém, a adoção de uma perspectiva niilista, visto que a ação
individual sem o reconhecimento público não é essencial e portanto não tem presença.
Além do que, o reconhecimento só acontece porque existe um espaço público e uma
História a ele associada, o que envolve certamente a necessidade de respeito ao passado
ou à tradição.

Por fim, podemos identificar em Heidegger e em Hannah Arendt um forte apelo à


ética. Em ambos a existência implica a responsabilidade com a preservação do mundo,
fundada no respeito à autoridade da tradição e no compromisso com a existência das
futuras gerações. Em Heidegger a indagação referente ao sentido do Ser, ou a busca de
fundamentação das escolhas do ente, guarda essa preocupação moral, da mesma forma
que a ação política em Hannah Arendt envolve a argumentação ou arrazoamento entre
pares (na esfera pública), o que implica compromisso e respeito para com os participantes
e condições do intercurso. O indivíduo é livre para existir desde que saiba fazer uso de
sua liberdade. O desrespeito às normas (leis) e o agir segundo interesses egocêntricos
são elementos destrutivos que açulam a violência e destroem a liberdade. Destruindo-se
a liberdade, que é condição sine qua non para a revelação da essência humana, perde-se
o sentido existencial e apenas resta o Ser olvidado ou o animal que labora.

Consideração final

Não obstante os aspectos que possam ser criticados nas formulações de


Heidegger e Hannah Arendt - como o elitismo e o saudosismo helênico de ambos ou a
desconsideração dos aspectos estratégicos e estruturais do poder na análise arendtiana -,
acredito que contribuições significativas são apresentadas por ambos os pensadores. No
caso de Heidegger, podemos identificar a legítima preocupação em frisar os riscos e
limitações do racionalismo moderno, que na pretensão de explicar e dominar o mundo,
expõe a face do irracionalismo e perde de vista a própria razão de ser da existência
humana (ou a busca dessa razão). E no caso de Arendt, além desta postura crítica em
relação à razão instrumental, é possível constatar a significativa demonstração da
importância e autonomia da política, aspecto que fundamenta a análise crítica do
pensamento político ocidental que sujeitou o fenômeno às radicais determinações da
economia e à compreensão funcionalista do poder. Soma-se a isso a vigorosa crítica ao
totalitarismo e às formas sociais que o viabilizam. Por fim, em ambos, encontramos o
valor da argumentação filosófica que, se não serve às necessidades pragmáticas da vida
social, cumpre o excelente papel de combater a resignação e nos conduzir à reflexão
sobre a nossa existência.

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© José Mendes de Oliveira


Brasília, janeiro de 2008

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