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introdução
(*)
Antropólogo e Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB.
1
Marcuse, a propósito, identifica a teoria marxista como negação da Filosofia. Em sua concepção a
"transição de Hegel a Marx é, sob todos os aspectos, uma transição a uma ordem de verdade
essencialmente diferente que não se presta a ser interpretada em termos filosóficos". (MARCUSE, 1978:
p.239)
2
Esses conceitos foram elaborados por Max Weber e Georg Lukács, respectivamente, para servirem à
compreensão das sociedades modernas (ou da modernidade). Um número significativo de filósofos e
cientistas sociais utilizam, quando não os conceitos, pelo menos as idéias sugeridas por eles em suas
próprias análises, de forma crítica ou não. Max Horkheimer, Theodor Adorno, Jurgen Habermas e Hannah
Arendt são alguns exemplos.
1
interpretação. Ela se apresenta com mais vigor nas elaborações de filósofos políticos
liberais como Eric Voegelin, Sheldon Wolin, Leo Strauss e Hannah Arendt3.
3
John G. Gunnel realiza um interessante estudo comparado desses autores no trabalho citado anteriormente.
4
A esse propósito, sugiro conferir as observações de François Châtelet (CHÂTELET, 1990: p.358)
5
O conceito de mundo, neste caso, aproxima-se da noção heideggeriana, ou seja, "mundo não significa o
universo físico dos astrônomos, mas o conjunto das condições geográficas, históricas, sociais e
econômicas, em que cada pessoa está imersa". (Considerações de Ernildo Stein in HEIDEGGER, 1991:
p.IX).
2
Dentre os comentaristas dos trabalhos de Hannah Arendt, apenas Noel O'Sullivan
e John G. Gunnel perceberam e fizeram alusão à influência existencialista no pensamento
arendtiano. Sullivan não indica com precisão uma corrente existencialista predominante,
mas observa que, à semelhança dos existencialistas, Arendt “acredita que as fontes do
valor e do sentido da existência só podem ser encontrados na própria ação, e que o
homem só se define agindo, ao transformar sua essência numa realidade tangível, sob a
forma de feitos” (O’ SULLIVAN, 1982: p.227). Gunnel, por sua vez, insiste um pouco mais
nessa questão, e embora não realize uma análise comparativa de Heidegger e Arendt,
identifica a correspondência entre os dois pensadores, de tal forma que bastaria substituir
os conceitos arendtianos de política e teoria política pelos conceitos heideggerianos de
Ser e metafísica para evidenciar a relação entre os dois filósofos6.
6
Segundo Gunnel "one need only substitute politics for Being and Political Theory for metaphysics to see the
parallels" (GUNNEL, 1979: p.82).
7
Para os trechos em destaque, conferir comentários de Ernildo Stein in HEIDDEGER, 1991: p.VIII.
8
A sugestão foi feita por Heidegger em sua obra Introdução à Metafísica, publicada em 1953, e reforça a
postura do pensador em relação à filosofia clássica.
3
encontra submerso9. Trata-se de uma projeção no mundo, do mundo e com o mundo, de
tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis"10.
Verifica-se, portanto, que a relação sugerida por Gunnel tem algum fundamento e
merece nossa atenção. Nesse sentido, meu intento, nas seções que constituem este
ensaio, é aprofundar um pouco mais o entendimento do conceito heideggeriano do Ser e
o conceito arendtiano de Política, objetivando identificar de forma mais analítica as
possíveis correlações.
9
Em Hannah Arendt este é um aspecto da condição humana. Fugir a este mundo seria fugir à própria
condição de ser humano (ARENDT, 1981: p.9-14).
10
Considerações de Ernildo Stein in HEIDDEGER, 1991: p.IX.
4
sugere a busca do Ser11. Temos aqui a proposta de uma nova filosofia do ego na qual o
Ser não é produto do pensamento, mas ao contrário provoca o pensamento (não no
sentido da criação mas da provocação). O Ser, portanto, não se reduz a uma questão
entitativa ou a uma qualidade ôntica do ente. o Ser heideggeriano não se deixa
representar ou produzir objetivamente à semelhança do ente, pois ele constitui um
substratum anterior ao Cogito12. A questão que se formula pode ser traduzida como sendo
uma indagação a propósito do sentido de ser do sum, esquecido na interpretação
cartesiana quando o existo foi submetido ao Cogito (cogito ergo sum)13.
11
Segundo Heidegger o homem é o ente que é ao modo da existência, pois somente ele existe, ou seja,
existe enquanto ser que reflete sobre a sua existência. Por exemplo, um rochedo é, mas não existe. De
acordo com esta perspectiva o homem é assinalado pela "in-sistência ex-sistente" no desvelamento do ser
a partir do ser e no ser. (HEIDDEGER, 1991: p. 45 e 59).
12
Conferir argumentação em HEIDEGGER, 1991: p.48.
13
Conferir RICOEUR, 1978: p. 192.
5
sentimento de situação, brota o porquê" (Por que assim e não assado? Por que isto e não
aquilo? Por que afinal algo e não nada?). A indagação sobre as razões do ente (ou de sua
escolha) envolve um elemento primário de revelação do Ser ou de sua verdade
ontológica. "Neste porquê, seja de que modo for expresso, já reside (...) uma pré-
compreensão, ainda que pré-conceitual, do que-ser, como-ser e ser em geral. Isto. porém,
quer dizer: já contém a resposta primordial, primeira e última para todo o questionar. A
compreensão do Ser dá, como resposta que a tudo precede simplesmente, a primeira e
última fundamentação. Nela a transcendência é fundamental enquanto tal. Porque nisso
ser e constituição de ser são desvelados, chama-se o fundamentar transcendental
verdade ontológica" (HEIDEGGER, 1991: p. 112).
Nota-se, portanto, que o fundamentar não se reduz a uma justificação sem outras
consequências. Ele é o princípio de definição do ente em termos do que o ente é e como
é no mundo, e isto implica um modo de desvelamento ou verdade. Heidegger, a esse
respeito, nos diz que "na adução do ente exigida respectivamente pelo que-ser e como-
ser do referido ente e do modo de desvelamento (verdade) que lhe é próprio"
(HEIDEGGER, 1991: p. 114-115), ele (o ente) se manifesta como causa e motivo para
uma já revelada conexão de entes. Este indagar por um fundamento compreende, assim,
a tarefa de clarificação da essência do Ser e da verdade.
A referida liberdade não deve ser confundida com o livre arbítrio, nem entendida
em termos da substancialidade ou subjetividade do ente. A liberdade, por um lado, se liga
à capacidade de transcendência do ser-humano (de construir mundo, de destinar-se), e
assim se situa como lugar de encontro do Ser, um espaço de possibilidades do ser-aí, do
projetar-se do ente. Por outro lado, ela é passagem para o mundo através do agir. O
mundo é um acontecimento possibilitado pela própria liberdade, ou seja, ele jamais é mas
acontece como mundo. Ele é um ato criativo que implica a responsabilidade do ser-aí no
homem com o si-mesmo (como ser livre) e para com o próprio mundo que é originalmente
um espaço do ser-com ou do ser-junto. Isso faz com que a liberdade seja desvelada, ao
mesmo tempo, como a "possibilitação de compromisso e obrigação geral" (com outros
entes, incluindo o próprio homem) (HEIDEGGER, 1991: p.109).
6
reflexão permanente que perpassa toda existência. Esse pensar age de forma similar à
noção platônica das idéias, ou seja, em sua validade ele é mais objetivo que os objetos e
mais subjetivo que os sujeitos, o que em termos platônicos seria o intuitus originaris ou a
própria razão.
7
A noção do pensar em Heidegger pode ser, a princípio, compreendida com
referência a uma faculdade humana que envolve a nossa capacidade de apresentar (de
fazer presente) alguma coisa diante de nós. "Tal a-presentar parte sempre de nós. Trata-
se de um livre pôr e dispor de nossa parte, mas não arbitrário e sim dependente.
Dependente do fato de, pela a-presentação considerarmos e examinarmos o
apresentado, analisando-o, decompondo-o e recompondo-o de novo" (HEIDEGGER,
1987: p.144). Há aí uma ação reflexiva através da qual se persegue alguma coisa até
fazermos dela um conceito passível de universalização. Dependendo da precisão e
segurança da análise, bem como do alcance da apreensão, o pensar pode ser superficial
ou profundo, vazio ou rico de conteúdo, facultativo ou constringente, jocoso ou sério.
14
Verificar HEIDEGGER, 1987: p.148-149.
15
Com relação aos trechos em destaque, conferir HEIDEGGER, 1987: p.139-157.
8
Heidegger assinala com veemência que o Ser, entendido como logos e enquanto
reunião originária, não se confunde com "amontoamento e entulho, em que tudo valeria
igualmente e tão pouco", mas ao contrário caberia a ele (ao Ser) "eminência e
predomínio". O Ser para poder se re-velar, tem que possuir e conservar em si mesmo
uma posição preeminente. Isto significa basicamente a negação da multidão (da
massificação) em defesa da singularidade (ou individualidade). Para Heidegger, a
eminência do Ser faz parte da existência grega e se vincula intimamente ao conceito de
Polis, o qual não deve ser tomado de forma "inocente e sentimental", pois aí o "eminente
é o mais forte". Por esta razão, "o Ser, o Logos, entendido, como a harmonia reunida, não
é facilmente e de modo igual acessível a todo mundo mas oculto, em contra-posição
àquele acordo, que significa nivelamento, aniquilamento de tensões, igualdade"
(HEIDEGGER, 1987: p.139-157). Com isto Heidegger quer reforçar a idéia de que a
reunião (na Polis e na unidade ente / Ser) não é uma simples agregação, mas reunião de
pluralidades em tensão e oscilação constante.
9
Este fato vincula, de certa forma, a conquista do desvelamento do Ser àqueles que teriam
o dom de divisar o Ser em obras e palavras.
10
na poesia, pela obra da pedra no templo e na estátua, pela obra da palavra no
pensamento, pela obra da polis, como o lugar da História, que tudo isso funda e protege.
(...). O de-bate da re-velação do ente e, com isso, do próprio Ser na obra, que, já em si
mesmo, se processa e ocorre, como um constante combate, é sempre um embate contra
a velação, o encobrimento, contra a aparência" (HEIDEGGER, 1987: p.210).
11
curvar do logos ao racionalismo até a inversão da metafísica com o pensamento marxista,
a Filosofia transformou-se, gradativamente, em "ciência empírica" do homem, diluindo-se
em diversas disciplinas (Psicologia, Antropologia, Sociologia, Logística e Semântica), cujo
único propósito é explorar cientificamente (de forma experimental ou instrumental) as
esferas do ente. Na concepção de Heidegger, a modernidade é a época da praxis na
sociedade e do domínio da cibernética, e a cibernética quer dizer técnica. Desse ponto de
vista, a cientificidade moderna resume-se à realização da humanidade na praxis social e à
tecnificação ou instrumentalização do mundo. Heidegger observa que a necessidade de
questionar a técnica tende a desaparecer, na "mesma medida em que mais
decisivamente a técnica marcar e orientar todas as manifestações no Planeta e o posto
que o homem nele ocupa" (HEIDEGGER, 1991: p.73).
Todo este avanço da ciência como técnica significa, para a filosofia heideggeriana,
o fim lento da História (da história do Ser) mediante o predomínio do pensar como ratio
(como entendimento e como razão) sobre o Ser do ente16. Contraditoriamente, a
expansão da racionalidade, encarada como razão instrumental, envolve grande
irracionalidade ao esquecer o essencial: o próprio Ser. A racionalização técnico-científica
domina a era atual justificando-se em sua eficácia, e essa eficácia é apenas
demonstração do prestígio da cibernética. Falta a ela um "pensamento mais sóbrio", e por
essa razão a ciência prende-se ao demonstrável sem insistir no caminho do Ser17.
Basicamente, a proposta de Heidegger centra-se no resgate do "pensamento sóbrio", ao
qual me referi no início deste ensaio como pensamento fundamental. Esse pensamento é
o elemento básico para a realização da Alétheia - o desvelamento -, que assegura a
unidade de ser e pensar no momento da presença e da apreensão. Resgatar o princípio
do desvelamento é recolocar ou re-situar o Ser no horizonte da existência humana. O
recovery é a oportunidade do homem, no presente, apreciar as possibilidades herdadas
do passado e decidir sobre o seu futuro, superando assim a "inautenticidade" de uma
existência definida de forma alheia (pode-se dizer alienada) ao Ser. De acordo com
Gunnel, "the inauthentic individual who is unreflectively absorbed in the banality of
everyday concerns and lives from moment to moment, fails to apreciate the finitude of his
existence and the extent to which he is thrown into an alien world that he did not create.
Temporality is the basic dimension of human existence, and human beings must realize
and interpret themselves in the present through choices projected toward the future an
grounded in the possibilities of the past. The authentic individual lives in terms of
conscious repetition an anticipation. Western society as a whole has fallen into
16
Conferir HEIDEGGER, 1987: p.199.
17
Conferir HEIDEGGER, 1991: p.81.
12
inauthenticity and fails to see how the catastrophies of the modern age are the culmination
of a decadent metaphysical tradition which must be surpassed by creatively remembering
the past in order to make it present and to engage the future" (GUNNEL, 1979: p.34).
13
se de uma filosofia que defende o pensar para além do simples conhecer funcional, que
pretende ultrapassar o sujeito de conhecimento para alcançar o homem como ente que se
reconhece em suas obras e palavras. Certamente a complexidade do pensamento de
Heidegger não permite uma sumarização exemplar, mas penso que, em linhas gerais,
esses são alguns dos traços marcantes de sua filosofia existencialista.
Hannah Arendt define o labor como atividade referente aos processos biológicos
humanos, ou seja, inerentes às necessidades vitais. Esses processos incorporam o
metabolismo biológico do homem e as necessidades básicas ou essenciais à vida
(alimentação e reprodução p.e.). Qualquer atividade localizada nesse contexto está
sujeita às implicações da necessidade e se volta, única e exclusivamente, para a
manutenção da vida. Nesse aspecto, o homem é situado no mesmo plano de qualquer
outro ser vivo. O trabalho é, por seu lado, uma atividade que supera hierarquicamente o
labor, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Ele tem a ver com a ação
transformadora e criadora do homem no sentido da construção de objetos duráveis ou de
um mundo artificial. Por intermédio do trabalho o homem percebe-se como produtor de
uma realidade que não se confunde com o mundo natural. O trabalho permite ao homem
um primeiro nível de transcendência de sua individualidade, viabilizando o contato ou
relação com outros homens, ainda que circunscrito ao universo do mercado. Por fim, a
ação constitui o patamar superior da hierarquia como única atividade que os homens
exercem sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela é a condição básica de
realização da Política e da História. Tomadas em conjunto, essas três atividades integram
a condição básica para o homem transcender a própria finitude ou mortalidade (ARENDT,
1981: p.16).
14
processo permite a Hannah Arendt elucidar, teoricamente, algumas questões já
apontadas no seu As Origens do Totalitarismo, ressaltando-se a questão das "origens
do isolamento e do desenraizamento, sem os quais não se instaura o totalitarismo,
entendido como uma nova forma de governo e dominação, baseado na organização
burocrática de massas, no terror e na ideologia"18.
18
Citação de Celso Lafer na apresentação de A Condição Humana (ARENDT, 1981: p. VII).
15
superior à vita activa. Entretanto a orientação adotada por Arendt aproxima-se mais de
uma perspectiva pré-socrática. De acordo com essa perspectiva, contemplação e ação
não se opõem de forma radical nem mantêm laços de subalternidade entre si. Em Arendt,
a expressão vita activa deriva o seu significado da vita contemplativa e as inversões
hierárquicas dos termos decorrem da própria evolução do pensamento filosófico, desde a
antiguidade grega até a modernidade. A superestimação da contemplação acontece pela
primeira vez com a orientação platônico-aristotélica, passando pelo cristianismo medieval,
até sofrer nova inversão com a valorização da praxis no contexto do pensamento
moderno (principalmente com o marxismo). Porém, em ambos os casos, Arendt parece
crer que é mantida a tradicional unidade da busca da imortalidade (ARENDT, 1981: p.20).
É interessante observar que para o escravo não há História, porque que seu
trabalho se localiza dentre as atividades humanas sujeitas ao mesmo movimento cíclico
da natureza, a qual só adquire sentido quando situada no mundo construído pelo homem,
isto é, nos planos criadores do trabalho e da ação. Pode-se dizer que a interdição do
acesso à polis é a interdição do acesso ao discurso e, assim sendo, não há possibilidade
de expressão e memória. Consequentemente, não há participação na História. A atividade
de labor não tem permanência, caracterizando-se sobretudo por ser cíclica e efêmera, o
que a impede de ser parte do mundo, de perpetuar-se como elemento da existência
humana, de poder ser recordada ou historicizada.
Em degrau mais elevado situa-se o homo faber, cuja atividade de trabalho permite
um mundo de objetos que constituem per se uma realidade objetiva. O trabalho é, ao
contrário do labor, um elemento de transcendência da subjetividade e da condição de ser
mortal. Os homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver a sua
invariabilidade ou sua identidade no contato com objetos que não variam, por intermédio
do trabalho. Isto significa que "contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade
do mundo feito pelo homem, e não a sublime indiferença de uma natureza intacta, cuja
devastadora força elementar os forçaria a percorrer inexoravelmente o círculo do seu
próprio movimento biológico, em harmonia com o movimento cíclico maior do reino da
natureza" (ARENDT, 1981: p.150).
16
homens, ainda que mediadas por coisas ou produtos. São relações de negócio baseadas
em trocas e permutas, mas que implicam um grau de liberdade incomparavelmente maior
que o trabalho escravo. Arendt observa que, antes da era moderna, a produção dos
artífices era uma realização isolada ou privada, mas guardava uma relação autêntica com
seu produtor. Esta característica será deturpada com o surgimento da noção de valor e
mercadoria na era industrial.
As duas atividades da vita activa - labor e trabalho - são importantes para a esfera
da ação na medida em que a subsidiam, mas por si só não podem estabelecer a Política.
Esse é um fenômeno que implica ação intersubjetiva e sua significação ultrapassa os
limites da necessidade (labor) e da utilidade (trabalho). No contexto da filosofia
arendtiana, o Ser é definido em termos da ação na esfera pública, participando de
decisões estabelecidas através da palavra (do discurso) e da persuasão. Nesse espaço
não se admite o uso da força ou da violência. Seguindo-se a referência grega, o uso do
poder de forma instrumental só é admitido no espaço privado ou no mundo externo a
polis, onde viviam os escravos e os bárbaros, ambos destituídos "não da faculdade de
falar, mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no
qual a preocupação central de todos os cidadãos era discorrer uns com os outros"
(ARENDT, 1981: p.173-176).
17
A ação e o discurso permitem não só a inter-explicitação dos termos (a palavra
explicitando a ação p.e.), como também a revelação do agente. Essa propriedade
completa a perspectiva ontológica (de uma ontologia existencialista) que acredito existir
em Hannah Arendt. Para reforçar o argumento podemos apreciar as seguintes palavras
dessa pensadora: "se existe relação tão estreita entre ação e discurso é que o ato
primordial e especificamente humano deve, ao mesmo tempo, conter resposta à pergunta
que se faz a todo recém-chegado: Quem és? Esta revelação de quem alguém é está
implícita tanto em suas palavras quanto em seus atos; contudo, a afinidade entre discurso
e revelação, tal como a afinidade entre ação e início é maior que a afinidade entre o
discurso e o início, embora grande parte, senão a maioria, dos atos assuma a forma de
discurso. (...). Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o
ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras; e,
embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem
acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor
se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer" (ARENDT, 1981: p.191).
A obra e a palavra (na arte e na política p.e.) sem a revelação do agente fogem à
condição de "glória" e, dessa forma, situam-se como atos instrumentais (sujeitos à relação
meios/fins). A obra sem a revelação do produtor é apenas um objeto e a palavra sem
autenticidade uma conversa. Em ambos os casos, os atos e as palavras transformam-se
em meios para se atingir um fim e, por conseguinte, tornam-se incapazes de desvendar o
"quem" ou a identidade única e distinta do agente. A concepção arendtiana considera a
efetivação do ser na autenticidade da ação reveladora. O conceito de revelação guarda
em si a radicalidade de ser a única forma de manifestação da essência de alguém.
Embora a "essência viva" da pessoa seja inatingível fora de suas obras e palavras, ela
não se solidifica neste nível. Ela só é possível na fluidez da ação e do discurso onde
ocorre revelação. Sem o caráter revelador, ação e discurso perdem a relevância humana.
A revelação acontece, portanto, na dinâmica do intercurso e se concretiza na história de
cada indivíduo, que pode constituir-se condição pré-política e pré-histórica da História
narrada enquanto memória pública. Para que isso seja possível é necessário que as
obras ou palavras do indivíduo sejam "essenciais" ou tenham o reconhecimento público
(glória ou fama). A História enquanto "patrimônio" público constitui-se de atos e feitos
honorificados.
Essa forma de ver o fenômeno histórico conduz Arendt a admitir a não existência
de uma história da humanidade. Em sua concepção a humanidade é abstração que
jamais pode ser agente ativo. A História resume-se, mesmo que intitulada história da
humanidade, à coletânea dos atos e feitos gloriosos e não às tendências, forças ou idéias.
18
Se existe um sujeito na História, este é, para Arendt, o herói que se engrandece e
permanece pelos seus atos (ARENDT, 1981: p.197-199). O conceito arendtiano de
História (escrito com "h" maiúscula) resgata a acepção grega, segundo a qual a história
compreende a imortalização do homem através de grandes façanhas e de grandes
palavras, por intermédio das quais sua existência permanece como as coisas da natureza
que perduram (ARENDT, 1992: p.74).
19
ação em conjunto, deste espaço de aparência e reconhecimento. Privar-se desta esfera,
segundo Arendt, é privar-se da própria realidade, ou em outros termos alienar-se.
20
Hannah Arendt e o resgate da tradição
21
consciência em termos de "relações lógicas entre símbolos criados pelo homem"
(ARENDT, 1981: p.295). O que os homens têm em comum não é mais o mundo, mais a
estrutura mental ou de raciocínio. De acordo com Arendt, é esta substituição do mundo
pelas representações que "permite à ciência moderna cumprir a sua tarefa de produzir os
fenômenos e objetos que deseja observar" (ARENDT, 1981: p.297).
Essa forma de ver o mundo, ou seja, como processo, é transposta para a própria
consciência histórica do homem moderno, que passa a perceber a sua existência não em
termos de sua grandeza, feitos e sofrimentos, mas em termos dos objetos por ele
fabricados. A razão humana encontra-se então presa à realidade construída pelo próprio
homem. Em sua ilusão de raciocinar no sentido do fazer e do prever consequências,
choca-se com as ocorrências inesperadas ou improváveis que são muito comuns na
existência do homem. De acordo com Hannah Arendt, a tentativa de transportar a
perspectiva do processo para a compreensão da vida humana só realça o irracionalismo
da presunção. Para ilustrar a argumentação, ela nos indica que "a filosofia política da era
moderna, cujo maior representante é ainda Hobbes, tropeça na perplexidade de que o
moderno racionalismo é irreal e o realismo moderno é irracional - o que é apenas outra
maneira de dizer que a realidade e razão humana se divorciaram" no mundo moderno
(ARENDT, 1981: p.313)..
22
da vida, elegendo-se a confiança nas ferramentas, a confiança no caráter global da
categoria de meios e fins e a confiança no princípio de igualdade, como princípios básicos
da motivação humana. A evolução do processo de fabricação, com a consequente
expansão do mercado, acarretou a supremacia do valor de troca sobre o valor de uso dos
objetos, e depois de introduzir a intercambialidade e a relativização, provocou a
desvalorização de todos os valores, e estabeleceu as condições para o naufrágio do
homo faber. A perda dos valores de referência no processo de fabricação significou a
perda do princípio de utilidade, que ainda tinha o homem como marco de orientação, e
conduziu o homo faber à condição de produtor de instrumentos para fazer instrumentos,
seguindo-se o princípio da "felicidade", que consiste basicamente na circular fabricação
de instrumentos que possam estimular a produtividade, minorando a "dor" e o "esforço" no
processo de produção. Hannah Arendt observa que por detrás desse princípio de
felicidade situa-se um princípio mais poderoso calcado na promoção da vida individual e
na defesa da sobrevivência da espécie. Este princípio vigoroso alçou a vida à condição de
"critério supremo ao qual tudo mais se subordina; e os interesses do indivíduo, bem como
os interesses da humanidade, são sempre equacionados com a vida individual ou a vida
da espécie, como se fosse lógico e natural considerar a vida como o mais alto bem"
(ARENDT, 1981: p.318-324).
23
Vista por esse prisma, a sociedade moderna constitui um espaço onde os
indivíduos são prisioneiros da própria subjetividade e, como tal, são privados de ver e
ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles. É um espaço que iguala,
normatiza e controla de forma instrumental (e burocrática) a vida dos seus membros. Aí o
comportamento substitui a ação como principal forma de relação humana, e os indivíduos
não se apresentam ou se revelam à semelhança do que era feito no espaço público.
Enclausurados em si mesmo, eles são parte incógnita de multidões (massas), e assim
desenvolvem uma irresistível inclinação ao despotismo, seja ele exercido pela figura
autoritária e carismática de um líder ou pelo governo da maioria (ARENDT, 1981: p.53).
Por isso, o totalitarismo apresenta-se como uma virtualidade permanente das sociedades
modernas, que só pode ser combatido com o resgate do pensamento não instrumental e
da liberdade da ação política na esfera pública.
24
seções anteriores, indicar os aspectos teóricos e conceituais que julgo comuns entre os
dois pensadores.
25
Na filosofia dos dois pensadores, desvelamento e revelação são processos de
natureza intercursiva. A importância do espaço público é destacada por ambos como
esfera de con-vivência. A polis é apresentada por Heidegger e por Arendt como sendo o
espaço da presença ou o espaço onde a existência expande seu acontecer histórico. O
reconhecimento público é garantia do desvelamento do Ser no pensamento de Heidegger,
como o é também para a revelação do "quem" de uma pessoa no contexto da filosofia
arendtiana.
26
concepção não implica, porém, a adoção de uma perspectiva niilista, visto que a ação
individual sem o reconhecimento público não é essencial e portanto não tem presença.
Além do que, o reconhecimento só acontece porque existe um espaço público e uma
História a ele associada, o que envolve certamente a necessidade de respeito ao passado
ou à tradição.
Consideração final
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. 1ed. São Paulo. Companhia das Letras,
1989
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 3ed. São Paulo. Editora Perspectiva,
1992
27
CHÂTELET, F. & outros. História das Idéias. 2ed. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editores,
1990.
ROUANET, S.P. & FREITAG, B. Habermas. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São
Paulo. Ática, 1990
28