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Resumo
1Este texto é uma versão levemente estendida de um texto apresentado na III Semana
Acadêmica do PPG em Filosofia da PUCRS (25/06/2009) e no I Seminário Regional de
Alunos de Pós-Graduação em Filosofia na Unisinos (21/08/2009).
1 Um conceito em busca de um fenômeno
Torna-se claro, portanto, que não estamos tratando do mero erro, que não
é necessariamente irracional. Nem estamos tratando de pensamento
desejoso (wishful thinking) – crer naquilo que se deseja que seja ou venha a
ser o caso – porque em tal caso não se supõe o conflito com a evidência
disponível. O fenômeno de que nos ocupamos é um caso mais
preocupante e, muitas vezes, censurável, pois nele não há só ausência de
justificação, mas presença de justificação para o contrário e, todavia, as
meras inclinações do sujeito dão forma a representações que
normalmente expressariam seu compromisso racional para com o
mundo: suas crenças.
Ou seja, o desejo que p leva à crença que p, a qual, por suposição, é falsa.
Sendo ~p a crença justificada, caracterizamos o sujeito como
irracionalmente motivado. Essa primeira caracterização parece coincidir
com uma acepção literal do termo ‘autoengano’, na qual este é uma
forma reflexiva, intrapessoal, do fenômeno interpessoal do engano. Assim
compreendido, onde no engano temos ‘X engana Y’, no autoengano
teríamos ‘X engana X’. É oportuno lembrar que quando dizemos que
uma pessoa engana outra (intencionalmente), queremos dizer algo como
‘X sabe que p e provoca intencionalmente em Y a crença que ~p’. Por
exemplo, Iago sabe que Desdêmona é fiel e provoca intencionalmente em
Otelo a crença na proposição contrária. O caso reflexivo do engano,
portanto, constituiria no seguinte: ‘X sabe que p e provoca
intencionalmente em X a crença que ~p’.
Para os autores que, desde o começo do debate nos anos 1960, flertam
com esse tipo de resposta, não devemos entender ‘engano’ em
‘autoengano’ literalmente, mas como uma metáfora, assim como ‘didata’
em ‘autodidata’.11 Didata é aquele que ensina, e o ensino é uma atividade
que envolve, no mínimo, duas partes: aquela que ensina, e aquela a quem
o ensinamento é transmitido. Portanto, não faria sentido tentarmos
entender o autodidata como procedendo a uma forma reflexiva de
ensino, no mínimo porque se pressupõe que aquele que ensina possui
conhecimento a transmitir que aquele a quem o ensinamento é
transmitido não possui (e a idéia de que alguém possua novo
conhecimento a transmitir a si mesmo é um contrassenso). Portanto, o
que queremos dizer quando nos referimos a alguém como um autodidata
é que este tem autonomia intelectual suficiente para aprender sem um
professor; mas pressupõe-se algo além dessa pessoa que seja capaz de
transmitir-lhe o conhecimento, como um manual. O projeto de
caracterização do autoengano literal redundaria, desse modo, em uma
tentativa frustrada de fazer sentido de um contrassenso.
12 Barnes (1997).
13 Lazar (1999).
14 Mele (2001, 50-1).
15 Kunda (1990) é o locus classicus sobre o papel da motivação no raciocínio.
1. Atenção seletiva:16 nosso desejo que p pode levar-nos à evasão, isto é, a
deixar de dar atenção à evidência que conta contra p, e a darmos atenção
apenas à evidência que sugere que p seja verdadeiro;
2. Procura seletiva de evidência: nosso desejo que p pode levar-nos a
negligenciar evidência facilmente acessível contra p e encontrar evidência
para p que é muito menos acessível;
3. Má interpretação positiva: nosso desejo que p pode levar-nos a
interpretar erroneamente como apoiando p informação que, na ausência
desse desejo, seria facilmente reconhecível como contando contra p;
4. Má interpretação negativa: nosso desejo que p pode levar-nos a
interpretar erroneamente como não contando contra p informação que,
na ausência desse desejo, seria facilmente reconhecível como contando
contra p;
5. Reativação seletiva de memórias:17 nosso desejo que p pode levar-nos a
reativar memórias que sugerem que p é verdadeiro e a evitar a reativação
de memórias que contam contra p, ou seja, pode levar-nos a efetuar
procura seletiva de evidência na memória;
6. Criação de falsas memórias:18 nosso desejo que p pode levar-nos a
confundir imaginação e memória, e a confundir memórias verdadeiras
com memórias falsas;
7. Racionalização:19 nosso desejo que p pode levar-nos a construir
justificações para nossa crença que p que visam contornar o fato de
termos chegado a essa crença por outros processos mentais como, por
exemplo, pelo desejo ansioso que p seja o caso.
Essa lista não pretende ser exaustiva, mas é suficiente para nosso
propósito de ilustrar como um sujeito pode ser influenciado por uma
motivação. A sugestão da explicação deflacionária do autoengano, à qual
subscrevemos, reside apenas em apontar que a lacuna conceitual deixada
pelo autoengano pode ser preenchida com sucesso pelo fenômeno da
formação e subsequente manutenção de uma crença falsa pela ação de
mecanismos dos quais dispomos e com os quais fazemos com que a
realidade venha apoiar nossa vontade. Sit pro ratione voluntas: que a
minha vontade substitua a razão. Juvenal20 pôs estas palavras na boca de
uma aristocrata caprichosa e autoritária, mas variações dessa atitude
epistemicamente condenável são—tacitamente—onipresentes.
Referências