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Último olhar

As pálpebras cadentes cerraram os olhos num movimento suave, condescendendo a


solicitação, e uma série de imagens conhecidas, porém desconexas, substituíram as
impressões do recinto semi-obscurecido.
Junto ao divã, sentado em uma elegante poltrona vitoriana, encontrava-se o psicólogo
a anotar o comportamento do jovem. Toda reação era correspondida com movimentos
frenéticos do lápis, sob o olhar atento do especialista.
— Diga-me Luís, o que vê?
Após breve pausa, respondeu:
— Nada. Não consigo ver coisa alguma. Somente ouço. Ouço muitas vozes.
— Consegue identificar o que estão falando? — inquiriu o psicólogo.
— Não entendo o que falam, mas sei que estão falando de mim. Sinto tocarem
minhas mãos — disse o jovem alargando o sorriso.
— Você conseguiria identificar esse lugar?
— Acredito que seja a antiga casa de meus avós. Tenho quase certeza. O cheiro é
inconfundível.
— Reconhece as vozes? Poderia dizer de quem é? — indagou seguidamente.
— Sim, algumas. Escutei a voz do tio Alfredo, da tia Lena, de minha mãe e também
da vó Augusta. Ouço outras, mas não sei de quem se trata — falou com morosidade.
O psicólogo terminava de anotar as últimas palavras pronunciadas quando,
inesperadamente, o semblante do rapaz deixou de lado a feição angelical para instantes
depois, lágrimas verteram como se algo terrível estivesse acontecendo naquele momento.
Logo em seguida ele agarrou a calça na altura das nádegas e, de modo abrupto tentou arrancá-
la. Algo o incomodava.
Como resposta o psicólogo abriu um singelo sorriso, e anotou no bloco: fome +
fralda suja.
Aproximando-se um pouco mais de Luís, ele anunciou a próxima estação que seria
contemplada na já percorrida estrada da vida: o útero. Pouco a pouco o corpo do jovem rapaz
foi sendo envergado. Os joelhos iniciaram deslocamento em direção ao peito, e os braços
foram dobrando lateralmente, posicionando as mãos próximas a boca. Via-se pelo peito que o
frenesi cedera lugar à brandura, e um sobe-e-desce ritmado foi estabelecido.
Admirando toda aquela tranquilidade e pesaroso por quebrá-la, o psicólogo iniciou
novamente sua investigação.
Último olhar 02

— Como se sente?
O jovem movia os lábios de modo excêntrico, como se os tivesse explorando pela
primeira vez. Então respondeu num murmúrio:
— Ótimo. É o melhor lugar em que já estive.
Rapidamente o psicólogo folheou o bloco e assim que encontrou folha em branco
anotou: Útero: gestação aparentemente tranquila, sem sinais de violência e/ou trauma. “Está
na hora de retroceder mais”, pensou.
Luís havia retornado ao útero de sua mãe por quinze minutos, e quando o psicólogo
lhe informou que iria retroceder até o ponto em que obtivesse alguma lembrança, seu corpo
retomou a forma inicial, deitado com as pernas paralelas e os braços ao lado do corpo, inertes.
Deixou o semblante infantil e novamente configurou-se como o de um jovem sensato de vinte
anos. Mas isso não perdurou por muito tempo. Passados alguns minutos o psicólogo notou as
sobrancelhas desceram e os olhos apertaram como quando somos atingidos por luz muito
forte.
— Pode descrever o lugar onde você está? — perguntou, direto ao assunto.
Como acontecia com a maioria dos pacientes, Luís demorou a responder. Algumas
vezes parecia que se esforçava para pronunciar as palavras, como se uma força extra-corporal
o impedisse de exprimi-las.
— Estou numa vila... — segredou instantes depois. — Vejo algumas cabanas no
meio da mata. Tudo muito verde...
As últimas palavras chamaram a atenção do psicólogo, que sem demora anotou:
Visão com distinção de cores. Ele em seguida formulou outra pergunta:
— E o que você está fazendo?
— Estou segurando uma arma — respondeu, sendo correspondido com o som do
atrito do grafite no papel do bloco de anotações. — Estou apontando a arma para algumas
pessoas... elas estão nuas.
— E quem são?
— Índios. Existem outras pessoas, como eu.
— São teus amigos?
— Não sei... mas também apontam armas para os índios — lamentou. — Não gosto
do sujeito gordo.
— Quem é ele?
— Nosso mandante. Não gosto dele — respondeu, finalizando com um suspiro.
O psicólogo escrevia rapidamente.
Último olhar 03

— Por que não gosta dele?


— Não quero fazer o que ele manda.
— Ele quer que vocês atirem nos índios?
— Não — respondeu em tom ríspido. — Ele está mandando arrancar os olhos deles.
O psicólogo não terminou de escrever. Seus olhos, que naquele momento miravam o
bloco de anotações, percorreram a trajetória mais curta para chegar ao rosto de Luís. Largou o
lápis, perplexo. A expressão facial do jovem juntamente com a respiração ofegante
transpassavam uma mistura de angústia e revolta; a camisa encharcada de suor grudava-lhe o
corpo.
— Sabe me dizer o motivo de tal ordem?
— Ele não gosta das pessoas da mata. Poupa somente as meninas que são
transformadas em escravas de seus desejos.
— E o que você fez?
— Ele me ameaçou... — falou, iniciando pranto desesperador. — Se eu não o
obedecesse, ele mataria minha família.
Tremores violentos sacudiram o corpo do jovem, lembrando pessoas que entram em
estado de choque. Ele cobriu os olhos com as mãos e começou a repetir sem cessar: Não
quero ver... não quero ver... não quero ver... não quero ver...
Ao presenciar os efeitos que as recordações geraram em Luís, o psicólogo resolveu
por fim a sessão.
— Escute-me Luís — solicitou Camilo — você está no ano de 2021, deitado num
divã, e eu, Camilo, estou aqui do seu lado — ele segurou a mão de Luís. — Vamos voltar
lentamente dessa longa viagem. Não se preocupe. Acalme-se.
Como quem desperta de uma longa noite de sono, Luís lentamente abriu os olhos e
esticou os braços para trás, espreguiçando no divã. Camilo ajudou-o a sentar.
— O que houve comigo? — perguntou após sentir à camisa úmida.
— Como eu falei na primeira consulta, você saberá somente na última seção.
— Minha mandíbula dói — reclamou.
Camilo levantou da poltrona para alcançar a bolsa de Luís que estava sobre a mesa, e
colocou-a sobre os joelhos do rapaz, que agradeceu.
— Isso é normal. Se deve a tensão produzida nessa região — Ele foi até a mesa e
pegou a agenda. — E então, em que dia deseja a próxima sessão?
Luís não respondeu. Massageava suas bochechas.
— Está tudo bem?
Último olhar 04

— Sim, claro... é só uma dorzinha... Poderia ser para o dia 9?


— A tarde?
— Ótimo!
Camilo marcou no dia 9 de setembro, duas horas.
Luís abriu a bolsa e retirou um bastão de alumínio que se desdobrou quando ele
levantou.
— Venha comigo — disse Camilo, enganchando no braço direito de Luís — esses
meus tapetes são perigosos!
Em frente ao elevador, Luís esticou a mão para o aperto de despedida.
— Muito obrigado, doutor. Estou ansioso por saber tudo o que falei.
— E eu estou ansioso para lhe contar — respondeu o psicólogo que, ao voltar-se para
dentro do consultório, lembrou: — Ah, estava esquecendo... boa sorte na cirurgia!
— Obrigado — respondeu Luís, entrando receoso no elevador.

Ele receberia as córneas de Elisa, uma garota que vinha sofrendo de problemas renais desde o
nascimento e que faleceu depois de dezesseis longos anos de tratamento por rejeição dos
órgãos que recebera. Pelo menos foi isso que Luís ouviu falar.
Ele soube do falecimento da garota na sala de espera do consultório de Camilo,
quando atendeu o telefonema da mãe. Sentiu-se culpado por não ficar mais triste do que
alegre. Pensou se aquela reação era correta, se estava no caminho certo agindo dessa maneira.
Esperava aquilo a tanto tempo, que não ficar feliz seria enganar os próprios sentimentos.
Saiu do consultório e foi direto para o hospital, onde uma equipe médica o
aguardava. O estômago diminuiu no trajeto da portaria até o quarto onde trocou de roupa e
deixou suas coisas. Toda sorte de pensamentos lhe passou pela cabeça. “Será que amanhã
estarei aqui? Talvez eu morra, e nunca mais possa ver a face daqueles que amo. Gostaria de
ver o sorriso de meus pais, de meus irmãos, de meus avós e de, finalmente, ver as orelhas
caídas e o focinho achatado de Balo.” Em contrapartida, adveio-lhe pensamento otimista:
“Você verá a todos, pois foi isso que desejou a vida toda!”

— Ocorreu tudo bem! — anunciou o médico a toda família, que aguardava na sala de espera.
Gustavo, o pai de Luís, declarou surpreso:
— Foi rápido. Achei que demoraria muito mais.
— Com os avanços da ciência — retorquiu o médico, orgulhoso — conseguimos
diminuir consideravelmente o tempo dos transplantes.
Último olhar 05

— E quanto tempo ele ficará vendado? — indagou Jasmine, irmã mais nova de Luís.
— Por volta de duas semanas.
As duas semanas passaram com rapidez devido a quantidade de coisas que Andreas,
o avô materno de Luís, havia comprado. Entretenimento não faltava: audio-books e livros em
braile aos montes ocuparam o tempo do rapaz entre uma visita e outra. Vó Augusta trouxera
várias folhas de papel colorido, pois Luís aprendera a fazer origamis quando pequeno.
Luís aguardava o médico na enfermaria do hospital para retirar os curativos,
anelando por sentir os primeiros fachos de luz transpassarem as retinas. Não conseguia
imaginar coisas como a televisão, o computador, a lâmpada. Tudo isso estava prestes a ser
explorado pelo seu mais novo sentido.
Finalmente o médico chegou. Seu Andreas, que trouxera Luís para o hospital, parecia
o mais ansioso da sala. Luís tinha em mente que o pior já havia passado,e agora era só colher
os resultados.
O médico pediu para os enfermeiros colocarem cortinas grossas nas janelas, e alertou
o rapaz para o choque inicial, tendo em vista que, passados vinte anos na escuridão, não seria
muito agradável as primeiras experiências com a luz.
Ao retirar a venda e posteriormente as gases e algodões, o médico autorizou Luís a
abrir os olhos lentamente, lembrando-o que seria dolorido no início. E então, ele o fez.
A primeira imagem que penetrou em sua retina não foi muito diferente do que estava
acostumado a ver... negridão. A sala havia ficado escura a tal ponto que era difícil diferenciar
as coisas que ali se encontravam. Após alguns segundos pode perceber dois vultos a sua
frente. Um deles se aproximou, deixando Luís um pouco assustado, pois o vulto, de repente,
aumentou. O avô pegou em uma das mãos de Luís, e ele logo o identificou.
— Estou te vendo, seu Andreas! — exclamou, rindo.
Os dois se abraçaram. Tudo começava a ter sentido, como se aquilo que ele via já
fizesse parte de si, ou que tudo aquilo que via já havia sido construído por sua imaginação.
Luís ansiava por encontrar sua família e fitar cada rosto pela eternidade afora,
admirando-os com todo amor que sentia. Sabia que demoraria para ver nitidamente,
entretanto, o fato de vislumbrar imagens difusas já o animava.
De súbito a porta se abriu com um estrondo e a sala foi inundada de luz. As pupilas
de Luís contraíram-se rapidamente, e ele conteve o grito de dor, levando as mãos nos olhos. O
som horrendo percorreu o quarto chegando até seus ouvidos, logo reconheceu a fonte: vó
Augusta.
Último olhar 06

— Andreas — gritou a senhora, correndo para os braços do marido — eles


morreram, todos eles.
Um jato de adrenalina jorrou por todo corpo de Luís. A gravidade deixou de existir.
Os olhos, que estavam fechados devido a abundante luz, se abriram, e dor nenhuma foi
sentida. Posteriormente ele confessaria que as sensações daquele momento foram semelhantes
a dos sonhos sem nexo, inexplicáveis, que nada se entende e nada se conclui.
Pulou da maca e correu em direção à avó. Desesperado, agarrou em seus braços e
perguntou aos berros:
— Quem? Quem morreu, vó?
Ela, ainda atordoada pelo acontecimento, abraçou-o e disse:
— Querido, eles morreram, todos eles... seu pai, seus irmãos, sua mãe.
Um ardor indescritível e incomparável irradiou nos olhos de Luís, e as primeiras
lágrimas dos novos olhos correram por todo rosto. Ele nada sentiu além da profunda tristeza
que abatera seu ser.

Segundo testemunhas, o caminhão avançou o sinal vermelho e colidiu de frente com o carro
da família, que estava a caminho do hospital a fim de dar boas vindas a nova vida do filho e
irmão. Os pais de Luís morreram no mesmo instante, já os irmãos morreram no hospital, um
na entrada da sala de emergência e outro duas horas depois, na cirurgia. Soldados do corpo de
bombeiros tiveram dificuldades para retirar os corpos entre as ferragens. O motorista do
caminhão nada sofreu, e segundo o laudo da polícia militar ele estava embriagado.
No velório, Luís retirou os óculos escuros e observou-os, como desejou em toda sua
vida. Todos estavam intactos nos respectivos caixões. Os rostos lisos, brancos e serenos, como
num sonho eterno. Naquele instante, as lembranças da última sessão de regressão emergiram
do subconsciente. Ali estavam as mesmas pessoas que ele ameaçou. Recordou dos rostos, do
semblante de cada um. Ele estava diante dos índios que tiveram os olhos retirados
violentamente por ele.
E então tudo ficou claro. Todas as reminiscências de uma vida passada
manifestaram-se, e aquilo que ele deveria compreender, por fim, compreendeu.
Sentia brasa nos olhos, mas não podia deixar de contemplar as quatro imagens que
jamais esqueceu.

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