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Estranheza infinita da vida

«Meu caro amigo,» dizia Sherlock Holmes, estávamos nós sentados de cada
lado da lareira, nos seus aposentos em Baker Street, «a vida é infinitamente
mais estranha do que qualquer coisa que a mente do homem possa inventar.
Nós nem nos atreveríamos a conceber as coisas que são, na verdade, meros
lugares-comuns da existência. Se pudessemos voar daquela janela, de mão dada,
planar sobre esta grande cidade, remover cuidadosamente os telhados e
espreitar as coisas singulares que se estão a passar, as estranhas coincidências,
os planos, os projectos contrários, as espantosas cadeias de acontecimentos
operando através de gerações e levando aos resultados mais outré, isso faria
com que toda a ficção, com as suas convenções e conclusões previstas, ficasse o
mais insípida e não-lucrativa.»

ARTHUR CONAN DOYLE, «A Case of Identity», The Adventures of Sherlock


Holmes, Harmondsworth, Penguin, 1994, p.55.
POSTED BY EU AT TERÇA-FEIRA, OUTUBRO 04, 2005

Carta de um louco
Meu caro doutor, ponho-me nas suas mãos. Faça de mim o que quiser.
Vou falar-lhe, bem francamente, do meu estranho estado de espírito, e o senhor
apreciará se não valerá mais tomar conta de mim por algum tempo numa casa-
de-saúde, do que deixar-me sujeito às alucinações e aos sofrimentos que me
atormentam.
Eis a história, longa e exacta, do mal singular da minha alma.
Eu vivia como todo o mundo, olhando a vida com os olhos abertos e cegos do
homem, sem me espantar e sem compreender. Vivia como vivem os animais,
como vivemos todos, cumprindo todas as funções da existência, examinando e
crendo ver, crendo saber, crendo conhecer o que me rodeia, quando, um dia, me
apercebi que tudo é falso.
Foi uma frase de Montesquieu que iluminou bruscamente o meu pensamento.
Ei-la: «Um orgão a mais ou a menos na nossa máquina far-nos-ia uma outra
inteligência.
...Enfim, todas as leis estabelecidas sobre o facto da nossa máquina ser de uma
certa maneira, seriam diferentes se a nossa máquina não fosse desta maneira.»
Reflecti sobre isto durante meses, e meses, e meses, e, a pouco e pouco, uma
estranha claridade entrou em mim, e essa claridade fez em mim a noite.
Com efeito, - os nossos orgãos são os únicos intermediários entre o mundo
exterior e nós. Quer dizer que o ser interior, que constitui o eu, se encontra em
contacto, por meio de uns quaisquer filamentos nervosos, com o ser exterior que
constitui o mundo.
Ora, não só esse ser exterior nos escapa pelas suas proporções, a sua duração, as
suas propriedades inumeráveis e impenetráveis, as suas origens, o seu porvir ou
os seus fins, as suas formas longínquas e as suas manifestações infinitas, como
ainda os nossos orgãos não nos fornecem, sobre a sua parcela que podemos
conhecer, senão informações tão incertas, quão pouco numerosas.
Incertas, porque são unicamente as propriedades dos nossos orgãos que
determinam para nós as propriedades aparentes da matéria.
Pouco numerosas, porque, não sendo os nossos sentidos mais que cinco, o
campo das suas investigações e a natureza das suas revelações encontram-se
bem restringidas.
Explico-me. - O olho indica-nos as dimensões, as formas e as cores. Ele engana-
nos sobre esses três pontos.
Ele não nos pode revelar senão os objectos e os seres de dimensão média em
proporção com a estatura humana, o que nos levou a aplicar a palavra grande a
certas coisas e a palavra pequeno a certas outras, unicamente porque a sua
fraqueza não lhe permite conhecer aquilo que é demasiado vasto ou demasiado
miúdo para ele. Donde resulta que ele não sabe e não vê quase nada, que o
universo quase inteiro lhe permanece oculto, a estrela que habita o espaço e o
animálculo que habita a gota de água.
Mesmo se ele tivesse cem milhões de vezes a sua potência normal, se percebesse
no ar que respiramos todas as raças de seres invisíveis, assim como os
habitantes de planetas vizinhos, existiriam ainda números infinitos de raças de
animais mais pequenos e mundos de tal maneira longínquos que não os
alcançaria.
Logo, todas as nossas ideias de proporção são falsas, pois que não há limite
possível na grandeza, nem na pequenez.
A nossa apreciação das dimensões e das formas não tem qualquer valor
absoluto, sendo determinada unicamente pela potência de um orgão e por uma
constante comparação com nós mesmos.
(...)
Passemos à cor.
A cor existe, porque o nosso olho é constituído de tal sorte que transmite ao
cérebro, sob a forma de cor, os diversos modos em que os corpos absorvem e
decompõem, segundo a sua constituição química, os raios luminosos que os
atingem.
Todas as proporções dessa absorção e dessa decomposição constituem os
cambiantes.
Logo, esse orgão impõe ao espírito a sua maneira de ver, ou melhor, o seu modo
arbitrário de verificar as dimensões e de apreciar as relações entre a luz e a
matéria.
Examinemos o ouvido.
Ainda mais que com o olho, somos os joguetes e os papalvos deste orgão
fantasista.
Dois corpos chocam produzindo um certo abalo da atmosfera. Esse movimento
faz estremecer no nosso ouvido uma certa pequena pele que torna
imediatamente em ruído aquilo que, na realidade, não é mais que uma vibração.
A natureza é muda. Mas o tímpano possui a propriedade miraculosa de nos
transmitir sob a forma de sons, e de sons diversos consoante o número de
vibrações, todos os frémitos das ondas invisíveis do espaço.
Essa metamorfose realizada pelo nervo auditivo no curto trajecto do ouvido ao
cérebro permitiu-nos criar uma arte estranha, a música, a mais poética e a mais
precisa das artes, vaga como um sonho e exacta como a álgebra.
Que dizer do gosto e do olfacto? Conheceríamos nós os perfumes e a qualidade
dos alimentos sem as propriedades extravagantes do nosso nariz e do nosso
paladar?
No entanto, a humanidade poderia existir sem o ouvido, sem o gosto e sem o
olfacto, quer dizer, sem qualquer noção do ruído, do sabor e do odor.
Logo, se tivéssemos alguns orgãos a menos, ignoraríamos coisas admiráveis e
singulares, mas, se tivéssemos alguns orgãos a mais, descobriríamos, à nossa
volta, uma infinidade de outras coisas, a respeito das quais jamais
suspeitaremos da falta de meio para as notar.
Logo, enganamo-nos ao julgar o Conhecido, e estamos rodeados pelo
Desconhecido inexplorado.
Logo, tudo é incerto e apreciável de maneiras diferentes.
Tudo é falso, tudo é possível, tudo é duvidoso.
(...)
Dois e dois não devem mais ser quatro para lá da nossa atmosfera.
(...)
Depois de me ter convencido que tudo o que os meus sentidos me revelam não
existe senão para mim na maneira em que o percebo, e seria totalmente
diferente para um outro ser de outro modo organizado, depois de ter concluído
que uma humanidade diversamente feita teria sobre o mundo, sobre a vida,
sobre tudo, ideias absolutamente opostas às nossas, pois, o acordo das crenças
não resulta senão da similitude dos orgãos humanos, e as divergências de
opinião não provêm senão de ligeiras diferenças de funcionamento dos nossos
filamentos nervosos, fiz um esforço de pensamento sobre-humano para
suspeitar do impenetrável que me rodeia.
Tornei-me eu um louco?
Disse a mim mesmo: estou cercado por coisas desconhecidas. Supus o homem
sem ouvidos e suspeitando do som, como nós suspeitamos tanto de mistérios
ocultos, o homem notando os fenómenos acústicos, de que não poderá
determinar nem a natureza, nem a proveniência. E ganhei medo de tudo o que
me rodeia, medo do ar, medo da noite. A partir do momento em que não
podemos conhecer quase nada, e a partir do momento em que tudo é sem
limites, o que é o resto? O vazio não é? O que é que há no aparente vazio?

GUY DE MAUPASSANT, «Lettre d'un fou», Le Horla et autres contes


d'angoisse, Paris, Flammarion, 1984, pp.37-41.
POSTED BY EU AT TERÇA-FEIRA, OUTUBRO 04, 2005
Para lá das palavras

«Causava pavor e era perplexo estar ali em cima com toda aquela gente na
palma da mão. Mas o outro lado da moeda era que, embora estivesse rodeado
por uma massa de pessoas que me adoravam, eu devia ser a pessoa mais só que
ali estava. Consegues imaginar como é terrível, quando se tem tudo e se está
ainda desesperadamente só? É horrível para lá das palavras.
Pareço devorar as pessoas e destruí-las. Deve haver um lado destrutivo em mim,
porque tento muito construir relações, mas, de algum modo, afasto as pessoas.
Elas lançam-me sempre a culpa do fim da relação, porque sou eu quem tem
sucesso. Quem quer que esteja comigo parece entrar numa luta para tentar
igualar-me, para compensar de um modo exagerado... então, acabam por me
espezinhar!
Não posso ganhar. O amor é uma roleta russa para mim. Ninguém ama o meu
verdadeiro eu aqui dentro, estão todos apaixonados pela minha fama, pela
minha qualidade de estrela. Apaixono-me demasiado depressa e acabo sempre
magoado. Estou cheio de marcas. Mas não o posso evitar, porque, no fundo, sou
um fraco - eu tenho esta casca dura, de macho, que projecto no palco, mas
também há em mim um lado bem mais suave que se derrete como manteiga.
Tu podes ter tudo no mundo e, ainda assim, ser o homem mais só - e esse é o
tipo mais amargo de solidão!
O sucesso trouxe-me a idolatria mundial e milhões de libras, mas evitou que eu
tivesse aquela coisa de que todos precisamos - uma relação de amor continuada.
O meu maior pesadelo foi sempre o de entrar num quarto vazio.
Adoro ter tanto dinheiro, mas não acho graça contá-lo. E, porque tenho bem
mais do que preciso, dou imenso às pessoas de quem gosto. Tento gozar a vida
e, se não houvesse dinheiro, não deixaria que isso me impedisse de me divertir.
Nos primeiros tempos, quando eu não tinha quase nada, poupava por duas
semanas e depois rebentava tudo num dia para me divertir a sério.
Se eu amanhã caísse morto, a Mary seria aquela pessoa que sei que se
aguentaria bem com a minha imensa fortuna. Ela trabalha na minha
organização e olha pelo meu dinheiro e por todos os meus bens. Tem a seu cargo
todos os chauffeurs, criadas, jardineiros, contabilistas e advogados. Eu só tenho
de atirar a minha carcaça pelo palco!
Na verdade, não penso em como será quando eu tiver morrido, ou como me vão
lembrar. Na verdade, não penso nisso. Isso é com eles. Quando eu tiver
morrido, quem é que se importa? Eu não!»

FAROUKH BULSARA

Gulliver
Quando o jantar estava quase acabado, entrou a ama com uma criança de um
ano nos braços; ela viu-me imediatamente e, de acordo com a costumada
oratória dos infantes, para me tomar como brinquedo, começou numa
guinchadeira que se poderia ouvir da ponte de Londres até Chelsea. A mãe, por
pura indulgência, pegou-me e pôs-me diante da criança que logo me agarrou
pela cintura e meteu a minha cabeça na boca, na qual berrei tão alto que o
diabrete se assustou e me deixou cair; e teria infalivelmente partido o pescoço,
não tivesse a mãe posto o seu avental por baixo de mim. A ama, para acalmar o
seu bebé, fez uso de um guizo, que era uma espécie de receptáculo oco cheio de
grandes pedras e seguro por um cabo à cintura da criança: mas tudo foi em vão,
de modo que ela foi forçada a aplicar o último remédio dando-lhe mama. Tenho
de confessar que nenhum objecto alguma vez me enojou tanto como a visão do
seu monstruoso seio, não conseguindo lembrar-me de nada com que possa
compará-lo, de modo a dar ao leitor curioso uma ideia do seu tamanho, forma e
cor. Constituía uma proeminência de três côvados e não podia ter menos de sete
em circunferência. O bico tinha perto de metade da grandeza da minha cabeça, e
o tom, tanto daquele, como da mama, era tão variado com sinais, borbulhas e
sardas, que nada podia parecer mais nauseabundo: pois eu via a ama de perto,
sentada o mais convenientemente para dar mama, estando eu de pé, na mesa.
Isto fez-me pensar nas lindas peles das nossas damas inglesas - e estas
pareciam-nos tão belas, somente porque são do nosso próprio tamanho e os
seus defeitos não se deixam ver senão através de um vidro de aumento, onde,
por experiência, descobrimos que as mais suaves e brancas peles aparecem
ásperas, grosseiras e manchadas.
Recordo-me de, quando estive em Lilliput, a tez daquela diminuta gente me
parecer a mais bela do mundo: e falando sobre este assunto com uma pessoa de
saber de lá, que era um amigo íntimo meu, ele dizia que a minha face parecia
muito mais bela e macia quando me olhava do solo, do que numa visão mais
próxima quando o elevava na minha mão e o aproximava - o que ele confessava
ter sido, de início, uma visão bastante chocante. Disse que podia descobrir
grandes buracos na minha pele, que os tocos da minha barba eram dez vezes
mais fortes que as cerdas de um javali, e a minha tez composta de várias cores
era de todo desagradável: embora eu tenha de pedir licença de dizer, por mim,
que sou tão belo como a maioria do meu sexo e do meu país e, em todas as
minhas viagens, muito pouco queimado pelo sol. Por outro lado, falando das
damas da corte daquele imperador, costumava ele dizer-me que uma tinha
sardas, outra, uma boca demasiado larga, uma terceira, um nariz demasiado
grande - nada disto eu conseguia distinguir. Confesso ser esta reflexão óbvia que
baste, da qual, contudo, não me podia abster, não fosse o leitor pensar serem
aquelas enormes criaturas realmente disformes: pois, tenho de lhes fazer a
justiça de dizer que são uma bem parecida raça de gente, e, em particular, os
traços do semblante do meu senhor, ainda que não fosse ele senão um lavrador,
quando o olhava a uma altura de trinta côvados, me pareciam muito bem
proporcionados.

JONATHAN SWIFT, Gulliver's Travels, Oxford, Oxford University Press (The


World's Classics), 1992, pp.81-83.
POSTED BY EU AT SEXTA-FEIRA, OUTUBRO 28, 2005 0 COMMENTS

Chapinhar
A considerável esterilidade das lições académicas sobre Filosofia, tem como
razão o esforço de, num semestre, se leccionar os ouvintes o mais possível sobre
tudo o que há no mundo, ou até mais do que isso, nos famosos traços gerais.
Devemos aprender a nadar, mas limitamo-nos a passear na margem do rio,
entretemo-nos com o chapinhar na água e tagarelamos acerca das cidades e
aldeias por onde o rio passa. Desta maneira, é certo que nunca saltará uma
chispa para o ouvinte individual, que faria nascer, na sua existência, uma luz
que não mais se poderia apagar.

MARTIN HEIDEGGER, Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang


von Leibniz [Marburger Vorlesung Sommersemmester 1928], Frankfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 1978, p. 8.
POSTED BY EU AT DOMINGO, DEZEMBRO 11, 2005
A atracção do Mal

Caminhava com os olhos baixos, gozava, ouvia os automóveis deslizar bem perto
dele na calçada (...). De repente, perguntou a si mesmo: "Que automóveis?",
levantou bruscamente a cabeça, o seu coração pôs-se a bater até às têmporas e
viu-os. Iam aprumados, puros e graves, aos quinze ou aos vinte em compridos
carros camuflados que rolavam lentamente em direcção ao Sena, deslizavam
todos direitos e aprumados, tocavam-no ao de leve com o seu olhar
inexpressivo, e os outros vindo após estes, os outros anjos todos iguais e que o
olhavam de modo igual. Daniel ouviu ao longe uma música militar, pareceu-lhe
que o céu se enchia de estandartes e teve de se apoiar a um castanheiro. Sozinho
naquela longa avenida, um Francês sozinho, um civil sozinho, e todo o exército
inimigo o olhava. Não tinha medo, abandonava-se com confiança àqueles
milhares de olhos, pensava: "Os nossos vencedores!" e estava envolvido em
prazer. Devolveu-lhes atrevidamente o seu olhar, saciou-se com os seus cabelos
louros, com os seus rostos queimados em que os olhos pareciam lagos de gelo,
com as suas cinturas estreitas, com as suas pernas incrivelmente longas e
musculosas. Murmurou: "Como são belos!" Já não tocava a terra: eles tinham-
no elevado nos seus braços, apertavam-no contra os seus peitos e os seus
ventres lisos. Qualquer coisa caiu do céu: era a antiga lei. Desmoronada a
sociedade dos juízes, apagada a sentença; na derrota os pequenos e horrorosos
soldados caqui, campeões dos direitos do homem e do cidadão. "Qual
liberdade!", pensou, e os olhos humedeciam-se-lhe. Era o único sobrevivente do
desastre. O único homem diante daqueles anjos de ódio e de cólera, daqueles
anjos exterminadores cujo olhar lhe devolvia uma infância. "Eis os novos juízes,
pensou, eis a nova lei!" Como pareciam irrisórias, acima da sua cabeça, as
maravilhas do céu suave, a inocência dos pequenos cúmulos: era a vitória do
desprezo, da violência e da má fé, era a vitória da Terra. Um carro blindado
passou, majestoso e lento, coberto de folhagem, ronronava apenas. Um rapaz
bem novo atrás, com o casaco posto pelos ombros, as mangas da camisa
arregaçadas acima do cotovelo, cruzava os seus belos braços nus. Daniel sorriu-
lhe, o rapaz olhou-o por muito tempo, com um ar duro, os seus olhos brilhavam,
depois, de repente, enquanto o carro se afastava, pôs-se a sorrir. Revistou
rapidamente o bolso das calças e atirou um pequeno objecto que Daniel
apanhou em voo: era um maço de cigarros ingleses. Daniel apertava o maço com
tal força, que sentia os cigarros rebentarem nos seus dedos. Sorria ainda. Uma
perturbação insuportável e deliciosa subiu-lhe das coxas até às têmporas; já não
via muito bem, repetia ofegando um pouco: "Como em manteiga - eles entram
em Paris como em manteiga." Outros rostos passaram diante do seu olhar
embaciado, ainda outros e outros, sempre assim belos; eles vão fazer-nos mal, é
o Reino do Mal que começa, que delícia! Desejaria ser uma mulher para lhes
atirar flores.

JEAN-PAUL SARTRE, Les chemins de la liberté III: La mort dans l'âme, Paris,
Gallimard, 1996, pp. 101-103.
A aparente espontaneidade humana
«Um homem é o resultado e o representante de todas as forças que vieram a cair
sobre ele, seja antes ou depois do seu nascimento. A sua acção, a cada momento,
depende unicamente da sua constituição e da intensidade e direcção dos vários
agentes a que ele está, e foi, sujeito. Alguns destes contrariar-se-ão mutuamente,
mas, assim como ele é por natureza e assim como ele sofreu a acção, e sofre agora, a
partir de fora, assim ele fará, tão certa e regularmente como se fosse uma máquina.
Geralmente, não admitimos isto, porque desconhecemos a natureza total de cada
um e a totalidade das forças que sobre ele agem. Não vemos senão uma parte, e
sendo assim incapazes de generalizar o comportamento humano, a não ser muito
grosseiramente, negamos que ele esteja sujeito a qualquer lei fixa e atribuímos
muito do carácter e das acções de um homem ao acaso, ou à sorte, ou à fortuna;
mas estas são apenas palavras, pelas quais escapamos à confissão da nossa própria
ignorância; e uma pequena reflexão ensinar-nos-á que o mais ousado voo da
imaginação, ou o mais subtil exercício da razão, é tanto a coisa que tem de
acontecer, e a única coisa que pode, sob qualquer possibilidade, acontecer, no
momento do seu acontecimento, como o é o cair de uma folha morta quando o
vento a sacode da árvore.
Pois, o futuro depende do presente, e o presente (cuja existência é apenas um
daqueles compromissos menores de que a vida humana está cheia - pois, ele só vive
tolerado pelo passado e pelo futuro) depende do passado, e o passado é inalterável.
A única razão por que não podemos ver o futuro tão claramente quanto o passado, é
a de que sabemos muito pouco do efectivo passado e do efectivo presente; estas
coisas são demasiado grandes para nós, de outro modo, o futuro estender-se-ia
diante dos nossos olhos nos seus mais diminutos pormenores, e perderíamos o
nosso sentido do tempo presente em razão da clareza com que veríamos o passado e
o futuro; talvez nem sequer fôssemos de todo capazes de distinguir o tempo; mas
isso é extravagante. Aquilo que realmente sabemos é que quanto mais o passado e o
presente são conhecidos, mais o futuro pode ser previsto; e que ninguém sonha em
duvidar da fixidez do futuro nos casos em que conheça completamente o passado e
o presente e tenha tido experiência das consequências que se seguiram a um tal
passado e a um tal presente em ocasiões prévias. Ele sabe perfeitamente o que
acontecerá e apostará toda a sua fortuna nisso.
E isto é uma grande benção, pois é a fundação sobre que se constroem a moralidade
e a ciência. A garantia de que o futuro não é uma coisa arbitrária e mutável, mas
que futuros iguais se seguirão invariavelmente a presentes iguais, é a base em que
assentamos os nossos planos - a crença sobre a qual praticamos cada acção
consciente das nossas vidas. Se isto assim não fosse, estaríamos sem um guia; não
teríamos qualquer confiança no agir e, por isso, nunca agiríamos, pois não haveria
conhecimento algum de que os resultados que se seguirão agora serão os mesmos
que os que se seguiram antes.
Quem lavraria ou semearia, se não acreditasse na fixidez do futuro? Quem atiraria
água a uma casa em chamas, se a acção da água sobre o fogo fosse incerta? (...) O
futuro tem de ser uma lotaria para aqueles que pensam que as mesmas
combinações podem, umas vezes, preceder um conjunto de resultados e, outras
vezes, outro. (...)
Entretanto, tenho de lidar com amigos que me dizem que, embora o futuro seja fixo
no que respeita à matéria inorgânica e, em certos aspectos, no que respeita ao
homem, há, contudo, muitos casos em que não pode ser considerado como fixo.
Assim, dizem eles que o fogo aplicado a rebarbas secas, e bem alimentado de gás
oxigénio, produzirá sempre uma chama, mas que um cobarde, posto em contacto
com um objecto aterrorizador, nem sempre resultará num homem em fuga. No
entanto, se houver dois cobardes, a todos os respeitos perfeitamente similares, e se
forem sujeitos, num modo perfeitamente similar, a dois agentes aterrorizadores,
que são eles mesmos perfeitamente similares, poucos haverá que não esperarão
uma perfeita similitude na fuga, ainda que mil anos se interponham entre a
combinação original e a sua repetição.
A regularidade aparentemente maior nos resultados das combinações químicas, do
que no das combinações humanas, procede da nossa incapacidade em perceber as
subtis diferenças nestas últimas – que nunca se repetem de modo idêntico.
Conhecemos o fogo e conhecemos as rebarbas, mas nunca dois homens foram ou
serão exactamente iguais; e a mais pequena diferença pode alterar todas as
condições do problema. O nosso registo dos resultados tem de ser infinito antes de
podermos chegar a uma previsão completa das combinações futuras; o espantoso é
que haja tanta certeza a respeito da acção humana como a que há; e, seguramente,
quanto mais velhos nos tornamos, mais certos nos sentimos em relação àquilo que
tal e tal tipo de pessoa fará em dadas circunstâncias; mas isto nunca seria assim, a
menos que a conduta humana estivesse sob a influência de leis, com a operação das
quais nos tornamos mais e mais familiarizados por meio da experiência.
(...) Espontaneidade é apenas um nome para a ignorância humana a respeito dos
deuses.»

SAMUEL BUTLER, Erewhon, Harmondsworth, Penguin, 1985, pp.215-219.

O mundo antes do Homem


Mas vamos demasiado depressa: mal-grado nosso, deslizamos pela ladeira que
nos leva ao presente. Contemplemos primeiro esse mundo que ainda não
estorvamos, essas tantas léguas de floresta atravessada por charnecas que se
estende, quase ininterruptamente, de Portugal à Noruega, das dunas às futuras
estepes russas. Recriemos em nós esse oceano verde, não imóvel, como o são
três quartos das nossas representações do passado, mas movendo-se e
alterando-se no curso das horas, dos dias e das estações, que correm sem terem
sido contados pelos nossos calendários e pelos nossos relógios. Olhemos as
árvores de folha caduca arruivando-se no Outono, e os abetos balançando na
Primavera as suas agulhas completamente novas ainda cobertas por uma
delicada cápsula castanha. Banhemo-nos nesse silêncio quase virgem de ruídos
da voz e dos utensílios humanos, onde se ouvem apenas os cantos dos pássaros
ou o seu chamamento de alerta quando um inimigo, doninha ou esquilo, se
aproxima, o zumbido de miríades de mosquitos, ao mesmo tempo predadores e
presas, o bramido de um urso, procurando na fenda de um tronco um favo de
mel que as abelhas defendem zunindo ou ainda o estertor de um cervo
despedaçado por um lobo-cerval.
Nos pauis ensopados em água, um pato mergulha; um cisne, que toma balanço
para tornar a ganhar o céu, faz o seu enorme barulho com as asas abertas; as
cobras deslizam silenciosamente sobre o musgo ou sussurram sobre as folhas
secas; as ervas rígidas tremem no cimo das dunas ao vento de um mar que ainda
não sujou o fumo de uma caldeira, o óleo de um carburante, e sobre o qual não
se aventurou ainda nenhuma nau. Por vezes, ao largo, o jacto potente duma
baleia; os saltos alegres dos marsuínos, tal como os vi da proa de um barco
sobrecarregado de mulheres, crianças, utensílios domésticos e edredões
transportados ao acaso, no qual me encontrava com os meus em Setembro de
1914, juntando-me à França não invadida, por via da Inglaterra; e a criança de
onze anos sentia já, confusamente, que essa alegria animal pertencia a um
mundo mais puro e mais divino que aquele onde os homens fazem sofrer os
homens.
Mas caímos de novo na anedota humana: dominemo-nos; giremos com a terra
que rola como sempre inconsciente de si mesma, belo planeta no céu. O sol
aquece a delgada crosta vivente, faz abrir os botões e fermentar as carcaças,
retira do solo um vapor que depois dissipa. Em seguida, grandes bancos de
bruma esbatem as cores, abafam os ruídos, recobrem as planuras terrestres e as
ondas do mar com uma única e espessa toalha parda. A chuva sucede-lhe,
ressoando em biliões de folhas, bebida pela terra, sugada pelas raízes; o vento
verga as árvores jovens, abate os galhos velhos, varre tudo com um imenso
rumor. Por fim, instalando-se de novo, o silêncio, a imóvel neve, sem outro traço
sobre a sua extensão que não o dos cascos, das patas ou das garras, ou as
estrelas que nela gravam as aves ao pousar. As noites de luar, vislumbres a bulir
sem que seja preciso um poeta ou um pintor para os contemplar, sem que um
profeta esteja lá para saber que, um dia, espécies de insectos grosseiramente
caparazonados se aventurarão lá em cima, na poeira daquela bola morta. E,
quando a luz da lua não as esconde, as estrelas brilham, mais ou menos
dispostas como o estão hoje, mas ainda não ligadas, por nós, entre si, em
quadrados, em polígonos, em triângulos imaginários, e não tendo ainda
recebido os nomes de deuses e de monstros que não lhes dizem respeito.

Mas já, e um pouco por todo o lado, o homem. O homem ainda diperso, furtivo,
por vezes perturbado pelos últimos avanços dos glaciares demasiado próximos,
e que não deixou senão poucos traços nesta terra sem cavernas e sem rochedos.
O predador-rei, o lenhador dos bichos e o assassino das árvores, o caçador
ajustando o seu laço onde se estrangularão os pássaros e as suas estacas sobre as
quais se empalarão os animais de pelagem; o monteiro que espreita as
migrações sazonais para conseguir a carne seca dos seus Invernos; o arquitecto
das ramadas e dos toros descascados, o homem-lobo, o homem-raposa, o
homem-castor reunindo em si todos os engenhos animais, aquele de que a
tradição rabínica diz ter a terra recusado a Deus um punhado da sua lama para
lhe dar forma, e de que os contos árabes asseguram terem os animais tremido
ao verem esse verme nu. O homem com os seus poderes que, seja qual for a
maneira em que os avaliemos, constituem uma anomalia no conjunto das
coisas, com o seu dom terrível de ir mais além no bem e no mal do que o resto
das espécies vivas por nós conhecidas, com a sua horrível e sublime faculdade
de escolher.

MARGUERITE YOURCENAR, Le Labyrinthe du Monde II:, Archives du Nord,


Paris, Gallimard, 1998, 18-21.

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