CURSO DE DIREITO
BLUMENAU
2008
SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL
Por
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Presidente: Profª – Ivone Morcilo Fernandes Lixa – Orientadora, FURB
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Membro: Profª Lenice Kelner – Examinadora, FURB
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RICARDO ELIEZER DE SOUZA E SILVA MAAS
AGRADECIMENTOS
Cecília Meireles
RESUMO
Mais do que certas condutas tidas como criminosas, o sistema penal parece perseguir certos
indivíduos. Esse é o objetivo do presente trabalho, tentar compreender o funcionamento
seletivo do sistema penal moderno. A análise parte da reflexão acerca da lógica punitiva
moderna, com vistas a discutir as origens desse modelo de política criminal e confrontar as
funções declaradas do sistema penal, tais como a repressão e a ressocialização, e suas funções
reais, a estigmatização e a criação de verdadeiras carreiras criminais. Num segundo momento,
tentar-se-á desconstruir o mito do direito penal como igualitário, atingindo a todos
igualmente, independentemente de qualquer fator social. Ao final, a reflexão pretende
discutir, com base na criminológica crítica, a forma como fatores como raça e condição social
são determinantes na hora de se aplicar o direito penal. O objetivo institucional buscado foi a
confecção do Trabalho de Conclusão de Curso, com a finalidade de obtenção do Grau de
Bacharel em Direito. Utilizou-se o método indutivo, com pesquisas bibliográficas, livros,
artigos, pesquisa em saítes da internet e dados estatísticos sobre o sistema prisional brasileiro.
More than certain conduct taken as criminals, the criminal justice system seems to prosecute
certain individuals. That's the goal of this paperwork, trying to understand the selective
functioning of the modern criminal justice system. The analysis starts with a reflection
regarding the modern punitive logic, in order to discuss the origins of this type of criminal
policy and to confront the declared functions of the penal system, such as repression and
resocialization, and its actual functions, the stigma and creation of criminal careers. Secondly,
we will be tried to deconstruct the myth of criminal law as equal, persecuting all, regardless of
any social factor. At the end, discussion, based on critical criminology, will be about the way
factors like race and social status are crucial in time to apply the criminal law. The
institutional objective sought was the construction of a college graduation thesis, with the aim
of obtaining the degree of bachelor of law. We used the inductive method, with bibliographic
searches, books, articles, searches on the Internet and statistics on the Brazilian prison system.
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8.
2 LÓGICA PUNITIVA MODERNA.....................................................................................9.
2.1 SISTEMA PENAL...............................................................................................................9.
2.1.1 Conceito............................................................................................................................9.
2.1.2 Segmentos do sistema penal...........................................................................................11.
2.1.3 Legitimação do sistema penal.........................................................................................12.
2.1.4 A função do sistema penal no estado moderno...............................................................14.
2.2 POLÍTICA CRIMINAL.....................................................................................................19.
3 SELETIVIDADE DO SISTEMA PENAL........................................................................22.
3.1 O MITO DO DIREITO PENAL IGUALITÁRIO.............................................................22.
3.2 A TEORIA DO ETIQUETAMENTO...............................................................................25.
3.3 A CIFRA NEGRA E A CRIMINALIDADE DE COLARINHO BRANCO....................28.
3.4 SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DO SISTEMA PENAL.........32.
4 CONCLUSÃO.....................................................................................................................36.
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................38.
ANEXO I – ESTUDO DE CASO.........................................................................................39.
8
1 INTRODUÇÃO
2.1.1 Conceito
Nilo Batista (1990, p. 25) então conclui que, ao “grupo de instituições que,
segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o direito penal, chamamos
sistema penal”.
Para Zaffaroni (2007, p. 65-66):
Chamamos ‘sistema penal’ ao controle social punitivo
institucionalizado, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe
detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma
pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que
institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os
casos e condições para esta atuação. Esta é a idéia geral de “sistema
penal” em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador,
do público, da polícia, dos juízes e funcionários e da execução penal.
O público, por sua vez, exerce seu papel no sistema penal, por meio da
denúncia, tendo em suas mãos a faculdade de desencadear funcionamento o sistema
(ZAFFARONI, 2007, p. 67).
Enfim, não se pode excluir do sistema penal o público, que, na
condição de denunciante, tem o poder de operacionalizar o próprio
sistema e na condição de opinião pública e “senso comum” interage
ativamente com ele. A opinião pública figura na “periferia” do sistema
(ZAFFARONI, 1987, p. 33; HULSMAN, 1993 apud ANDRADE,
1997, p. 175-176)
E é por essa razão, que além de atribuir ao sistema uma função de “proteção
de bens jurídicos”, é necessário atribuir também a pena funções socialmente úteis, tais como
prevenção e ressocialização. (ANDRADE, 1997, p. 179).
A legitimidade do sistema penal requer, desta forma, uma congruência
da sua dimensão operacional em relação à sua dimensão
programadora em nome da qual pretende justificá-lo; ou seja, requer
não apenas sua operacionalização no marco da programação
normativa (exercício racionalizado de poder), mas também o
14
Nesse mesmo sentido, J. C. Santos (1981, p. 42), entende que isso ocorre,
pois a atuação do sistema penal esta atrelada ao sistema de produção e, por conseguinte, ao
mercado de trabalho:
Este conceito se desdobra em duas hipóteses: se a força de trabalho é
insuficiente para as necessidades do mercado, a punição assume a
forma de trabalho forçado, com finalidades produtivas e preservativas
da mão-de-obra; se a força de trabalho é excedente das necessidades
do mercado, a punição assume a forma de penas corporais, com
destruição ou extermínio da mão-de-obra: a abundância torna
desnecessária a preservação (RUSCHE, 1977, p. 4 apud SANTOS, J.
C., 1981, p. 42).
Será que algum grande empresário culpado pela prática de abuso do poder
financeiro ou político, os chamados “crimes de colarinho branco”, sempre com reflexos
nefastos na vida de muitas pessoas, será punido com a mesma intensidade que alguém
advindo das classes menos favorecidas pego furtando um pote de margarina?
A comparação pode parecer meio exagerada, mas a realidade é que, muitas
vezes, na hora da criminalização de determinado individuo, parecem existir alguns fatores que
são levados mais em consideração do que a conduta praticada.
Sobre essa questão, Zaffaroni (2007, p. 107) ensina que
Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o direito
penal do autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação
extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato
em si, mas o ato como manifestação de uma “forma de ser” do autor,
esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de
sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso,
seria a personalidade e não o ato. Dentro desta concepção não se
condena tanto o furto, como o “ser ladrão”, não se condena tanto o
homicídio como o ser homicida, o estupro, como ser delinqüente
sexual etc.
Ou seja, no dito “direito penal do autor”, o réu é punido mais pelo que ele é,
do que pelo que ele fez. Ou melhor, para fins penais, na hora de desencadear o processo
punitivo e aplicar a pena, mais importante do que o ato cometido pelo acusado, é quem ele (o
acusado) é.
O conceito de “direito penal do autor” corrobora o ditado popular de que, no
Brasil, os três pês, pretos, pobres e p., são mais visados pelo sistema penal do que outras
pessoas.
Nesse mesmo sentido, Andrade (1997, p. 270) coloca que,
A clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque
tenham uma maior tendência de para delinqüir, mas precisamente
porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados
como delinqüentes. As possibilidades (chances) de resultar etiquetado,
com as graves conseqüências que isto implica, se encontram
desigualmente distribuídas.
E é por isso que os “três pês” são muito mais perseguidos pelo aparelho
penal do que aqueles perpetradores de “crimes de colarinho branco”, pois são justamente
esses segundos que “escolhem” o que deve ser perseguido pelo direito penal, já que são os
detentores do poderio econômico.
O resultado disso é a intensidade com que se penaliza o furto, crime
tipicamente praticado por “não proprietários” e que afronta a lógica do capitalismo, e a quase
que total impunidade existente para com os crimes contra o sistema financeiro, tipicamente
praticados por grandes empresários, mesmo sendo muito mais danosos para a sociedade como
um todo.
Não é de se estranhar que o sistema penal é tão zeloso em sancionar o
protesto político ou o consumo de estupefacientes e tão tolerante com a criminalidade de
colarinho branco (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 47)
Ademais, a mídia, em sintonia com o Capital, cumpre seu papel imunizando
e ignorando os crimes praticados pelas classes altas, e identificando a criminalidade como a
violência individual das classes baixas, agravando a estigmatização das classes despossuídas
no senso comum.
Com efeito, a crença cega na igualdade do direito penal, contribui para
mistificar os mecanismos de seleção e estigmatização dos “clientes” do sistema penal.
“[...] uma aparência de racionalidade aos mesmos processos de
estigmatização que no Antigo Regime tiveram lugar sobre a base de
crenças ou adesões de fé. A verdade da ciência substitui a verdade da
fé em sua justificação da discriminação e desigualdade perante a lei
penal. Não é necessário acudir aos planteamentos da mais-valia para
concluir que a questão criminal não é congênita a um determinado
grupo social (RAMIREZ, 1987, p. 18 apud ANDRADE, 1997, p.
271).
Como já dito, o que o sistema penal busca não é a alegada defesa social,
mas sim a defesa dos interesses dos detentores do poder, funcionando como mero legitimador
das relações de poder dentro da sociedade.
Ademais, essa atuação seletiva do aparato penal, enquanto agência de
controle social, voltada a indivíduos etiquetados como criminosos, é um dos instrumentos de
perpetuação dessa dominação de uma classe social sobre outra.
A legitimação tradicional do sistema penal como sistema necessário à tutela
das condições essenciais de vida de toda a sociedade civil, além da proteção
de bens jurídicos e de valores igualmente relevantes para todos os
consórcios, é fortemente problematizada no momento em que se passa –
como é lógico em uma perspectiva baseada na reação social – da pesquisa
sobre a aplicação seletiva das leis penais à pesquisa sobre a formação mesma
das leis penais e das instituições penitenciárias (BARATTA, 1991a, p. 115
apud ANDRADE, 1997, p. 210).
O fato é que esses crimes são praticados por quem “escolhe” o que deve, ou
não, ser perseguido pelo direito penal, em razão da constante interpenetração do poder
político pelo poder econômico.
Os poucos processo que são instaurados para apurar esse tipo de crime, “se
não terminam em absolvição, dão lugar a condenações muitas vezes puramente simbólicas,
sem o estigma e os custos da prisão (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 536).
Os crimes de colarinho branco são considerados “crimes sem vítimas” ou
“crimes de vítimas abstratas”, pois, normalmente, não atingem uma pessoa especifica, mas
sim a sociedade como um todo.
E por isso mesmo, seus reflexos são de extrema gravidade e muito piores do
que qualquer furto ou o simples usos de substâncias entorpecentes. Por exemplo, no caso dos crimes
em que o próprio Estado é lesado e são subtraídos valores que reverteriam em investimentos na saúde,
segurança e educação, para não falar em outros serviços públicos essenciais, acarretando a perda de
vidas humanas pela deficiência desses serviços.
Ou ainda, o resultado de uma crise econômica, como a que estamos
vivenciando atualmente, com reflexos terríveis em diversos países, tudo em razão da
irresponsável especulação financeira nos Estados Unidos.
Historicamente, todas as sociedades, no seu tempo e ao seu modo,
engendraram fatores criminógenos. Os hábitos e condutas privativas dos
nobres, pelo contágio hierárquico, passaram para a burguesia, tornando-se
comuns os saques, as violações, os seqüestros, a embriaguez,
comportamentos que não acarretam punições para os nobres, mas que se
tornam criminosos quando cometidos pelos homens do povo (PIMENTEL,
1983, p. 19).
Dias e Andrade (1984, p. 385), por sua vez, sustentam que o predomínio das
classes marginalizadas nas instâncias do controle penal e nas estatísticas oficiais da
criminalidade não é uma coincidência, mas sim “grandezas sistematicamente produzidas”.
É, por isso, natural que sobre os membros das classes mencionadas existam
maiores probabilidades de criminalização.
A criminologia radical sustenta, por seu turno, que a seleção não pode
encarar-se em termo tão neutros. Segundo ela, a seleção operada pelas
instâncias de controle não reflete apenas a dissonância organizacional
daquelas instâncias, antes reproduz, no plano da justiça criminal, as linhas de
fratura e de conflito que, a nível macroscópico, dominam cada formação
social. O que significa entender, segundo esta perspectiva criminológica, que
é a justiça de classe a idéia central a que acaba por reconduzir-se toda a
seleção [...] (DIAS; ANDRADE, 1984, p. 385-386).
Mais uma vez, a questão retorna ao ponto da real função do sistema penal,
não de defensor de uma ordem social justa, mas de instrumento de dominação de uma classe
sobre outra.
Com os indivíduos pertencentes dos estratos mais baixos da sociedade
carregando o eterno estigma de potenciais delinqüentes, fica muito mais fácil mantê-los sob
controle da minoria dominante. E pra piorar, esse estigma que é diariamente reforçado pela
mídia e pelas estatísticas oficiais da criminalidade.
A contribuição do estigma para a perpetuação do nosso modelo de
sociedade é a legitimação de incursões da polícia em favelas, da violência policial, do
tratamento subumano e indigno nas prisões e, por via de conseqüência, da seletividade do
sistema penal.
36
4 CONCLUSÃO
legitimar a atuação quase que exclusiva do aparato penal contra determinado grupo de
indivíduos.
38
REFERÊNCIAS
ANEXO
1% 5% 8%
12% Analfabetos
17%
Alfabetizados
Ensino Fundamental
Ensino Médio
Não informado
57%
40
32% 18 a 24 anos
15%
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 45 anos
46 a 60 anos
Mais de 60 anos
17% Não informado
26%
Com relação à etnia ou cor de pele, tem-se que, de um total de 373.018
apenados, 149.774, ou 40% do total, são tidos como “brancos”, 62.218, ou 16%, são tidos
como “negros”, 144.701, ou 38%, são tidos como “pardos”, 1.823, ou 0,4%, são tidos como
“amarelos”, e, finalmente, 430, ou 0,1%, são tidos como “indígenas”. Existem, ainda, cerca de
13.118 apenados, algo em torno de 3,5% do total, que foram “catalogados” como “outras”.
0%3%
0%
Branca
41% Negra
39% Parda
Amarela
Indigena
Outras
17%
que estão cumprindo pena no sistema penitenciário brasileiro podem ser considerados como
“não brancos”.
Desta forma, o que se conclui é que a população carcerária brasileira, como
no resto do mundo, é formada majoritariamente por jovens “não brancos” com baixo nível de
escolaridade. Podendo-se presumir, então, que a grande maioria pertence aos estratos
marginalizados da sociedade.
Dentro de uma perspectiva da criminologia positivista, a delinqüência é um
sintoma revelador da personalidade socialmente perigosa de determinado individuo. Essa
característica de periculosidade social é identificada pelos positivistas como uma
anormalidade, e é usada como medida na captação do sujeito e aplicação de pena pelo sistema
penal.
Todavia, essa tese, apesar de amplamente utilizada, é contraposta pela
criminologia crítica, para quem o sistema penal age de forma seletiva sobre determinado
indivíduos, além de considerar que a prática delituosa não é uma exceção, mas sim o
comportamento da maioria dos indivíduos em nossa sociedade.
Assim, com base na afirmação de que a maior parte da população carcerária
no Brasil é formada por jovens “não brancos” advindos dos estratos mais baixos da sociedade,
faz-se necessário ponderar: serão esses mais propensos a práticas delituosas por razões físico-
psíquicas que os diferenciam do homem médio, ou será que é o sistema penal que, atuando de
forma seletiva, acaba concentrando seu poder punitivo contra esses sujeitos?
Adotando-se a corrente crítica da criminologia, pode-se dizer que a
delinqüência não se restringe aos estratos inferiores, mas sim, como já exposto neste trabalho,
é prática disseminada por todos os andares da pirâmide social.
Da mesma forma, a periculosidade social desses indivíduos não advém de
características físico-psíquicas que os diferenciam dos ditos homens de bem e os tornam mais
propensos à criminalidade, mas sim do fato de quebrarem a lógica de trabalho e submissão do
capitalismo, do fato de não serem meros “corpos dóceis e úteis” a disposição do capital, etc.
Veja que, segundo o relatório em comento, a população carcerária brasileira
responde, no total, pela prática de 424.645 crimes. Desse total, mais de 207 mil (48%) foram
crimes que atentaram, ao menos de alguma forma, contra o patrimônio, mais especificamente:
1.499 seqüestros, 5.963 extorsões, 11.086 receptações, 13.061 latrocínios, 61.579 furtos,
115.320 roubos.
De uma maneira geral, o relatório especifica a prática de algo em torno de
20 crimes, dentre os quais, os mais expressivos são os crimes contra o patrimônio, aqueles
42
contra os costumes (19.307 – 4% do total), os crimes contra a vida (63.485 - 14% do total), os
contra a “Lei de Armas” (20.240 – 4% do total) e o tráfico de drogas (66.367 – 15% do total).
Fora esses, constam alguns poucos menos expressivos que, juntos, não
perfazem mais de 15 mil delitos. Existem ainda, 41.714 crimes praticados pelos apenados que
foram agrupados e listados como “outros crimes”.
Lei de Armas
Outros Crimes
15%
4%
Ora, não há que se olvidar que a imensa maioria da população carcerária
brasileira foi incursa na prática de um número muito pequeno de crimes se comparado ao
número de condutas tipificadas como crime em nosso ordenamento jurídico. Vale lembrar
que, somente o nosso código penal especifica mais de uma centena de condutas criminosas.
É de ressalta que, de acordo com o relatório, no Brasil cumpre-se pena pela
prática de apenas 2.911 crimes contra administração pública, 0,6% do total de crimes pelos
quais se cumpre pena. Tal dado causa estranheza, pois os “crimes contra a administração
pública” são aqueles dos artigos 312 ao 337 do nosso Código Penal, dentre os quais destaca-
se o peculato (art. 312), emprego irregular de verbas ou rendas públicas (art. 315), corrupção
passiva (art. 317), corrupção ativa (art. 333), sonegação de contribuição previdenciária (art.
337A), entre tantos outros.
Uma explicação seria a de que crimes contra a administração pública, como
aqueles supra mencionados, não sejam comuns no Brasil. Ou talvez sejam, mas como a
função declarada do sistema penal é a defesa social, os crimes contra o patrimônio particular
sejam mais lesivos a sociedade como um todo, do que sonegar contribuições previdenciárias
ou dar às verbas públicas destinação diversa da estabelecida em lei.
Na verdade, a imensa maioria da população carcerária brasileira esta incursa
43
na prática de crimes contra o patrimônio, pois furtos e roubos são praticados, em sua grande
maioria, por indivíduos advindos da base da pirâmide social. Enquanto que os crimes que
lesam o erário público, e refletem muito mais negativamente na sociedade, são praticados
pelos detentores do poder econômicos e/ou político.
Como se vê, o discurso da “defesa social” não passa de mero instrumento
legitimador dessa lógica distorcida de funcionamento do Sistema Penal, aonde quem é
condenado e preso é aquele indivíduo etiquetado como criminoso e que, mesmo sem saber, se
rebela contra a lógica do sistema de produção capitalista. Em contrapartida, aqueles que de
fato comentem crimes com reflexos socialmente negativos são ignorados pelo sistema penal.
Ou seja, mais do que contra certas condutas tidas como criminosas, o
sistema penal parece se voltar contra certos indivíduos.