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Os 3 teoremas de Gödel

Joel Luis Carbonera

Introdução

Para discorrer a respeito da importância do trabalho de Kurt Gödel, é necessário relacioná-lo ao seu
contexto histórico. Durante o período turbulento compreendido entre a década de 70 do século XIX
e a década de 30 do século XX, estabeleceram-se uma série de questionamentos relacionados à
matemática. Esta etapa da história foi denominada pelos historiadores da Ciência como a “crise nos
fundamentos da Matemática”, em uma alusão ao abalo sofrido pela Matemática depois da
descoberta de teoremas que introduziram inconsistências insolúveis na em sua teoria. Entre esses
paradoxos, tornaram-se famosos os descobertos por Greg Cantor e Bertrand Russel.

Motivado pelo então chamada crise e buscando contorná-la, na década de 1920 o matemático
alemão David Hillbert propôs um programa de investigação que visava a reformulação das bases da
matemática. Esta reformulação, na visão de Hillbert, deveria ser pautada pela axiomatizações das
teorias fundamentais da Matemática como objetos matemáticos. Para isto, a estrutura lingüística que
dá base às diversas disciplinas Matemáticas - leia-se as definições, os axiomas e os princípios
lógicos utilizados por elas - deveriam ser explicitados unicamente em função destes objetos
lingüísticos, sem recorrer a qualquer fundamentação que não estivesse previamente completamente
formalmente definida. Ou seja, Hillbert pretendia definir um conjunto fundamental de axiomas que
fundamentaria rigorosamente toda a Matemática. Realizada esta utopia Hillbertiana, qualquer
proposição da matemática poderia ser provada dentro desse sistema (e o sistema seria dito
completo).

Em 1928, no Congresso internacional de Bolonha, Hillbert apresentou seu programa de


investigação e, na ocasião, definiu questões muito precisas que pretendia investigar:

• Seria a Matemática completa? No sentido técnico de Hillbert, a completude implica que toda
a afirmação (ex: “todo o inteiro é a soma de quatro números quadrados”) definida dentro de
um sistema formal pode ser demonstrada ou rebatida dentro deste sistema.

• Seria a Matemática consistente? A consistência implica que, dentro de um sistema formal,


informações inconsistentes nunca poderiam ser alcançadas por uma seqüência de passos
válidos de uma demonstração. Ou seja, para ser consistente, um determinado sistema formal
não deve ser capaz de sustentar uma determinada fórmula bem formada e, simultaneamente,
a sua própria negação.

• Seria a Matemática decidível? A decidibilidade implica na existência de um método bem


definido que, em princípio, ao ser aplicado a qualquer asserção, conseguiria garantidamente
produzir uma decisão correta quanto à verdade da asserção. Ou seja, um sistema formal é
considerado decidível se ele suporta um conjunto finito de passos válidos que demonstra
uma determinada fórmula válida. Na visão de Hillbert, após a formalização da Matemática,
qualquer asserção produzida dentro dela poderia ser provada mediante manipulações
meramente mecânicas, sem que fosse necessário considerar o significado dos termos
envolvidos.

Nenhuma destas questões tinha resposta, embora Hillbert opinasse que a resposta seria positiva para
todas as questões. Isto sugere uma crença por parte de Hillbert, em uma Matemática completa,
consistente e decidível.

Neste contexto, o trabalho de Kurt Gödel se insere como uma espécie de desfecho, anunciando
resultados que constituíram em duros golpes nos objetivos propostos por Hillbert, mas que, por
outro lado, revolucionaram a maneira através da qual a Matemática era encarada até então,
sugerindo limites ao que pode ser provado dentro dos sistemas formais, e à própria noção de
formalização da racionalidade. Na próxima sessão serão discutidos os 3 principais teoremas de
Gödel.

Os teoremas de Gödel

O primeiro dos 3 famosos teoremas de Gödel, conhecido como o teorema da completude de Gödel
foi publicado em um trabalho de Gödel, intitulado “Completude dos axiomas do cálculo funcional
de primeira ordem”. Este teorema estabelece que, se uma proposição for verdadeira a partir de um
dado conjunto de axiomas, existe um conjunto de argumentos lógicos que permite demonstrá-la
verdadeira. Ou seja, este teorema demonstra que todos os teoremas que derivam dos axiomas
podem ser provados. Assim, o teorema estabelece uma correspondência entre a noção semântica de
verdade e provabilidade sintática da lógica de primeira ordem.

Os dois teoremas restantes, conhecidos como teoremas da incompletude de Gödel, foram


publicados em um trabalho intitulado “Acerca de proposições formalmente indecidíveis nos
Principia Mathematica e sistemas relacionados”. Estes teoremas, sustentam, respectivamente, que:
• Teorema 1: Qualquer teoria axiomática recursivamente enumerável e capaz de expressar
aritmética não pode ser, simultaneamente, completa e consistente. Ou seja, em uma teoria
consistente, sempre há proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas ou
negadas. Tais proposições podem ser vistas como teoremas que independem dos axiomas.

• Teorema 2: Qualquer teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar aritmética e


probabilidade formal, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for
inconsistente. Ou seja, tais teorias, se forem consistentes, não são capazes de provar sua
própria consistência.

Para provar os teoremas da incompletude, Gödel introduziu um novo esquema de prova, que por si
só já é uma grande contribuição para a Matemática. Este esquema envolvia a realização de 3 passos:

1) Estabelecer as regras pelas quais axiomas (e teoremas) podem gerar novos teoremas. Estas
regras compreendem as regras de dedução natural.

2) Estabelecer os axiomas da aritmética em linguagem de lógica de predicados. Tais axiomas


são os axiomas de Peano para os números naturais. Em tais axiomas, note-se que o símbolo
s denota sucessor, um conceito primitivo. O sucessor de 0 é 1, de 1 é 2, ... de n é n+1:

3) Estabelecer uma forma de numeração para os teoremas assim gerados. Ou seja, este passo
envolve a codificação de fórmulas em números (os chamados números de Gödel, entidades
numéricas que falham em comportar-se como números em certos pontos de vista). Assim,
Gödel mostrou que as fórmulas do seu sistema podiam ser codificadas como inteiros,
representando asserções acerca de inteiros. É interessante notar que, através deste processo,
Gödel codificaria toda uma teoria da aritmética dentro da própria aritmética.

Para realizar a codificação referenciada no passo 3, Gödel definiu os 12 símbolos constantes


fundamentais a associou a cada um deles um número distinto (Como na Figura 1).
Figura 1: À esquerda o símbolo constante, na coluna do meio
o número que representa o símbolos, à direita, o significado
usual do símbolos. Imagem retirada do livro Godel's Proof

Além dos 12 símbolos constantes, e seus números associados, Gödel definiu uma tabela semelhante
para os três tipos de variáveis que ele utiliza:

• Variáveis numéricas (Figura 2): Representam numerais, tais como s0 (sucessor de zero), ou
expressões numéricas, tais como x+y.

Figura 2: À esquerda, as variáveis consideradas, na


coluna do meio, o número associado à variável, à
direita, um possível significado da variável. Imagem
retirada do livro Godel's Proof
• Variáveis sentenciais (Figura 3): p, q, r,...Variáveis que substituem sentenças.

Figura 3: À esquerda, as variáveis consideradas, na


coluna do meio, o número associado à variável, à
direita, um possível significado da variável. Imagem
retirada do livro Godel's Proof

• Variáveis de predicado (Figura 4): P, Q, R,...Variáveis que substituem predicados como “é


primo” ou “é maior que”.

Figura 4: À esquerda, as variáveis consideradas, na


coluna do meio, o número associado à variável, à
direita, um possível significado da variável. Imagem
retirada do livro Godel's Proof

Os números de Gödel são construídos da seguinte forma. Tomam-se os número primos a partir do 2.
São eles: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 23, 29... Cada axioma terá seu número de Gödel calculado através de
uma multiplicação de termos (que representam os símbolos do axioma), sendo cada qual formado
por uma base e um expoente, onde a base é um número primo e o expoente é o número que
representa o símbolo. Na Figura 5 pode-se observar uma fórmula e os número associados a cada um
dos seus símbolos constituintes.
Figura 5: Exemplo de fórmula e os números que representam cada um dos
símbolos constituintes. Imagem retirada do livro Gödel's proof.

Na Figura 6 pode-se observar a multiplicação que resulta no número de Gödel que representa a
fórmula da Figura 5.

Figura 6: Multiplicação que resulta em um número de Gödel que representa a fórmula da


Figura 5. Imagem retirada do livro Gödel's proof.

Este artifício permite que, dado um número, se ele for um número de Gödel, seja possível recuperar
qual o axioma ou teorema que lhe deu origem. Para isto, basta fatorá-lo em seus fatores primos, e
verificar qual o expoente de cada um deles. Ou seja, a relação axioma - número de Gödel é bi-
unívoca. Na Figura 7 é possível observar o processo de obtenção de uma fórmula a partir de um
número de Gödel.
Figura 7: O número 243 milhões, fatorado, revela a fórmula "0=0".
Imagem retirada do livro Gödel's proof

A prova de Gödel é obtida, definindo-se uma fórmula que faz uma asserção sobre si mesma (quando
observada no meta-nível). Esta fórmula é denotada por G e afirma que “A fórmula G não é
demonstrável”. Assim, substituindo G da fórmula G, pelo número de Gödel que codifica G, a
asserção G passa a afirmar sua própria indemonstrabilidade (quando interpretada via sua respectiva
decodificação na meta-linguagem). Desta forma, Gödel obtém uma fórmula que não pode ser
provada e nem refutada dentro do sistema formal em que foi definida. No entando, cabe chamar a
atenção para o fato de que, observando a asserção G de fora do sistema formal em que foi definida,
ela adquire validade.

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