Você está na página 1de 80

GABRIEL PERUZZO

A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL

O OLHAR LIBERTÁRIO DE GIOVANNI ROSSI SOBRE A FAMÍLIA


NUCLEAR NO FINAL DO SÉCULO XIX

FLORIANÓPOLIS – SC

2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO CCHE
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

GABRIEL PERUZZO

A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL

O OLHAR LIBERTÁRIO DE GIOVANNI ROSSI SOBRE A FAMÍLIA


NUCLEAR NO FINAL DO SÉCULO XIX

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no


Centro de Ciências Humanas e da Educação, da
Universidade do Estado de Santa Catarina, para
obtenção do grau de Bacharel e Licenciado em
História.

Orientadora Profa. Dra. Silvia Maria Fávero


Arend

FLORIANÓPOLIS – SC

2008
GABRIEL PERUZZO

A PATOLOGIA DO ORGANISMO SOCIAL

O OLHAR LIBERTÁRIO DE GIOVANNI ROSSI SOBRE A FAMÍLIA


NUCLEAR NO FINAL DO SÉCULO XIX

Trabalho de conclusão de curso apresentado no Centro de Ciências Humanas e da Educação,


da Universidade do Estado de Santa Catarina, para a obtenção do grau de Bacharel e
Licenciado em História.

Banca Examinadora

Orientador: _________________________________
Profa. Dra. Silvia Maria Fávero Arend
DH/UDESC

Membro: __________________________________
Profa. Dra. Janice Gonçalves
DH/UDESC

Membro: __________________________________
DH/UFSC Profa. Pós-Dra. Cristina Scheibe Wolff
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos Arquivos Públicos de Rio do Sul e do Paraná, onde foram dados os
primeiros e importantes passos deste trabalho, aos pesquisadores da Biblioteca Nacional que,
com muito profissionalismo, eficiência e sobretudo, gentileza, permitem que valiosos
documentos possam ser adquiridos e consultados por historiadores e estudantes que não
residem nos grandes centros de pesquisa. De instituições como a Biblioteca Nacional e do
trabalho de seus pesquisadores dependem o acesso e a democratização das fontes pois, apenas
desta forma, é possível submetê-las a um número sempre maior e diverso de olhares,
confrontando interpretações para reconstruir experiências passadas sobre bases sólidas.
Agradeço a profa. Silvia Maria Fávero Arend, pelo incentivo e por ter aceito a tarefa
de orientar este trabalho, assim como a profa. Dra. Janice Gonçalves e profa. Dra. Cristina,
por aceitarem o convite de compor a banca examinadora.
Enfim, agradeço aos meus amigos, cujos nomes aqui omitidos nunca serão esquecidos.
Vocês sabem quem são. E especialmente, a minha família, pelo apoio durante todos esses
anos.
LER PELO NÃO

Ler pelo não, quem dera!


Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
A coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
Enlear-se nos ritmos da matéria,
No fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
nevegar em direção às Índias
e descobrir a América.

Paulo Leminsky
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar as representações sociais construídas pelo
discurso libertário acerca da família nuclear burguesa no apagar do século XIX, incidindo o
olhar sobre os escritos do anarquista italiano Giovanni Rossi. Publicados originalmente entre
1891 e 1895, seus escritos são perpassados por criticas austeras a família nuclear,
constituindo-se em uma rica documentação para o estudo da relação entre família e
pensamento libertário no último decênio do século XIX. O trabalho teve como pano de fundo,
a história da Colônia fundada por Giovanni Rossi no interior do estado do Paraná em 1890, no
interior da qual foram redigidos três dos quatro escritos aqui analisados.

Palavras-chave: Giovanni Rossi. Colônia Cecília. Anarquismo. Família.


INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 7

1.IDÉIAS E PROPOSTAS LIBERTÁRIAS PARA UM SÉCULO REVOLUCIONÁRIO


............................................................................................................................................ 12
1.1 O SÉCULO XIX: DESINTEGRAÇÃO E MUDANÇA.................................................. 12
1.2 PIOTR KROPOTKIN: O EQUILÍBRIO E A HARMONIA DO CORPO SOCIAL ........ 18

2. COLÔNIA CECÍLIA: UM LABORATÓRIO SOCIAL NOS SERTÕES DO BRASIL


MERIDIONAL .................................................................................................................. 28
2.1 O IMPERADOR E O ANARQUISTA: O MITO FUNDADOR DA COLÔNIA CECÍLIA
............................................................................................................................................ 28
2.2 ANARQUISMO E CIÊNCIA NAS SOLIDÕES AMERICANAS .................................. 36

3. EGOÍSMO DA VIDA DOMÉSTICA OU SOLIDARIEDADE DA VIDA COLETIVA:


A FAMÍLIA NUCLEAR BURGUESA SOB AS LENTES DE GIOVANNI ROSSI....... 48
3.1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COLÔNIA CECÍLIA ............................................. 48
3.2 O BEIJO AMORFISTA: PARA ALÉM DO AMOR LIVRE.......................................... 52
3.3 DO SENTIMENTO DA FAMÍLIA AO ESPÍRITO DE FACÇÃO: A PATOLOGIA DO
ORGANISMO SOCIAL ...................................................................................................... 57

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 72

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS .............................................................................. 75

FONTES ............................................................................................................................. 78
7

INTRODUÇÃO

Em 1890, no contexto das políticas imigratórias, era fundada no interior do estado do


Paraná uma colônia de imigrantes italianos anarquistas. Nas terras de Santa Bárbara, distrito
de Palmeira, esta colônia denominada Cecília, ganharia as páginas dos livros de história como
um dos episódios mais instigantes da história social brasileira, do qual teriam participado,
supostamente, o imperador D. Pedro II e o maestro Carlos Gomes.
Como muitas colônias de imigrantes fundadas no século XIX, a Cecília nasceu e
morreu pobre. Entretanto, durante sua efêmera existência, somou experiências de incalculável
valor histórico, o que lhe valeu o reconhecimento através das páginas de romances, de
dramaturgias, do cinema e ainda de uma série de televisão dedicada a sua memória.
A bordo de um navio mercante adaptado para o transporte de passageiros, seus
idealizadores traziam na bagagem algo mais do que o sonho de “fazer a América”. Traziam o
projeto de fundar nas “solidões americanas”, uma colônia onde fosse possível testar
empiricamente as teorias libertárias de reestruturação social. Tendo a frente o agrônomo e
médico veterinário Giovanni Rossi, seu principal articulador, a Colônia Cecília seria mais que
um refúgio de imigrantes que vinham buscar dias afortunados nas terras do Novo Mundo,
seria um laboratório social. A consistência e a solubilidade das teorias libertárias deveriam ser
postas a prova, submetidas aos cânones da ciência positiva, pois desta forma, ganhariam
legitimidade.
Entretanto, para além das teorias políticas e econômicas, Giovanni Rossi almejava a
experimentação prática do amor livre, ou como preferia, do “beijo amorfista”. Esta forma
fluida de relacionamentos conjugais, encontrava na pluralidade de amores simultâneos o meio
de alcançar fins ainda mais audaciosos: a completa dissolução da família nuclear.
Temas recorrentes em seus opúsculos, a igualdade nas relações de gênero e, sobretudo,
as críticas austeras a família nuclear, ocupam uma posição de destaque no pensamento deste
libertário italiano. Lugar-comum na bibliografia sobre a Colônia Cecília, as criticas de Rossi à
família são constantemente colocadas em relevo, todavia, as razões dos discursos cáusticos
professados contra a família nuclear do século XIX permaneciam sem explicações.
Os interesses pela história da família e especialmente, da relação entre família e
anarquismo, surgiram durante as aulas de História Social da Família, através da leitura de um
8

dos textos de Microfísica do Poder1, de Michel Foucault. Em A Governamentalidade,


Foucault discorre sobre o processo que no século XVII fez surgir o problema da população e
de como a família foi convertida pelo Estado em um instrumento para conduzir a população
aos fins desejados. O controle da população pelo Estado, levado a cabo através da família, não
poderia deixar de seduzir um libertário aprendiz de historiador. Os primeiros passos da
pesquisa seriam dados com a redação de um artigo produzido também para a disciplina de
História da Família, cujo tema se desenvolvia em torno dos relacionamentos conjugais
observados através das lentes de Giovanni Rossi.
Todavia, o desejo de levar a discussão a diante em um trabalho de conclusão de curso
esbarrava na ausência de fontes. Após buscas infrutíferas, as primeiras referências
começavam a mostrar-se timidamente com nomes, telefones e endereços obtidos no Arquivo
Histórico de Rio do Sul. Os primeiros e exíguos materiais, seriam localizados no Arquivo
Público do Paraná, onde foram encontradas matérias sobre Giovanni Rossi no periódico
italiano Bresciaoggi, de 1988. Os periódicos libertários obtidos nos arquivos da Biblioteca
Nacional não traziam informações sobre o tema, quando muito, algumas poucas linhas sobre o
amor livre e em jornais operários que não poderiam ser definidos com precisão quanto à
posição política. Não suficiente, muitos periódicos libertários como A Terra Livre e A
Lanterna, não estavam disponíveis, pois passavam por processos de restauração. O melhor a
fazer seria esquecer a experiência de Giovanni Rossi e adotar outro objeto de pesquisa.
Entretanto, o interesse pelas idéias de Giovanni Rossi não findaria assim tão
facilmente. O levantamento de materiais relativos a Colônia Cecília, vida e obra de Giovanni
Rossi caminharia paralelamente a redação de um projeto alternativo de conclusão de curso.
Foi quando tomamos conhecimento da coletânea editada pela Imprensa Oficial do Paraná no
ano 2000, intitulada Colônia Cecília e outras utopias. A coletânea, dedicada inteiramente aos
escritos de Giovanni Rossi, reunia quatro opúsculos de sua autoria publicados entre os anos de
1891 e 1895. Porém, era preciso localizá-la, dado que se tratava de uma edição esgotada. E
assim foi. Os opúsculos O nascimento da Colônia Cecília, Comunidade anarquista
experimental, Um caso de amor na Colônia Cecília e O Paraná no século XX, reunidos em
Colônia Cecília e outras utopias, seriam encontrados em um sebo do Rio de Janeiro.
Seus relatos remetem à construção da Colônia Cecília e às experiências vividas por
seus habitantes, exceto O Paraná no século XX, onde Giovanni Rossi discute suas idéias
através de uma narrativa ficcional. Rossi costumava utilizar narrativas ficcionais como

1
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
9

veiculo real de propaganda política. Através de personagens fictícios, as idéias libertárias


eram discutidas e divulgadas: “a utopia é uma forma, um artifício literário para apresentar as
coisas de maneira mais digerível; e num romance ou num conto pode haver tantas verdades
quantas são as mentiras contidas num respeitável tratado de economia política,”2 afirmava
Rossi.
As fontes literárias, através da análise dos discursos historicamente construídos,
apontam para as representações sociais do autor e de seus leitores, “descrevendo a sociedade
tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.”3 Nesse sentido, os escritos de
Giovanni Rossi consistiam em uma importante fonte para compreender suas representações
sociais acerca da família nuclear burguesa, objeto deste trabalho. Assim, com as fontes em
mãos, o trabalho poderia ser prosseguido.
O flerte da história com a antropologia e a influência exercida pelo conceito semiótico
de cultura desenvolvido por Clifford Geertz reaproximaram a história da dimensão simbólica
do real, substituindo com isso o conceito impreciso de mentalidade adotado até então pelos
historiadores dedicados ao estudo dos fatores subjetivos na história, mais precisamente, pela
categoria “representação”.
Apontada como categoria central da História Cultural por Sandra J. Pesavento, as
representações seriam o meio pelo qual os historiadores culturais ganham acesso a realidade
cifrada do passado, “tentando chegar àquelas formas, discursivas imagéticas, pelas quais os
homens expressam a si próprios e o mundo [...] através de normas, instituições, discursos,
imagens e ritos”.4
As representações ou construções imagéticas podem ser definidas “como as matrizes
de práticas que constroem o próprio mundo social”5, da onde decorre sua importância para a
compreensão de uma realidade social complexa e fragmentada. “As representações
apresentam múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma
contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social e expressa a supremacia conquistada
em uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a
ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que

2
ROSSI, Giovanni. Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 131.
3
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel / Bertrand Brasil,
1988. p. 19.
4
PESAVENTO, Sandra Jatahi. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 39-42.
5
CHARTIER, Roger. O Mundo Como Representação. In: À Beira da Falésia. A História Entre Certezas e
Inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. p. 72.
10

orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam os comportamentos e os


papéis sociais.”6
Admite-se portanto, a realidade não como um monolito intransponível mas como uma
rocha porosa, permeada por fissuras através das quais escorrem discursos e práticas que
fogem às normas, convertendo-se em um palco onde os personagens afirmam posições através
do embate de representações acerca do mundo, estas, plurais em número e singulares entre si.
A categoria representação proposta pela História Cultural como meio de alcançar o
passado mostra-se adequada para compreender realidades multifacetadas, trazendo à tona
indivíduos e grupos que constroem nos interstícios do sistema normativo, suas próprias
representações de mundo, como fizeram os anarquistas da Colônia Cecília. Com isso, através
da análise dos discursos de Giovanni Rossi, pretende-se chegar às suas representações sociais
relativas a família nuclear construídas no final do século XIX.
Por esta via, o trabalho foi dividido em três capítulos: no primeiro, buscou-se expor
em linhas gerais algumas das principais características do século XIX a partir das análises de
René Rémond e Eric Hobsbawm, pensando o século em questão como um momento de
grande complexidade histórica e marcado por vertiginosas transformações. É nesse contexto,
que se engendram as idéias e propostas de Piotr Kropotkin, figura expressiva do pensamento
libertário no último quartel do século XIX e uma das principais influências de Giovanni
Rossi.
No segundo capítulo, as atenções incidiram sobre a desconstrução do “mito fundador”
da Colônia Cecília e nas razões que levaram Giovanni Rossi a cruzar o Atlântico para fundar
no interior do Paraná, um núcleo de colonizadores anarquistas, trazendo a lume a relação
entre o positivismo de Auguste Comte, o anarquismo experimental e a interpretação orgânica
da sociedade identificados no pensamento de Rossi.
Por fim, o terceiro e último capítulo teve como núcleo temático o discurso de Rossi
sobre o amor livre e, especialmente, sobre a família nuclear burguesa, bem como processo de
formação desta e seu isolamento em relação à sociedade observado sobretudo a partir do
século XVIII. Discussão necessária, os debates acerca das relações de gênero foram omitidos,
não por negligência, mas por questões pragmáticas que fizeram com que as atenções se
voltassem para o debate em torno da família. Outras discussões pertinentes, como a
configuração da família italiana e o discurso católico sobre esta, também não se fizeram
presentes pelas mesmas razões, sendo reservadas para trabalhos futuros.

6
PESAVENTO, Sandra Jatahi. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 42.
11
12

1.IDÉIAS E PROPOSTAS LIBERTÁRIAS PARA UM SÉCULO REVOLUCIONÁRIO

1.1 O SÉCULO XIX: DESINTEGRAÇÃO E MUDANÇA

Delimitar um período histórico consiste em fixar marcos cronológicos sobre


acontecimentos que assinalam mudanças e que representam o corpo e o espírito de um tempo.
Tarefa difícil, balizar o tempo que se desdobra em um todo contínuo, é quase sempre assumir
o risco de cair em ciladas armadas pelo anacronismo e cometer arbitrariedades, sobretudo,
quando o período estudado caracteriza-se por uma convulsão de acontecimentos
significativos, seja na política, na economia, na sociedade ou mesmo nas mentalidades, tal
como foi o século XIX.
Enquanto para historiadores como René Rémond7 o século XIX situa-se entre 1815,
com o fim das guerras napoleônicas e o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, para Eric
Hobsbawm, a extensão do século XIX pode ser dividida, grosso modo, em três Eras: A Era
das Revoluções8, 1789-1848, A Era do Capital9, 1848-1875, A Era dos Impérios10, 1875-
1914. Nesse sentido, se o primeiro adota como referencial cronológico eventos políticos que
redefiniram a cartografia e as relações internacionais européias, o segundo, a partir de um viés
marxista, volta os “olhos”, sobremaneira, para a consolidação e expansão do Capitalismo a
partir da Europa de 1850. Entretanto, o diferencial entre os recortes de um mesmo tempo
relaciona-se a abordagens metodológicas díspares e não necessariamente a visões divergentes
sobre o conjunto de acontecimentos que compuseram o século XIX.
Ambos concebem a Europa do oitocentos como um ambiente tenso e marcado por
conflitos, definindo o XIX como “um dos séculos mais complexos, mais cheios que
existem”,11 “um período que realmente não tem paralelo na História e cuja excepcionalidade o
faz estranho e remoto”.12 É a partir desse ponto, sobre o qual incidem os olhares de René
Remond e Eric Hobsbawm – complexidade e excepcionalidade – que o século XIX pode ser
pensado como um dos momentos mais fecundos e ambivalentes da modernidade.
Caracterizá-lo em seus pormenores constituiu uma tarefa por demais ambiciosa e
impossível de ser sintetizada em um reduzido número de páginas. No entanto, distinguir
algumas das cores que tingiram este momento da história imprimindo-lhe formas que ainda
podem ser vislumbradas é, não apenas necessário para compreendê-lo como uma das maiores
7
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. São Paulo, 1974.
8
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
9
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
10
HOBSBAWM, E. J.. A era dos impérios: 1875-1914 . 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
11
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 13.
12
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 15.
13

expressões da modernidade, como útil para chegar ao ideal libertário imaginado por Piotr
Kropotkin, a quem o personagem desta trama, Giovanni Rossi, está ligado por linhas tênues
mas fortemente tensionadas.
Por esta via, a Europa que havia testemunhado o levante popular e a derrocada da
monarquia em 1789 na França, selando o fim do século XVIII com um regime político
constitucional, vê surgir entre os mesmos franceses revolucionários que ameaçavam enforcar
o último rei nas tripas do último padre, o primeiro grande império da modernidade. Figura
emblemática, Napoleão Bonaparte, o jovem general francês nascido italiano, tornou-se
imperador e conduziu a França a um movimento expansionista que subjugou grandes nações
européias no transcorrer de uma década. Seriam necessários 10 anos para que, desde a batalha
de Austerlitz até a surpreendente Waterloo, se constituísse e dissolvesse um império.
Após a queda do império napoleônico, os Estados europeus reunidos no Congresso de
Viena em 1815, redesenharam as fronteiras políticas do continente e restauraram regimes
monárquicos depostos pela Revolução ou por Bonaparte, como em Nápoles, Espanha,
Portugal e nos Paises Baixos13. Assim, a Europa, berço da revolução republicana, presenciou
durante as primeiras décadas do século XIX, as disputas entre as coroas dos reis e o cetro do
imperador.
Apesar da vitória dos reis, a restauração da ordem pré-revolucionária não seria
completa. Muitas das mudanças levadas a cabo pelas monarquias contribuiriam para o
desmonte de uma sociedade aristocrática e para a ascensão da burguesia. Esta saberia fazer
valer suas idéias, seu modo de vida e, principalmente, seu modelo econômico.
Segundo René Rémond,

A evidência de que a restauração está longe de ser integral impõem-se com mais
força ainda no que diz respeito as transformações sociais [...]. A servidão é abolida,
os privilégios suprimidos, a mão-morta eclesiástica desapareceu. A igualdade civil
de todos diante da lei, diante da justiça, diante dos impostos, para os acessos aos
cargos públicos e administrativos, é agora a regra para uma boa metade da Europa.
Tradicionais em certos Estados, as interdições de adquirir terras, feitas à burguesia,
não estão mais em vigor.
Todas essas reformas favorecem principalmente a burguesia e, de fato, passou-se de
uma sociedade aristocrática para uma sociedade burguesa.14

Contudo, se muitas das medidas tomadas pela Restauração abririam caminho para a
alçada da burguesia, sua posição na ordem social seria demarcada definitivamente após

13
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 17.
14
Ibidem, p. 22-23.
14

expansão do capitalismo na segunda metade do século XIX e legitimada pelas idéias liberais
calcadas sobre os direitos individuais, a propriedade privada e o livre comércio.
O desenvolvimento cientifico e tecnológico que alcançaria proporções surpreendentes
a partir de 1870, forneceu as condições necessárias para o alargamento da produção industrial,
bem como para o escoamento das mercadorias para os cinco continentes do globo. Navios a
vapor, locomotivas e estradas-de-ferro, criavam novos nichos de mercado entre as nações
industrializadas e as produtoras de matéria-prima. Mercados que, agora, poderiam ser
controlados internacionalmente através do telégrafo.

O espaço geográfico da economia capitalista poderia multiplicar-se repentinamente


na medida em que a intensidade das transações comerciais aumentasse. O mundo
inteiro tornou-se parte dessa economia . Essa criação de um mundo expandido é
talvez a mais importante manifestação do nosso período.15

Não obstante os avanços dos meios de comunicação que permitiram estabelecer


conexões intercontinentais, as diretrizes teóricas do liberalismo econômico contribuíram em
larga medida para o surgimento de uma economia globalizada.
Admitido pela maior parte das economias, o liberalismo econômico rompia com
medidas protecionistas em beneficio do livre-comércio e da iniciativa privada. O laissez-faire
representava um atrativo mesmo em regimes avessos ao liberalismo político, pois, “se alguns
interesses específicos pudessem ser afetados de forma adversa, havia outros que a
liberalização compensava”, 16 além de “nessa etapa da industrialização, a vantagem de poder
utilizar o equipamento, as fontes e o know-how da Inglaterra era bastante útil”17. A expansão
do capitalismo impulsionou e disseminou a industrialização entre as economias do mundo,
“apesar de ser muito desigual”.18
Deste momento em diante, a indústria se concentraria na produção de ferro, carvão “e
seu símbolo mais espetacular, a estrada de ferro, que os combinava”. 19 A exorbitante
produção industrial só foi possível graças ao desenvolvimento tecnológico e cientifico,
permitindo “a produção em massa de maquinaria, que tinha sido construída virtualmente à
mão, como as locomotivas e os navios continuavam a sê-lo”.20

15
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 59.
16
Ibidem, p. 66.
17
Ibidem, p. 66.
18
Ibidem, p. 68.
19
Ibidem, p. 69.
20
Ibidem, p. 73.
15

Na política, ante a risco de perder seus privilégios econômicos, a burguesia se aliaria


aos conservadores do Antigo Regime. Em 1848, durante os movimentos revolucionários que
ficariam conhecidos como “a primavera dos povos”,21 disseminando entre muitos dos países
da Europa ocidental repúblicas democráticas sociais, a burguesia atuaria como uma força
contra-revolucionária, responsável por levar os movimentos insurgentes a capitulação. O
fracasso desta onda revolucionária deve-se muito à imaturidade política dos trabalhadores
que, motivados mais por questões sociais, não souberam apontar caminhos para as repúblicas
que emergiam.
Não obstante, as camadas sociais que defendiam ideários políticos claros e
delineados, não se imiscuíram, ou por que não representavam forças suficientemente capazes
de fazer frente aos regimes depostos, ou por que a proclamação de regimes democráticos
sociais representavam o início de um “clarão socialista” e o fim da propriedade privada. Em
nome da ordem social e, principalmente econômica, prefeririam a estabilidade política e
tomariam o partido dos conservadores. Desta forma, a burguesia deixaria de ser uma força
revolucionária para integrar as forças da conservação, contudo, não seria complacente com o
absolutismo. As monarquias seriam admitidas, desde que circunscritas por constituições e
parlamentos.
Apesar da derrota, a “primavera dos povos” significou o despertar de uma consciência
de classe, dado que o maior número dos que integravam suas fileiras eram trabalhadores
pobres sublevados contra a carestia da vida, assim como o fim do direito divino que
justificava o poder monárquico. Após 1848, seria necessário legitimar o exercício do poder
político 22. Esses dois fatores aliados, abririam as portas para o movimento operário que
caminharia de braços dados com os ideais socialistas e para a instauração dos regimes
democráticos.
De acordo com René Rémond, liberalismo, democracia e socialismo, constituem
movimentos políticos sucessivos, sendo a democracia, um prolongamento do primeiro23. Se
para os liberais os direitos políticos devem ser confiados a uma minoria e não a totalidade
popular, restringindo o exercício das liberdades aos que possuem capacidades intelectuais e
econômicas para tanto, para os democratas, a igualdade deve ser irrestrita, bem como o pleno
exercício das liberdades e a garantia dos meios para exercê-las. A democracia se opôs ao
liberalismo na medida em que este reclamava o governo de uma oligarquia e o exercício das

21
Ibidem, p. 33.
22
Ibidem, p. 48.
23
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 14.
16

liberdades a uma elite, lutando pelas garantias individuais e pelos direitos políticos estendidos
a todos através do sufrágio universal.
No último quartel do século, o socialismo, que não era nenhuma novidade, fundiu-se
com o movimento operário, confiante em suas propostas revolucionárias de justiça econômica
e social.
Os trabalhadores fabris haviam sido submetidos a um rigoroso processo de
disciplinarização. As longas e extenuantes jornadas de trabalho de até dezesseis horas diárias
não obedeciam ao ritmo natural com o qual estavam habituados. Iniciava-se e terminava-se o
expediente com o soar do relógio e não mais quando o corpo reclamasse por descanso.
Segundo Rémond,

trabalha-se enquanto a claridade ou a luz do dia permitir, ou seja, até quinze ou


dezesseis horas por dia. Nunca se descansa, nem mesmo aos domingos [...] As
crianças são obrigadas a trabalhar desde os mais tenros anos e os mais velhos não
gozam de aposentadoria.24

Assim, o enorme contingente de trabalhadores assalariados que não dispunha de outra


fonte de subsistência que não sua força de trabalho, encontrou no socialismo e na sua
principal bandeira de luta, o fim da propriedade privada, uma promessa de libertação contra a
exploração do trabalho.
Segundo Rémond, as lideranças operárias alinhariam-se

a doutrinas revolucionárias que não acreditam na democracia política. É para o


anarquismo, para o anarco-sindicalismo que se inclinarão a princípio a simpatia e a
confiança dos militantes operários, na França, o sindicalismo ficará impregnado da
ideologia anarco-sindicalista, pelo menos até a Primeira Guerra Mundial.25

Toda complexidade do século XIX ganha relevo em suas constantes transformações e


forças antagônicas, percebidas no declínio de uma sociedade aristocrática sobre a qual se
instalaria uma ordem social burguesa, com uma política parlamentar liberal e sua economia
capitalista globalizada.
Capitalismo, que para além dos incentivos fornecidos pelo livre-comércio, foi
substancialmente alimentado por uma indústria que não mais via limites para escoar suas
mercadorias. Mercadorias produzidas em larga escala e comercializadas em um mercado
mundial devido aos desmesurados avanços da ciência e da tecnologia, que por sua vez,

24
Ibidem, p. 106.
25
Ibidem, p. 55.
17

alimentavam com máquinas, meios de transportes e comunicação, aquela mesma indústria que
fez surgir em torno de si, grandes cidades e aglomerados populacionais.
Esta paisagem urbana, por onde desfilavam cartolas e pomposos chapéus em meio a
fábricas e edifícios, se contrapunha com um mundo rural que no apagar do século em questão,
ainda abrigava a maior parte da população mundial26. Muitos trabalhadores residiam nas
pequenas cidades e vilas situadas nas regiões adjacentes às cidades industriais, alternando o
trabalho no campo com a rígida disciplina do trabalho fabril, dualidade que fez com que esses
proletários “permanecessem meio-agricultores”.27 “Em certo sentido, o choque da
industrialização residia precisamente no grande contraste entre as habitações escuras,
monótonas, repletas de gente, e as fazendas coloridas circunvizinhas”. 28
Sobre o contraste e a sensação de viver em dois mundos, Berman chama a atenção
para a experiência de homens e mulheres que viveram o século XIX:

Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que
desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e
política. Ao mesmo tempo, o público moderno do XIX ainda lembra do que é viver,
material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro.29

Na esteira do que vem sendo dito, complexo e ambivalente por que nenhum outro
século do período moderno parecia estar no epicentro de um “turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”,30 como os anos
1800.
Monarquias absolutistas, regimes liberais, democracias, socialismo, anarquismo e mais
uma miríade de ideais engrossavam o caldo das disputas políticas. Na economia, a expansão
do capitalismo fortalecia a propriedade privada e o livre comércio, enquanto as aviltantes
condições de trabalho alavancavam um movimento operário alinhado às idéias socialistas que
abraçavam a propriedade coletiva dos meios de produção. As indústrias, instaladas nas órbitas
dos centros urbanos, erguiam cidades que dentro em breve conheceriam seus primeiros
arranha-céus, contrastando com a paisagem bucólica do mundo rural. Nem mesmo Deus,
afrontado por Darwin, permaneceria unânime: as teorias criacionistas, sustentadas pelo
discurso religioso, perdiam adeptos face ao Evolucionismo que deitava raízes sobre o
conhecimento científico, este, quiçá, a nova “religião” dos homens modernos.
26
Ibidem, p. 124.
27
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 294.
28
Ibidem, p. 294.
29
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2005. p. 17.
30
Ibidem, p. 15.
18

Fecundo e excepcional, “pelas titânicas realizações materiais”, 31 tomando de


empréstimo a expressão de Eric Hobsbawm, que representaram um período de vertiginoso
crescimento econômico, de efervescência nas descobertas científicas, de grande
desenvolvimento tecnológico e de novas fontes de energia, responsáveis por estreitar
fronteiras e aproximar culturas distintas e distantes. Culturas que se acotovelavam nas ruas
das grandes cidades do Novo Mundo, estas, em larga medida, dilatadas pelas expressivas
levas migratórias de homens e mulheres que traziam na bagagem o sonho de “fazer a
América”.
Vicissitudes e inovações tingiram o céu do “século das revoluções”.32 Suas ameaças e
possibilidades pareciam inesgotáveis para aqueles que viveram a modernidade do século XIX.

Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e
se esforçam para fazê-lo ruir ou explorá-lo a partir de seu interior; apesar disso,
todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às
novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos
ainda sem seu momentos de mais grave seriedade e profundidade.33

Entre os modernistas do século XIX evidenciados por Marshall Berman, tais como
Marx, Nietzsche, Dostoievski e Baudelaire, um geógrafo russo, aristocrata renegado,
compartilhava os mesmos dramas e angústias, bem como a confiança em si mesmo e nos
homens do seu tempo, convicto de estar marchando na direção de épocas melhores. Equilíbrio
e harmonia perpassam o pensamento social de um nobre libertário que via na ciência e no
anarco-comunismo, respostas para a sensação inebriante provocada por tempos convulsivos e
para as contradições de um século complexo e excepcional, fecundo e ambivalente.

1.2 PIOTR KROPOTKIN: O EQUILÍBRIO E A HARMONIA DO CORPO SOCIAL

Na segunda metade do século XIX, os Estados iniciavam o aumento progressivo de


suas funções e dos aparelhos burocráticos responsáveis pela administração estatal, processo
intensificado no início do século XX. “Naturalmente impopular”34, de acordo com René
Rémond, o Estado durante o século XIX, apresentava uma impopularidade ainda mais
pujante, sobretudo entre os segmentos alinhados às idéias socialistas. As hostilidades em

31
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 15
32
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 13.
33
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2005 p. 19.
34
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 98.
19

relação ao Estado partiam especialmente dos meios marxistas e anarquistas, identificadas


visivelmente na noção de autogestão 35.
Para muitos historiadores do anarquismo, a origem das idéias libertárias remonta a
períodos distantes do século XIX, estendendo-se até mesmo à Antiguidade. No entanto, como
ressalta G. Woodcock, esta genealogia atenta às origens distantes do pensamento anarquista
pode ser entendida como uma forma de “emprestar autoridade a um movimento e suas
idéias”36 através de uma extensa tradição construída.
Entretanto, é apenas a partir da década de 1840 que o termo anarquia é adotado para
designar um conjunto de idéias e teorias políticas próprias de um determinado grupo. As
palavras anarquia e anarquista, utilizadas até então pejorativamente para atacar aqueles que se
opunham aos regimes políticos instituídos, a exemplo dos republicanos do período da
Revolução Francesa, foram adotadas por Pierre Joseph-Proudhon para definir seu ideário
político.37 De origem grega, a palavra anarchos significa literalmente “sem governante”38 e
nesse sentido, foi apropriada por Proudhon para definir suas teorias políticas baseadas na
negação da propriedade privada e de um poder político centralizado.
Muito embora Proudhon seja considerado o primeiro a adotar a alcunha de anarquista
e de fornecer as bases das teorias libertárias, inúmeros outros pensadores que o sucederam
desenvolveram variantes singulares destas mesmas idéias. Apesar de possuir um núcleo
comum, fundamentado sobre a oposição a todas as formas de autoridade, assim como na
defesa de federações autônomas e da socialização dos meios de produção, as idéias libertárias
se ramificaram em diferentes vertentes teóricas na segunda metade do século XIX39, como o
coletivismo de Mikhail Bakunin, o anarcossindicalismo francês e o anarco-comunismo de
Piotr Kropotkin, este último, muito prestigiado nos meios anarquistas no último quarto do
século XIX.
Nascido em 1842 no interior de uma nobre família pertencente à casa dos Ruriks,
dinastia anterior à Romanov, Piotr Kropotkin desde muito cedo foi integrado ao cotidiano
nobiliárquico russo, chegando a ser pajem do tzar Nicolau II. Anos mais tarde, seus interesses
pelas ciências, em especial pelas ciências naturais, o levariam inicialmente a uma viajem de
estudos aos confins siberianos, região que voltaria como prisioneiro político da prisão de
Pedro-e-Paulo, em 1874.

35
Ibidem, p. 99.
36
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 41.
37
Ibidem, p. 8-9.
38
Ibidem, p. 8.
39
Ibidem, p. 19-20.
20

Após a morte de Bakunin, em 1876, Kropotkin tornou-se a principal referência no


pensamento libertário, contribuindo com a disseminação dos ideais anarquistas. De acordo
com George Woodcock, foi “à epoca de Kropotkin, quando o anarquismo se espalhou por
quase todos os países do Velho e do Novo Mundo, tornando-se o mais influente movimento
da classe operária no mundo de língua latina. Kropotkin desempenhou um papel
importantíssimo nessa expansão”.40
O período em que Kropotkin ganha proeminência entre os teóricos libertários,
estende-se da década de 1870 até meados do século XX, que corresponde a fase mais prolífica
do pensamento e do movimento libertário, ainda veria ganhar ímpeto o anarco-sindicalismo.
Entre 1870 e 1900, “o ideal anarquista exerce viva atração sobre os intelectuais e sobre muitos
militantes operários”,41 salienta René Rémond.
Entretanto, antes de se destacar como “principal expoente do anarquismo”,42 Piotr
Kropotkin adquiriu vulto como um dos mais renomados intelectuais e geógrafos daquele fim
de século, ao lado de seu amigo pessoal Elisée Reclus, com quem colaborou na publicação de
Geografia Universal.
Segundo George Woodcock,

além de explorar amplas áreas das regiões montanhosas da Sibéria até então não
percorridas por viajantes civilizados, Kropotkin elaborou – com base nessas
observações – uma teoria sobre a estrutura das cadeias de montanhas e platôs da
Ásia Oriental que revolucionou os conceitos existentes sobre a orografia eurasiana.43

Kropotkin, que chegou a ocupar o cargo de secretário da Sociedade Geográfica Russa,


recusou o convite para assumir uma cátedra em Cambridge44, cargo inconciliável com suas
atividades políticas. Entretanto, durante toda sua vida soube conjugar ação política com a
produção de artigos científicos publicados em periódicos conceituados, como Nature e
Times45, ou ainda, colaborando com a Enciclopédia Britânica. Esses artigos científicos lhe
valeram não apenas a fama, mas também os meios para garantir sua subsistência durante as
décadas de exílio que viveu na Inglaterra.

40
Ibidem, p. 214-215.
41
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 114.
42
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 212.
43
Publicado na década de 1930, George Woodcock utiliza a expressão civilizado para se referir aos indivíduos de
sociedades industriais e não de forma depreciativa. Idem, p. 220.
44
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra,
2007. p. 23.
45
Ibidem, p. 16.
21

Homem de comportamento taciturno, Kropotkin, segundo Woodcock, contribuiu para


o anarquismo mais como “personalidade e escritor”,46 do que como um militante de
barricadas, como foi Mikhail Bakunin. Seu prestígio como intelectual ligado às ciências
naturais emprestaram ao anarquismo legitimidade, colocando em relevo as idéias libertárias
nas últimas décadas do século XIX, como ressaltou anteriormente René Rémond.

Entusiasmado e convencido da necessidade de prover o anarquismo de uma


sustentação cientifica e filosófica, para além dos aportes político e econômico,
Kropotkin esforçou-se para encontrar entre as ciências naturais as bases de análise
distintas da metafísica ou da dialética utilizadas, então, para as ciências humanas.
Diferentemente de Herbert Spencer, pretendia usar os exemplos das ciências naturais
não como simples analogia, mas como base de indução aplicada às instituições
humanas.47

Kropotkin acreditava que as teorias anarquistas deveriam ser submetidas aos rigores
do conhecimento científico, pois assim ganhariam credibilidade e aceitação. Em O Princípio
Anarquista, Kropotkin afirma que o anarquista

Deve fazer sobressair a parte grande, filosófica, do principio da anarquia. Deve


aplicá-la à ciência, pois, por isso, ele ajudará a remodelar as idéias: ele combaterá as
mentiras da história, da economia social, da filosofia, e ajudará aqueles que o fazem,
amiúde inconscientemente, por amor à verdade cientifica, a impor a marca
anarquista ao pensamento do século.48

Para Kropotkin, que entendia a sociedade como um organismo, a compreensão dos


fenômenos sociais teria origem nas inferências feitas a partir de exemplos “colhidos nas
ciências naturais”,49 de quem deveriam ser adotados os métodos de estudo. Segundo Piotr
Kropotkin, o pensamento anarquista era uma manifestação da evolução da ciência, que
passava por transformações metodológicas, não apenas nas ciências naturais, mas também nas
“ciências que tratam das relações humanas”:

Como vereis, está em via de operar-se no conjunto das ciências uma mudança ainda
mais profunda e de maior alcance; e a anarquia é apenas uma das múltiplas
manifestações desta evolução. É apenas um dos ramos da nova filosofia que se
anuncia.50

46
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 215.
47
COÊLHO, op. cit., p.19.
48
Ibidem, p. 37.
49
KROPOTKIN, Piotr. A anarquia. Sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2001. p. 20.
50
Ibidem, p. 22.
22

Se fosse só a astronomia a sofrer esta mudança! Mas não, a mesma modificação se


produz na filosofia de todas as ciências sem exceção; as que tratam da natureza, bem
como as que tratam das relações humanas.51

Segundo Kropotkin, a “anarquia” representava uma nova forma de interpretar as


sociedades pretéritas e contemporâneas, assim como de conceber o futuro, sempre
fundamentada nas ciências naturais.

Sob o nome de anarquia surgiu, ao mesmo tempo que uma interpretação nova da
vida passada e presente das sociedades, uma previsão de futuro, concebidas uma e
outra no mesmo espírito que a concepção da natureza que acabo de falar.52

As transformações metodológicas pelas quais passavam as ciências, assinaladas por


Kropotkin, dizem respeito a uma mudança de perspectiva na análise dos objetos de estudo. De
acordo com Kropotkin, naquele momento as ciências deixavam de volver seus “olhos” para os
grandes eventos para se concentrar no estudo dos pequemos ou das partes elementares. Nesse
sentido, a perspectiva holística era substituída pelo estudo dos casos, observações feitas por
Kropotkin a partir dos procedimentos metodológicos da astronomia e da biologia. Para o
geógrafo russo,

Depois de prestar toda sua atenção ao Sol a aos grandes planetas, o astrônomo
entrega-se ao estudo dos infinitamente pequenos que povoam o universo [...] a estes
infinitamente pequenos que sulcam o espaço em todos os sentidos com velocidades
vertiginosas, que se entrechocam, se aglomeram e desintegram, por toda parte e
sempre, é a eles que o astrônomo hoje pede a explicação da origem do nosso
sistema, sol, planetas e satélites, e dos movimentos que animam suas diferentes
partes, e da harmonia do seu conjunto.53

Por esta via, as explicações acerca da origem do sistema astronômico e da harmonia do


conjunto são extraídas das análises da dinâmica dessas partículas que, para Kropotkin
constitui o fator determinante do equilíbrio universal. A resultante dessas forças é que
mantém o equilíbrio e não uma força centralizada.“Desse modo, transportando uma vez da
Terra para o Sol, o centro, a origem da força, acha-se agora disperso, disseminado: está em
toda parte e em parte nenhuma”.54
As mesmas constatações são feitas por Kropotkin no que tange os métodos das
ciências biológicas:

51
Ibidem, p. 25.
52
Ibidem, p. 32-33.
53
Ibidem, p. 23.
54
Ibidem, p. 24.
23

Nas ciências que tratam da vida orgânica, a noção da espécie e de suas variações
desfaz-se, e a noção de indivíduo substitui-se àquela [...] as variações da espécie não
são para o biólogo mais do que resultantes – soma de variações que se produzem em
cada indivíduo separadamente. A espécie será o que forem os indivíduos, sofrendo
cada um as mesmas inumeráveis influências dos meios em que vivem, e aos quais
cada um corresponde de sua maneira.55

Da mesma forma que a astronomia e a biologia, as ciências sociais deveriam deslocar


sua atenção para a interação entre os indivíduos, pois o equilíbrio e a harmonia independem
de uma força centralizada, mas da soma das ações individuais. Assim como a espécie, a
sociedade será o que forem os indivíduos.
Kropotkin acreditava que a sociedade era regulada espontaneamente pelas relações
interpessoais de dependência travadas entre indivíduos autônomos e não subordinados a um
órgão central, “em que cada um vive da sua própria vida, procura por si mesmo o bem-estar, e
atinge-o pelo agrupamento, pela associação de outros como ele”.56
Novamente utilizando a perspectiva sistêmica como base indutiva, Kropotkin defende
a idéia de que a o bem-estar coletivo depende do bem-estar individual. Para o autor, apenas a
satisfação das necessidades e desejos individuais são capazes de manter a harmonia social,
impedindo conflitos ocasionados pela contenção dos meios de alcançá-los.

Em uma palavra, cada individuo é um cosmo de órgãos, cada órgão é um cosmo de


células, cada célula é um cosmo de infinitamente pequenos; e, neste mundo
complexo, o bem-estar do conjunto depende inteiramente da soma de bem-estar de
que goza cada uma das menores parcelas microscópicas da matéria organizada.
Assim se produz toda uma revolução na filosofia da vida.57

A “anarquia” era pensada como um suporte teórico capaz de levar as instáveis


sociedades do século XIX ao equilíbrio. As idéias libertárias de Kropotkin, inspiradas nas
ciências naturais, pregavam o fim de um poder centralizado em proveito de um conjunto de
federações autônomas e autogeridas, estabelecidas no interior de um sistema econômico
comunista, onde seria possível aliar liberdade individual e responsabilidade coletiva.
A perenidade do equilíbrio social seria proporcional ao tempo necessário para
estabelecê-lo e, sobretudo, ao seu caráter natural e espontâneo. Para Kropotkin, o equilíbrio
social só poderia resultar da interação espontânea e não imposta entre indivíduos livres e sob a
condição de ser modificado de acordo com a conjuntura. “Nada há de preconcebido no que

55
Ibidem, p. 25-26.
56
Ibidem, p. 26.
57
Ibidem, p. 26-27.
24

nós chamamos de harmonia da natureza. Bastou, para estabelecê-la, o acaso dos choques e
dos encontros”.58

A harmonia aparece assim como equilíbrio temporário, estabelecido entre todas as


forças, como uma adaptação provisória; e este equilíbrio só durará com uma
condição: a de se modificar continuamente, representando em cada instante a
resultante de todas as ações contrárias. Que uma só destas forças seja contrariada por
algum tempo na sua ação, e a harmonia desaparecerá. A força acumulará seu efeito,
deve abrir caminho, deve exercer sua ação, e se outras forças impedem que se
manifeste, não se aniquilará por isso, mas acabará por romper o equilíbrio, e
trabalhar em uma nova adaptação. Tal como a erupção de um vulcão, cuja força
aprisionada acabou por despedaçar as lavas petrificadas, que impediam de projetar
gases, lavas e cinzas incandescentes. Tais são as revoluções.59

Para os anarquistas, a harmonia e o bem-estar social só podem ser atingidos mediante


um estado de completa liberdade, onde os indivíduos gozem assim de meios para satisfazer
suas necessidades e desejos, pois, como mencionado acima , o bem-estar geral depende do
bem-estar individual.
Apenas o individuo que fosse capaz de fazer uso de suas liberdades poderia atingir o
mais alto grau de desenvolvimento físico, intelectual e moral. Desta forma, a liberdade
individual plena e absoluta, apresenta-se como uma condição sem a qual não há nenhuma
possibilidade de alcançar uma sociedade aprazível para todos, de onde deriva a repulsa por
todas as formas de autoridades e instituições coercitivas.
Autoritarismo, coerção e todas os meios artificiais de impor regras e normas atuam
como entraves “à livre iniciativa, à livre ação e a livre associação”.60 Consoante ao que vem
sendo dito, para G. Woodcock “o culto anarquista a tudo que fosse natural, espontâneo e
individual coloca-o em oposição à estrutura altamente organizacional da moderna sociedade
industrial e estadista”.61
Muito embora o anarquismo fosse apontado como um sistema teórico “negativista”,
sua plataforma de sustentação fixava-se sobre idéias construtivistas, cujo escopo – o bem-
estar comum – resultaria do equilíbrio e da harmonia social baseada na cooperação e na
participação direta dos indivíduos na gestão pública e não na competição característica das
sociedades capitalistas. De acordo com Kropotkin, “a afirmação – a concepção de uma

58
Ibidem, p. 29.
59
Ibidem, p. 30.
60
Ibidem, p. 34.
61
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 28.
25

sociedade livre, sem autoridade, avançando para a conquista do bem-estar material, intelectual
e moral – seguia de perto sua negação; ela era a sua contrapartida”.62
“Bem-estar para todos como fim, a expropriação como meio”.63 Esta máxima sintetiza
o pensamento de Piotr Kropotkin. Para o autor, a humanidade havia conquistado riquezas
incomensuráveis, fruto do trabalho acumulado ao longo de gerações e ampliadas pelos
trabalhadores do presente.
Para Piotr Kropotkin, “não há nada, desde o pensamento até à invenção que não
resulte de factos colectivos oriundos do passado e do presente”.64 Assim sendo, não haveria
explicação sustentável capaz de justificar a propriedade privada dos meios de produção, dado
que toda riqueza atual é de alguma forma tributária do trabalho intelectual e braçal
desenvolvido pelas sociedades pretéritas, continuado e ampliado pelos homens e mulheres do
presente.

Ciência e indústria, saber e aplicação, descoberta e realização prática originando


novas descobertas, trabalho cerebral e trabalho manual – força da inteligência e
força dos músculos – tudo se relaciona. Cada descoberta, cada progresso e cada
acréscimo da riqueza da humanidade tem sua origem no conjunto do trabalho
manual e cerebral do passado e do presente.
Nestas condições, com que direito poderá alguém apropriar-se da mais insignificante
parcela deste todo imenso e dizer: Isto é meu, não vos pertence?65

Na perspectiva de Piotr Kropotkin, o comunismo apresentava-se como uma alternativa


ao capitalismo e à propriedade privada. De cada um segundo suas forças, a cada um segundo
suas necessidades: Kropotkin acreditava que a remuneração deveria ser condizente com as
necessidades do individuo e não proporcional a sua quantidade de trabalho, como defendiam
socialistas e coletivistas.
Em O Salariato Colectivista, artigo publicado em A Conquista do Pão, Kropotkin
afirma que

“Não pode estabelecer-se nenhuma distinção entre o trabalho de cada um. Medi-lo
pelo resultado conduz ao absurdo. Fraccioná-los e medi-los pelas horas de trabalho
leva-nos igualmente ao absurdo. Só resta uma coisa: colocar as necessidades acima
do trabalho e reconhecer o direito à vida em primeiro lugar, e em seguida ao bem-
estar para todos os que participarem da produção.”66

62
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. Hedra: São Paulo,
2007. p. 33.
63
KROPOTKINE, Pedro. A conquista do pão. Lisboa: Guimarães ed., 1975. p. 37.
64
Ibidem, p. 24.
65
Ibidem, p. 26.
66
Ibidem, p. 212.
26

O bem-estar, definido por Kropotkin como o conjunto de comodidades, confortos e


tempo para se dedicar às artes e ciências, ou ainda, como “a satisfação das necessidades
físicas, artísticas e morais”67, é apontado como “a possibilidade de viver como ser humano e
de educar seus filhos para fazer deles membros iguais duma sociedade superior à nossa”68. As
criticas tecidas ao Estado, ao capitalismo, à moral burguesa e todas as formas de autoridades
vão ao encontro do bem-estar coletivo necessário para a construção de uma “sociedade
superior”, distante das sociedades modernas do século XIX, com suas contradições e
incertezas ameaçadoras.
Em O principio anarquista, Kropotkin define anarquia como uma filosofia baseada na
negação de todas as formas de autoridade, cujo objetivo consiste em transformar as relações
sociais, “desde aquelas que se estabelecem entre homens encerrados na mesma habitação, até
aquelas que pensam estabelecer-se em grupamentos internacionais”. 69 Com isso, a negação da
moral cristã, do Estado e do capital, segue de perto a afirmação da liberdade, dos
agrupamentos livres e da solidariedade, princípios que norteiam o anarquismo de Kropotkin.
Nesse ínterim, as idéias do príncipe russo, pretendiam oferecer respostas para as
questões do seu tempo. O equilíbrio e a harmonia do “corpo” social dependiam do bem-estar
das partes integradas ao todo, para enfim, chegar a um estado de bem-estar geral.
Concebendo a sociedade como um organismo, as idéias de Kropotkin partiam do
mundo das ciências naturais e eram revestidas do cientificismo que caracterizava as
derradeiras décadas do século XIX. A anarquia, vista pelo autor como uma “filosofia”, uma
“visão de conjunto”70, era também uma manifestação das transformações cientificas e deveria
ser posta sob a luz da ciência.
Sua maneira de interpretar a sociedade como um organismo, cujo bem-estar do corpo
social depende do equilíbrio das relações entre órgãos autônomos e dependentes entre si, o
que vale a dizer liberdade individual e responsabilidade coletiva em âmbito social71, assim
como a necessidade de expor as teorias libertárias ao julgamento cientifico e as idéias anarco-
comunistas no plano político e econômico, exerceram marcante influência sobre as idéias de

67
Ibidem, p. 181.
68
Ibidem, p. 44.
69
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra,
2007. p. 35.
70
Ibidem, p. 34.
71
Woodcock aponta como o “problema libertário central”, a “conciliação da solidariedade humana com a
liberdade pessoal”. WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia.
Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 8.
27

um libertário italiano que encontraria no Brasil meridional o lócus para cultivar seus sonhos e
ideais.
Acadêmico oriundo das ciências naturais, o agrônomo e médico veterinário Giovanni
Rossi, muito influenciado pela idéias de Kropotkin, fundaria uma colônia experimental no sul
do Brasil em 1890, proposta como um laboratório social onde pudessem ser testados
empiricamente os pressupostos teóricos do anarquismo, a igualdade nas relações de gênero
expressa pelo amor livre e, especialmente, a dissolução dos valores da família nuclear
burguesa.
28

2. COLÔNIA CECÍLIA: UM LABORATÓRIO SOCIAL NOS SERTÕES DO BRASIL


MERIDIONAL

2.1 O IMPERADOR E O ANARQUISTA: O MITO FUNDADOR DA COLÔNIA


CECÍLIA

Século XIX, década de 1870. Europa e Estados Unidos são palco de um dos mais
marcantes fenômenos da era moderna, responsável por transformar drasticamente a vida
daqueles que testemunharam as últimas décadas do século XIX e o alvorecer do XX. Batizado
pela historiografia de Segunda Revolução Industrial, este momento de efervescência nas
descobertas científicas e de acelerado desenvolvimento tecnológico, se estenderia
aproximadamente até a eclosão da Primeira Grande Guerra, fazendo-se sentir até os dias de
hoje.
Inovações tecnológicas como a eletricidade e os combustíveis fósseis impulsionariam
a produção industrial nos mais diversos campos, da metalurgia à farmacologia e

no curso de seus desdobramentos surgirão, apenas para se ter uma idéia, os veículos
automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação
elétrica e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a
radiodifusão [...], a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor de pressão
arterial, os processos de pasteurização e esterilização [...].72

As vicissitudes provocadas pelo galopante desenvolvimento técnico-científico


poderiam ser percebidas não apenas no transcorrer acelerado do tempo – efeito decorrente dos
novos meios de transporte e comunicação – mas também na paisagem que circundava e
envolvia os homens e mulheres da belle époque73. Cidades repletas de prédios e fábricas,
trespassadas por avenidas e ferrovias através das quais circulavam multidões de transeuntes
iluminadas por lâmpadas elétricas que afirmavam a civilização e exclamavam o progresso,
anunciavam “um mundo em que as noções de tempo e espaço começavam a ser abaladas”.74
Todas essas transformações se converteriam em novos referenciais a partir dos quais
seriam estimuladas novas sensibilidades e a construção de novas representações do homem e
do mundo moderno, civilizado e industrializado respectivamente.
“Sonhou-se muito na passagem do século XIX para o XX.”75 Os progressos da ciência
e da tecnologia encerravam um período de incertezas para expandir desmesuradamente os

72
NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3. República: da belle
époque à era do rádio. Cia. das Letras: São Paulo, 1999. p. 9.
73
COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 – 1914. Cia. das
Letras, 2000. p. 15.
74
Ibidem, p. 17.
75
Ibidem, p. 11.
29

horizontes, inaugurando uma fase de grande esperança e otimismo no futuro da humanidade,


cujo progresso teria como carro-chefe o desenvolvimento científico, agora imbuído de um
verdadeiro potencial libertador, traço marcante deste fim de século conhecido como a “era da
sciencia”76.
Distante do epicentro destes acontecimentos, ao sul do equador, uma nação não
mediria esforços para entrar de uma vez por todas nessa ciranda de braços dados com o
progresso, inserindo-se no seleto hall dos paises modernos. Ainda sob o estigma de ser o
último país do mundo a por fim ao trabalho escravo, aos trancos e barrancos a nascente
república brasileira empreenderia uma série de reformas nos campos político, econômico e
social a fim de iniciar sua escalada rumo a modernidade, deixando para trás a decrépita
monarquia imperial e tudo o que representasse o atraso face às industriosas nações
capitalistas.
Proclamada com pretensões modernizadoras que rechaçavam um passado escravista,
agrícola e monárquico, a república brasileira, nascida sob as insígnias do progresso, tomaria
todas as medidas necessárias para adentrar a ordem capitalista internacional. Nesse ínterim, de
acordo com Nicolau Sevcenko, entre as principais medidas implementadas pela nascente
república estavam a abertura da economia ao capital estrangeiro, sobretudo americano e
inglês, e a “criação de um moderno mercado de ações centrado na bolsa de valores do Rio de
Janeiro”,77 que por seu turno, resultaria num fluxo corrente de investimentos e empréstimos
internacionais.
Com a abolição da escravidão e acompanhando o crescimento da produção industrial,
constituiu-se neste momento um mercado de trabalho livre composto de ex-escravos e
principalmente por imigrantes europeus que vinham emprestar seus genes ao projeto de
branqueamento da população arquitetado pelo Estado brasileiro. Estes imigrantes
engrossavam as fileiras de venda de mão-de-obra nas lavouras cafeeiras e nas incipientes
indústrias nacionais, provocando um vertiginoso crescimento demográfico nas principais
cidades do país.
Enquanto contingentes de trabalhadores estrangeiros aglomeravam-se em cidades que
alargavam suas fronteiras espontaneamente, acumulando vielas escuras e cortiços sem as
menores condições de higiene, denunciados por médicos sanitaristas como focos epidêmicos e
a origem dos temidos miasmas, outros buscavam nas colônias de imigrantes do interior do

76
Ibidem, p. 15.
77
NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3. República: da belle
époque à era do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 15.
30

país, o paraíso bucólico de fauna e flora exuberantes e de incontáveis riquezas imaginadas nas
longínquas terras do Velho Mundo. Assim também o foi com os anárquicos imigrantes
italianos que, nos sertões do Brasil meridional, semearam o solo, cultivaram sonhos e
colheram experiências na curiosa Colônia Cecília.
Pensada para ser um laboratório social aonde pudessem ser testados empiricamente os
pressupostos teóricos do anarquismo, essencialmente o amor livre e a dissolução da família, a
Colônia Cecília foi fundada em 1890 no interior do Estado do Paraná. Nas cercanias do
município de Palmeira, mais precisamente nas terras de Santa Bárbara, Giovanni Rossi, seu
idealizador, concretizava as idéias que nutrira desde a juventude: fundar colônias anarquistas
experimentais.
Sobrinho de Lauro Rossi, mestre de Carlos Gomes no conservatório de Milão, o
também músico Giovanni Rossi tornou-se amigo íntimo do prestigiado maestro brasileiro, por
quem foi alertado sobre a passagem do imperador D. Pedro II pela Itália em 1888.
Tomando conhecimento de que o imperador do Brasil, que viajava pela Europa por
recomendações médicas, estava de passagem por Milão, Giovanni Rossi não vacilou em
procurar o monarca de idéias arrojadas, amante das ciências e das artes. Ainda que
monarquista, Pedro II era homem de idéias progressistas e haveria de se interessar pelos
projetos que almejava desenvolver nos confins do Brasil. Imediatamente, pôs-se a bater
pernas até o hotel onde estava hospedado o imperador dos trópicos.
A ansiedade do encontro transformaria-se em desalento quando, já no “Hotel Milan”78,
presenciaria D. Pedro II ser transportado de maca “para Aix-les-Bains, onde se submeteria a
rigoroso tratamento”.79 Gentilmente, Rossi entrega ao conde de Mota Maia, médico que
integrava o séquito do imperador, uma carta de condolências ao monarca brasileiro.
Tempos mais tarde, D. Pedro II deparou-se com um opúsculo de autoria de Giovanni
Rossi intitulado Il Commune in Riva al Mare80. Após tomar parte das idéias de Rossi, o
imperador decide escrever ao libertário italiano oferecendo as terras devolutas do Brasil
Meridional para a instalação da colônia de imigrantes libertários. Trezentos alqueires dos
campos gerais do Paraná seriam reservados para a fundação da colônia experimental
idealizada por Giovanni Rossi.
Com o aval de Pedro II, sem mais demoras, Rossi deu inicio à arregimentação de
pessoas dispostas a levar adiante as idéias libertárias em terras desconhecidas e enfrentar as

78
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
79
Ibidem, p. 20.
80
Título pelo qual a peça literária de Giovanni Rossi originalmente intitulada Il Comune Socialiste ficaria
conhecida no Brasil.
31

precárias instalações dos transatlânticos que faziam o transporte de imigrantes para a


América. No dia 20 de fevereiro de 1890, o primeiro grupo de libertários embarca no Città di
Roma, navio mercante adaptado para o transporte de imigrantes, rumo às distantes terras do
planalto sul brasileiro. Ali, entre as palmeiras e o laranjal, hasteada no alto de uma imponente
palmeira, tremularia ao vento a bandeira rubro-negra do anarco-comunismo.
Espécie de mito fundador, esta versão romanceada do nascimento da Colônia Cecília
teve origem na obra literária de Afonso Schmidt, Colônia Cecília: romance de uma
experiência anarquista81. Romance histórico desenvolvido em torno do caso de amor livre
vivido por três integrantes da colônia, a prosa ficcional de Afonso Schmidt foi responsável
por cristalizar no imaginário que envolve a Colônia, uma versão idílica da sua fundação.
Segundo o próprio Schmidt, através de notas publicadas em anexo ao romance, a
substância da obra estava nas informações publicadas em São Paulo pelo jornalista Alexandre
Cerchiai nos Quaderni de la Libertá em 1932, que traziam ainda excertos dos polêmicos
relatos de Rossi: Un episodio d’amore libero nella Colonia Cecilia82. Alexandre Cerchiai,
destacado jornalista da imprensa libertária e colaborador do jornal O Estado de São Paulo,
teria viajado para Santa Bárbara e Palmeira em 1932, aonde teria colhido informações sobre a
suposta participação de D. Pedro II na fundação do núcleo anarquista no interior do estado do
Paraná.
Nas décadas que seguiram a publicação do romance de Afonso Schmidt, editado pela
primeira vez em 1942, literatura e historiografia se imbricariam reproduzindo a versão
proposta por Schmidt, como pode ser percebido em O anarquismo da Colônia Cecília83, de
Newton Stadler de Sousa, de 1970, e em Colônia Cecília84, paradidático da coleção Cinco
Séculos de Resistência publicada pela editora FTD em 1993 e de autoria de Agnaldo Kupper.
A mesma versão é sustentada por Edgar Rodrigues em Os anarquistas: trabalhadores
italianos no Brasil85, inspirado em Stadler de Sousa e publicado em 1984, assim como pela
historiadora livre docente pela UFPR Beatriz Pellizzetti Lolla, autora de Reflexões sobre uma
utopia do século XIX86, lançado no ano de 1999.

81
SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo: Brasiliense, 1980.
82
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. Também publicado recentemente pela editora Achiamé do Rio de
Janeiro.
83
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1970.
84
KUPPER, Agnaldo. Colônia Cecília. São Paulo: FTD, 1993.
85
RODRIGUES, Edgar. Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil. São Paulo: Global, 1984.
86
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999.
32

Entre a bibliografia que aborda a história da Colônia Cecília, atribuindo a participação


de D. Pedro II e Carlos Gomes em sua fundação, a mais instigante, pelas próprias
características da obra, é Anarquistas, graças a Deus87, da escritora Zélia Gattai.
Muito prestigiada na literatura contemporânea brasileira, Zélia Gattai conquistou
reconhecimento pela prosa agradável e memorialista, como em Anarquistas, graças a Deus,
de 1979, “escrito sem a pretensão de fazer literatura”,88 segundo as palavras de Jorge Amado
na apresentação do livro de Zélia.
No referido livro, Zélia Gattai narra acontecimentos cotidianos de sua infância e
adolescência, desenrolados na cidade de São Paulo durante as primeiras décadas do século
XX. Entre curiosidades e momentos revividos, a autora relata a passagem de seus avós pela
Colônia Cecília, acontecimento narrado à pequena Zélia por seu Ernesto Gattai, pai da futura
escritora. Assim, em meio a fortunas e desventuras, “num carroção de quatro rodas, com suas
trouxas de roupas e alguns pertences, passou a família Gattai por Santa Bárbara: marido,
mulher e quatro filhos”.89
O impressionante nessa história é que entre as memórias de Zélia, a duvidosa versão
acerca do nascimento da Colônia Cecília é, através das palavras da autora, confirmada por
Ernesto Gattai. Dirigindo-se aos filhos, Ernesto teria dito:

– Vocês estão vendo? Sabiam que eram tão importantes? Pois, para que vocês
estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do
Maestro Carlos Gomes e de D. Pedro II, Imperador do Brasil. Que tal? – riu do
nosso espanto.90

História, literatura, memória ou um pouco de cada? Poderíamos supor que a memória


da jovem Zélia após tantos anos teria sofrido interferências das narrativas que versaram sobre
a Colônia Cecília. É pouco provável, entretanto, que estes elementos tenham sido introduzidos
involuntariamente, dado as minúcias dos relatos que remetem às publicações anteriores, o que
faria do livro de Zélia uma obra com características ficcionais e não memorialista.
Contudo, em todas estas publicações a participação de D. Pedro II na fundação da
colônia experimental anarquista através da concessão de terras, figura como a pedra
fundamental do projeto de Rossi. Se nas memórias de Zélia Gattai como nos livros de
Agnaldo Kupper e de Edgar Rodrigues a versão aparece como inconteste, nas linhas de O

87
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2000.
88
Ibidem, p. 8.
89
Ibidem, p. 260.
90
Ibidem, p. 262.
33

anarquismo da Colônia Cecília e de Reflexões sobre uma utopia do século XIX ela merece um
sobreaviso.
Embora defenda que “não foi uma simples imaginação de Afonso Schmidt”,91 pois
teria fundamentado-se nos relatos de Alexandre Cerchiai, Beatriz Pellizzetti Lolla afirma que
a origem do relato “permanece uma incógnita”92. De forma sucinta, Newton Stadler de Sousa
chama a atenção para a ausência de documentos que possam referenciar a sugerida relação
entre o imperador e o anarquista. De acordo com o autor

As hipóteses para justificar a decisão de D. Pedro II em trazer imigrantes anarquistas


para o Brasil são precárias, à falta de documento de afirmação histórica. Quaisquer
delas seriam válidas até o momento em que contestadas, historicamente.93

Buscando explicações para a intervenção direta do imperador brasileiro na fundação


da colônia libertária, Newton Stadler de Sousa argumenta que D. Pedro II estaria insatisfeito
com a política imigratória nacional, dado o fracasso das experiências de colonizadores russos
e alemães nos campos do Paraná.
Assentados em terras improdutivas, estes colonos exigiram repatriação. Atestando a
as péssimas condições do solo, o Estado brasileiro responsabilizou-se pela alimentação das
famílias dos colonizadores e posteriormente, com o transporte destes para o estado de Nevada
nos Estados Unidos, fatores que representaram volumosos custos para o Estado brasileiro
além de comprometer a credibilidade da política imperial de imigração.
Para restaurar a imagem da política imigratória nacional, o governo brasileiro
objetivava demonstrar a eficácia dos serviços de imigração trazendo para o Brasil imigrantes
italianos anarquistas. A vinda destes imigrantes teria um efeito positivo junto a diplomacia
dos dois países e, se porventura o empreendimento submergisse novamente, as
responsabilidades poderiam ser imputadas “ao inconformismo instintivo dos anarquistas por
governos organizados”.94
Ora, no período em que a monarquia brasileira começava a ruir e com uma economia
predominantemente rural e latifundiária, promover o desenvolvimento de núcleos
colonizadores anarquistas alicerçados sobre a propriedade coletiva dos meios de produção,
com discursos hostis ao Estado e à família, beirava a insanidade ou ao desespero suicida de

91
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999. p. 43.
92
Ibidem, p. 44.
93
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
p. 10.
94
Ibidem, p. 11.
34

um regime que agonizava após o desprendimento da principal engrenagem de sua economia,


o trabalho escravo.
As hipóteses levantadas por Newton Stadler de Sousa são contestadas nas páginas de
O anarquismo experimental de Giovanni Rossi.95 Publicada pela Universidade Estadual de
Ponta Grossa no ano de 1998, dez anos após o médico e historiador diletante Candido de
Mello Neto ter iniciado as pesquisas que o levariam a Itália, França, Inglaterra, Holanda,
Estados Unidos e aos principais arquivos históricos brasileiros no encalço de documentos que
contribuíssem para a reconstrução da história da Colônia Cecília e da biografia de Rossi, a
obra de Mello Neto é o resultado da mais extensa pesquisa sobre a vida e obra deste libertário,
assim como da colônia por ele fundada em terras brasileiras no apagar do século XIX.
Candido de Mello Neto apresenta outra versão que contrapõe a origem da colônia,
lembrando que

Rossi, incorrigível detalhista, não faz qualquer alusão a isso em livros, em cartas a
familiares e amigos ou em relatórios ao seu biógrafo de Zurique.
Também A. Capellaro, o “cronista” da Colônia Cecília, responsável por numerosas
referências em jornais e revistas da Europa e da América do Norte, sequer se refere
ao nome de D. Pedro II.
E os poucos autores paranaenses, contemporâneos da experiência libertária, quando
escreveram sobre a Colônia, tampouco registraram qualquer interferência do
Imperador.96

Nomes como o de Carlos Gomes e Lauro Rossi também vão progressivamente sendo
apagados das páginas da história da Colônia Cecília. A partir das pesquisas da italiana
Rosellina Gosi, “apoiada em depoimento de Ebe Rossi, filha de Giovanni” 97, Candido de
Mello Neto da continuidade ao desmonte dos elementos ficcionais que revestiram este
episódio da história da Colônia Cecília. Segundo Ebe Rossi, o parentesco de seu pai com
Lauro Rossi, o professor do conservatório de Milão, não existiu. Tratava-se apenas de um
homônimo. Nem mesmo a paixão do pai pela música, tão presente no livros de Schmidt,
Stadler, Kupper e mesmo de Zélia Gattai é confirmada por Ebe Rossi. Gradativamente,
história e literatura assumem cores diferentes.
Médico e historiador, Candido de Mello Neto atenta para os sintomas e indícios que
desconstroem a versão saborosa, mas ficcional desta história. Passo a passo, com a precisão
de um cirurgião, o médico profissional e o historiador autodidata expõem seus argumentos:

95
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998.
96
Ibidem, p. 103.
97
Ibidem, p. 104.
35

em 1888, Rossi encontrava-se ocupado com a experiência de Cittadella e portanto, não


poderia estar com Pedro II em Milão; o projeto de fomentar colônias agrícolas no norte da
Itália encabeçado por Giovanni Rossi, tinha como objetivo “evitar a saída do país de ‘milhares
de robustos emigrantes”98; Rossi pensava em ir para as colônias Kaweah e Sinaloa, situadas
respectivamente na Califórnia e no México; as terras para a fundação da colônia não foram
doadas mas compradas com a ajuda da Cooperativa Cittadella. 99
Candido de Mello Neto alega ainda que

o local que abrigou a Colônia Cecília não foi predeterminado. Em Curitiba, a


Inspetoria de Terras e Colonização, procurada pelos pioneiros, deu-lhes a conhecer
os vários locais destinados à colonização. Como manifestaram o desejo de
proximidade a um rio navegável, lhes foi sugerido o território São Mateus, onde
corre o rio Iguaçu.100

As palavras de Mello Neto encontram ressonância nos próprios relatos de Giovanni


Rossi. Em O nascimento da Colônia Cecília101, datado de 1891, Rossi afirma que o destino
final do grupo era o Uruguai e não o Brasil. Em função das constantes perturbações
provocadas pelo “mal de mar”, o pequeno grupo de imigrantes decidiu desembarcar no porto
de Paranaguá e tentar a sorte em solo paranaense.

Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas dois dos nossos companheiros sofriam de tal
maneira do mal de mar que decidimos poupar-lhes os outros cinco ou seis dias de
navegação e descer aqui, para fundar a nossa colônia socialista em alguma parte do
Paraná, que sabíamos com clima ameno e saudável.102

Desta forma, uma vez desatados os nós que entrelaçavam história e literatura, a
decisão sobre local aonde seria estabelecida a colônia parece ter pertencido mais ao acaso do
que a benevolência do último monarca brasileiro. “As circunstâncias, mais do que suas
próprias vontades, conduziram-nos ao município de Palmeira, no Estado do Paraná ( Brasil
)”103, relatava Giovanni Rossi.
Contudo, não obstante enxertos ficcionais, as explicações para a fundação da Colônia
Cecília devem ser recuadas para as décadas que precederam a partida do Città di Roma do
porto de Genova em fevereiro de 1890. É no imaginário de seu idealizador, o engenheiro

98
Ibidem, p. 105.
99
Ibidem, p. 106.
100
Ibidem, p. 106.
101
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
102
Ibidem, p. 28-29.
103
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 64.
36

agrônomo e médico veterinário Giovanni Rossi, que encontra-se a razão de ser deste
“experimento” libertário ocorrido no sul do Brasil oitocentista.

2.2 ANARQUISMO E CIÊNCIA NAS SOLIDÕES AMERICANAS

Nascido em Pisa no ano de 1856, aos 17 anos Giovanni Rossi passaria a integrar a
Associação Internacional dos Trabalhadores, desde já insistindo “na proposta detalhada para a
fundação de uma colônia socialista na Polinésia”.104
Muito ligado às ciências naturais, aos 20 anos Rossi termina a graduação em medicina
veterinária, chegando a pós-graduar-se em Perugia. Seus trabalhos científicos nas áreas de
agronomia e veterinária seriam reconhecidos, especialmente no Brasil, sobretudo quando
esteve à frente da Escola Superior de Agronomia de Taquari, no Rio Grande do Sul, e em
Santa Catarina, dirigindo a Estação Agronômica de Rio dos Cedros.105
Além dos inumeráveis artigos científicos, Giovanni Rossi empenhou sua caligrafia
redigindo opúsculos e artigos dedicados à propaganda e defesa do anarquismo experimental.
Os esforços de Cárdias, pseudônimo com o qual assinava muitos de seus escritos, para fazer
valer as idéias do anarquismo experimental, assim como para persuadir correligionários para a
fundação de colônias-laboratório, permeiam suas publicações, desde a primeira edição de Un
Comune Socialiste106 em 1878 – utopia passada em uma cidade imaginária do litoral tirreno,
denominada Poggio al Mare – até a publicação de Lo Sperimentale107, periódico que circulou
entre 1886 e 1887 exclusivamente com o intuito de divulgar a necessidade de experimentar e
analisar empiricamente as teorias anarquistas.
Ávido por observar na prática o funcionamento das teorias libertárias, “ainda no ano
de 1883, o nome de Rossi aparece ligado a uma sociedade agrícola, organizada nos moldes de
uma cooperativa”,108 no município de Gavardo, província de Bréscia, Itália.

A presença de Rossi em Gavardo teria impulsionado o movimento socialista, não


apenas na cidade mas com ampla repercussão em todo território bresciano [...] Sua
atividade política, desenvolvida junto aos colonos, e a propaganda presente em seus
escritos, muitos dos quais publicados na imprensa, continuam preocupando as
autoridades, que o mantém em rígida vigilância. Em carta dirigida a Costa,
queixava-se: ‘Sou investigado e espionado, me qualificam como sujeito
perigosíssimo, indagam aonde fui e aonde vou, o que escrevi e o que escrevo. Não

104
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 23-24.
105
Ibidem, p. 245.
106
Ibidem, p. 23.
107
Ibidem, p. 74.
108
Ibidem, p. 71.
37

me surpreenderia se, de um momento para outro, me prendessem pelo habitual crime


de conspiração.109

Entretanto, apesar da vigilância das autoridades, Rossi daria continuidade aos seus
projetos. Contanto com o apoio de Giuseppe Mori, homem de esquerda que compunha o
Parlamento Nacional da Itália, “em 11 de novembro de 1887 nasce a Associação Agrícola
Cooperativa de Cittadella, no Stagno Lombardo, Província de Cremona. Após aprovação de
estatutos, uma eleição coloca Giovanni Rossi como secretário”.110 A recusa dos colonos em
relação ao estatuto sedimentado sobre princípios libertários, desestimularam Rossi, vindo a
fundar no interior da própria Cittadella no ano de 1888, a Unione Lavoratrice per la
colonizzazione sociale in Itália.111 Esta associação com sede provisória em Cittadella,
almejava fundar em Parma uma colônia experimental, “organizando-se socialmente a
propriedade, o trabalho e a convivência”.112
Obstinado, as tentativas frustradas de medrar colônias experimentais libertárias em
Bréscia e Cremona não desacreditaram Cárdias, que insistiria ainda mais uma vez em praticar
o anarquismo na Itália antes de partir para o Brasil. Foi junto aos camponeses do povoado de
Torricella, Província de Parma, que Rossi faria sua última tentativa.

O projeto da Colônia Agrícola foi apresentado em março de 1889 e, embora


recebendo o apoio de apreciável número de acionistas, não conseguiu totalizar a
importância necessária.
A Unione Lavoratrice recebeu, no entanto, quando da sua constituição, o apoio de
grande número de camponeses de Torricella, cuja maioria, pouco tempo mais tarde,
iria participar da experiência brasileira da Colônia Cecília.113

Segundo Candido de Mello Neto, Giovanni Rossi

Defendeu, a partir da adolescência, e desde que abraçou o socialismo, a tese de que


não bastava apresentar as idéias libertárias como teoricamente as melhores para a
construção de uma sociedade justa; era necessário exibir a comprovação, mostrar
sua viabilidade. A comprovação poderia ser demonstrada pelos resultados obtidos
nas colônias experimentais.114

Envolvido pela atmosfera intelectual do século XIX, “que elegeu a ciência – uma
ciência positiva e determinista – como seu mito de origem, seu porto seguro”,115 Giovanni

109
Ibidem, p. 71.
110
Ibidem, p. 78.
111
Ibidem, p. 84.
112
Ibidem, p. 85.
113
Ibidem, p. 86.
114
Ibidem, p. 67.
115
COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 – 1914. Rio de
38

Rossi acreditava que as idéias anarquistas deveriam não apenas ser iluminadas pelo saber
cientifico, como experimentadas empiricamente com base nos métodos das ciências naturais.
Como um cientista que reproduz em laboratório fenômenos naturais para serem observados e
analisados para por fim, a partir dos dados coletados, determinar as regras gerais que regem o
fenômeno, Rossi pensava poder “conhecer as leis que regem os fenômenos da vida social”.116
Identificando seus aspectos positivos e negativos, as teorias anarquistas poderiam ser revistas,
ganhando assim consistência e legitimidade científica para persuadir os segmentos do
proletariado que acreditavam na “incapacidade do homem ao trabalho quando este não é
estimulado por um interesse exclusivamente pessoal”.117
De acordo com Rossi,

Advém disso a necessidade, ou pelo menos a conveniência, para nós, de estudar


experimentalmente nesse sentido as capacidades humanas, para poder aplicar em
seguida o conhecimento exato delas na determinação das prováveis transformações
sociais no campo da atividade econômica.118

Em O Paraná no século XX119, mais uma obra utópica em que Rossi expõem suas
idéias através dos recursos da narrativa ficcional, a exemplo de Un Comune Socialiste, é
possível identificar suas influências teóricas e a forma como ciências naturais e sociais se
aproximam no pensamento social de Giovanni Rossi.
Nesta narrativa literária em que Rossi esboça como seria a sociedade por ele
idealizada, seu amigo pessoal, Dr. Grillo, incorpora o personagem que retorna do mundo dos
mortos para lhe revelar o futuro e detalhes do processo revolucionário que subverteu a ordem
estabelecida no Estado do Paraná durante o século XX.
Ao longo do diálogo entre os dois personagens, Grillo revela a Rossi que durante o
movimento revolucionário

Paralelamente à propaganda popular, a propaganda científica ficou mais intensa.


Foram divulgadas as obras de Darwin, Wallace, Spencer e Letourneare sobre a
evolução natural e social. Foi explicada a doutrina de Marx sobre a gênese do
capital. As teorias anarquistas, de Diderot a Fourier e a Proudhon, Bakunin, Réclus,
Kropotkin e Grave acabaram por fim estudadas. Foram atentamente acompanhadas
as descobertas da antropologia e da psicologia. De todas as ciências sociais nasceu a

Janeiro: Cia. das Letras, 2000. p. 48.


116
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 81.
117
Ibidem, p. 80.
118
Ibidem, p. 80.
119
ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial
do Paraná, 2000.
39

convicção da necessidade e da iminência de uma grande transformação das


estruturas econômicas e burguesas.120

No futuro idealizado por Rossi, as idéias de naturalistas e pensadores sociais integram


os conteúdos dos programas revolucionários, destacando-se ao lado da propaganda popular a
veiculação de obras científicas de autoria dos principais expoentes do Evolucionismo do
século XIX.
Entre as obras que “foram divulgadas”, observa-se que o nome de Errico Malatesta121
não integra o conjunto de pensadores que podemos admitir como influências decisivas para
compreender o pensamento de Cárdias, dado que figuram como elementos substanciais na
propaganda revolucionária da sociedade utópica retratada por Rossi em O Paraná no século
XX.
Para Beatriz Pellizzetti Lola, autora de Reflexões sobre uma utopia do século XIX,
obra que analisa a composição literária de Rossi, o anarco-comunista Errico Malatesta,
contemporâneo e conterrâneo de Giovanni Rossi, é a sua principal influência, negando os ecos
do pensamento social de Piotr Kropotkin nas idéias do arquiteto da colônia experimental
paranaense.
Segundo Beatriz Pellizzetti Lola,

Malatesta não concebe, como Kropotkine, anarquismo dentro de uma filosofia


científica fundamentada na interpretação mecânica dos fenômenos da natureza e
nem ligado a uma filosofia específica [...]. Rossi se alinhava ao pensamento de
Malatesta.122

Destacado militante libertário na virada do século XIX para o XX, o italiano Errico
Malatesta muito provavelmente exerceu forte influência sobre Giovanni Rossi. Entretanto,
podemos presumir que as idéias de Kropotkin lhe parecessem ainda mais atraentes. A omissão
do nome de Errico Malatesta do conjunto dos pensadores que integram a utopia de Cárdias
não pode ser atribuída ao vacilo de uma pena desatenta. Idealizar uma sociedade sem
mencionar entre tantos nomes reverenciados, justamente aquele que teria sido sua maior
influência, equivale a um berbere imaginar um oásis sem seu principal manancial.

120
Ibidem, p. 145.
121
Errico Malatesta ( 1853 – 1932 ). Anarquista italiano defensor do anarco-comunismo. Exerceu grande
influência no movimento anarquista, contribuindo também para a formação dos primeiros movimentos
sociais organizados na Argentina onde esteve exilado em 1885.
122
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999. p. 13.
40

No capítulo anterior vimos como Kropotkin visava promover o bem-estar geral


estabelecendo o equilíbrio e a harmonia social através dos princípios libertários baseados em
uma concepção orgânica da sociedade. Entendida como um organismo que depende do
equilíbrio entre as partes e o todo, a sociedade encontraria a harmonia quando fossem
estabelecidas relações simétricas entre indivíduos autônomos e sociedade, ou seja,
conciliando liberdade individual e responsabilidade coletiva.
Kropotkin, principal referência do anarquismo no final do século XIX e início do XX,
insistia para que os princípios anarquistas fossem aplicados à ciência, “para impor a marca
anarquista ao pensamento do século”.123
Assim como Piotr Kropotkin, Giovanni Rossi utilizava os fenômenos naturais como
base de indução para compreender a sociedade do seu tempo, vista como “um organismo por
excelência”,124 assim como defendia a fundação de colônias experimentais onde os princípios
anarquistas pudessem ser testados cientificamente, diferentemente do que propõem Beatriz
Pellizzetti Lola.
Contemporâneos, Giovanni Rossi e Piotr Kropotkin estavam estreitamente
relacionados, não apenas por pertencerem a corrente anarco-comunista, à qual Malatesta
também estava associado, mas por compartilharem de uma mesma visão social inspirada na
metáfora do organismo, fruto quiçá, da lente de dois profissionais ligados intimamente às
ciências naturais, um veterinário e agrônomo, o outro geógrafo, mas também por acreditarem
que as teorias libertárias deveriam ser expostas ao arbítrio da ciência, perspectiva levada ao
extremo por Rossi nas suas tentativas de transformar núcleos coloniais em laboratórios
sociais, tal como foi a Colônia Cecília. Estes foram os princípios que nortearam a sua
idealização e fundação em terras brasileiras.
Em Comunidade anarquista experimental125, datado de 1893, Cárdias dedica-se
extensamente a desfazer os mal-entendidos que obscureciam as razões de ser da Colônia
Cecília e que muitas vezes motivavam elementos alheios à colônia, muitos dos quais
pertencentes ao movimento anarquista, como Malatesta, a fazer críticas contundentes aos
libertários do núcleo experimental, reputados de “desertores”.126 Rossi era acusado de

123
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra,
2007. p. 37.
124
ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial
do Paraná, 2000. p. 152.
125
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
126
Ibidem, p. 63.
41

abandonar as lutas revolucionárias pata tentar edificar uma micro-sociedade utópica, onde
apenas alguns poucos desfrutariam de uma vida livre e igualitária.
Rossi não almejava fundar comunidades oníricas onde todos pudessem desfrutar os
deleites de uma sociedade que reunisse todos os predicados das utopias de Morus e
Campanella, nem mesmo fornecer a fórmula para as sociedades vindouras como pensava
Fourier. Segundo Giovanni Rossi,

alguns julgavam que tivéssemos vindo aqui fabricar o modelo, o espécime da


sociedade futura, para depois apresentá-lo, com ou sem patente, à humanidade, de
maneira que, logo após a revolução social, esta não tivesse outro incômodo a não ser
de encomendar sua fabricação por atacado.127

Giovanni Rossi desmentia aqueles que os acusavam de tentar reproduzir em escala


reduzida a sociedade libertária idealizada, alegando que a sociedade é fruto da soma de fatores
espontâneos e não do produto da vontade consciente de alguns poucos.

A saber: que uma organização social não é o produto arbitrário de vontades


individuais ou coletivas, que não é a realização de um ideal filosófico nem a
ampliação de um ensaio parcial, mas a transformações espontâneas de toda a
humanidade, que encontra em si as necessidades, os meios e as maneiras de se
transformar.128

As vozes dissonantes, Rossi rebatia dizendo que a Colônia Cecília teria sido fundada
“com o intuito de provar, para si mesmos e para os outros, se e como um grupo viveria sem
leis e sem donos”. 129 Não obstante os fins publicitários, destinados a fazer conhecer as
propostas anarquistas, seus objetivos científicos para acrescentar “um dado positivo ao
patrimônio da sociologia”130 eram ainda mais significativos.

Vê-se, portanto, que o nosso propósito não foi a experimentação utopista de um


ideal, mas o estudo experimental – e na medida do possível rigorosamente científico
– das atitudes humanas em relação aos problemas mencionados.
Quem tiver pouca prática nos métodos das pesquisas científicas, deverá achar que
em uns poucos indivíduos não podem ser estudadas as qualidades de todo gênero
humano ou, numa linguagem simples, que o que é possível entre poucos nem
sempre o é entre muitos.
Esta dúvida nasce da confusão comum que se faz entre o fenômeno e as leis que
regem o fenômeno. O método experimental procura descobrir estas leis para depois
aplicá-las à explicação do fenômeno.
Para estudar o arco-íris, o físico não sobe de aeróstato às nuvens, mas capta em seu
laboratório um raio da luz do sol e o refrange sobre o lado de um prisma. Estuda o

127
Ibidem, p. 79.
128
Ibidem, p. 79.
129
Ibidem, p. 64.
130
Ibidem, p. 79.
42

raio a partir das faíscas de uma máquina elétrica. Determina os caracteres de uma
espécie animal ou vegetal a partir dos caracteres de um único indivíduo. Estuda os
mecanismos da vida tais como ocorrem em milhares de sujeitos através da
vivissecção de um único organismo. E mostrando a nu o coração palpitante nos
espasmos da agonia, não diz: “eis a vida”, e sim: “eis as leis que regem os
fenômenos da vida”.
Quisemos fazer o mesmo para procurar conhecer as leis que regem os fenômenos da
vida social. Para o nosso intento, a rigor teria sido suficiente fazer uma experiência
com um único homem que tivesse sido subtraído ao estímulo do interesse pessoal, à
influência da autoridade a ao império da lei.
Nós, ao contrário, tivemos a possibilidade de efetuar a experiência com mais de
trezentas pessoas que, por períodos mais ou menos longos, viveram na Cecília. No
meio dessas pessoas encontravam-se não apenas os representantes das duas classes
sociais mais numerosas, a dos camponeses e dos operários, mas também pessoas das
classes médias, que exerciam profissões liberais ou eram funcionários. Quanto ao
grau de instrução, tivemos gente de todos os níveis, desde analfabetos a pessoas com
instrução secundária. Quanto as qualidades morais, têm-se encontrado lado a lado na
vida cotidiana pessoas egoístas e pessoas altruístas; com crença religiosa,
indiferentes e cépticas; indulgentes e intolerantes; sem preconceitos e supersticiosas;
pacatas e violentas; otimistas e más...Em relação às aptidões técnicas, tivemos
pessoas com capacidade de trabalho e habilidades diferentes. No que diz respeito aos
hábitos de vida anteriores, tivemos operários livres e operários assalariados, uns que
moravam no campo, outros na cidade, casados e solteiros. Enfim, a população da
Cecília sempre foi bastante variada, de forma que representava fielmente a média da
população italiana.131

Certamente, a ciência representava para Rossi um fator inquietante e de primeira


ordem para a viabilidade do anarquismo. Os estudos sociológicos e a identificação das leis
que regem a sociedade determinariam o pragmatismo das teorias libertárias. Homem do seu
tempo, Rossi acreditava piamente nas verdades da ciência e em seu potencial libertador.
A convicção de que a sociedade poderia ser estudada cientificamente, bem como a
certeza de poder determinar as leis que a regem, parecem características muito próprias de
quem se diz um “otimista da escola positivista”, como ele próprio descrevia-se. No
positivismo de Auguste Comte, encontramos alguns dos elementos que povoam as
representações sociais de Giovanni Rossi, como a interpretação orgânica da sociedade e as
prerrogativas metodológicas do anarquismo experimental.
Simultaneamente uma filosofia da história, um método e uma religião, o Positivismo
exerceu forte influência sobre os intelectuais e a produção científica no século XIX. Auguste
Comte, o fundador da filosofia positiva, acreditava que a humanidade e “cada ramo de nossos
conhecimentos”,132 haviam passado por três sucessivas fases de desenvolvimento, o que
denominou de “leis dos três estados.”133

131
Ibidem, p. 81-82.
132
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978. p. 4.
133
Ibidem, p. 3.
43

O primeiro desses estágios, denominado por Comte de “estado teológico ou


fictício”,134 corresponderia à infância epistemológica da humanidade. No estado teológico, os
homens recorriam a seres sobrenaturais e divindades para explicar através da imaginação
fenômenos naturais.
No segundo estado, “metafísico ou abstrato”,135 concebido como um desdobramento
do primeiro, a imaginação foi substituída pela argumentação. Neste estado, comparado a
juventude da humanidade, noções e conceitos abstratos eram desenvolvidos para fornecer
explicações aos fenômenos observados, como por exemplo, “forças da natureza”.136
Em comum, nos estados teológico e metafísico, os homens acreditavam poder chegar
a essência dos fenômenos e construir um conhecimento absoluto, determinando assim suas
causas e seus fins, o que não ocorreria no terceiro e último estado, “cientifico ou positivo”,137
também chamado de virilidade da humanidade.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de


obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a
conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em
descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, sua leis
efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação
dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na
ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais,
cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.138

Nesse sentido, no estado científico ou positivo, é por meio do método empírico, isto é,
a partir da observação sensível de fenômenos concretos que ocorre a produção de
conhecimento, este, circunscrito a apreensão das leis que regem estes mesmos fenômenos,
definidas como fatores constantes e imutáveis que os condicionam. De acordo com Comte,
por meio da observação direta dos fenômenos positivos – “fundados em fatos bem
constatados”139 – os homens do estado científico se ocupariam tão-somente da determinação
das leis que anunciam o fenômeno. Para o autor do Curso de Filosofia Positiva140, a “natureza
íntima”141 dos fenômenos era incognoscível, pois não poderia ser observada pelos sentidos.

134
Ibidem, p. 4.
135
Ibidem, p. 4.
136
Ibidem, p. 4.
137
Ibidem, p. 4.
138
Ibidem, p. 4.
139
Ibidem, p. 36.
140
Ibidem.
141
Ibidem, p. 6.
44

Uma vez determinadas as leis, os homens poderiam “confirmar ou infirmar teorias”142


com o objetivo de interferir no desencadeamento dos fenômenos.

O conhecimento das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é fazer com que
sejam previstos por nós, evidentemente pode nos conduzir, de modo exclusivo, na
vida ativa, a modificar um fenômeno por outro, tudo isso em nosso proveito [...] Em
resumo, ciência, daí previdência; previdência, daí ação.143

Segundo Comte, cada estado alcança a perfeição quando passa a explicar os


fenômenos a partir “dum único fato geral” 144 ou de uma única unidade explicativa, como um
ser único, a exemplo da superação do animismo e do politeísmo pelo monoteísmo e das forças
abstratas por uma entidade geral, a natureza, respectivamente nos estados teológico e
metafísico. Da mesma forma, a ciência almeja alcançar uma unidade que reduziria o número
de leis explicativas a algumas poucas ou mesmo uma única capaz de desvendar as leis gerais
dos cinco diferentes tipos de fenômenos: astronômico, físico, químico, fisiológico e social.145
Entretanto, Comte considerava esta pretensa unidade inatingível. “A única unidade
indispensável é a unidade do método, que pode e deve evidentemente existir e já se encontra,
na maior parte, estabelecida.”146 Assim, Comte defendia a adoção de um método comum para
todas as ciências, baseado na experiência ou na observação sensível dos fatos positivos,
inclusive para a “física social”147 ou Sociologia, ciência criada por ele para apreender os
fenômenos sociais e promover a reforma da sociedade148. O método empírico, fundamentado
em observações diretas e inferências a posteriori, advindo das ciências naturais, também
poderia ser utilizado com proveito pela física social, ciência extraída da fisiologia em
decorrência da interpretação orgânica da sociedade sustentada por Comte.
De acordo com a classificação de Auguste Comte, os fenômenos naturais dividiam-se
em duas classes, “a primeira compreendendo todos os fenômenos dos corpos brutos, a
segunda todos aqueles dos corpos organizados”,149 pertencendo respectivamente às ciências
relativas à física inorgânica e à física orgânica.
Desta forma, a Sociologia pertencia à ciência dos corpos organizados ou mais
especificamente à física orgânica. Para Comte

142
Ibidem, p. 6.
143
Ibidem, p. 23.
144
Ibidem, p. 4.
145
Ibidem, p. 10.
146
Ibidem, p. 20.
147
Ibidem, p. 9.
148
Ibidem, p. IX.
149
Ibidem, p. 31.
45

Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente


distintos, os relativos ao individuo e os concernentes à espécie, sobretudo quando
esta é sociável. É principalmente em relação ao homem que esta distinção é
fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complicada e
mais particular do que a primeira, depende dela sem a influenciar. Daí duas grandes
seções da física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, fundada na
primeira.150

Para Comte, a Sociologia era apenas um dos ramos da biologia e tinha como principal
atributo a compreensão das leis que correspondem a estática e a dinâmica da sociedade, esta
entendida “como um organismo cujas partes constitutivas são heterogêneas, mas solidárias,
pois se orientam para a conservação do conjunto”.151
Deste modo, a sociologia ou a “física social deve fundar-se num corpo de observações
diretas que lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária com
a fisiologia propriamente dita.”152
A interpretação social baseada na metáfora do organismo levou Giovanni Rossi a
reproduzir uma micro-sociedade que poderia ser dissecada a partir dos métodos empiristas das
ciências naturais com intuito de precisar as leis que conduzem a sociedade. Deste modo, Rossi
buscou fomentar um núcleo populacional que representasse a complexidade de um macro-
sistema social, agrupando para tanto, elementos múltiplos e diversos em torno da colônia-
laboratório, não para dizer eis a sociedade, mas eis as leis que regem os fenômenos da
sociedade, assim como propunha o positivismo de Auguste Comte.
Corroborando com as idéias de Comte, que acreditava que a Sociologia, responsável
pela observação e previsão dos fenômenos sociais, devia incumbir-se da reforma social, Rossi
também acreditava que as mudanças partiriam das ciências sociais: “De todas as ciências
sociais nasceu a convicção da necessidade e da iminência de uma grande transformação das
estruturas econômicas e burguesas”,153 diria em O Paraná no século XX.
Contudo, seus experimentos não visavam demonstrar apenas a viabilidade de uma
política descentralizada, de uma economia comunista e de uma sociedade autogerida. Seus
objetivos eram muito mais ambiciosos e audaciosos, traduzidos na prática e no discurso
apologético do amor livre, seu principal instrumento para a dissolução da família.

150
Ibidem, p. 32.
151
RIBEIRO, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 22.
152
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978. p. 33.
153
ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial
do Paraná, 2000. p. 145.
46

A História é pródiga em narrativas que contam experiências de colônias socialistas,


como o Falanstério do Saí154, fundado na metade do século XIX na atual cidade de São
Francisco do Sul – SC, inspirado nas idéias de Charles Fourier. No entanto, para além da
aplicação dos princípios políticos e econômicos do comunismo libertário, a Colônia Cecília
assistiu à experimentação da moral anarquista aplicada aos relacionamentos conjugais, no
caso protagonizado por Adéle, Aníbal e pelo próprio Giovanni Rossi, em que a poliandria
consentida foi vivida pelos personagens desta trama de amor livre. Reside aqui a
peculiaridade desta experiência vivida no sul do Brasil no interior da Colônia Cecília.
Este ensaio de subversão moral foi descrito por Rossi em Um episódio de amor livre
na Colônia Cecília155, publicado pela primeira vez em 1893, ano em que viveu a experiência.
O relato publicado por Rossi contém ainda uma entrevista realizada com Adéle156 e Aníbal,
com o propósito de coletar dados para uma análise psicológica do amor livre, seguida de uma
auto avaliação.
No decorrer de sua vida política, se os esforços de Rossi incidiram sobre a fundação
de colônias experimentais, a sua maior bandeira de luta encontrava-se na defesa da igualdade
entre os sexos e nas palavras avessas a instituição familiar, manifestadas no discurso e na
prática do amor livre.

O relacionamento homem-mulher, dentro de uma instituição familiar, assume no


socialismo de Rossi importância capital, com teses singulares. Além da defesa da
plena liberdade dos sexos, sua visão mais acentuadamente voltada para os direitos da
mulher. Os exemplos que procura da união dos sexos – o casamento poliândrico –
mostram o relacionamento de dois ou mais homens com uma mulher, dando mais
destaque, mais valor, aos elos nascidos na esfera espiritual, consubstanciados em
admirações afetivas, intelectuais, etc.157

Concebido como o meio através do qual os pilares de sustentação da família nuclear


burguesa seriam abalados, derrubando por terra esta instituição vista por Giovanni Rossi
como “o maior foco de imoralidade, de maldade, de ignorância”, 158 o amor livre ocupava
posição de destaque no pensamento do libertário italiano que durante muitos anos viveu no

154
GÜTTLER, Antonio Carlos. A colonização do Saí ( 1842 – 1844 ): uma original colônia francesa em Santa
Catarina. In: BRANCHER, Ana Alice; AREND, Silvia Maria Fávero. História de Santa Catarina no século
XIX. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.
155
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
156
Anagrama de Eleda.
157
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 26.
158
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 121.
47

Brasil.“A discussão sobre a família, o amor, a mulher, em toda obra de Rossi alcança níveis
da maior importância. É contra o comportamento burguês em ralação à família que ele dirige
sua maior agressividade reformista.”159
Com os olhos postos no futuro, Rossi que tanto gostava de construir sociedades
imaginárias em narrativas literárias, diria que “da mesma forma que as relações econômicas
foram as questões centrais do século XIX, as relações afetivas talvez sejam a questão latente
do século XX”160, palavras que anunciavam o movimento feminista e a revolução sexual da
década de 1960.
O amor livre como meio, a destruição da família como fim, eis a proposição que o
motivou a cruzar o Atlântico para fundar nas “solidões americanas”, 161 seu laboratório social,
que em homenagem a mulher socialista, personagem de sua utopia, denominaria Colônia
Cecília.162

159
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 25.
160
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 126.
161
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 36.
162
Cecília, personagem da narrativa literária de Giovanni Rossi denominada Um Comune Socialiste.
48

3. EGOÍSMO DA VIDA DOMÉSTICA OU SOLIDARIEDADE DA VIDA COLETIVA:


A FAMÍLIA NUCLEAR BURGUESA SOB AS LENTES DE GIOVANNI ROSSI

3.1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COLÔNIA CECÍLIA

Giovanni Rossi seguira o conselho de Aschille Dondelli e em fevereiro de 1890, a


bordo do Città di Roma, com mais cinco companheiros partira para a América do Sul. Nas
terras do Novo Mundo, o anarquismo experimental por certo vingaria e com ele, o amor livre
e o fim da família.
Os idealistas italianos haviam decidido que apenas um pequeno grupo incumbiria-se
da responsabilidade de localizar as terras onde fundariam a colônia. Além de Giovanni Rossi,
Cattina e Aschille Dondelli, Evangelista Benedetti, Lorenzo Arriguini e Giacomo Zanetti
compunham o pequeno grupo163 que em 18 de março desembarcou na baía do Rio de Janeiro.
Após alguns dias hospedados na Ilha das Flores, os seis libertários embarcados no vapor
Desterro, fariam ainda uma escala em Santos antes de aportarem em Paranaguá, litoral do
estado do Paraná, em 28 de março de 1890. Em Paranaguá tomariam o trem para Curitiba
onde seriam orientados pela Inspetoria de Terras e Colonização a fundarem a colônia no
“território de São Mateus, onde corre o bonito rio Iguaçu”,164 conforme as palavras de Rossi.
Instalados provisoriamente em Curitiba, lá permaneceram até Rossi e Benedetti, que haviam
partido para o interior do estado, retornarem com a localização exata das terras que abrigariam
o núcleo colonial.
Em dois de abril de 1890, Giovanni Rossi e Evangelista Benedetti chegavam a
Palmeira. Observador perspicaz, o veterinário e agrônomo Giovanni Rossi tomou nota de
todos os traços que davam forma à região. Geografia, fauna e flora seriam meticulosamente
analisadas, tudo para que a colônia encontrasse êxito neste pedaço de chão brasileiro. “Nestas
terras, perto de alguns pés de laranja, na frente de quatro altas palmeiras, os recém-chegados
tiveram a sorte de encontrar uma casinha de madeira abandonada que, de imediato, foi
ocupada. Eram os primeiros dias de abril de 1890.”165
Quando Rossi, em outubro do mesmo ano, regressou a Itália para convencer outros
colonos a emigrarem para o Brasil e integrar a experiência libertária, a colônia que havia sido
fundada por um grupo diminuto de colonizadores, veria sua população atingir

163
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 22-23.
164
Ibidem, p. 37.
165
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 64.
49

aproximadamente 300 pessoas entre outubro de 1890 e junho de 1891. Porém, o número de
habitantes da Colônia Cecília manteve-se instável durante sua curta existência.
Contudo, apesar das altas e baixas demográficas, a organização da colônia orientou-se
sempre pelos princípios políticos do anarquismo e pelas máximas da economia comunista.
Segundo Giovanni Rossi, “a organização desse grupo continuava sendo comunista, mas era
também verdadeira e singelamente anarquista”.166 Muito embora o anarquismo fosse
compreendido por muitos de uma forma “realmente curiosa”,167 como o próprio Rossi
destaca, alegando que muitos justificavam seus “caprichos”168 com um “em homenagem à
anarquia faço o que quero.”169
Desde a gênese da Colônia Cecília, seus habitantes excluíram qualquer tipo de
organização social rígida, bem como líderes ou chefias que respondessem individualmente
pelo núcleo colonizador. A Colônia havia sido fundada para ser um laboratório social e
deveria manter a coerência com as prerrogativas teóricas do anarquismo, ainda que falhasse.
Identificar os vícios e virtudes das teorias libertárias estava entre os objetivos do anarquismo
experimental. Nesse sentido, seus idealizadores primaram por formas de organização
espontâneas, oriundas dos anseios de seus moradores e estabelecidas através de acordos
mútuos e voluntários.
De acordo com Rossi,

por uma reação natural ao formalismo estéril e funesto do período passado, o grupo
não quis ter qualquer tipo de organização. Não foi estipulado nenhum pacto, nem
verbal nem escrito. Nenhum regulamento, nenhum horário, nenhum encargo social,
nenhuma delegação de poderes, nenhuma norma fixa de vida ou trabalho.170

No entanto, as questões que envolviam a construção da pequena Cecília certamente


não poderiam ser deliberadas de maneira informal. Assuntos relativos a infra-estrutura,
atividades econômicas e mesmo divergências e conflitos internos, demandavam alguma forma
de organização política capaz de reunir seus habitantes e fazê-los opinar sobre assuntos de
interesse público.

166
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 69.
167
Ibidem, p. 67.
168
Ibidem, p. 68.
169
Ibidem, p. 68.
170
Ibidem, p. 69.
50

Por esta via, vigorava um sistema de referendo através do qual os indivíduos


posicionavam-se diante das questões de interesse geral. Este sistema de participação política
de forma alguma agradava Giovanni Rossi que em seus relatos assim o descreve:

um sistema grotesco de referendum, obrigando as pessoas a perderem muito tempo


em assembléias ociosas, das quais resultavam tão-somente promessas não
cumpridas, ambições mal dissimuladas e mexericos ridículos. Elegiam-se comissões,
votavam-se regulamentos, discutia-se até o embrutecimento. A colônia, naquele
tempo, por não ter a consciência anarquista que podia salvá-la, estava destinada a
morrer.171

A produção material da colônia baseava-se na agricultura, na criação de animais e


também na produção artesanal de calçados e barris de madeira, “vendidos na vizinha
Palmeira”.172 Da mesma forma que a política, a organização da produção não obedecia
padrões austeros de funcionamento, norteando-se pelo princípio “de cada um segundo suas
forças, a cada um segundo suas necessidades.”
Em seus relatos, Rossi afirmava que

o trabalho na Cecília não tem regulamentos nem qualquer organização. Os


voluntários do trabalho agrícola conhecem-se entre si e entendem-se rapidamente,
sem necessidade de chefes técnicos e reuniões de grupo. Todos temos noção do
trabalho em andamento e, na maioria das vezes, é desnecessário fazer consultas no
começo da manhã.173

Para o autor, a consciência das necessidades e o “medo da crítica”174 eram os fatores


responsáveis pelo bom desenvolvimento da produção. Entretanto, a economia da colônia foi
descrita como insuficiente para satisfazer as necessidades materiais mais elementares.
Segundo Giovanni Rossi,

a nossa vida, quanto às condições materiais, é agora bastante miserável, muito mais
miserável do que a que levam neste país os operários sob o regime capitalista. E
entende-se que deva ser assim, uma vez que nós temos que criar tudo com o nosso
trabalho, ao passo que na vida burguesa se usufrui abundantemente do trabalho
acumulado pelas gerações passadas, sob a forma de capital, de confortos privados,
de serviços públicos e assim por diante.175

171
Ibidem, p. 67.
172
Ibidem, p. 71.
173
Ibidem, p. 73.
174
Ibidem, p. 75.
175
Ibidem, p. 74.
51

O mesmo discurso é reproduzido por Rossi em relação à vida cultural, descrita por ele
como “pobre”.176 Rossi queixava-se que “instrução, música, teatro, bailes, diversões de vários
gêneros, gostaríamos muito de tê-las, mas até agora não foi possível.”177
Os relatos de Rossi trazem a tona as dificuldades e privações enfrentadas pelas
colônias de imigrantes fundadas no interior do Brasil no final do século XIX. Suas palavras
desfazem o cenário romântico retratado pela literatura e que muito contribuíram para
cristalizar uma representação utópica em torno da Colônia Cecília, onde seus habitantes
desfrutavam fartamente de uma vida igualitária, sem lei e nem pecados, como o caricato
Gioia, personagem do romance de Afonso Schmidt.178 Gioia, um burocrata italiano
desiludido, decide acompanhar os anarquistas na fundação da colônia e, ao pisar nas terras de
Santa Bárbara, despe-se e passa a viver nas matas como uma espécie de eremita.
Através da narrativa de Rossi é possível perceber que a organização política e a
produção econômica estavam longe da vida idealizada nas páginas dos romances. Não
obstante sua singularidade, a Colônia Cecília era mais uma entre tantas colônias de imigrantes
italianos pobres que buscavam assegurar a subsistência em solo brasileiro. Contudo, entre as
dificuldades encontradas, uma em especial, a moral burguesa, configurava-se como um dos
principais obstáculos, pois impedia a prática do amor livre e por extensão, a extinção da
família.
Ainda que o sistema de referendum não correspondesse à organização política que
Rossi imaginava, de uma forma ou de outra, a participação direta nas decisões coletivas
ocorria, assim como o sistema comunista nunca foi um entrave para o desenvolvimento
econômico da colônia. As paupérrimas condições materiais deviam-se mais a escassez de
insumos que permitissem ampliar a produção, do que a forma como as relações de produção
eram organizadas. Assim, se no interior da colônia era possível criar um sistema político-
econômico alternativo que substituísse a democracia representativa e o capitalismo, o mesmo
não ocorreria com a moral burguesa em relação aos valores da família nuclear.
Em relação ao amor livre, Giovanni Rossi afirmava:

teoricamente, tais conceitos eram admitidos, embora na prática fossem adiados para
o dia de São Nunca, em função das dores que os maridos temiam, dos preconceitos
das mulheres, das rotinas domésticas – desde há muito estabelecidas e, por isso,
aparentemente perenes –, do temor de, em se dissolvendo a colônia, as mulheres e as
crianças ficarem abandonadas a si próprias e, talvez, um pouco também em função

176
Ibidem, p.76.
177
Ibidem, p. 76.
178
SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo: Brasiliense, 1980.
52

da acanhada ousadia dos solteiros. Mas o principal fator parece ser a força do hábito,
que dificulta e dificultará sempre o progresso humano.179

Em Comunidade Anarquista Experimental, Giovanni Rossi referindo-se a Colônia


Cecília, observa que a “vida moral não é um mar de rosas”, 180 pois

saímos ontem da vida burguesa, na qual para ficar de pé era necessário usar as
atitudes mais anti-sociais: o egocentrismo, a violência, a simulação, a avareza, a
prodigalidade, todos os setenta pecados capitais que proporcionam o paraíso neste
mundo e, segundo alguns, o inferno no outro. Essas qualidades, transmitidas por
nossos antepassados ao nos dar a luz e ao nos educar, e desenvolvidas ativamente na
luta pela existência, não podiam ser abandonadas nas fronteiras da Cecília como se
fosse um trapo sujo. Para nos liberarmos dos parasitas, um pente e a água fervente
são o bastante, mas contra os preconceitos e as deformações morais não há outro
remédio senão a ação lenta e continua de um ambiente social moralmente sadio –
coisa que, indiscutivelmente, o nosso é.181

Todavia, admitido no âmbito do discurso, o amor livre encontrava na norma familiar


burguesa a inibição da prática, esta experimentada apenas em duas ocasiões. Um caso
anônimo, ligeiramente mencionado por Giovanni Rossi e o outro, vivido por ele próprio,
quando compartilhou o amor de Eleda com Aníbal e também com um jovem chamado
Geleoc182, episódio relatado em Um caso de amor na Colônia Cecília.

3.2 O BEIJO AMORFISTA: PARA ALÉM DO AMOR LIVRE

No início do século XX, o amor livre era definido pelos libertários como a livre união
dos cônjuges sem intermédio de qualquer tipo de contrato oficializado pela Igreja ou pelo
Estado, ou ainda, por qualquer outra instituição que não o livre arbítrio dos indivíduos. “Na
redefinição dos papéis familiares e afetivos, eram partidários de uma relação onde cada um

179
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 96-97.
180
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 76.
181
Ibidem, p. 77.
182
Nos relatos contidos em Um caso de amor livre na Colônia Cecília, Giovanni Rossi descreve a experiência de
amor livre como um triângulo amoroso vivido apenas entre os três. Entretanto, em carta endereçada a
Senftleben, e publica em 1896, Rossi menciona um jovem chamado Geleoc, a quem atribui a paternidade de
Hebe. Segundo Rossi, a omissão devia-se ao ciúme de Aníbal. Através de uma análise comparativa entre
fragmentos da carta reproduzidos por Candido de Mello Neto e passagens dos relatos do próprio Giovanni, é
possível identificar insinuações sobre o caso. Vide: ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia
Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Imprensa Oficial do Paraná: Curitiba, 2000. p. 118 e NETO,
Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ed.
UEPG: Ponta Grassa, 1998. p. 203.
53

pudesse escolher seu parceiro, sem a interferência de outros”,183 de acordo com Eduardo
Valladares.
Para Boris Fausto, durante a Primeira República, “em regra geral o dirigente libertário
era um homem sóbrio, na vida material e na vida afetiva, obediente aos preceitos da vida
monogâmica não obstante o discurso em favor do amor livre.” 184
Entretanto, se de modo geral o discurso libertário a favor do amor livre manteve-se
circunscrito à decisão dos indivíduos na escolha dos cônjuges e o direito a dissolubilidade dos
relacionamentos, na Colônia Cecília o discurso libertário seria mais ousado, propondo a
possibilidade de relacionamentos afetivos concomitantes. Desta forma, para melhor
compreendermos o conceito de amor livre elaborado por Rossi, é necessário desmembrá-lo
para compreender sua definição de amor, assim como o que entendia por liberdade de amar.
Para Giovanni Rossi, o amor, quando não é uma estratégia forjada para “conquistar
um corpo”185 e satisfazer os desejos sexuais, “conquistar um dote”186 ou “uma posição
social”187, é a expressão doentia do afeto sentido entre dois indivíduos, oscilando entre
sentimentos efêmeros e a perda da razão, em síntese, “uma forma patológica ou quixotesca de
afeição”.188
Assim, segundo Rossi,

Querer bem é a forma fisiológica, normal e comum de uma afeição. Querer bem está
entre os 20 e 80 graus centígrados do amor. Mais abaixo está o capricho, a simpatia
de um dia, de uma hora, que – gentil e ligeira – chega, beija e passa. Acima dos 80
graus está a loucura sublime ou a ridícula estupidez. Querer bem é uma mistura
apetitosa de volúpia, sentimento e inteligência, em proporções que variam entre os
indivíduos que se querem bem. Em suma, querer bem é o que deveria bastar à
felicidade emocional desta pobre espécie humana.189

Na concepção de Rossi, o amor é substituído por uma outra forma de afeição, um


amálgama de inteligência, sentimentos e desejos, definido apenas como “querer bem”190. Este
sentimento peculiar estabelecido entre o casal, baseava-se na satisfação pessoal dos desejos e
emoções, assim como na preocupação com a satisfação do cônjuge. O “querer bem”

183
VALLADARES, Eduardo. Anarquismo e anticlericalismo. São Paulo: Imaginário, 2000. p. 75.
184
FAUSTO, 1983 apud, Valladares, 2000, p. 61.
185
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 108.
186
Ibidem, p. 108.
187
Ibidem, p. 108.
188
Ibidem, p. 108.
189
Ibidem, p. 108.
190
Ibidem, p. 108.
54

defendido por Rossi se opunha às formas de amor narcisistas que buscavam no outro apenas a
auto-satisfação. Segundo Rossi, referindo-se à Eleda,

quero-a bem de modo subjetivo e objetivo, ou seja, quero-a bem por ela e por mim.
Se a quisesse apenas por mim, pelos prazeres que me dá, pelo ardor que trouxe aos
meus sentimentos, pelas luzes suaves e claras que espargiu por meus pensamentos,
deveria eu dizer, com mais exatidão, que me quero bem [...] São todos amores
subjetivos: não queremos bem, mas nos queremos bem, isto é, queremos bem a nós
mesmos.191

No entanto, se o amor romântico burguês representava uma forma egocêntrica e


doentia, para Giovanni Rossi, o amor era também um recurso natural para atrair homens e
mulheres para a reprodução, pois, “fisiologicamente, o amor é a procura da volúpia, cuja
conseqüência involuntária é a perpetuação da espécie.” 192Sentimento, inteligência, volúpia e
reprodução eram alguns dos elementos presentes na concepção de amor, ou melhor, de
“querer bem” de Giovanni Rossi.
Mas afinal, o que entendia por liberdade de amar? Para o veterinário e agrônomo
anarquista, a monogamia não representava as formas de relacionamentos conjugais que
observava no mundo natural junto as diferentes espécies de plantas e animais. Entre a
diversidade da fauna e da flora, a pluralidade de parceiros era sem dúvida a forma espontânea
através da qual a natureza expunha sua vontade. Como pode ser observado, Cárdias alega que
“segundo os princípios fisiológicos [...] entre as plantas fanerogâmicas – nas quais os sexos
são melhor caracterizados – a promiscuidade é a lei e a monogamia a exceção.”193
Na perspectiva de Rossi, a monogamia aparece como uma anomalia fisiológica que
rompe com as leis da natureza e é admitida apenas em espécies cujos filhotes demandam
cuidados especiais após o nascimento, quando a atenção dos pais torna-se indispensável para
a sobrevivência da prole. Nesse sentido.

as flores negaram a fábula da monogamia e da fidelidade conjugal. Mesmo entre os


animais, a monogamia é uma exceção, quase toda encerrada na espécie dos pássaros,
onde o trabalho de incubação e os cuidados com os filhotes tornam-na necessária. 194

A partir do comportamento de plantas a animais, Rossi apresentava libelos de defesa


da possibilidade de relacionamentos múltiplos e simultâneos. Assim como entre as espécies

191
Ibidem, p. 108.
192
Ibidem, p. 112.
193
Ibidem, p. 112.
194
Ibidem, p. 112.
55

do mundo natural, as “afeições” deveriam ser “múltiplas e contemporâneas”,195 pois esta era a
forma orgânica posta pelas leis da natureza.
Para o autor, mesmo o cuidado com a prole, era um argumento pouco convincente
para conservar os relacionamentos monogâmicos entre homens e mulheres, visto que o
instinto maternal estava fadado a desaparecer com a emancipação feminina dos ditames que
lhe atribuíam unicamente a função de zelar pela saúde e crescimento dos filhos, encerrando-a
no espaço doméstico.

O instinto maternal, não sendo algo perene, está destinado a desaparecer. Se ele se
desenvolveu junto com a necessidade de criar os filhos, não existiu naquelas ordens
de animais em que se abandona a prole logo depois do nascimento e é atenuado nas
classes sociais que entregam seus filhos para que se criem fora de casa. E se um dia,
extinta a necessidade individual de criar os filhos, a sociedade puder oferecer à mãe
algo que valha realmente mais do que o aleitamento e as suas primeiras lições,
também o instinto materno desaparecerá gradativamente, e os sortudos desses
futuros tempos poderão dar um suspiro de alivio e pronunciar o finis familiae.196

Assim sendo, a pluralidade de relacionamentos simultâneos, sem imposições


restritivas aos sentimentos e desejos era uma “necessidade” e um “direito natural”, atrelados
às “liberdades corporais, que são as mais essenciais, as mais urgentes e as mais dificilmente
suprimíveis [...] será impossível negar o direito e a faculdade de dispor livremente de si
próprio, tanto no que se refere ao corpo quanto ao sentimento.”197
Não obstante o apelo ao direito natural para sancionar a “liberdade de amar” como
uma necessidade orgânica, Rossi acreditava que o amor livre era também o único meio
através do qual as necessidades culturalmente construídas poderiam ser supridas em sua
plenitude, dado a impossibilidade de um único individuo reunir todos os adjetivos desejados
pelo parceiro. O amor livre seria, desta forma, a soma de nossos anelos, encontrados na
pluralidade de amores simultâneos, pois,

a sensação primordial tornou-se policromática com o surgimento de tantas matizes


de beleza ( a plástica, a moral, a intelectual ) do rico poliedro humano [...] O amor
deixou de ser uma necessidade simples e primitiva de um mero acasalamento e entre
uma só mulher e um só homem se tornou impossível experimentar todos os
elementos do amor.198

Para Giovanni Rossi,

195
Ibidem, p. 96.
196
Ibidem, p. 121-122.
197
Ibidem, p. 116.
198
Ibidem, p.114.
56

o amor pode ser único e exclusivo em apenas dois casos: quando, na pessoa amada,
não se busca outra coisa a não ser o sexo, e é necessário contentar-se em viver nos
mais baixos degraus da escala humana para que isso possa acontecer; ou quando, na
pessoa amada, está concentrada toda a beleza, toda a bondade, toda a inteligência –
em uma única palavra, quando nela estão todos os atrativos do outro sexo, e é
preciso ser bem néscio para crer que isso possa acontecer. Mas como destes atrativos
só pode haver uma pequena parcela em cada um, os sentimentos se atiram
involuntariamente atrás de outras pessoas.199

A monogamia, para Rossi, configurava-se como uma violação dos “direitos naturais” e
como um obstáculo intransponível para alcançar o bem-estar individual, sendo que uma única
pessoa não poderia agregar todas as “matizes de beleza”. Todavia, se por ventura fosse
possível encontrar um desses seres especiais, semi-deuses envoltos por um halo de virtudes, o
amor exclusivo ainda assim seria apenas mais uma das dissimulações da “moral de fachada
deste século tartufo”200, pois

é apenas conhecendo as condições e os sentimentos de um dia que se hipoteca toda a


vida, vida que está cheia de circunstâncias bem diferentes daquelas previstas. Uma
promessa de fidelidade é deplorável por ser muito ligeira e pouco sincera. Mas uma
bobagem dessas não pode revogar um direito natural, imprescindível e
inalienável.201

Contudo, o discurso apologético a poligamia e a poliandria estavam distantes das


relações clandestinas do adultério. O amor livre, seria verdadeiramente livre quando este fosse
admitido espontaneamente por todos os envolvidos neste “beijo amorfista”, 202 conforme
expressão cunhada por Rossi para diferenciar esta modalidade de relacionamento conjugal
baseado na pluralidade de parceiros, do que se costumava denominar de amor livre no final do
século XIX e inicio do XX, caracterizado pela união livre e divorciável, mas no entanto,
monogâmica.
Neste ínterim, Rossi diria que

se procuro retirar o amor livre – que para mim significa quase sempre amor múltiplo
e paralelo – dos domínios do adultério, da vergonha e do ridículo, onde o
confinaram [...], não desejo, com isso, somente o triunfo das sagradas leis da
natureza e a afirmação contundente do direito, move-se também um outro fim, mais
elevado e amplo: a destruição da família.203

199
Ibidem, p. 114.
200
Ibidem, p. 115.
201
Ibidem, p. 116.
202
Ibidem, p. 127.
203
Ibidem, p. 118-119.
57

Rossi é bastante enfático quanto aos objetivos do amor livre: “a destruição da


família”. A eliminação da figura paterna através de relacionamentos poliândricos
impossibilitaria o reconhecimento do genitor, o que levaria conseqüentemente ao fim da
família nuclear. Nesse sentido, Rossi afirmava que quando “limparem da face da Terra a
mentira da paternidade, a família será feita em pedaços e deverão surgir, espontaneamente, as
relações sociais capazes de substituí-la.”204
Apesar de entender que a família era “incompatível com a vida socialista”,205 pois era
“a principal razão de ser e o principal sustentáculo do regime capitalista”,206 a dissolução da
família o inquietava mais do que a abolição da propriedade privada:

Se me fosse permitido escolher destruir um dos flagelos humanos – a religião ou os


gafanhotos, a propriedade privada ou a cólera, a guerra ou os mosquitos, o governo
ou as chuvas de pedra, os parlamentos ou as fistulas, a pátria ou a malária – , eu
escolheria, sem hesitar, destruir a família. 207

Para Giovanni Rossi, a família era o maior dos flagelos da humanidade e seu
banimento deveria ser imediato. O combate inexorável pelo fim da família é gritante em seus
escritos, figurando antes mesmo do fim da propriedade privada, da guerra, do parlamento, da
religião e mesmo do governo.

3.3 DO SENTIMENTO DA FAMÍLIA AO ESPÍRITO DE FACÇÃO: A PATOLOGIA


DO ORGANISMO SOCIAL

Por volta do século X, a configuração da família em algumas regiões da Europa


Ocidental apresentava contornos muito próximos da família conjugal contemporânea. Os
laços de parentescos estabelecidos entre os membros de uma mesma família eram atados de
forma bastante tênue, fator que conferia maior independência aos indivíduos diante da
família. Esta característica da família medieval é atribuída por G. Duby ao vigor do Estado
Franco, que permitia “ao homem livre viver uma vida independente”,208 em virtude da
funcionalidade de seus “órgãos de paz”.209
Entretanto, a partir do século XI, com a dissolução do Estado Franco, os indivíduos,
por razões de segurança, foram compelidos a fortalecer os laços consangüíneos e buscar na

204
Ibidem, p. 121.
205
Ibidem, p. 122.
206
Ibidem, p. 122.
207
Ibidem, p. 121.
208
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973. p. 144.
209
Ibidem, p. 144.
58

solidariedade parental, a segurança e os meios de sobrevivência, provocando o


desenvolvimento de dois modelos de grupos consangüíneos, a linhagem e a mesnie210.
A linhagem correspondia às relações de solidariedade mantidas entre todos os
membros de uma mesma família com ancestral comum, o que lhe conferia uma rede extensa
de relações parentais, diferentemente da mesnie, que fixava relações familiares de menores
proporções e, fundamentava-se sobre a indivisão do patrimônio. Com isso, agregava em uma
única residência, vários elementos da mesma família e no interior de um tipo de posse
conhecida como frereque ou fraternitas, que, segundo Philippe Áries, “não durava além de
duas gerações”.211
O fortalecimento das relações de parentesco consangüíneas ocasionados pela crise do
Estado Franco ocorreu apenas entre a nobreza, fenômeno social não observado entre os
camponeses. Estes, buscaram junto aos senhores feudais, bem como entre a própria
comunidade aldeã, a proteção que antes era oferecida pelo Estado.
No século XIII, a conjuntura social altera-se novamente, entre outros fatores, pelos
progressos da autoridade do Príncipe e da segurança pública, ocorre “um estreitamento das
solidariedades de linhagem e o abandono das indivisões patrimoniais.”212 Seguindo os passos
de Philippe Ariès,

A família conjugal tornou-se novamente independente. Contudo, a classe nobre não


voltou à família de laços frouxos do século X. O pai manteve e até mesmo aumentou
a autoridade que, nos séculos XI e XII, lhe havia sido conferida pela necessidade de
manter a integridade do patrimônio indiviso. Sabemos, por outro lado, que, a partir
do fim da Idade Média, a capacidade da mulher entrou em declínio. Foi também no
século XIII, na região do Mâconnais, que o direito de primogenitura se difundiu nas
famílias nobres. Ele substituiu a indivisão, que se tornou mais rara, como
salvaguardar o patrimônio e sua integridade.213

A partir deste período, o pai e o primogênito, assumiriam uma posição preponderante


na administração do patrimônio da família, assim como uma autoridade ascendente sobre as
pessoas que a integravam, sobretudo, em relação à mulher. Esta, do século XIV em diante
sofre um processo continuo de “degradação”214 para no século XVI, ser considerada pelo
marido e pela justiça, uma “incapaz”215.
Assiste-se neste momento a desestabilização da linhagem e ao fortalecimento do poder
paterno sobre a mulher e os filhos, bem como a constituição de uma espécie de “monarquia

210
Ibidem, p. 143.
211
Ibidem, p. 143.
212
Ibidem, p. 144.
213
Ibidem, p. 144.
214
Ibidem, p. 145.
215
Ibidem, p. 145.
59

doméstica”.216 Assim, “passara-se portanto a atribuir à família o valor que outrora se atribuía
a linhagem. Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder
monárquico.”217
O que pretende-se com esta breve descrição da família Medieval, é assinalar o
desenvolvimento da família conjugal moderna no século XIV e, principalmente, o surgimento
de um “sentimento da família”218, ausente durante o medievo. Segundo Philippe Ariès, “o
sentimento da família está ligado à casa, ao governo da casa e à vida na casa. Seu encanto não
foi conhecido durante a Idade Média porque esse período possuía uma concepção particular
de família: a linhagem”219, onde os laços consangüíneos eram mais fortes do que a afeição
surgida entre as pessoas que coabitam a mesma residência.
Esta vicissitude em relação a configuração da família medieval, caracterizada por um
sentimento novo, inexistente nos modelos familiares anteriores, pode ser identificada na
produção iconográfica do inicio da modernidade, sobretudo entre os séculos XVI e XVII,
período em que apresentou um crescimento espantoso.
A partir do século XVI o retrato de família se liberou de sua função religiosa. Estes
quadros, que antes destinavam-se a ornar igrejas, passam deste momento em diante, a decorar
as paredes dos ambientes privados. Segundo Philippe Ariès, esta autocontemplação da família
pode ser interpretada como um “imenso progresso no sentimento de família.”220
A laiscização da iconografia da família foi acompanhada por transformações nos
ambientes retratados. Comuns durante o medievo, as representações iconográficas que
reproduziam por via de regra ambientes ao ar livre, cedem espaço para os retratos de
ambientes privados, raros antes do século XV. Ambientes como o quarto, tornam-se
recorrentes nas cenas de morte ou de parto. Segundo Ariès, “a representação mais freqüente
do quarto e da sala corresponde a uma tendência nova do sentimento, que se volta então para
a intimidade da vida privada.”221
Os laços de afetividade entre pais e filhos, mais especificamente, entre a família
conjugal, denotam a diferença em relação a família medieval e a família pós-século XV. De
acordo com Philippe Ariès, “essa família, ou a própria família, ou ao menos a idéia que se

216
Ibidem, p. 145.
217
Ibidem, p. 146.
218
Ibidem, p. 137.
219
Ibidem, p. 145.
220
Ibidem, p. 140.
221
Ibidem, p. 137.
60

fazia da família ao representá-la e exaltá-la, parece igual à nossa. O sentimento é o


mesmo.”222
Desta forma, nos séculos XVI e XVII a família ocuparia um lugar privilegiado na vida
sentimental dos indivíduos. As relações entre os seus membros tornam-se mais estreitas,
fortes e emotivas, como sugere os novos padrões de comportamento em ralação a criança.
Para Ariès, “a família transformou-se profundamente na medida em que modificou suas
relações internas com a criança.”223
Durante a Idade Média , a educação dos infantes baseava-se em “contratos de
aprendizagem”,224 através dos quais os pequenos eram confiados aos cuidados de outra
família a partir dos sete ou nove anos, aonde desempenhavam os serviços domésticos e lá
permaneciam até os quatorze ou dezoito anos. Esse era o método corriqueiro através do qual
as crianças eram educadas. Ali, entre os adultos e os serviços domésticos, as crianças
recebiam de seu mestre os ensinamentos necessários para ingressar na vida adulta. Longe de
ser uma condição aviltante, a aprendizagem era um estágio, um estado temporário em que
crianças e jovens aprendiam um oficio, boas maneiras e como agir socialmente.
No período em que os estudos em colégios eram exclusividade de uma parcela ínfima
da sociedade, representada em sua totalidade por clérigos e alguns poucos nobres preocupados
com o universo das letras, “era através do serviço doméstico que o mestre transmitia a uma
criança, não ao seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a
experiência prática e o valor humano que pudesse possuir.”225
Esta pedagogia habitual entre todos os estratos sociais, afastava os filhos do convívio
familiar desde a mais tenra idade, o que dificultava o fortalecimento das afeições entre pais e
filhos. Contudo, esta realidade não sobreviveria ao século XV, que veria a educação das
crianças ser progressivamente absorvida pela escola, esta, assumiria a responsabilidade de
iniciação social que antes cabia a aprendizagem.
Este processo poder ser atribuído a fatores morais cujos objetivos eram preservar a
“juventude do mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva”,226 mas também,
a preocupação dos pais e a necessidade que estes sentiam agora de ficar próximos dos filhos.
Pode-se dizer, que “a família concentrou-se em torno da criança.”227

222
Ibidem, p. 153.
223
Ibidem, p. 154.
224
Ibidem, p. 155.
225
Ibidem, p. 156.
226
Ibidem, p. 159.
227
Ibidem, p. 159.
61

uma prova de um movimento gradual da família-casa em direção à família


sentimental moderna. Tendia-se agora a atribuir à afeição dos pais e dos filhos, sem
dúvida tão antiga quanto o próprio mundo, um valor novo: passou-se a basear na
afeição toda a realidade familiar.228

Nesse ínterim, por meio de um processo iniciado no século XV e que estenderia-se até
o século XVII, a família fortaleceu os laços afetivos entre pais e filhos, agregando-se em torno
da criança que voltava ao lar. A família, iniciava um movimento de privatização e fechava-se
sobre si. Entretanto, neste momento não conseguiria fechar-se completamente e isolar-se da
sociedade, pois ainda havia um equilíbrio entre as duas.

Os progressos do sentimento de família seguem os progressos da vida privada, da


intimidade doméstica. O sentimento da família não se desenvolve quando a casa esta
muito aberta para o exterior: ele exige um mínimo de segredo. Por muito tempo, as
condições da vida cotidiana não permitiram esse entrincheiramento necessário da
família, longe do mundo exterior [...] No século XVII, constituiu-se um equilíbrio
entre as forças centrifugas – ou sociais – e centrípetas – ou familiares – que não
sobreviveria aos progressos da intimidade, conseqüência talvez dos progressos
técnicos. 229

No período em questão, as sociabilidades baseavam-se em relações inter-pessoais de


dependência, isto significa que a posição ou, mais precisamente, o status e prestígio de um
indivíduo dependia da trama de relações sociais por ele tecida. Era preciso antes de tudo,
saber como agir e agir socialmente para alcançar o sucesso. Para Ariès,

o essencial era manter as relações sociais com o conjunto do grupo onde se havia
nascido, e elevar a própria posição através de um uso hábil dessa rede de relações.
Ter êxito na vida não significa fazer fortuna – ou ao menos isso era secundário;
significava antes de tudo obter uma posição mais honrosa numa sociedade em que
todos os membros se viam, se ouviam e se encontravam todos os dias.230

Todavia, se as relações sociais bem tecidas representam a principal forma de construir


uma reputação respeitável e conquistar prestígio social, podemos pressupor que os espaços de
sociabilidades desempenhavam no interior dessa sociedade uma função relevante.
A rua, certamente, era o espaço onde todos se encontravam. As cidades e vilas
abrigavam uma população pouco numerosa. Todos esbarravam-se diariamente. Mas, se a rua
era o espaço de encontro, aonde, como indaga Ariès, estes fulanos, cicranos e beltranos se
reuniam para confabular, negociar e confraternizar?

228
Ibidem, p. 162.
229
Ibidem, p. 164.
230
Ibidem, p.164.
62

Havia a taberna, mas não era um local que as pessoas de bem poderiam freqüentar.
Este era o espaço de bêbados, soldados e meretrizes. As pessoas de bem que tinham uma
reputação a zelar, reuniam-se nas casas particulares, “as grandes casas, rurais e urbanas”.231

Nessas casas grandes, nem palácios, nem sempre hôtels ou mansões, casas rurais ou
casas urbanas ocupando apenas um andar do imóvel, encontramos o meio cultural do
sentimento de infância e da família. Foi nelas que recolhemos todas as observações
que constituem a matéria deste livro. A primeira família moderna foi a família
desses homens ricos e importantes. É ela que vemos representada na rica iconografia
de meados do século XVII [...].232

A casa grande era o espaço por excelência das sociabilidades. A família que nela
residia era invadida por conhecidos que faziam do seu interior um ponto de encontro do
individuo e do grupo disposto em torno dele por relações de dependência. “A casa grande
desempenhava uma função pública. Nessa sociedade sem cafés, nem public house, ela era o
único lugar onde os amigos, clientes, parentes e protegidos se podiam encontrar e
conversar.”233
A ausência de privacidade era uma constante no cotidiano da família. Com uma
fronteira pouco observável entre público e privado, ela perdia muito de sua intimidade,
porém, esta não parecia ser uma preocupação de primeira ordem. Quando a casa não era
transformada em espaço de sociabilidades, eram os membros da família que se evadiam.
Segundo Edward Shorter, “a família tinha grande dificuldade em estabelecer-se como unidade
emocional na Europa do antigo regime porque os seus membros estavam constantemente a
afastar-se para estar com os vários grupos dos seus iguais.”234
Até o século XVIII, o ambiente doméstico era um prolongamento da rua. Era um
espaço público onde as pessoas se reuniam para fins diversos em ambientes indiferenciados.
Não havia espaço para a intimidade familiar pois público e privado eram dimensões que se
confundiam até este momento.
De acordo com Philippe Ariès,

esta sociabilidade durante muito tempo se havia oposto à formação do sentimento


familiar, pois não havia intimidade. O desenvolvimento, nos séculos XVI e XVII, de
uma relação afetiva nova, ou ao menos consciente, entre os pais e os filhos não a
destruiu. Essa consciência da infância e da família – no sentido em que falamos de
consciência de classe – postulava zonas de intimidade física e moral que não existia
antes. Contudo, nessa época, ela se combinou com uma promiscuidade permanente
[...]. As casas desses homens abastados tornaram-se centros de vida social, em torno

231
Ibidem, p.178.
232
Ibidem, p. 179.
233
Ibidem, p. 180.
234
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa : Terramar, 1975. p. 222.
63

do qual gravitava todo um pequeno mundo complexo e numeroso. Esse equilíbrio


entre a família e a sociedade não iria resistir à evolução dos costumes, e aos novos
progressos da intimidade.235

A partir do século XVIII, a família passaria a levantar barreiras contra o mundo


exterior. No interior da casa, que sofreria transformações arquitetônicas de modo a preservar a
privacidade mesmo entre os seus moradores, a família se abrigaria dos olhares indiscretos dos
curiosos e das hostilidades da sociedade. Ali, entre quatro paredes, pais e filhos sentiriam-se
felizes e seguros, distanciando-se dos antigos hábitos de sociabilidade que permitiam a
intromissão do público no privado.
Os espaços seriam esquadrinhados e receberiam funções especificas. A residência
familiar de um único cômodo ganharia outros mais, cada um, destinado a tarefas e rotinas
diferenciadas: refeições, trabalho e lazer ganhavam seus próprios espaços, com destaque para
o quarto de dormir. A preocupação com a delimitação dos espaços “correspondeu a uma
necessidade nova de isolamento”,236 reitera Philippe Ariès.
Ariès assinala que no século XVIII, em contraposição com sua realidade anterior, “a
família começou a manter a sociedade a distância, a confiná-la a um espaço limitado, aquém
de uma zona cada vez mais extensa de vida particular. A organização da casa passou a
corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo.”237
Assim, começava a tomar forma uma família que excluía de seu recinto todos os
elementos estranhos, assumindo uma configuração atomizada, reduzida a sua menor fração,
ou seja, aos pais e filhos tão-somente. Para Philippe Ariès, “esse grupo de pais e filhos, felizes
com sua solidão, estranhos ao resto da sociedade, não é mais a família do século XVII, aberta
para o mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna.”238
Ao longo dos três primeiros séculos da modernidade, a família passou por um
processo de reconfiguração, iniciado com o despertar de um “sentimento da família”, isto é,
os laços de parentesco firmados entre seus membros fortaleceram-se, sobretudo por questões
afetivas. A família tornava-se um valor e, assim, precisava ser defendida de intrusos que
poderiam ameaçá-la.
Nesse sentido, Shorter alega que a

domesticidade, ou a consciência que a família tem de si mesma enquanto unidade


emocional preciosa que deve ser protegida com privacidade e isolamento da intrusão

235
ARIÈS, op. cit., p. 184.
236
Ibidem, p. 185.
237
Ibidem, p. 184-185.
238
Ibidem, p. 188.
64

exterior, foi a terceira ponta de lança do grande surto de sentimento nos tempos
modernos. O amor romântico desligou o casal do controlo sexual comunitário e
virou-o para o afecto. O amor materno criou um ninho sentimental dentro do qual a
família moderna se aninhava e afastou muitas mulheres do envolvimento com a vida
comunitária. A domesticidade isolou, além disso, a família no seu todo da sua
interação tradicional com o mundo circundante.239

O sentimento da família, família agora composta pelos pais e pelos filhos, fez com que
essa se refugiasse no interior da casa, longe das ameaças da sociedade. Apesar de conviver até
então com um intenso fluxo de pessoas, a partir do século XVIII inicia-se um processo de
privatização familiar. Enclausurando-se, fechando-se sobre si mesma, voltando-se para os
seus entes queridos, “a família tornou-se uma sociedade fechada onde seus membros gostam
de permanecer.”240
Segundo Philippe Ariès, “as pessoas começaram a se defender contra uma sociedade
cujo convívio constante até então havia sido a fonte de educação, da reputação e da
fortuna”241,

mas chegou um momento em que a burguesia não suportou mais a pressão da


multidão, nem o contato com o povo. Ela cindiu-se: retirou-se da vasta sociedade
polimorfa para se organizar à parte, num meio homogêneo, entre suas famílias
fechadas, em habitações previstas para a intimidade, em bairros novos, protegidos
contra a contaminação popular. A justaposição das desigualdades, outrora natural,
tornou-se-lhe intolerável: a repugnância do rico precedeu a vergonha do pobre. A
procura da intimidade e as novas necessidades de conforto que ela necessitava ( pois
existe uma relação estreita entre conforto e intimidade ) acentuava ainda mais o
contraste entre os tipos de vida material do povo e da burguesia.242

A burguesia, preferiria a segurança e o conforto que a privacidade poderia oferecer,


aos riscos de uma família de portas abertas para a sociedade. Seu isolamento social seria ainda
mais hermético durante o século XIX.
O movimento que do século XV ao XVIII levou a família a se confinar no interior da
casa, abrigando-se da “pressão social”, 243 atingiu o apogeu no século XIX. Neste século
turbulento, a família nuclear burguesa refugiou-se definitivamente em sua redoma de
segurança, equilíbrio e harmonia. O antagonismo entre estes dois mundos – o privado e o
público – deixava-se perceber pela arquitetura das residências burguesas.
Enquanto os palacetes urbanos conservavam fachadas práticas e funcionais, o
ambiente interno tornava-se acentuadamente faustuoso. Os cômodos, as paredes e o

239
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1975. p. 244.
240
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973. p. 191.
241
Ibidem, p. 191.
242
Ibidem, p. 195.
243
Ibidem, p.185.
65

mobiliário, eram recobertos por tapetes, cortinas, quadros e objetos requintados que
embelezavam o cotidiano da vida privada da família. A preocupação estética e a
imprescindível busca por conforto, denotavam a avidez das pessoas para criar um mundo
privado harmônico contrastante com seu exterior.244
Este ambiente “repleto e culto”,245 de acordo com Eric Hobsbawm, era mais que um
espaço utilitário, era um símbolo de status e sucesso. Para Hobsbawm,

o lar era a quintessência do mundo burguês, pois nele, e apenas nele, podiam os
problemas e contradições daquela sociedade ser esquecidos ou artificialmente
eliminados. Ali e somente ali, os burgueses e mais ainda a família pequeno burguesa
podiam manter a ilusão de uma alegria harmoniosa e equilibrada.246

A sociedade do século XIX era percebida pelos membros da família burguesa,


especialmente pelo pai provedor, dado que era este personagem quem diariamente lançava-se
contra as multidões para garantir o conforto da família e a manutenção da propriedade, como
um campo de batalha. A esposa e os filhos por seu turno, eram a base de apoio estratégico, o
local onde se recuperava as forças após exaustivos combates pela sobrevivência. “O lar veste-
se de todas as virtudes, em oposição ao mundo exterior, que encarna as desordens humanas e
sociais.”247 Sendo assim,

a metáfora da guerra vinha naturalmente aos lábios dos homens quando discutiam
‘suas lutas pela existência’ ou a ‘sobrevivência dos melhores’, da mesma forma
como a metáfora da paz quando descreviam seus lares: ‘o acolhedor lugar da
felicidade’, o lugar onde ‘a ambição satisfeita do coração encontrava sua paz’, já que
nunca podia encontrá-la no mundo exterior, desde que nunca podia ser satisfeita, ou
admitir sê-lo.248

Apesar de incrustada em seus seios, a família insistia em situar-se em um ponto


diametralmente oposto à sociedade. Família e sociedade tornaram-se dois mundos
antagônicos e conflitantes. A “domesticidade”, definição de Edward Shorter para o que

244
De acordo com os autores do quarto volume de História da Família, no início do século XX surge uma cultura
de classe média em alguns países europeus traduzida pela expressão “homo sweet home”. Desta forma, “o
home é o espaço interior da família, valorizado ao extremo, muito decorado e embelezado. Reino da mulher,
esta investe aí uma parte considerável de sua energia e do seu tempo.” In: BURGUIÈRE, André;
KLAPISCH-ZUBER, Christiane; SEGALEN, Martine; ZONABEND, Françoise. História da família. O
Ocidente: industrialização e urbanização. V. 4. Lisboa: Terramar, 1986. p. 23.
245
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 322.
246
Ibidem, p. 321-322.
247
BURGUIÈRE, André; et ali. História da família. O Ocidente: industrialização e urbanização. V. 4. Lisboa:
Terramar, 1986. p. 23.
248
HOBSBAWM, op. cit., p. 333.
66

Philippe Ariès denominou de “sentimento da família”, “acabaria por atear um lume


confortável no lar – incendiando a comunidade em volta.”249
Para Edward Shorter,

o que verdadeiramente distingue a família nuclear – mãe, pai e filhos – de outros


modelos da vida familiar na sociedade ocidental é um sentido especial de
solidariedade que separa a unidade doméstica da comunidade circundante. Os seus
membros acham que têm muito mais em comum uns com os outros do que com
qualquer outra pessoa de fora – que gozam de um clima emocional privilegiado que
têm de proteger da intrusão do exterior, através da privacidade e do isolamento.250

Era sobre esta família anti-social, confinada em seu microcosmo pacato e harmônico
em detrimento da sociedade, que incidiam as críticas de Giovanni Rossi:

Se a família pudesse viver ao ar livre, sob o controle severo da sociedade ou, como
alguém já disse, em uma casa de vidro, poder-se-ia então minimizar um pouco sua
ferocidade, sua vileza, sua corrupção. Mas o casal unido pelos laços da família tende
a isolar-se na caverna, na cabana, no tugúrio, no palácio ou em qualquer outro lugar
que encontre. E o sacrário doméstico, o inviolável santuário da família, o secreto
gineceu se transforma nos subterrâneos da santa inquisição, nos porões secretos da
bastilha. E as piores atrocidades humanas acontecem ali dentro, porque permanecem
veladas e impunes. 251

Esse claustro onde habitavam as famílias, na ótica de Giovanni Rossi, correspondia a


um ambiente nefasto, marcado por “atos de prepotência”,252 traduzidos pelo uso do poder
autoritário do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos, dos adultos sobre as crianças e
do pai sobre todos. Segundo Giovanni Rossi, “na família, a prole repete e perpetua os clichês
estúpidos dos pais”.253 Destarte, “é na monarquia absoluta da família que a mão do covarde
espanca a face da mulher, que os jovens crescem no triste hábito da obediência e da
simulação, alimentando o desejo de um dia, quando chegar a sua vez, mandar nos outros.”254
Não obstante, o ambiente familiar não era para Giovanni Rossi apenas responsável por
formar os filhos na escola do autoritarismo, mas também, por ensinar a conivência com as

249
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1975. p. 222.
250
Ibidem, p. 221.
251
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 119-120.
252
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 78.
253
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 120.
254
Ibidem, p. 120.
67

desigualdades e injustiças, pois “no interior das relações de parentesco, normalmente,


toleram-se os defeitos que, ao contrário, são duramente condenados nos outros”.255
A dicotomia entre família e sociedade foi percebida por Rossi logo nos primeiros
meses da Colônia Cecília, quando “três parentes, que eram do grupo, muitas vezes se uniam,
formando uma facção à parte”.256 Como denominava Giovanni Rossi, o “espírito de
facção”,257 impedia que o conjunto da sociedade se desenvolvesse espontaneamente e de
forma harmônica, pois os interesses dos membros da família eram colocados invariavelmente
à frente dos interesses do restante da sociedade. Para Rossi

As faculdades anti-sociais que se desenvolveram na vida burguesa ainda perduram,


enquanto as faculdades morais correspondentes à nova vida social não tiveram ainda
tempo para se desenvolver e se consolidar. A essa contradição entre as tendências
pessoais e o esquema da vida coletiva é preciso acrescentar a ação irritante da
pobreza e o efeito nocivo das relações de parentesco.258

O idealizador da Colônia Cecília lembra que apesar de não ter ocorrido desavenças
mais graves, tais como casos de violência, a questão da “domesticidade” dificultava o
convívio coletivo: “vieram à tona, contudo, os egoísmos familiares – muitas vezes, os
parentes comiam enquanto os outros permaneciam em jejum.”259
O “sentimento da família”, na visão do libertário italiano, comprometia os ideais
libertários e ameaçava o desenvolvimento do bem-estar da colônia. Segundo Giovanni Rossi,

Fica evidente que a produção na Cecília não teve outro estímulo a não ser o desejo
de alcançar um bem-estar coletivo, no qual o nosso bem-estar particular está
incluído. A atividade produtiva foi desenvolvida, apesar de e contra os egoísmos
mesquinhos e, especialmente, contra o egoísmo doméstico, que quer que toda
utilidade conflua para dentro da família, afastando dela qualquer justa parcela de
sacrifício e de privações.260

Deste modo, a solidariedade afetiva dos membros da família conduzia as pessoas a


serem indulgentes entre si e a canalizarem todos os recursos para o cerne das relações de
parentesco, independentemente do “organismo social”. Enquanto os familiares, isto é, pais e
filhos, permanecessem seguros e satisfeitos, a harmonia do lar estava garantida e isto era
suficiente.

255
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 86.
256
Ibidem, p. 65.
257
Ibidem, p. 77.
258
Ibidem, p. 85.
259
Ibidem, p. 67.
260
Ibidem, p. 83.
68

Referindo-se às relações de parentesco na Colônia Cecília, Rossi afirmava que “quem


possui família tem um medo tão grande da pobreza que acaba causando aborrecimento ao
outro, que sempre lhe parece não estar produzindo o suficiente ou estar consumindo muito. Os
solteiros, nunca os vi contaminados por tamanho egoísmo”.261
O medo e a preocupação, salientados por Rossi, dos que possuem família pode ser
atribuído menos ao egoísmo do que a responsabilidade exclusiva de assegurar a subsistência
familiar, responsabilidade que recai apenas sobre os próprios membros da família e
especialmente sobre o pai provedor. Nas sociedades burguesas, a garantia da vida dos
indivíduos é antes de tudo, atribuição da família, na qual a sociedade não deve se imiscuir.
Nesse sentido, para Giovanni Rossi, “a harmonia das relações econômicas entre
individuo e a sociedade só poderá ser natural e espontânea quando todas as mulheres forem
consideradas possíveis amantes e todas as crianças como possíveis filhos.”262Na perspectiva
de Rossi, o binômio família-sociedade era um axioma que precisava ser desfeito, dado que “a
solidariedade será apenas uma teoria enquanto o homem colocar de um lado a mulher e os
filhos e do outro o resto da humanidade.”263 Da equação deste axioma dependia o êxito do
projeto libertário, não pela reconfiguração, mas pela completa dissolução da família nuclear.
De acordo com Rossi, a extinção da família era imprescindível para a concretização dos ideais
libertários, como afirma em Um caso de amor livre na Colônia Cecília:

Mudem-lhe à vontade os ritos e os nomes ou ainda suprimam-lhes os nomes e os


ritos e restarão sempre um homem, uma mulher, filhos, uma casa, restará a família, o
que é o mesmo que dizer: uma pequena sociedade autoritária, ciosa de suas
prerrogativas, economicamente rival da grande sociedade.264

Esta “pequena sociedade autoritária”, governada por uma “monarquia absoluta”, “rival
da grande sociedade”, ameaçava diretamente a harmonia social, pois

como a vida coletiva resulta da soma de todas as vidas individuais e os hábitos


privados influem fortemente sobre os hábitos públicos, será precária a existência de
uma sociedade regida contemporaneamente por princípios contraditórios, o egoísmo
da vida doméstica e a solidariedade da vida coletiva.265

261
Ibidem, p. 86.
262
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 124.
263
Ibidem, p. 122.
264
Ibidem, p. 123.
265
Ibidem, p. 123.
69

Desta forma, a família, sob as lentes de Giovanni Rossi, portava-se como uma espécie
de sociedade de auxilio mútuo mantida por laços de afetividade, ou seja, a família formava
células independentes no interior do “organismo social” afetando o equilíbrio entre público e
privado e a harmonia do conjunto.
Para Rossi, assim como para muitos intelectuais e pensadores do século XIX, tais
como Piotr Kropotkin e Auguste Comte, a dinâmica social comparava-se a um organismo,
cujo bem-estar geral, dependia da harmonia entre os órgãos e o corpo, ou então, entre
indivíduos e sociedade. Nesse sentido, a família era percebida como uma disfunção
fisiológica, ou mesmo como uma patologia capaz de vitimar o organismo social.
Por esta via, Rossi lembra que

assim como as velhas formas de família se desmantelaram, a família cristã também


está morrendo, e inúmeros sinais estão anunciando sua agonia. O que os senhores
estão temendo, nós o desejamos; e neste centro experimental estamos convencidos
de que tão-somente quando a molécula familiar estiver decomposta nos átomos que
a constituem, a propriedade dos meios de produção voltará ao clã; mas o clã da nova
era será o gênero humano [...].266

Embora as críticas de Rossi a família tivessem como alvo a reprodução da propriedade


privada, esta não era a única nem a principal razão. A família ameaçava o equilíbrio e
colocava em risco o bem-estar do corpo social.
Rossi considerava a colônia como um “ambiente social moralmente sadio”,267
enquanto a sociedade burguesa, em contrapartida, era percebida como um ambiente doente,
ou seja, uma “sociedade que é o oposto da nossa.”268 Da mesma forma, ao indagar sobre o
futuro da Colônia Cecília, Giovanni Rossi chega a comparar a família a uma “doença”
responsável pela “morte” da colônia:

O que será da Cecília?


Talvez morra. Mas de qual doença?
Geralmente, morre-se por falta de respiração; e quase ninguém procura indagar
mais do que isso. Mas nós precisamos saber.
O egoísmo familiar poderia desenvolver-se a tal ponto que conseguiria destruir o
que se tem feito até agora, despedaçando a coletividade ou reduzindo-a à uma
vulgar cooperativa.269

266
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 86.
267
Ibidem, p. 77.
268
Ibidem, p. 77.
269
Ibidem, p. 88.
70

Nas narrativas de Giovanni Rossi abundam palavras, expressões e figuras de


linguagem que remetem ao mundo ou mesmo às ciências naturais. “Organismo social”,
“direito natural”, “sagradas leis da natureza”, “forma patológica”, “forma fisiológica”,
“necessidade natural” são algumas das expressões que pontuam o discurso de Rossi sobre o
amor livre e a família. Essas representações sociais construídas por Giovanni Rossi, são fruto
de uma interpretação orgânica da sociedade e de um ideal político baseado no equilíbrio e na
harmonia social, frutos respectivamente, da filosofia positivista de Auguste Comte e das
idéias libertárias de Piotr Kropotkin.
Se admitirmos as formas discursivas como meios de alcançar as representações sociais
de indivíduos ou de grupos sociais, concebendo ainda, estas mesmas representações como
construções imagéticas que conferem sentido ao mundo e atuam como “matrizes de práticas
que constroem o próprio mundo social”,270 o discurso de Giovanni Rossi em relação a família
nuclear leva-nos a inferir que ela é representada como uma célula, ou melhor, como uma
“molécula” patológica que estabelece com o organismo social uma relação de assimetria,
comprometendo o equilíbrio e o bem-estar coletivo.271
Para Rossi, a sociedade era representada como um organismo e deveria desenvolver-se
naturalmente, livre de amarras. O equilíbrio e a harmonia do organismo social dependiam da
relação simétrica entre suas partes e o todo. Nesse sentido a decomposição da família urgia,
dado que esta operava através de uma lógica independente da sociedade, ocupando-se
sobretudo com questões privadas e com a harmonia interna do seu microcosmo, aquém do seu
exterior, isto, para Giovanni Rossi, significava o caos e por conseguinte, a falência do
organismo social.
No ano de 1894, a Colônia Cecília chegava ao fim. Muitos de seus moradores
migrariam para as cidades vizinhas em busca de melhores condições de vida, outros, partiriam
para a Curitiba onde contribuíram para a formação dos primeiros movimentos operários da
capital paranaense. Giovanni Rossi, a havia deixado no ano anterior, pois acreditava que não
havia razões para estender o experimento “no meio de tantas dificuldades de ordem extrínseca
que a rodeiam”.272 Os resultados já haviam sido observados: “o desfazer-se progressivo e

270
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2002. p. 72.
271
Segundo Sandra J. Pesavento, “uma outra forma de compreender a representação seria dada pela exposição de
uma imagem, que substitui algo/outro, ou mesmo pela exibição de objetos ou ainda por uma performance
portadora de sentidos que remetem a determinadas idéias.” Nos discursos de Rossi, a família deve ser
compreendida a partir de sua própria leitura do real, isto é, a partir da sua própria imagem do social, delineada
como um organismo, cujo bem-estar, depende do equilíbrio sistêmico. Para definição de representação, vide:
PESAVENTO, Sandra J. História e História cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 41.
272
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
71

espontâneo da família monogâmica prepara o terreno para o triunfo dos nossos ideais”,
concluía Rossi antes de partir para Taquari.

Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 87.


72

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Colônia Cecília, produto do século XIX, fornecia uma amostra de alguns dos
fenômenos sociais mais significativos daquele fim de século. O discurso cientificista,
movimentos sociais e imigrações estavam presentes em uma pequena porção de terra do
interior do Brasil meridional. No entanto, reconstruir sua história não estava entre os objetivos
que tínhamos proposto. Sua história já havia sido escrita, recontada e até mesmo romanceada.
Incidindo as análises sobre os discursos de Giovanni Rossi, pretendia-se chegar as
representações sociais construídas pelo discurso libertário em relação a família no final do
século XIX, mais especificamente, a família nuclear burguesa, composta pela tríade pai-mãe-
filhos.
Entendíamos que as críticas do libertário italiano à família não estavam circunscritas
apenas ao desejo comunista de por fim a propriedade privada. Em seus escritos era possível
identificar elementos que nos conduziam para além desta razão aparente. Nesse sentido,
fomos buscar entre os personagens históricos que transitam por entre as linhas dos textos de
Giovanni Rossi, possíveis explicações para as críticas contundentes à família.
Entre a gama de autores presentes nos escritos de Giovanni Rossi e que podem ser
considerados como importantes influências na constituição do seu pensamento, dois apenas
foram escolhidos. Sem dúvida, uma análise mais abrangente dos pensadores que o
influenciaram daria maior solidez às interpretações. Por ora, optamos pela análise das idéias
do libertário Piotr Kropotkin e de Auguste Comte por considerarmos essenciais para
compreender sua representação da família. No discurso desses dois pensadores acreditamos
encontrar as raízes do pensamento político de Rossi, assim como as razões e os métodos do
anarquismo experimental.
O nome do geógrafo russo figura inúmeras vezes nos escritos analisados de Giovanni
Rossi, assinalado inclusive, em O Paraná no século XX. Nesta obra ficcional em que Rossi
imagina um movimento revolucionário ocorrido no Paraná por volta de 1950, é nome de Piotr
Kropotkin que vigora entre os pensadores divulgados pela propaganda insurgente e não o de
Malatesta, contrariando Beatriz Pellzzetti Lolla. Nas últimas décadas do século XIX, Piotr
Kropotkin tornou-se a principal referência do pensamento libertário, sobretudo, da corrente
anarquista-comunista, a qual pertencia Giovanni Rossi. Não obstante, os dois libertários
também estavam ligados às ciências naturais: um, geógrafo, o outro, agrônomo e veterinário.
Nas obras analisadas de Giovanni Rossi, a proximidade entre mundo natural e social nos
73

parecia reveladora. Os textos de Rossi são permeados por termos e expressões tomados de
empréstimo das ciências naturais, como por exemplo, “organismo social”.
Nesse sentido, fomos encontrar no positivismo de Comte, para quem a sociedade
assumia a forma de um organismo, os fundamentos desta expressão. Assim, se a sociedade era
análoga a um organismo, poderia ser cientificamente estudada e as leis que a regem,
decodificadas. Rossi, cioso para expor as teorias libertárias a luz da ciência, como Kropotkin
reivindicava, assim faria em sua colônia experimental.
É na intersecção dos pensamentos desses dois autores que encontramos os contornos
da representação da família nuclear burguesa construída por Giovanni Rossi. As propostas de
harmonia social através do equilíbrio entre os elementos e o conjunto, presentes no
anarquismo de Piotr Kropotkin, aliadas a leitura orgânica da sociedade, oriunda do
positivismo de Comte, apontam para as razões dos discursos cáusticos proferidos por
Giovanni Rossi relativos a família: simbolicamente, a família estava para a sociedade assim
como uma molécula patológica está para o organismo.
A partir do século XVIII a família havia iniciado um processo de enclausuramento,
retirando-se da sociedade para reproduzir na atmosfera privada do lar, o equilíbrio e a
harmonia que no mundo exterior pareciam impossíveis. Para Rossi, sociedade e família eram
dois mundos antagônicos que ameaçavam a harmonia e o bem-estar geral.
Segundo Michele Perrot, “unânimes em criticar a família de sua época, raros, porém,
são os socialistas que pensam em sua total eliminação. Igualmente raros são os que pretendem
uma subversão dos papéis sexuais, tão profunda é a crença numa desigualdade natural entre
homens e mulheres.”273 Giovanni Rossi era um desses casos raros.
No entanto, apesar de suas particularidades, Giovanni Rossi também não poderia
deixar de estar relacionado a esta unanimidade. Na mesma medida que se distanciava dos
demais em certos aspectos, Giovanni Rossi compartilhava com estes, visões de mundo,
discursos e práticas comuns aos libertários de seu tempo.
Desta forma, sem excluir as singularidades do pensamento de Giovanni Rossi, é licito
sublinhar as similitudes que faziam de todos estes insurgentes do século XIX, libertários,
especialmente, o equilíbrio entre individuo e sociedade. Esta proposição nos permite, a partir
deste caso particular, levantar a hipótese geral de que, para além das criticas a família como
reprodutora da propriedade privada, a dualidade entre público e privado era também uma das
razões que motivavam os discursos anarquistas contra a família burguesa, pois, desta forma,

273
PERROT, Michelle ( org. ). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. V. 4. Cia.
das Letras: São Paulo, 1991. p. 100.
74

seu principio elementar de liberdade individual e responsabilidade coletiva estava ameaçado e


com isso, a própria sociedade que imaginavam.
75

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São
Paulo: Cia. Das Letras, 2005.

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002.

BURGUIÈRE, André. et al. História da família. O Ocidente: industrialização e urbanização.


V. 4. Lisboa: Terramar, 1986.

COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São
Paulo: Hedra, 2007.

COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 –
1914. Cia. das Letras, 2000.

COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril
Cultural, 1978.

CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto


Alegre: Ed. UFRGS, 2002.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Difel / Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural


francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

DAVIS, Natalie Z. O retorno de Martin Guerre. Paz e Terra.

GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2000.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel / Bertrand


Brasil, 1989.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro


perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e História. São Paulo: Cia. das
Letras, 2007.

HOBSBAWM, E. J. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996.


76

HOBSBAWM, E. J.. A era dos impérios: 1875-1914 . 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992.

HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2005.

KROPOTKIN, Piotr. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário / Ícone, 2005.

KROPOTKINE, Pedro. A conquista do pão. Lisboa: Guimarães ed., 1975.

KROPOTKIN, Piotr. A anarquia. Sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2001.

KUPPER, Agnaldo. Colônia Cecília. São Paulo: FTD, 1993.

LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter ( org. ). A Escrita da História:
Novas Perspectivas. UNESP: São Paulo, 1992.

LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba:
Secretaria de Estado da Cultura, 1999.

MALATESTA, Errico. A anarquia. São Paulo: Imaginário, 2001.

MALATESTA, Errico. Autoritarismo e anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2004.

NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al


Mare à Colônia Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998.

NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3.
República: da belle époque à era do rádio. Cia. das Letras: São Paulo, 1999.

PESAVENTO, Sandra J. História e História cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

PERROT, Michelle ( org. ). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira


Guerra. V. 4. Cia. das Letras: São Paulo, 1991.

RODRIGUES, Márcia Barros Ferreira. Exercícios de indiciarismo. Vitória: UFES, 2006.

RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. São Paulo, 1974.

RODRIGUES, Edgar. Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil. São Paulo: Global,


1984.

RIBEIRO, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1996.

SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa : Terramar, 1975.

SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970.

SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo:
77

Brasiliense, 1980.

VALLADARES, Eduardo. Anarquismo e anticlericalismo. São Paulo: Imaginário, 2000.

VOLTAIRE, Candido. Zadig. Lisboa: RTP, 1972.

WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia.


Porto Alegre: L&PM, 2002.
78

FONTES

ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília ( 1891 ). In: Colônia Cecília e outras
utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

ROSSI, Giovanni. Um caso de amor na Colônia Cecília ( 1892 ). In: Colônia Cecília e
outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental ( 1893 ). In: Colônia Cecília e


outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX ( 1895 ) . In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
79

Você também pode gostar