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FLORIANÓPOLIS – SC
2008
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO CCHE
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
GABRIEL PERUZZO
FLORIANÓPOLIS – SC
2008
GABRIEL PERUZZO
Banca Examinadora
Orientador: _________________________________
Profa. Dra. Silvia Maria Fávero Arend
DH/UDESC
Membro: __________________________________
Profa. Dra. Janice Gonçalves
DH/UDESC
Membro: __________________________________
DH/UFSC Profa. Pós-Dra. Cristina Scheibe Wolff
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos Arquivos Públicos de Rio do Sul e do Paraná, onde foram dados os
primeiros e importantes passos deste trabalho, aos pesquisadores da Biblioteca Nacional que,
com muito profissionalismo, eficiência e sobretudo, gentileza, permitem que valiosos
documentos possam ser adquiridos e consultados por historiadores e estudantes que não
residem nos grandes centros de pesquisa. De instituições como a Biblioteca Nacional e do
trabalho de seus pesquisadores dependem o acesso e a democratização das fontes pois, apenas
desta forma, é possível submetê-las a um número sempre maior e diverso de olhares,
confrontando interpretações para reconstruir experiências passadas sobre bases sólidas.
Agradeço a profa. Silvia Maria Fávero Arend, pelo incentivo e por ter aceito a tarefa
de orientar este trabalho, assim como a profa. Dra. Janice Gonçalves e profa. Dra. Cristina,
por aceitarem o convite de compor a banca examinadora.
Enfim, agradeço aos meus amigos, cujos nomes aqui omitidos nunca serão esquecidos.
Vocês sabem quem são. E especialmente, a minha família, pelo apoio durante todos esses
anos.
LER PELO NÃO
Paulo Leminsky
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar as representações sociais construídas pelo
discurso libertário acerca da família nuclear burguesa no apagar do século XIX, incidindo o
olhar sobre os escritos do anarquista italiano Giovanni Rossi. Publicados originalmente entre
1891 e 1895, seus escritos são perpassados por criticas austeras a família nuclear,
constituindo-se em uma rica documentação para o estudo da relação entre família e
pensamento libertário no último decênio do século XIX. O trabalho teve como pano de fundo,
a história da Colônia fundada por Giovanni Rossi no interior do estado do Paraná em 1890, no
interior da qual foram redigidos três dos quatro escritos aqui analisados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 72
FONTES ............................................................................................................................. 78
7
INTRODUÇÃO
1
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
9
2
ROSSI, Giovanni. Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 131.
3
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel / Bertrand Brasil,
1988. p. 19.
4
PESAVENTO, Sandra Jatahi. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 39-42.
5
CHARTIER, Roger. O Mundo Como Representação. In: À Beira da Falésia. A História Entre Certezas e
Inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. p. 72.
10
6
PESAVENTO, Sandra Jatahi. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 42.
11
12
expressões da modernidade, como útil para chegar ao ideal libertário imaginado por Piotr
Kropotkin, a quem o personagem desta trama, Giovanni Rossi, está ligado por linhas tênues
mas fortemente tensionadas.
Por esta via, a Europa que havia testemunhado o levante popular e a derrocada da
monarquia em 1789 na França, selando o fim do século XVIII com um regime político
constitucional, vê surgir entre os mesmos franceses revolucionários que ameaçavam enforcar
o último rei nas tripas do último padre, o primeiro grande império da modernidade. Figura
emblemática, Napoleão Bonaparte, o jovem general francês nascido italiano, tornou-se
imperador e conduziu a França a um movimento expansionista que subjugou grandes nações
européias no transcorrer de uma década. Seriam necessários 10 anos para que, desde a batalha
de Austerlitz até a surpreendente Waterloo, se constituísse e dissolvesse um império.
Após a queda do império napoleônico, os Estados europeus reunidos no Congresso de
Viena em 1815, redesenharam as fronteiras políticas do continente e restauraram regimes
monárquicos depostos pela Revolução ou por Bonaparte, como em Nápoles, Espanha,
Portugal e nos Paises Baixos13. Assim, a Europa, berço da revolução republicana, presenciou
durante as primeiras décadas do século XIX, as disputas entre as coroas dos reis e o cetro do
imperador.
Apesar da vitória dos reis, a restauração da ordem pré-revolucionária não seria
completa. Muitas das mudanças levadas a cabo pelas monarquias contribuiriam para o
desmonte de uma sociedade aristocrática e para a ascensão da burguesia. Esta saberia fazer
valer suas idéias, seu modo de vida e, principalmente, seu modelo econômico.
Segundo René Rémond,
A evidência de que a restauração está longe de ser integral impõem-se com mais
força ainda no que diz respeito as transformações sociais [...]. A servidão é abolida,
os privilégios suprimidos, a mão-morta eclesiástica desapareceu. A igualdade civil
de todos diante da lei, diante da justiça, diante dos impostos, para os acessos aos
cargos públicos e administrativos, é agora a regra para uma boa metade da Europa.
Tradicionais em certos Estados, as interdições de adquirir terras, feitas à burguesia,
não estão mais em vigor.
Todas essas reformas favorecem principalmente a burguesia e, de fato, passou-se de
uma sociedade aristocrática para uma sociedade burguesa.14
Contudo, se muitas das medidas tomadas pela Restauração abririam caminho para a
alçada da burguesia, sua posição na ordem social seria demarcada definitivamente após
13
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 17.
14
Ibidem, p. 22-23.
14
expansão do capitalismo na segunda metade do século XIX e legitimada pelas idéias liberais
calcadas sobre os direitos individuais, a propriedade privada e o livre comércio.
O desenvolvimento cientifico e tecnológico que alcançaria proporções surpreendentes
a partir de 1870, forneceu as condições necessárias para o alargamento da produção industrial,
bem como para o escoamento das mercadorias para os cinco continentes do globo. Navios a
vapor, locomotivas e estradas-de-ferro, criavam novos nichos de mercado entre as nações
industrializadas e as produtoras de matéria-prima. Mercados que, agora, poderiam ser
controlados internacionalmente através do telégrafo.
15
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 59.
16
Ibidem, p. 66.
17
Ibidem, p. 66.
18
Ibidem, p. 68.
19
Ibidem, p. 69.
20
Ibidem, p. 73.
15
21
Ibidem, p. 33.
22
Ibidem, p. 48.
23
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 14.
16
liberdades a uma elite, lutando pelas garantias individuais e pelos direitos políticos estendidos
a todos através do sufrágio universal.
No último quartel do século, o socialismo, que não era nenhuma novidade, fundiu-se
com o movimento operário, confiante em suas propostas revolucionárias de justiça econômica
e social.
Os trabalhadores fabris haviam sido submetidos a um rigoroso processo de
disciplinarização. As longas e extenuantes jornadas de trabalho de até dezesseis horas diárias
não obedeciam ao ritmo natural com o qual estavam habituados. Iniciava-se e terminava-se o
expediente com o soar do relógio e não mais quando o corpo reclamasse por descanso.
Segundo Rémond,
24
Ibidem, p. 106.
25
Ibidem, p. 55.
17
alimentavam com máquinas, meios de transportes e comunicação, aquela mesma indústria que
fez surgir em torno de si, grandes cidades e aglomerados populacionais.
Esta paisagem urbana, por onde desfilavam cartolas e pomposos chapéus em meio a
fábricas e edifícios, se contrapunha com um mundo rural que no apagar do século em questão,
ainda abrigava a maior parte da população mundial26. Muitos trabalhadores residiam nas
pequenas cidades e vilas situadas nas regiões adjacentes às cidades industriais, alternando o
trabalho no campo com a rígida disciplina do trabalho fabril, dualidade que fez com que esses
proletários “permanecessem meio-agricultores”.27 “Em certo sentido, o choque da
industrialização residia precisamente no grande contraste entre as habitações escuras,
monótonas, repletas de gente, e as fazendas coloridas circunvizinhas”. 28
Sobre o contraste e a sensação de viver em dois mundos, Berman chama a atenção
para a experiência de homens e mulheres que viveram o século XIX:
Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que
desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e
política. Ao mesmo tempo, o público moderno do XIX ainda lembra do que é viver,
material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro.29
Na esteira do que vem sendo dito, complexo e ambivalente por que nenhum outro
século do período moderno parecia estar no epicentro de um “turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”,30 como os anos
1800.
Monarquias absolutistas, regimes liberais, democracias, socialismo, anarquismo e mais
uma miríade de ideais engrossavam o caldo das disputas políticas. Na economia, a expansão
do capitalismo fortalecia a propriedade privada e o livre comércio, enquanto as aviltantes
condições de trabalho alavancavam um movimento operário alinhado às idéias socialistas que
abraçavam a propriedade coletiva dos meios de produção. As indústrias, instaladas nas órbitas
dos centros urbanos, erguiam cidades que dentro em breve conheceriam seus primeiros
arranha-céus, contrastando com a paisagem bucólica do mundo rural. Nem mesmo Deus,
afrontado por Darwin, permaneceria unânime: as teorias criacionistas, sustentadas pelo
discurso religioso, perdiam adeptos face ao Evolucionismo que deitava raízes sobre o
conhecimento científico, este, quiçá, a nova “religião” dos homens modernos.
26
Ibidem, p. 124.
27
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 294.
28
Ibidem, p. 294.
29
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2005. p. 17.
30
Ibidem, p. 15.
18
Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e
se esforçam para fazê-lo ruir ou explorá-lo a partir de seu interior; apesar disso,
todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às
novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos
ainda sem seu momentos de mais grave seriedade e profundidade.33
Entre os modernistas do século XIX evidenciados por Marshall Berman, tais como
Marx, Nietzsche, Dostoievski e Baudelaire, um geógrafo russo, aristocrata renegado,
compartilhava os mesmos dramas e angústias, bem como a confiança em si mesmo e nos
homens do seu tempo, convicto de estar marchando na direção de épocas melhores. Equilíbrio
e harmonia perpassam o pensamento social de um nobre libertário que via na ciência e no
anarco-comunismo, respostas para a sensação inebriante provocada por tempos convulsivos e
para as contradições de um século complexo e excepcional, fecundo e ambivalente.
31
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 15
32
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 13.
33
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2005 p. 19.
34
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 98.
19
35
Ibidem, p. 99.
36
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 41.
37
Ibidem, p. 8-9.
38
Ibidem, p. 8.
39
Ibidem, p. 19-20.
20
além de explorar amplas áreas das regiões montanhosas da Sibéria até então não
percorridas por viajantes civilizados, Kropotkin elaborou – com base nessas
observações – uma teoria sobre a estrutura das cadeias de montanhas e platôs da
Ásia Oriental que revolucionou os conceitos existentes sobre a orografia eurasiana.43
40
Ibidem, p. 214-215.
41
RÉMOND, René. O século XIX. 1815-1914. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 114.
42
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 212.
43
Publicado na década de 1930, George Woodcock utiliza a expressão civilizado para se referir aos indivíduos de
sociedades industriais e não de forma depreciativa. Idem, p. 220.
44
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra,
2007. p. 23.
45
Ibidem, p. 16.
21
Kropotkin acreditava que as teorias anarquistas deveriam ser submetidas aos rigores
do conhecimento científico, pois assim ganhariam credibilidade e aceitação. Em O Princípio
Anarquista, Kropotkin afirma que o anarquista
Como vereis, está em via de operar-se no conjunto das ciências uma mudança ainda
mais profunda e de maior alcance; e a anarquia é apenas uma das múltiplas
manifestações desta evolução. É apenas um dos ramos da nova filosofia que se
anuncia.50
46
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 215.
47
COÊLHO, op. cit., p.19.
48
Ibidem, p. 37.
49
KROPOTKIN, Piotr. A anarquia. Sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Imaginário, 2001. p. 20.
50
Ibidem, p. 22.
22
Sob o nome de anarquia surgiu, ao mesmo tempo que uma interpretação nova da
vida passada e presente das sociedades, uma previsão de futuro, concebidas uma e
outra no mesmo espírito que a concepção da natureza que acabo de falar.52
Depois de prestar toda sua atenção ao Sol a aos grandes planetas, o astrônomo
entrega-se ao estudo dos infinitamente pequenos que povoam o universo [...] a estes
infinitamente pequenos que sulcam o espaço em todos os sentidos com velocidades
vertiginosas, que se entrechocam, se aglomeram e desintegram, por toda parte e
sempre, é a eles que o astrônomo hoje pede a explicação da origem do nosso
sistema, sol, planetas e satélites, e dos movimentos que animam suas diferentes
partes, e da harmonia do seu conjunto.53
51
Ibidem, p. 25.
52
Ibidem, p. 32-33.
53
Ibidem, p. 23.
54
Ibidem, p. 24.
23
Nas ciências que tratam da vida orgânica, a noção da espécie e de suas variações
desfaz-se, e a noção de indivíduo substitui-se àquela [...] as variações da espécie não
são para o biólogo mais do que resultantes – soma de variações que se produzem em
cada indivíduo separadamente. A espécie será o que forem os indivíduos, sofrendo
cada um as mesmas inumeráveis influências dos meios em que vivem, e aos quais
cada um corresponde de sua maneira.55
55
Ibidem, p. 25-26.
56
Ibidem, p. 26.
57
Ibidem, p. 26-27.
24
nós chamamos de harmonia da natureza. Bastou, para estabelecê-la, o acaso dos choques e
dos encontros”.58
58
Ibidem, p. 29.
59
Ibidem, p. 30.
60
Ibidem, p. 34.
61
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia. Porto Alegre: L&PM,
2002. p. 28.
25
sociedade livre, sem autoridade, avançando para a conquista do bem-estar material, intelectual
e moral – seguia de perto sua negação; ela era a sua contrapartida”.62
“Bem-estar para todos como fim, a expropriação como meio”.63 Esta máxima sintetiza
o pensamento de Piotr Kropotkin. Para o autor, a humanidade havia conquistado riquezas
incomensuráveis, fruto do trabalho acumulado ao longo de gerações e ampliadas pelos
trabalhadores do presente.
Para Piotr Kropotkin, “não há nada, desde o pensamento até à invenção que não
resulte de factos colectivos oriundos do passado e do presente”.64 Assim sendo, não haveria
explicação sustentável capaz de justificar a propriedade privada dos meios de produção, dado
que toda riqueza atual é de alguma forma tributária do trabalho intelectual e braçal
desenvolvido pelas sociedades pretéritas, continuado e ampliado pelos homens e mulheres do
presente.
“Não pode estabelecer-se nenhuma distinção entre o trabalho de cada um. Medi-lo
pelo resultado conduz ao absurdo. Fraccioná-los e medi-los pelas horas de trabalho
leva-nos igualmente ao absurdo. Só resta uma coisa: colocar as necessidades acima
do trabalho e reconhecer o direito à vida em primeiro lugar, e em seguida ao bem-
estar para todos os que participarem da produção.”66
62
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. Hedra: São Paulo,
2007. p. 33.
63
KROPOTKINE, Pedro. A conquista do pão. Lisboa: Guimarães ed., 1975. p. 37.
64
Ibidem, p. 24.
65
Ibidem, p. 26.
66
Ibidem, p. 212.
26
67
Ibidem, p. 181.
68
Ibidem, p. 44.
69
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra,
2007. p. 35.
70
Ibidem, p. 34.
71
Woodcock aponta como o “problema libertário central”, a “conciliação da solidariedade humana com a
liberdade pessoal”. WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Vol. 1. A idéia.
Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 8.
27
um libertário italiano que encontraria no Brasil meridional o lócus para cultivar seus sonhos e
ideais.
Acadêmico oriundo das ciências naturais, o agrônomo e médico veterinário Giovanni
Rossi, muito influenciado pela idéias de Kropotkin, fundaria uma colônia experimental no sul
do Brasil em 1890, proposta como um laboratório social onde pudessem ser testados
empiricamente os pressupostos teóricos do anarquismo, a igualdade nas relações de gênero
expressa pelo amor livre e, especialmente, a dissolução dos valores da família nuclear
burguesa.
28
Século XIX, década de 1870. Europa e Estados Unidos são palco de um dos mais
marcantes fenômenos da era moderna, responsável por transformar drasticamente a vida
daqueles que testemunharam as últimas décadas do século XIX e o alvorecer do XX. Batizado
pela historiografia de Segunda Revolução Industrial, este momento de efervescência nas
descobertas científicas e de acelerado desenvolvimento tecnológico, se estenderia
aproximadamente até a eclosão da Primeira Grande Guerra, fazendo-se sentir até os dias de
hoje.
Inovações tecnológicas como a eletricidade e os combustíveis fósseis impulsionariam
a produção industrial nos mais diversos campos, da metalurgia à farmacologia e
no curso de seus desdobramentos surgirão, apenas para se ter uma idéia, os veículos
automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação
elétrica e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a
radiodifusão [...], a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor de pressão
arterial, os processos de pasteurização e esterilização [...].72
72
NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3. República: da belle
époque à era do rádio. Cia. das Letras: São Paulo, 1999. p. 9.
73
COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 – 1914. Cia. das
Letras, 2000. p. 15.
74
Ibidem, p. 17.
75
Ibidem, p. 11.
29
76
Ibidem, p. 15.
77
NOVAIS, Fernando A., SEVCENCO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. Vl. 3. República: da belle
époque à era do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 15.
30
país, o paraíso bucólico de fauna e flora exuberantes e de incontáveis riquezas imaginadas nas
longínquas terras do Velho Mundo. Assim também o foi com os anárquicos imigrantes
italianos que, nos sertões do Brasil meridional, semearam o solo, cultivaram sonhos e
colheram experiências na curiosa Colônia Cecília.
Pensada para ser um laboratório social aonde pudessem ser testados empiricamente os
pressupostos teóricos do anarquismo, essencialmente o amor livre e a dissolução da família, a
Colônia Cecília foi fundada em 1890 no interior do Estado do Paraná. Nas cercanias do
município de Palmeira, mais precisamente nas terras de Santa Bárbara, Giovanni Rossi, seu
idealizador, concretizava as idéias que nutrira desde a juventude: fundar colônias anarquistas
experimentais.
Sobrinho de Lauro Rossi, mestre de Carlos Gomes no conservatório de Milão, o
também músico Giovanni Rossi tornou-se amigo íntimo do prestigiado maestro brasileiro, por
quem foi alertado sobre a passagem do imperador D. Pedro II pela Itália em 1888.
Tomando conhecimento de que o imperador do Brasil, que viajava pela Europa por
recomendações médicas, estava de passagem por Milão, Giovanni Rossi não vacilou em
procurar o monarca de idéias arrojadas, amante das ciências e das artes. Ainda que
monarquista, Pedro II era homem de idéias progressistas e haveria de se interessar pelos
projetos que almejava desenvolver nos confins do Brasil. Imediatamente, pôs-se a bater
pernas até o hotel onde estava hospedado o imperador dos trópicos.
A ansiedade do encontro transformaria-se em desalento quando, já no “Hotel Milan”78,
presenciaria D. Pedro II ser transportado de maca “para Aix-les-Bains, onde se submeteria a
rigoroso tratamento”.79 Gentilmente, Rossi entrega ao conde de Mota Maia, médico que
integrava o séquito do imperador, uma carta de condolências ao monarca brasileiro.
Tempos mais tarde, D. Pedro II deparou-se com um opúsculo de autoria de Giovanni
Rossi intitulado Il Commune in Riva al Mare80. Após tomar parte das idéias de Rossi, o
imperador decide escrever ao libertário italiano oferecendo as terras devolutas do Brasil
Meridional para a instalação da colônia de imigrantes libertários. Trezentos alqueires dos
campos gerais do Paraná seriam reservados para a fundação da colônia experimental
idealizada por Giovanni Rossi.
Com o aval de Pedro II, sem mais demoras, Rossi deu inicio à arregimentação de
pessoas dispostas a levar adiante as idéias libertárias em terras desconhecidas e enfrentar as
78
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
79
Ibidem, p. 20.
80
Título pelo qual a peça literária de Giovanni Rossi originalmente intitulada Il Comune Socialiste ficaria
conhecida no Brasil.
31
81
SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo: Brasiliense, 1980.
82
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. Também publicado recentemente pela editora Achiamé do Rio de
Janeiro.
83
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1970.
84
KUPPER, Agnaldo. Colônia Cecília. São Paulo: FTD, 1993.
85
RODRIGUES, Edgar. Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil. São Paulo: Global, 1984.
86
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999.
32
– Vocês estão vendo? Sabiam que eram tão importantes? Pois, para que vocês
estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do
Maestro Carlos Gomes e de D. Pedro II, Imperador do Brasil. Que tal? – riu do
nosso espanto.90
87
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2000.
88
Ibidem, p. 8.
89
Ibidem, p. 260.
90
Ibidem, p. 262.
33
anarquismo da Colônia Cecília e de Reflexões sobre uma utopia do século XIX ela merece um
sobreaviso.
Embora defenda que “não foi uma simples imaginação de Afonso Schmidt”,91 pois
teria fundamentado-se nos relatos de Alexandre Cerchiai, Beatriz Pellizzetti Lolla afirma que
a origem do relato “permanece uma incógnita”92. De forma sucinta, Newton Stadler de Sousa
chama a atenção para a ausência de documentos que possam referenciar a sugerida relação
entre o imperador e o anarquista. De acordo com o autor
91
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999. p. 43.
92
Ibidem, p. 44.
93
SOUSA, Newton Stadler de. O anarquismo da Colônia Cecília. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
p. 10.
94
Ibidem, p. 11.
34
Rossi, incorrigível detalhista, não faz qualquer alusão a isso em livros, em cartas a
familiares e amigos ou em relatórios ao seu biógrafo de Zurique.
Também A. Capellaro, o “cronista” da Colônia Cecília, responsável por numerosas
referências em jornais e revistas da Europa e da América do Norte, sequer se refere
ao nome de D. Pedro II.
E os poucos autores paranaenses, contemporâneos da experiência libertária, quando
escreveram sobre a Colônia, tampouco registraram qualquer interferência do
Imperador.96
Nomes como o de Carlos Gomes e Lauro Rossi também vão progressivamente sendo
apagados das páginas da história da Colônia Cecília. A partir das pesquisas da italiana
Rosellina Gosi, “apoiada em depoimento de Ebe Rossi, filha de Giovanni” 97, Candido de
Mello Neto da continuidade ao desmonte dos elementos ficcionais que revestiram este
episódio da história da Colônia Cecília. Segundo Ebe Rossi, o parentesco de seu pai com
Lauro Rossi, o professor do conservatório de Milão, não existiu. Tratava-se apenas de um
homônimo. Nem mesmo a paixão do pai pela música, tão presente no livros de Schmidt,
Stadler, Kupper e mesmo de Zélia Gattai é confirmada por Ebe Rossi. Gradativamente,
história e literatura assumem cores diferentes.
Médico e historiador, Candido de Mello Neto atenta para os sintomas e indícios que
desconstroem a versão saborosa, mas ficcional desta história. Passo a passo, com a precisão
de um cirurgião, o médico profissional e o historiador autodidata expõem seus argumentos:
95
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998.
96
Ibidem, p. 103.
97
Ibidem, p. 104.
35
Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas dois dos nossos companheiros sofriam de tal
maneira do mal de mar que decidimos poupar-lhes os outros cinco ou seis dias de
navegação e descer aqui, para fundar a nossa colônia socialista em alguma parte do
Paraná, que sabíamos com clima ameno e saudável.102
Desta forma, uma vez desatados os nós que entrelaçavam história e literatura, a
decisão sobre local aonde seria estabelecida a colônia parece ter pertencido mais ao acaso do
que a benevolência do último monarca brasileiro. “As circunstâncias, mais do que suas
próprias vontades, conduziram-nos ao município de Palmeira, no Estado do Paraná ( Brasil
)”103, relatava Giovanni Rossi.
Contudo, não obstante enxertos ficcionais, as explicações para a fundação da Colônia
Cecília devem ser recuadas para as décadas que precederam a partida do Città di Roma do
porto de Genova em fevereiro de 1890. É no imaginário de seu idealizador, o engenheiro
98
Ibidem, p. 105.
99
Ibidem, p. 106.
100
Ibidem, p. 106.
101
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
102
Ibidem, p. 28-29.
103
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 64.
36
agrônomo e médico veterinário Giovanni Rossi, que encontra-se a razão de ser deste
“experimento” libertário ocorrido no sul do Brasil oitocentista.
Nascido em Pisa no ano de 1856, aos 17 anos Giovanni Rossi passaria a integrar a
Associação Internacional dos Trabalhadores, desde já insistindo “na proposta detalhada para a
fundação de uma colônia socialista na Polinésia”.104
Muito ligado às ciências naturais, aos 20 anos Rossi termina a graduação em medicina
veterinária, chegando a pós-graduar-se em Perugia. Seus trabalhos científicos nas áreas de
agronomia e veterinária seriam reconhecidos, especialmente no Brasil, sobretudo quando
esteve à frente da Escola Superior de Agronomia de Taquari, no Rio Grande do Sul, e em
Santa Catarina, dirigindo a Estação Agronômica de Rio dos Cedros.105
Além dos inumeráveis artigos científicos, Giovanni Rossi empenhou sua caligrafia
redigindo opúsculos e artigos dedicados à propaganda e defesa do anarquismo experimental.
Os esforços de Cárdias, pseudônimo com o qual assinava muitos de seus escritos, para fazer
valer as idéias do anarquismo experimental, assim como para persuadir correligionários para a
fundação de colônias-laboratório, permeiam suas publicações, desde a primeira edição de Un
Comune Socialiste106 em 1878 – utopia passada em uma cidade imaginária do litoral tirreno,
denominada Poggio al Mare – até a publicação de Lo Sperimentale107, periódico que circulou
entre 1886 e 1887 exclusivamente com o intuito de divulgar a necessidade de experimentar e
analisar empiricamente as teorias anarquistas.
Ávido por observar na prática o funcionamento das teorias libertárias, “ainda no ano
de 1883, o nome de Rossi aparece ligado a uma sociedade agrícola, organizada nos moldes de
uma cooperativa”,108 no município de Gavardo, província de Bréscia, Itália.
104
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 23-24.
105
Ibidem, p. 245.
106
Ibidem, p. 23.
107
Ibidem, p. 74.
108
Ibidem, p. 71.
37
Entretanto, apesar da vigilância das autoridades, Rossi daria continuidade aos seus
projetos. Contanto com o apoio de Giuseppe Mori, homem de esquerda que compunha o
Parlamento Nacional da Itália, “em 11 de novembro de 1887 nasce a Associação Agrícola
Cooperativa de Cittadella, no Stagno Lombardo, Província de Cremona. Após aprovação de
estatutos, uma eleição coloca Giovanni Rossi como secretário”.110 A recusa dos colonos em
relação ao estatuto sedimentado sobre princípios libertários, desestimularam Rossi, vindo a
fundar no interior da própria Cittadella no ano de 1888, a Unione Lavoratrice per la
colonizzazione sociale in Itália.111 Esta associação com sede provisória em Cittadella,
almejava fundar em Parma uma colônia experimental, “organizando-se socialmente a
propriedade, o trabalho e a convivência”.112
Obstinado, as tentativas frustradas de medrar colônias experimentais libertárias em
Bréscia e Cremona não desacreditaram Cárdias, que insistiria ainda mais uma vez em praticar
o anarquismo na Itália antes de partir para o Brasil. Foi junto aos camponeses do povoado de
Torricella, Província de Parma, que Rossi faria sua última tentativa.
Envolvido pela atmosfera intelectual do século XIX, “que elegeu a ciência – uma
ciência positiva e determinista – como seu mito de origem, seu porto seguro”,115 Giovanni
109
Ibidem, p. 71.
110
Ibidem, p. 78.
111
Ibidem, p. 84.
112
Ibidem, p. 85.
113
Ibidem, p. 86.
114
Ibidem, p. 67.
115
COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. No tempo das certezas 1870 – 1914. Rio de
38
Rossi acreditava que as idéias anarquistas deveriam não apenas ser iluminadas pelo saber
cientifico, como experimentadas empiricamente com base nos métodos das ciências naturais.
Como um cientista que reproduz em laboratório fenômenos naturais para serem observados e
analisados para por fim, a partir dos dados coletados, determinar as regras gerais que regem o
fenômeno, Rossi pensava poder “conhecer as leis que regem os fenômenos da vida social”.116
Identificando seus aspectos positivos e negativos, as teorias anarquistas poderiam ser revistas,
ganhando assim consistência e legitimidade científica para persuadir os segmentos do
proletariado que acreditavam na “incapacidade do homem ao trabalho quando este não é
estimulado por um interesse exclusivamente pessoal”.117
De acordo com Rossi,
Em O Paraná no século XX119, mais uma obra utópica em que Rossi expõem suas
idéias através dos recursos da narrativa ficcional, a exemplo de Un Comune Socialiste, é
possível identificar suas influências teóricas e a forma como ciências naturais e sociais se
aproximam no pensamento social de Giovanni Rossi.
Nesta narrativa literária em que Rossi esboça como seria a sociedade por ele
idealizada, seu amigo pessoal, Dr. Grillo, incorpora o personagem que retorna do mundo dos
mortos para lhe revelar o futuro e detalhes do processo revolucionário que subverteu a ordem
estabelecida no Estado do Paraná durante o século XX.
Ao longo do diálogo entre os dois personagens, Grillo revela a Rossi que durante o
movimento revolucionário
Destacado militante libertário na virada do século XIX para o XX, o italiano Errico
Malatesta muito provavelmente exerceu forte influência sobre Giovanni Rossi. Entretanto,
podemos presumir que as idéias de Kropotkin lhe parecessem ainda mais atraentes. A omissão
do nome de Errico Malatesta do conjunto dos pensadores que integram a utopia de Cárdias
não pode ser atribuída ao vacilo de uma pena desatenta. Idealizar uma sociedade sem
mencionar entre tantos nomes reverenciados, justamente aquele que teria sido sua maior
influência, equivale a um berbere imaginar um oásis sem seu principal manancial.
120
Ibidem, p. 145.
121
Errico Malatesta ( 1853 – 1932 ). Anarquista italiano defensor do anarco-comunismo. Exerceu grande
influência no movimento anarquista, contribuindo também para a formação dos primeiros movimentos
sociais organizados na Argentina onde esteve exilado em 1885.
122
LOLLA, Beatriz Pellizzetti. Reflexões sobre uma utopia do século XIX. Curitiba: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999. p. 13.
40
123
COÊLHO, Plínio Augusto ( org. ). Kropotkin. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Hedra,
2007. p. 37.
124
ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial
do Paraná, 2000. p. 152.
125
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
126
Ibidem, p. 63.
41
abandonar as lutas revolucionárias pata tentar edificar uma micro-sociedade utópica, onde
apenas alguns poucos desfrutariam de uma vida livre e igualitária.
Rossi não almejava fundar comunidades oníricas onde todos pudessem desfrutar os
deleites de uma sociedade que reunisse todos os predicados das utopias de Morus e
Campanella, nem mesmo fornecer a fórmula para as sociedades vindouras como pensava
Fourier. Segundo Giovanni Rossi,
As vozes dissonantes, Rossi rebatia dizendo que a Colônia Cecília teria sido fundada
“com o intuito de provar, para si mesmos e para os outros, se e como um grupo viveria sem
leis e sem donos”. 129 Não obstante os fins publicitários, destinados a fazer conhecer as
propostas anarquistas, seus objetivos científicos para acrescentar “um dado positivo ao
patrimônio da sociologia”130 eram ainda mais significativos.
127
Ibidem, p. 79.
128
Ibidem, p. 79.
129
Ibidem, p. 64.
130
Ibidem, p. 79.
42
raio a partir das faíscas de uma máquina elétrica. Determina os caracteres de uma
espécie animal ou vegetal a partir dos caracteres de um único indivíduo. Estuda os
mecanismos da vida tais como ocorrem em milhares de sujeitos através da
vivissecção de um único organismo. E mostrando a nu o coração palpitante nos
espasmos da agonia, não diz: “eis a vida”, e sim: “eis as leis que regem os
fenômenos da vida”.
Quisemos fazer o mesmo para procurar conhecer as leis que regem os fenômenos da
vida social. Para o nosso intento, a rigor teria sido suficiente fazer uma experiência
com um único homem que tivesse sido subtraído ao estímulo do interesse pessoal, à
influência da autoridade a ao império da lei.
Nós, ao contrário, tivemos a possibilidade de efetuar a experiência com mais de
trezentas pessoas que, por períodos mais ou menos longos, viveram na Cecília. No
meio dessas pessoas encontravam-se não apenas os representantes das duas classes
sociais mais numerosas, a dos camponeses e dos operários, mas também pessoas das
classes médias, que exerciam profissões liberais ou eram funcionários. Quanto ao
grau de instrução, tivemos gente de todos os níveis, desde analfabetos a pessoas com
instrução secundária. Quanto as qualidades morais, têm-se encontrado lado a lado na
vida cotidiana pessoas egoístas e pessoas altruístas; com crença religiosa,
indiferentes e cépticas; indulgentes e intolerantes; sem preconceitos e supersticiosas;
pacatas e violentas; otimistas e más...Em relação às aptidões técnicas, tivemos
pessoas com capacidade de trabalho e habilidades diferentes. No que diz respeito aos
hábitos de vida anteriores, tivemos operários livres e operários assalariados, uns que
moravam no campo, outros na cidade, casados e solteiros. Enfim, a população da
Cecília sempre foi bastante variada, de forma que representava fielmente a média da
população italiana.131
131
Ibidem, p. 81-82.
132
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978. p. 4.
133
Ibidem, p. 3.
43
Nesse sentido, no estado científico ou positivo, é por meio do método empírico, isto é,
a partir da observação sensível de fenômenos concretos que ocorre a produção de
conhecimento, este, circunscrito a apreensão das leis que regem estes mesmos fenômenos,
definidas como fatores constantes e imutáveis que os condicionam. De acordo com Comte,
por meio da observação direta dos fenômenos positivos – “fundados em fatos bem
constatados”139 – os homens do estado científico se ocupariam tão-somente da determinação
das leis que anunciam o fenômeno. Para o autor do Curso de Filosofia Positiva140, a “natureza
íntima”141 dos fenômenos era incognoscível, pois não poderia ser observada pelos sentidos.
134
Ibidem, p. 4.
135
Ibidem, p. 4.
136
Ibidem, p. 4.
137
Ibidem, p. 4.
138
Ibidem, p. 4.
139
Ibidem, p. 36.
140
Ibidem.
141
Ibidem, p. 6.
44
O conhecimento das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é fazer com que
sejam previstos por nós, evidentemente pode nos conduzir, de modo exclusivo, na
vida ativa, a modificar um fenômeno por outro, tudo isso em nosso proveito [...] Em
resumo, ciência, daí previdência; previdência, daí ação.143
142
Ibidem, p. 6.
143
Ibidem, p. 23.
144
Ibidem, p. 4.
145
Ibidem, p. 10.
146
Ibidem, p. 20.
147
Ibidem, p. 9.
148
Ibidem, p. IX.
149
Ibidem, p. 31.
45
Para Comte, a Sociologia era apenas um dos ramos da biologia e tinha como principal
atributo a compreensão das leis que correspondem a estática e a dinâmica da sociedade, esta
entendida “como um organismo cujas partes constitutivas são heterogêneas, mas solidárias,
pois se orientam para a conservação do conjunto”.151
Deste modo, a sociologia ou a “física social deve fundar-se num corpo de observações
diretas que lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária com
a fisiologia propriamente dita.”152
A interpretação social baseada na metáfora do organismo levou Giovanni Rossi a
reproduzir uma micro-sociedade que poderia ser dissecada a partir dos métodos empiristas das
ciências naturais com intuito de precisar as leis que conduzem a sociedade. Deste modo, Rossi
buscou fomentar um núcleo populacional que representasse a complexidade de um macro-
sistema social, agrupando para tanto, elementos múltiplos e diversos em torno da colônia-
laboratório, não para dizer eis a sociedade, mas eis as leis que regem os fenômenos da
sociedade, assim como propunha o positivismo de Auguste Comte.
Corroborando com as idéias de Comte, que acreditava que a Sociologia, responsável
pela observação e previsão dos fenômenos sociais, devia incumbir-se da reforma social, Rossi
também acreditava que as mudanças partiriam das ciências sociais: “De todas as ciências
sociais nasceu a convicção da necessidade e da iminência de uma grande transformação das
estruturas econômicas e burguesas”,153 diria em O Paraná no século XX.
Contudo, seus experimentos não visavam demonstrar apenas a viabilidade de uma
política descentralizada, de uma economia comunista e de uma sociedade autogerida. Seus
objetivos eram muito mais ambiciosos e audaciosos, traduzidos na prática e no discurso
apologético do amor livre, seu principal instrumento para a dissolução da família.
150
Ibidem, p. 32.
151
RIBEIRO, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 22.
152
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. In: Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978. p. 33.
153
ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial
do Paraná, 2000. p. 145.
46
154
GÜTTLER, Antonio Carlos. A colonização do Saí ( 1842 – 1844 ): uma original colônia francesa em Santa
Catarina. In: BRANCHER, Ana Alice; AREND, Silvia Maria Fávero. História de Santa Catarina no século
XIX. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.
155
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
156
Anagrama de Eleda.
157
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 26.
158
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 121.
47
Brasil.“A discussão sobre a família, o amor, a mulher, em toda obra de Rossi alcança níveis
da maior importância. É contra o comportamento burguês em ralação à família que ele dirige
sua maior agressividade reformista.”159
Com os olhos postos no futuro, Rossi que tanto gostava de construir sociedades
imaginárias em narrativas literárias, diria que “da mesma forma que as relações econômicas
foram as questões centrais do século XIX, as relações afetivas talvez sejam a questão latente
do século XX”160, palavras que anunciavam o movimento feminista e a revolução sexual da
década de 1960.
O amor livre como meio, a destruição da família como fim, eis a proposição que o
motivou a cruzar o Atlântico para fundar nas “solidões americanas”, 161 seu laboratório social,
que em homenagem a mulher socialista, personagem de sua utopia, denominaria Colônia
Cecília.162
159
NETO, Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia
Cecília. Ponta Grassa: Ed. UEPG, 1998. p. 25.
160
ROSSI, Giovanni. Um episódio de amor livre na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 126.
161
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 36.
162
Cecília, personagem da narrativa literária de Giovanni Rossi denominada Um Comune Socialiste.
48
163
ROSSI, Giovanni. O nascimento da Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 22-23.
164
Ibidem, p. 37.
165
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 64.
49
aproximadamente 300 pessoas entre outubro de 1890 e junho de 1891. Porém, o número de
habitantes da Colônia Cecília manteve-se instável durante sua curta existência.
Contudo, apesar das altas e baixas demográficas, a organização da colônia orientou-se
sempre pelos princípios políticos do anarquismo e pelas máximas da economia comunista.
Segundo Giovanni Rossi, “a organização desse grupo continuava sendo comunista, mas era
também verdadeira e singelamente anarquista”.166 Muito embora o anarquismo fosse
compreendido por muitos de uma forma “realmente curiosa”,167 como o próprio Rossi
destaca, alegando que muitos justificavam seus “caprichos”168 com um “em homenagem à
anarquia faço o que quero.”169
Desde a gênese da Colônia Cecília, seus habitantes excluíram qualquer tipo de
organização social rígida, bem como líderes ou chefias que respondessem individualmente
pelo núcleo colonizador. A Colônia havia sido fundada para ser um laboratório social e
deveria manter a coerência com as prerrogativas teóricas do anarquismo, ainda que falhasse.
Identificar os vícios e virtudes das teorias libertárias estava entre os objetivos do anarquismo
experimental. Nesse sentido, seus idealizadores primaram por formas de organização
espontâneas, oriundas dos anseios de seus moradores e estabelecidas através de acordos
mútuos e voluntários.
De acordo com Rossi,
por uma reação natural ao formalismo estéril e funesto do período passado, o grupo
não quis ter qualquer tipo de organização. Não foi estipulado nenhum pacto, nem
verbal nem escrito. Nenhum regulamento, nenhum horário, nenhum encargo social,
nenhuma delegação de poderes, nenhuma norma fixa de vida ou trabalho.170
166
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 69.
167
Ibidem, p. 67.
168
Ibidem, p. 68.
169
Ibidem, p. 68.
170
Ibidem, p. 69.
50
a nossa vida, quanto às condições materiais, é agora bastante miserável, muito mais
miserável do que a que levam neste país os operários sob o regime capitalista. E
entende-se que deva ser assim, uma vez que nós temos que criar tudo com o nosso
trabalho, ao passo que na vida burguesa se usufrui abundantemente do trabalho
acumulado pelas gerações passadas, sob a forma de capital, de confortos privados,
de serviços públicos e assim por diante.175
171
Ibidem, p. 67.
172
Ibidem, p. 71.
173
Ibidem, p. 73.
174
Ibidem, p. 75.
175
Ibidem, p. 74.
51
O mesmo discurso é reproduzido por Rossi em relação à vida cultural, descrita por ele
como “pobre”.176 Rossi queixava-se que “instrução, música, teatro, bailes, diversões de vários
gêneros, gostaríamos muito de tê-las, mas até agora não foi possível.”177
Os relatos de Rossi trazem a tona as dificuldades e privações enfrentadas pelas
colônias de imigrantes fundadas no interior do Brasil no final do século XIX. Suas palavras
desfazem o cenário romântico retratado pela literatura e que muito contribuíram para
cristalizar uma representação utópica em torno da Colônia Cecília, onde seus habitantes
desfrutavam fartamente de uma vida igualitária, sem lei e nem pecados, como o caricato
Gioia, personagem do romance de Afonso Schmidt.178 Gioia, um burocrata italiano
desiludido, decide acompanhar os anarquistas na fundação da colônia e, ao pisar nas terras de
Santa Bárbara, despe-se e passa a viver nas matas como uma espécie de eremita.
Através da narrativa de Rossi é possível perceber que a organização política e a
produção econômica estavam longe da vida idealizada nas páginas dos romances. Não
obstante sua singularidade, a Colônia Cecília era mais uma entre tantas colônias de imigrantes
italianos pobres que buscavam assegurar a subsistência em solo brasileiro. Contudo, entre as
dificuldades encontradas, uma em especial, a moral burguesa, configurava-se como um dos
principais obstáculos, pois impedia a prática do amor livre e por extensão, a extinção da
família.
Ainda que o sistema de referendum não correspondesse à organização política que
Rossi imaginava, de uma forma ou de outra, a participação direta nas decisões coletivas
ocorria, assim como o sistema comunista nunca foi um entrave para o desenvolvimento
econômico da colônia. As paupérrimas condições materiais deviam-se mais a escassez de
insumos que permitissem ampliar a produção, do que a forma como as relações de produção
eram organizadas. Assim, se no interior da colônia era possível criar um sistema político-
econômico alternativo que substituísse a democracia representativa e o capitalismo, o mesmo
não ocorreria com a moral burguesa em relação aos valores da família nuclear.
Em relação ao amor livre, Giovanni Rossi afirmava:
teoricamente, tais conceitos eram admitidos, embora na prática fossem adiados para
o dia de São Nunca, em função das dores que os maridos temiam, dos preconceitos
das mulheres, das rotinas domésticas – desde há muito estabelecidas e, por isso,
aparentemente perenes –, do temor de, em se dissolvendo a colônia, as mulheres e as
crianças ficarem abandonadas a si próprias e, talvez, um pouco também em função
176
Ibidem, p.76.
177
Ibidem, p. 76.
178
SCHMIDT, Afonso. Colônia Cecília. Romance de uma experiência anarquista. São Paulo: Brasiliense, 1980.
52
da acanhada ousadia dos solteiros. Mas o principal fator parece ser a força do hábito,
que dificulta e dificultará sempre o progresso humano.179
saímos ontem da vida burguesa, na qual para ficar de pé era necessário usar as
atitudes mais anti-sociais: o egocentrismo, a violência, a simulação, a avareza, a
prodigalidade, todos os setenta pecados capitais que proporcionam o paraíso neste
mundo e, segundo alguns, o inferno no outro. Essas qualidades, transmitidas por
nossos antepassados ao nos dar a luz e ao nos educar, e desenvolvidas ativamente na
luta pela existência, não podiam ser abandonadas nas fronteiras da Cecília como se
fosse um trapo sujo. Para nos liberarmos dos parasitas, um pente e a água fervente
são o bastante, mas contra os preconceitos e as deformações morais não há outro
remédio senão a ação lenta e continua de um ambiente social moralmente sadio –
coisa que, indiscutivelmente, o nosso é.181
No início do século XX, o amor livre era definido pelos libertários como a livre união
dos cônjuges sem intermédio de qualquer tipo de contrato oficializado pela Igreja ou pelo
Estado, ou ainda, por qualquer outra instituição que não o livre arbítrio dos indivíduos. “Na
redefinição dos papéis familiares e afetivos, eram partidários de uma relação onde cada um
179
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 96-97.
180
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 76.
181
Ibidem, p. 77.
182
Nos relatos contidos em Um caso de amor livre na Colônia Cecília, Giovanni Rossi descreve a experiência de
amor livre como um triângulo amoroso vivido apenas entre os três. Entretanto, em carta endereçada a
Senftleben, e publica em 1896, Rossi menciona um jovem chamado Geleoc, a quem atribui a paternidade de
Hebe. Segundo Rossi, a omissão devia-se ao ciúme de Aníbal. Através de uma análise comparativa entre
fragmentos da carta reproduzidos por Candido de Mello Neto e passagens dos relatos do próprio Giovanni, é
possível identificar insinuações sobre o caso. Vide: ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia
Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Imprensa Oficial do Paraná: Curitiba, 2000. p. 118 e NETO,
Candido de Mello. O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. De Poggio al Mare à Colônia Cecília. Ed.
UEPG: Ponta Grassa, 1998. p. 203.
53
pudesse escolher seu parceiro, sem a interferência de outros”,183 de acordo com Eduardo
Valladares.
Para Boris Fausto, durante a Primeira República, “em regra geral o dirigente libertário
era um homem sóbrio, na vida material e na vida afetiva, obediente aos preceitos da vida
monogâmica não obstante o discurso em favor do amor livre.” 184
Entretanto, se de modo geral o discurso libertário a favor do amor livre manteve-se
circunscrito à decisão dos indivíduos na escolha dos cônjuges e o direito a dissolubilidade dos
relacionamentos, na Colônia Cecília o discurso libertário seria mais ousado, propondo a
possibilidade de relacionamentos afetivos concomitantes. Desta forma, para melhor
compreendermos o conceito de amor livre elaborado por Rossi, é necessário desmembrá-lo
para compreender sua definição de amor, assim como o que entendia por liberdade de amar.
Para Giovanni Rossi, o amor, quando não é uma estratégia forjada para “conquistar
um corpo”185 e satisfazer os desejos sexuais, “conquistar um dote”186 ou “uma posição
social”187, é a expressão doentia do afeto sentido entre dois indivíduos, oscilando entre
sentimentos efêmeros e a perda da razão, em síntese, “uma forma patológica ou quixotesca de
afeição”.188
Assim, segundo Rossi,
Querer bem é a forma fisiológica, normal e comum de uma afeição. Querer bem está
entre os 20 e 80 graus centígrados do amor. Mais abaixo está o capricho, a simpatia
de um dia, de uma hora, que – gentil e ligeira – chega, beija e passa. Acima dos 80
graus está a loucura sublime ou a ridícula estupidez. Querer bem é uma mistura
apetitosa de volúpia, sentimento e inteligência, em proporções que variam entre os
indivíduos que se querem bem. Em suma, querer bem é o que deveria bastar à
felicidade emocional desta pobre espécie humana.189
183
VALLADARES, Eduardo. Anarquismo e anticlericalismo. São Paulo: Imaginário, 2000. p. 75.
184
FAUSTO, 1983 apud, Valladares, 2000, p. 61.
185
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília. In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 108.
186
Ibidem, p. 108.
187
Ibidem, p. 108.
188
Ibidem, p. 108.
189
Ibidem, p. 108.
190
Ibidem, p. 108.
54
defendido por Rossi se opunha às formas de amor narcisistas que buscavam no outro apenas a
auto-satisfação. Segundo Rossi, referindo-se à Eleda,
quero-a bem de modo subjetivo e objetivo, ou seja, quero-a bem por ela e por mim.
Se a quisesse apenas por mim, pelos prazeres que me dá, pelo ardor que trouxe aos
meus sentimentos, pelas luzes suaves e claras que espargiu por meus pensamentos,
deveria eu dizer, com mais exatidão, que me quero bem [...] São todos amores
subjetivos: não queremos bem, mas nos queremos bem, isto é, queremos bem a nós
mesmos.191
191
Ibidem, p. 108.
192
Ibidem, p. 112.
193
Ibidem, p. 112.
194
Ibidem, p. 112.
55
do mundo natural, as “afeições” deveriam ser “múltiplas e contemporâneas”,195 pois esta era a
forma orgânica posta pelas leis da natureza.
Para o autor, mesmo o cuidado com a prole, era um argumento pouco convincente
para conservar os relacionamentos monogâmicos entre homens e mulheres, visto que o
instinto maternal estava fadado a desaparecer com a emancipação feminina dos ditames que
lhe atribuíam unicamente a função de zelar pela saúde e crescimento dos filhos, encerrando-a
no espaço doméstico.
O instinto maternal, não sendo algo perene, está destinado a desaparecer. Se ele se
desenvolveu junto com a necessidade de criar os filhos, não existiu naquelas ordens
de animais em que se abandona a prole logo depois do nascimento e é atenuado nas
classes sociais que entregam seus filhos para que se criem fora de casa. E se um dia,
extinta a necessidade individual de criar os filhos, a sociedade puder oferecer à mãe
algo que valha realmente mais do que o aleitamento e as suas primeiras lições,
também o instinto materno desaparecerá gradativamente, e os sortudos desses
futuros tempos poderão dar um suspiro de alivio e pronunciar o finis familiae.196
195
Ibidem, p. 96.
196
Ibidem, p. 121-122.
197
Ibidem, p. 116.
198
Ibidem, p.114.
56
o amor pode ser único e exclusivo em apenas dois casos: quando, na pessoa amada,
não se busca outra coisa a não ser o sexo, e é necessário contentar-se em viver nos
mais baixos degraus da escala humana para que isso possa acontecer; ou quando, na
pessoa amada, está concentrada toda a beleza, toda a bondade, toda a inteligência –
em uma única palavra, quando nela estão todos os atrativos do outro sexo, e é
preciso ser bem néscio para crer que isso possa acontecer. Mas como destes atrativos
só pode haver uma pequena parcela em cada um, os sentimentos se atiram
involuntariamente atrás de outras pessoas.199
A monogamia, para Rossi, configurava-se como uma violação dos “direitos naturais” e
como um obstáculo intransponível para alcançar o bem-estar individual, sendo que uma única
pessoa não poderia agregar todas as “matizes de beleza”. Todavia, se por ventura fosse
possível encontrar um desses seres especiais, semi-deuses envoltos por um halo de virtudes, o
amor exclusivo ainda assim seria apenas mais uma das dissimulações da “moral de fachada
deste século tartufo”200, pois
se procuro retirar o amor livre – que para mim significa quase sempre amor múltiplo
e paralelo – dos domínios do adultério, da vergonha e do ridículo, onde o
confinaram [...], não desejo, com isso, somente o triunfo das sagradas leis da
natureza e a afirmação contundente do direito, move-se também um outro fim, mais
elevado e amplo: a destruição da família.203
199
Ibidem, p. 114.
200
Ibidem, p. 115.
201
Ibidem, p. 116.
202
Ibidem, p. 127.
203
Ibidem, p. 118-119.
57
Para Giovanni Rossi, a família era o maior dos flagelos da humanidade e seu
banimento deveria ser imediato. O combate inexorável pelo fim da família é gritante em seus
escritos, figurando antes mesmo do fim da propriedade privada, da guerra, do parlamento, da
religião e mesmo do governo.
204
Ibidem, p. 121.
205
Ibidem, p. 122.
206
Ibidem, p. 122.
207
Ibidem, p. 121.
208
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973. p. 144.
209
Ibidem, p. 144.
58
210
Ibidem, p. 143.
211
Ibidem, p. 143.
212
Ibidem, p. 144.
213
Ibidem, p. 144.
214
Ibidem, p. 145.
215
Ibidem, p. 145.
59
doméstica”.216 Assim, “passara-se portanto a atribuir à família o valor que outrora se atribuía
a linhagem. Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder
monárquico.”217
O que pretende-se com esta breve descrição da família Medieval, é assinalar o
desenvolvimento da família conjugal moderna no século XIV e, principalmente, o surgimento
de um “sentimento da família”218, ausente durante o medievo. Segundo Philippe Ariès, “o
sentimento da família está ligado à casa, ao governo da casa e à vida na casa. Seu encanto não
foi conhecido durante a Idade Média porque esse período possuía uma concepção particular
de família: a linhagem”219, onde os laços consangüíneos eram mais fortes do que a afeição
surgida entre as pessoas que coabitam a mesma residência.
Esta vicissitude em relação a configuração da família medieval, caracterizada por um
sentimento novo, inexistente nos modelos familiares anteriores, pode ser identificada na
produção iconográfica do inicio da modernidade, sobretudo entre os séculos XVI e XVII,
período em que apresentou um crescimento espantoso.
A partir do século XVI o retrato de família se liberou de sua função religiosa. Estes
quadros, que antes destinavam-se a ornar igrejas, passam deste momento em diante, a decorar
as paredes dos ambientes privados. Segundo Philippe Ariès, esta autocontemplação da família
pode ser interpretada como um “imenso progresso no sentimento de família.”220
A laiscização da iconografia da família foi acompanhada por transformações nos
ambientes retratados. Comuns durante o medievo, as representações iconográficas que
reproduziam por via de regra ambientes ao ar livre, cedem espaço para os retratos de
ambientes privados, raros antes do século XV. Ambientes como o quarto, tornam-se
recorrentes nas cenas de morte ou de parto. Segundo Ariès, “a representação mais freqüente
do quarto e da sala corresponde a uma tendência nova do sentimento, que se volta então para
a intimidade da vida privada.”221
Os laços de afetividade entre pais e filhos, mais especificamente, entre a família
conjugal, denotam a diferença em relação a família medieval e a família pós-século XV. De
acordo com Philippe Ariès, “essa família, ou a própria família, ou ao menos a idéia que se
216
Ibidem, p. 145.
217
Ibidem, p. 146.
218
Ibidem, p. 137.
219
Ibidem, p. 145.
220
Ibidem, p. 140.
221
Ibidem, p. 137.
60
222
Ibidem, p. 153.
223
Ibidem, p. 154.
224
Ibidem, p. 155.
225
Ibidem, p. 156.
226
Ibidem, p. 159.
227
Ibidem, p. 159.
61
Nesse ínterim, por meio de um processo iniciado no século XV e que estenderia-se até
o século XVII, a família fortaleceu os laços afetivos entre pais e filhos, agregando-se em torno
da criança que voltava ao lar. A família, iniciava um movimento de privatização e fechava-se
sobre si. Entretanto, neste momento não conseguiria fechar-se completamente e isolar-se da
sociedade, pois ainda havia um equilíbrio entre as duas.
o essencial era manter as relações sociais com o conjunto do grupo onde se havia
nascido, e elevar a própria posição através de um uso hábil dessa rede de relações.
Ter êxito na vida não significa fazer fortuna – ou ao menos isso era secundário;
significava antes de tudo obter uma posição mais honrosa numa sociedade em que
todos os membros se viam, se ouviam e se encontravam todos os dias.230
228
Ibidem, p. 162.
229
Ibidem, p. 164.
230
Ibidem, p.164.
62
Havia a taberna, mas não era um local que as pessoas de bem poderiam freqüentar.
Este era o espaço de bêbados, soldados e meretrizes. As pessoas de bem que tinham uma
reputação a zelar, reuniam-se nas casas particulares, “as grandes casas, rurais e urbanas”.231
Nessas casas grandes, nem palácios, nem sempre hôtels ou mansões, casas rurais ou
casas urbanas ocupando apenas um andar do imóvel, encontramos o meio cultural do
sentimento de infância e da família. Foi nelas que recolhemos todas as observações
que constituem a matéria deste livro. A primeira família moderna foi a família
desses homens ricos e importantes. É ela que vemos representada na rica iconografia
de meados do século XVII [...].232
A casa grande era o espaço por excelência das sociabilidades. A família que nela
residia era invadida por conhecidos que faziam do seu interior um ponto de encontro do
individuo e do grupo disposto em torno dele por relações de dependência. “A casa grande
desempenhava uma função pública. Nessa sociedade sem cafés, nem public house, ela era o
único lugar onde os amigos, clientes, parentes e protegidos se podiam encontrar e
conversar.”233
A ausência de privacidade era uma constante no cotidiano da família. Com uma
fronteira pouco observável entre público e privado, ela perdia muito de sua intimidade,
porém, esta não parecia ser uma preocupação de primeira ordem. Quando a casa não era
transformada em espaço de sociabilidades, eram os membros da família que se evadiam.
Segundo Edward Shorter, “a família tinha grande dificuldade em estabelecer-se como unidade
emocional na Europa do antigo regime porque os seus membros estavam constantemente a
afastar-se para estar com os vários grupos dos seus iguais.”234
Até o século XVIII, o ambiente doméstico era um prolongamento da rua. Era um
espaço público onde as pessoas se reuniam para fins diversos em ambientes indiferenciados.
Não havia espaço para a intimidade familiar pois público e privado eram dimensões que se
confundiam até este momento.
De acordo com Philippe Ariès,
231
Ibidem, p.178.
232
Ibidem, p. 179.
233
Ibidem, p. 180.
234
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa : Terramar, 1975. p. 222.
63
235
ARIÈS, op. cit., p. 184.
236
Ibidem, p. 185.
237
Ibidem, p. 184-185.
238
Ibidem, p. 188.
64
exterior, foi a terceira ponta de lança do grande surto de sentimento nos tempos
modernos. O amor romântico desligou o casal do controlo sexual comunitário e
virou-o para o afecto. O amor materno criou um ninho sentimental dentro do qual a
família moderna se aninhava e afastou muitas mulheres do envolvimento com a vida
comunitária. A domesticidade isolou, além disso, a família no seu todo da sua
interação tradicional com o mundo circundante.239
O sentimento da família, família agora composta pelos pais e pelos filhos, fez com que
essa se refugiasse no interior da casa, longe das ameaças da sociedade. Apesar de conviver até
então com um intenso fluxo de pessoas, a partir do século XVIII inicia-se um processo de
privatização familiar. Enclausurando-se, fechando-se sobre si mesma, voltando-se para os
seus entes queridos, “a família tornou-se uma sociedade fechada onde seus membros gostam
de permanecer.”240
Segundo Philippe Ariès, “as pessoas começaram a se defender contra uma sociedade
cujo convívio constante até então havia sido a fonte de educação, da reputação e da
fortuna”241,
239
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1975. p. 244.
240
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1973. p. 191.
241
Ibidem, p. 191.
242
Ibidem, p. 195.
243
Ibidem, p.185.
65
mobiliário, eram recobertos por tapetes, cortinas, quadros e objetos requintados que
embelezavam o cotidiano da vida privada da família. A preocupação estética e a
imprescindível busca por conforto, denotavam a avidez das pessoas para criar um mundo
privado harmônico contrastante com seu exterior.244
Este ambiente “repleto e culto”,245 de acordo com Eric Hobsbawm, era mais que um
espaço utilitário, era um símbolo de status e sucesso. Para Hobsbawm,
o lar era a quintessência do mundo burguês, pois nele, e apenas nele, podiam os
problemas e contradições daquela sociedade ser esquecidos ou artificialmente
eliminados. Ali e somente ali, os burgueses e mais ainda a família pequeno burguesa
podiam manter a ilusão de uma alegria harmoniosa e equilibrada.246
a metáfora da guerra vinha naturalmente aos lábios dos homens quando discutiam
‘suas lutas pela existência’ ou a ‘sobrevivência dos melhores’, da mesma forma
como a metáfora da paz quando descreviam seus lares: ‘o acolhedor lugar da
felicidade’, o lugar onde ‘a ambição satisfeita do coração encontrava sua paz’, já que
nunca podia encontrá-la no mundo exterior, desde que nunca podia ser satisfeita, ou
admitir sê-lo.248
244
De acordo com os autores do quarto volume de História da Família, no início do século XX surge uma cultura
de classe média em alguns países europeus traduzida pela expressão “homo sweet home”. Desta forma, “o
home é o espaço interior da família, valorizado ao extremo, muito decorado e embelezado. Reino da mulher,
esta investe aí uma parte considerável de sua energia e do seu tempo.” In: BURGUIÈRE, André;
KLAPISCH-ZUBER, Christiane; SEGALEN, Martine; ZONABEND, Françoise. História da família. O
Ocidente: industrialização e urbanização. V. 4. Lisboa: Terramar, 1986. p. 23.
245
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 322.
246
Ibidem, p. 321-322.
247
BURGUIÈRE, André; et ali. História da família. O Ocidente: industrialização e urbanização. V. 4. Lisboa:
Terramar, 1986. p. 23.
248
HOBSBAWM, op. cit., p. 333.
66
Era sobre esta família anti-social, confinada em seu microcosmo pacato e harmônico
em detrimento da sociedade, que incidiam as críticas de Giovanni Rossi:
Se a família pudesse viver ao ar livre, sob o controle severo da sociedade ou, como
alguém já disse, em uma casa de vidro, poder-se-ia então minimizar um pouco sua
ferocidade, sua vileza, sua corrupção. Mas o casal unido pelos laços da família tende
a isolar-se na caverna, na cabana, no tugúrio, no palácio ou em qualquer outro lugar
que encontre. E o sacrário doméstico, o inviolável santuário da família, o secreto
gineceu se transforma nos subterrâneos da santa inquisição, nos porões secretos da
bastilha. E as piores atrocidades humanas acontecem ali dentro, porque permanecem
veladas e impunes. 251
249
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1975. p. 222.
250
Ibidem, p. 221.
251
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 119-120.
252
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p. 78.
253
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 120.
254
Ibidem, p. 120.
67
O idealizador da Colônia Cecília lembra que apesar de não ter ocorrido desavenças
mais graves, tais como casos de violência, a questão da “domesticidade” dificultava o
convívio coletivo: “vieram à tona, contudo, os egoísmos familiares – muitas vezes, os
parentes comiam enquanto os outros permaneciam em jejum.”259
O “sentimento da família”, na visão do libertário italiano, comprometia os ideais
libertários e ameaçava o desenvolvimento do bem-estar da colônia. Segundo Giovanni Rossi,
Fica evidente que a produção na Cecília não teve outro estímulo a não ser o desejo
de alcançar um bem-estar coletivo, no qual o nosso bem-estar particular está
incluído. A atividade produtiva foi desenvolvida, apesar de e contra os egoísmos
mesquinhos e, especialmente, contra o egoísmo doméstico, que quer que toda
utilidade conflua para dentro da família, afastando dela qualquer justa parcela de
sacrifício e de privações.260
255
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 86.
256
Ibidem, p. 65.
257
Ibidem, p. 77.
258
Ibidem, p. 85.
259
Ibidem, p. 67.
260
Ibidem, p. 83.
68
Esta “pequena sociedade autoritária”, governada por uma “monarquia absoluta”, “rival
da grande sociedade”, ameaçava diretamente a harmonia social, pois
261
Ibidem, p. 86.
262
ROSSI, Giovanni. Uma história de amor na Colônia Cecília . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 124.
263
Ibidem, p. 122.
264
Ibidem, p. 123.
265
Ibidem, p. 123.
69
Desta forma, a família, sob as lentes de Giovanni Rossi, portava-se como uma espécie
de sociedade de auxilio mútuo mantida por laços de afetividade, ou seja, a família formava
células independentes no interior do “organismo social” afetando o equilíbrio entre público e
privado e a harmonia do conjunto.
Para Rossi, assim como para muitos intelectuais e pensadores do século XIX, tais
como Piotr Kropotkin e Auguste Comte, a dinâmica social comparava-se a um organismo,
cujo bem-estar geral, dependia da harmonia entre os órgãos e o corpo, ou então, entre
indivíduos e sociedade. Nesse sentido, a família era percebida como uma disfunção
fisiológica, ou mesmo como uma patologia capaz de vitimar o organismo social.
Por esta via, Rossi lembra que
266
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000. p 86.
267
Ibidem, p. 77.
268
Ibidem, p. 77.
269
Ibidem, p. 88.
70
270
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2002. p. 72.
271
Segundo Sandra J. Pesavento, “uma outra forma de compreender a representação seria dada pela exposição de
uma imagem, que substitui algo/outro, ou mesmo pela exibição de objetos ou ainda por uma performance
portadora de sentidos que remetem a determinadas idéias.” Nos discursos de Rossi, a família deve ser
compreendida a partir de sua própria leitura do real, isto é, a partir da sua própria imagem do social, delineada
como um organismo, cujo bem-estar, depende do equilíbrio sistêmico. Para definição de representação, vide:
PESAVENTO, Sandra J. História e História cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 41.
272
ROSSI, Giovanni. Comunidade anarquista experimental . In: Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
71
espontâneo da família monogâmica prepara o terreno para o triunfo dos nossos ideais”,
concluía Rossi antes de partir para Taquari.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Colônia Cecília, produto do século XIX, fornecia uma amostra de alguns dos
fenômenos sociais mais significativos daquele fim de século. O discurso cientificista,
movimentos sociais e imigrações estavam presentes em uma pequena porção de terra do
interior do Brasil meridional. No entanto, reconstruir sua história não estava entre os objetivos
que tínhamos proposto. Sua história já havia sido escrita, recontada e até mesmo romanceada.
Incidindo as análises sobre os discursos de Giovanni Rossi, pretendia-se chegar as
representações sociais construídas pelo discurso libertário em relação a família no final do
século XIX, mais especificamente, a família nuclear burguesa, composta pela tríade pai-mãe-
filhos.
Entendíamos que as críticas do libertário italiano à família não estavam circunscritas
apenas ao desejo comunista de por fim a propriedade privada. Em seus escritos era possível
identificar elementos que nos conduziam para além desta razão aparente. Nesse sentido,
fomos buscar entre os personagens históricos que transitam por entre as linhas dos textos de
Giovanni Rossi, possíveis explicações para as críticas contundentes à família.
Entre a gama de autores presentes nos escritos de Giovanni Rossi e que podem ser
considerados como importantes influências na constituição do seu pensamento, dois apenas
foram escolhidos. Sem dúvida, uma análise mais abrangente dos pensadores que o
influenciaram daria maior solidez às interpretações. Por ora, optamos pela análise das idéias
do libertário Piotr Kropotkin e de Auguste Comte por considerarmos essenciais para
compreender sua representação da família. No discurso desses dois pensadores acreditamos
encontrar as raízes do pensamento político de Rossi, assim como as razões e os métodos do
anarquismo experimental.
O nome do geógrafo russo figura inúmeras vezes nos escritos analisados de Giovanni
Rossi, assinalado inclusive, em O Paraná no século XX. Nesta obra ficcional em que Rossi
imagina um movimento revolucionário ocorrido no Paraná por volta de 1950, é nome de Piotr
Kropotkin que vigora entre os pensadores divulgados pela propaganda insurgente e não o de
Malatesta, contrariando Beatriz Pellzzetti Lolla. Nas últimas décadas do século XIX, Piotr
Kropotkin tornou-se a principal referência do pensamento libertário, sobretudo, da corrente
anarquista-comunista, a qual pertencia Giovanni Rossi. Não obstante, os dois libertários
também estavam ligados às ciências naturais: um, geógrafo, o outro, agrônomo e veterinário.
Nas obras analisadas de Giovanni Rossi, a proximidade entre mundo natural e social nos
73
parecia reveladora. Os textos de Rossi são permeados por termos e expressões tomados de
empréstimo das ciências naturais, como por exemplo, “organismo social”.
Nesse sentido, fomos encontrar no positivismo de Comte, para quem a sociedade
assumia a forma de um organismo, os fundamentos desta expressão. Assim, se a sociedade era
análoga a um organismo, poderia ser cientificamente estudada e as leis que a regem,
decodificadas. Rossi, cioso para expor as teorias libertárias a luz da ciência, como Kropotkin
reivindicava, assim faria em sua colônia experimental.
É na intersecção dos pensamentos desses dois autores que encontramos os contornos
da representação da família nuclear burguesa construída por Giovanni Rossi. As propostas de
harmonia social através do equilíbrio entre os elementos e o conjunto, presentes no
anarquismo de Piotr Kropotkin, aliadas a leitura orgânica da sociedade, oriunda do
positivismo de Comte, apontam para as razões dos discursos cáusticos proferidos por
Giovanni Rossi relativos a família: simbolicamente, a família estava para a sociedade assim
como uma molécula patológica está para o organismo.
A partir do século XVIII a família havia iniciado um processo de enclausuramento,
retirando-se da sociedade para reproduzir na atmosfera privada do lar, o equilíbrio e a
harmonia que no mundo exterior pareciam impossíveis. Para Rossi, sociedade e família eram
dois mundos antagônicos que ameaçavam a harmonia e o bem-estar geral.
Segundo Michele Perrot, “unânimes em criticar a família de sua época, raros, porém,
são os socialistas que pensam em sua total eliminação. Igualmente raros são os que pretendem
uma subversão dos papéis sexuais, tão profunda é a crença numa desigualdade natural entre
homens e mulheres.”273 Giovanni Rossi era um desses casos raros.
No entanto, apesar de suas particularidades, Giovanni Rossi também não poderia
deixar de estar relacionado a esta unanimidade. Na mesma medida que se distanciava dos
demais em certos aspectos, Giovanni Rossi compartilhava com estes, visões de mundo,
discursos e práticas comuns aos libertários de seu tempo.
Desta forma, sem excluir as singularidades do pensamento de Giovanni Rossi, é licito
sublinhar as similitudes que faziam de todos estes insurgentes do século XIX, libertários,
especialmente, o equilíbrio entre individuo e sociedade. Esta proposição nos permite, a partir
deste caso particular, levantar a hipótese geral de que, para além das criticas a família como
reprodutora da propriedade privada, a dualidade entre público e privado era também uma das
razões que motivavam os discursos anarquistas contra a família burguesa, pois, desta forma,
273
PERROT, Michelle ( org. ). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. V. 4. Cia.
das Letras: São Paulo, 1991. p. 100.
74
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ROSSI, Giovanni. O Paraná no século XX ( 1895 ) . In: Colônia Cecília e outras utopias.
Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.
79