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Anpuh Rio de Janeiro

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Guerrilha Eletrônica: o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e


o uso das mídias audiovisuais contemporâneas

José Gaspar Bisco Jr.


Sonia Cristina Lino

Resumo

Quando surgiu no cenário mundial em janeiro de 1994 o Exército Zapatista de Libertação


Nacional apresentava características parecidas com a de outros grupos guerrilheiros presentes na
história da América Latina. O uso das armas e os combates iniciais com o exército mexicano
mostraram um grupo muito bem estruturado militarmente e que usava táticas de guerrilhas
beneficiando-se da Selva Lacandona. Com o tempo, o uso de recursos audiovisuais como a televisão e
a Internet, se impôs como uma nova tática de guerrilha. Divulgando as idéias do movimento,
arregimentando militantes e simpatizantes em todo o mundo ou construindo sua versão da própria
história, os zapatistas colocaram aos historiadores contemporâneos a relação com suas fontes
novamente em questão. Esta comunicação busca refletir sobre essas novas fontes e seu impacto no
estudo da história.
Palavras-chave: Meios de Comunicação; EZLN; Estudos Históricos; Guerrilha.

Os estudos históricos passaram por grandes alterações durante o século XX e as razões para
essas mudanças não se limitam às formas de representação, às mudanças nas sensibilidades modernas
ou aos questionamentos quanto ao papel dos sujeitos sociais. Também o desenvolvimento tecnológico
dos meios de comunicação acelerando a transmissão de informações a nível global tem demandado ao
historiador novas posturas diante de seus objetos de estudo.
Desde meados do século XX com a popularização da televisão, a alcunha de “século da
imagem” tem sido amplamente utilizada para caracterizar o século passado. Usada de forma
depreciativa, a idéia de superficialidade da imagem massificada pela propaganda e pelo consumo era
então reforçada. Décadas anteriores, (1920 – 1930), o rádio realizara a mesma popularização da palavra
oral e da música, estabelecendo no meio acadêmico e intelectual uma distinção entre, palavras,
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sonoridades e imagens “educativas” e “informativas”. No meio historiográfico, o interesse em


recuperar as falas dos iletrados e/ou as vozes “não oficiais”, se abriu para a criação de uma metodologia
para utilização destes registros, a História Oral que, depois da popularização do gravador de voz, foi
viabilizada. No meio acadêmico, o reconhecimento da História Oral possibilitou uma primeira
mudança no estatuto das fontes audiovisuais. No entanto, até a última década, a produção
audiovisual voltada para um público amplo não era considerada “representação cultural” nem objetivo
de análise acadêmica.
Apesar deste reconhecimento tardio enquanto objeto de análise acadêmica o desenvolvimento
tecnológico dos meios de comunicação de massa possibilitaram revelar outras vozes e outros atores
sociais que, por sua vez, se encantam com as possibilidades de transcendência que as “maravilhas
tecnológicas” da comunicação lhes oferece. Neste sentido, a internet e a aceleração que ela permite na
transmissão de dados escritos, sonoros e imagéticos, para todas as partes do mundo se apresenta como
um novo desafio a ser enfrentado pelos historiadores.
Na perspectiva dos detentores de poder político, o reconhecimento do papel dos meios de
comunicação eletrônicos na geopolítica mundial data do período da Guerra Fria. Atualmente, é a
popularização da internet que ocupa o tempo dos ideólogos do poder. Segundo Joseph Nye Jr,1 “a
revolução da informação está alterando radicalmente o universo da política externa norte-americana e
dificultando seu controle pelos diplomatas”2. Esta dificuldade estaria ligada à descentralização e
democratização no uso da rede como meio de transmissão de informação e propaganda política, não
sendo mais necessário um grande aparato tecnológico para que as informações sejam colocadas na rede
e enviadas para todo o globo. Utilizando-se de um computador com modem, pode-se comunicar com
todo mundo. Esta facilidade faz com que o tráfego na internet dobre a cada cem dias,3 e seu controle se
torne a cada dia mais dificil.
As facilidades de comunicação e a dificuldade de censura proporcionadas pela rede não
passaram desapercebidas pelos grupos alternativos e grupos de resistência política em todo o mundo e
estes rapidamente aprenderam a se comunicar e difundir suas idéias fazendo uso das novas tecnologias
como é o caso do Exercito Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) surgido no México em 1994.
Este texto se propõe a analisar como essa “revolução da informação”,4 vem influenciando a
forma de atuação de grupos guerrilheiros tradicionais. Toma-se como exemplo o papel da internet e dos

1
Decano da Kennedy School of Government da Harvard University, Vice-Secretário de Defesa no governo Clinton, ex-
presiodente do Conselho Nacional de Inteligência norte-americano.
2
NYE Jr. Joseph. O paradoxo do poder americano. São Paulo, Unesp, 2002. p.84.
3
Idem
4
NYE Jr. Joseph. idem
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meios de comunicação na divulgação das idéias, arregimentação de militantes e simpatizantes em todo


o mundo e construção de uma versão própria de sua história pelo EZLN.
Em 1994, quando surgiu no cenário mundial, o EZLN apresentava características parecidas com
a de outros grupos guerrilheiros presentes na história da América latina. O uso das armas e os combates
iniciais com o exército mexicano mostraram um grupo muito bem estruturado militarmente e que usava
táticas de guerrilha beneficiando-se da Selva Lacandona. A guerrilha armada, num primeiro período,
serviu para que o surgimento do grupo tivesse um maior impacto, tendo sido noticiado amplamente na
mídia. Uma das primeiras medidas pelo grupo foi a tomada de uma rádio da cidade de San Cristobal de
las Casas e apresentar aos ouvintes a 1º declaração da selva Lacandona.5
Os confrontos que se seguiram entre zapatistas e tropas governamentais tiveram uma ampla
cobertura jornalística pelas redes de comunicação do chamado “main stream”, ou seja, voltadas para o
grande público. Além desta “apresentação” à sociedade através dos grandes meios de comunicação,
outras formas de divulgação tornaram-se presentes e ajudaram na divulgação do movimento e na
conquista de grande número de simpatizantes. E neste ponto que a internet passou a ser utilizada como
um meio de contra-informação, onde os próprios guerrilheiros e os simpatizantes passaram a divulgar
notícias sobre o conflito que, muitas vezes, contradiziam as versões oficiais.
Ao mesmo tempo em que a guerra de Chiapas ganhava espaço na mídia, já nos primeiros dias
de janeiro de 94, os comunicados zapatistas do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – CCRI,
instância máxima do EZLN, ou aqueles firmados pessoalmente pelo subcomandante Marcos,
começaram a circular pelo mundo não só através das páginas dos jornais e de revistas de grande
circulação, como também em algumas publicações independentes e na internet. Jornais como “La
jornada” – o primeiro publicar a “Declaración de la Selva Lacandona” – e simpatizantes mexicanos do
movimento zapatista se encarregavam de colocar os textos do EZLN nos endereços eletrônicos que
foram surgindo com informações de Chiapas. No México, grupos de discussão e conferências sobre
Chiapas surgiram em “Laneta”, a conexão mexicana via internet com a “teia” de redes eletrônicas
alternativas onde estão conectados muitos movimentos de direitos humanos, ONGs e ativistas em
vários países, a partir de San Francisco, Califórnia (EUA) sede da APC – Association for Progressive
Communications (Associação para as Comunicações Progressistas)6. A APC foi um dos primeiros
servidores a proporcionar acesso à internet para os movimentos sociais, ativistas de direitos humanos,

5
Nesta primeira declaração, os zapatistas apresentaram os onzes pontos iniciais de reinvidicação: trabajo, tierra, techo,
alimentación, salud, educación, independencia, liberdad, democracia, justicia y paz
6
A pagina Web da APC-Association for Progressive Communications é encotrada em: http://www.apc.org e a “Laneta”
mexicana está em: http://www.laneta.apc.org
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ecologistas, estudantes e sindicatos, a um custo bem acessível. Está presente nos cinco continentes
através de servidores locais que conectados formam uma rede mundial.
Além dos textos jornalísticos da cobertura dos meios de comunicação e dos comunicados
zapatistas, apareceram nos endereços sobre Chiapas na Internet relatórios das organizações
humanitárias presentes na zona de conflito sobre os ataques das tropas federais à população civil, sobre
os números de mortos e feridos no conflito e violações aos direitos humanos. Também ONGs ao redor
do mundo começaram a colocar na rede manifestações de solidariedade aos zapatistas e uma primeira
ação conjunta via Internet surgiu a partir de denúncias sobre bombardeios da aviação mexicana sobre
as comunidades indígenas, fato desmentido pelo governo. Os números de fax e o e-mail da presidência
da República do México receberam uma avalanche de mensagens pedindo o fim da guerra e abertura
das negociações.
Percebe-se neste momento, que o grupo começa a destoar do que nomeamos como “guerrilha
tradicional”. A partir do momento que os zapatistas começam a utilizar a internet como forma de
divulgação e ataque ao governo mexicano, apresenta-se uma nova via de combate utilizando um
instrumento que dificulta o controle e a censura por parte do Estado. Através da internet, grupos como
o italiano, !Ya Basta!, conseguem auxiliar a guerrilha na difusão de propostas e problemas. O uso da
internet torna-se uma arma fundamental a favor dos zapatistas contra a supremacia militar do exército
mexicano. Cercados nas montanhas da selva Lacandona, com as comunidades indígenas que são suas
bases de apoio tomadas pelas tropas federais e a constante ameaça física à sua população, a
“solidariedade eletrônica” foi um dos canais para que os comunicados do EZLN e denúncias das ONGs
saíssem da zona de conflito e fossem conhecidos em todo o mundo.
Depois dos ataques feitos contra as comunidades zapatistas logo no início do conflito em 1994,
o exército federal bloqueou a área durante duas semanas, não permitindo que jornalistas e ativistas de
direitos humanos entrassem em território zapatista para conhecer o estrago feito pela invasão militar.
Quando levavam jornalistas em seus helicópteros até a zona de conflito, os militares mostravam
comunidades onde a população havia fugido, e onde “tudo estava tranqüilo”, mas deserto. Nestes
momentos, a rede de solidariedade, através de meios e jornais alternativos conseguiu apresentar uma
segunda versão dos fatos.
A utilização da internet pelo grupo não se restringe apenas a boletins informativos sobre a zona
de conflito. A grande rede é utilizada também pela manutenção e difusão da cultura dos povos
indígenas de Chiapas. A luta por terras e reconhecimento, passa portanto, pelo processo de
conscientização da população não indígena da atual situação e história dos moradores de Chiapas.
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Busca-se levar esta cultura ao conhecimento de todo o México, e transformar o que seria um conflito
local, em um problema nacional que deve ser solucionado, ainda que tardiamente.
Combinando formas tradicionais de comunicação das comunidades indígenas com a tecnologia
de telecomunicações deste fim de século, os zapatistas souberam furar o bloqueio informativo e sua voz
foi ouvida em todo o planeta. Mensageiros do EZLN cruzam montanhas, florestas e vales com os
comunicados escritos por Marcos e pelo CCRI. Profundos conhecedores da região, os guerrilheiros
sabem “driblar” os postos de controle do exército e as patrulhas, caminhando pelos meandros da selva
como faziam seus antepassados, à noite, protegidos pela neblina. Ao chegarem em San Cristóbal, os
comunicados zapatistas são distribuídos para os correspondentes dos principais jornais mexicanos,
estrangeiros e agências de notícias.
Desde que os zapatistas passaram a utilizar a internet como forma de uma “guerrilha mais
branda”, porém intensiva nos meandros das informações, gerou-se discussões onde analistas, jornalistas
e políticos começaram a dizer que o conflito de Chiapas era apenas uma guerra de palavras que se
tratava nas páginas dos jornais, nas TVs, na internet. Era, portanto, uma “guerra midiática”. O
chanceler mexicano, José Angel Gurría, chegou a afirmar em uma conferência para empresários e
investidores estrangeiros que “o movimento zapatista não passava de uma guerra de papel e de
internet”7.
Ao utilizar a internet para divulgar sua causa e seus problemas, o EZLN conseguiu grande
apoio, seja de pessoas comuns não ligadas a nenhum movimento ou partido, e grupos de esquerda e
intelectuais. São simpatizantes, grupos de apoio civis, comitês de solidariedade e alguns meios de
comunicação os responsáveis por abastecer os endereços eletrônicos com as mais variadas informações
sobre o que acontece em Chiapas. È uma maneira de fazer com que circulem para um público cada vez
maior, notícias vindas diretamente do “front”, nessa guerra bastante peculiar. Esta utilização que os
zapatistas vem fazendo das tecnologias de comunicação, criando com poucos recursos uma ágil rede de
comunicação e também contra-informação, em resposta à ofensiva informativa do governo mexicano
nos grandes meios de comunicação, pode ser analisada dentro do que estudiosos da chamada
“sociedade da informação” têm definido como o “efeito internet”. Realmente, a rede pode oferecer
novas oportunidades para a conexão em escala planetária de movimentos e organizações sociais,
contribuindo para o desenvolvimento de um pluralismo. Como o fax foi importante nos anos 80 para
agilizar a comunicação e às vezes romper barreiras informativas, hoje a internet é o meio mais
7
“Na mesma matéria, o jornalista Pablo Espinosa comenta as declarações do secretário de relações exteriores mexicano. “El
año pasado el secretario de Relaciones Exteriores de México, José Angel Gurría, declaró ante inversionistas en el World
Trade Center: el movimiento zapatista es una guerra de papel e internet”, in diário “La Jornada”, 10/08/2006
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adequado para fazer circular informação urgente, como mostra o seu uso pelos zapatistas e os grupos
de solidariedade.
No plano das estratégias de comunicação, além do uso da internet e outras redes eletrônicas, o
EZLN e o movimento de solidariedade também têm mostrado agilidade e criatividade para produzir e
fazer circular vídeos, compilações dos comunicados, fitas de áudio com entrevistas da comandância,
músicas, CDs, CD-ROMs, emissões de rádio – legais e clandestinas – e de TVs comunitárias,
ampliando o alcance das informações sobre Chiapas para os que não possuem acesso ao “ciberespaço”.
Uma das maiores empreitadas do grupo é a criação da Rádio Insurgente8. Através da internet, pode-se
ter acesso à rádio e um vasto arquivo de documentação oral além de músicas feitas pelos próprios
indígenas. Além da rádio, os zapatistas criaram uma revista virtual mensal chamada Rebeldia9, que
além de trazer reportagens e declarações sobre o conflito, apresenta reportagens e matérias com os
indígenas maias, mostrando seus hábitos e tradições.
Dentre os textos zapatistas, os comunicados de Marcos – “el supo”, como é popularmente
chamado – mais parecem ter sido escritos por um professor de literatura que por um revolucionário.
“Não há longas referências a Marx, Lênin ou Mao, em vez disso, citações de Cervantes, García Lorca,
Machado e até Shakespeare no original”. 10
Os zapatistas mostraram ao mundo a revolução que a internet trouxe no campo político. O
acesso às informações e a possibilidade gigantesca de comunicação entre pessoas distantes, trouxe uma
nova dimensão para os fatos e conflitos locais, além de uma maior cobertura dos acontecimentos por
diversos meios midiáticos, mostrando outras versões dos fatos. Cabe agora aos historiadores criarem
mecanismos para incorporar estas novas tecnologias à produção do conhecimento histórico.

8
O link de acesso à Rádio Insurgente é www.radioinsurgente.org
9
Pode-se acessar a Revista Rebeldia através do site: http://www.revistarebeldia.org/
10
WOOD, Darrin. “Net wars. Chiapas: the revolution will no be televised (but it will be on-line)”, na revista “Index on
Censorship”, março de 1995, versão eletrônica na página Web http://www.oneworld.org/index_oc/wood.html

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