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Num dos números anteriores da Artitextos, foi publicado um escrito meu em que
tecia críticas ao uso e abuso da teoria da arquitectura a desoras; quer por parte dos
arquitectos quer, sobretudo, pelos não arquitectos; neste domínio aberto a todos.
Surpreendentemente, as reacções de maior acrimónia vieram, não destes
últimos, o que até seria natural, mas de arquitectos. Dos verdadeiros, dos genuínos. É
claro que interpretei a bizarria pelo simples facto de a prosa ter tido uma escassa
audiência. Talvez apenas por aqueles a quem pedi o favor de uma opinião. Se outros
houvera que a tivessem lido e ter-me-ia colocado num sério aperto.
Na tentativa de apaziguamento dos espíritos que se sentiram pessoalmente
lesados, afirmei-lhes que se a reacção a uma crítica à teoria tinha levantava uma tal
celeuma, iria penitenciar-me. Por isso, como acto de contrição, registaria em próximo
rabisco a minha visão desencantada sobre a prática da arquitectura. Para ficar bem
com o diabo, iria afrontar os deuses.
A experiência anterior ensinou-me que estou, uma vez mais, a dar o passo maior
que a perna, pelo que deverei remeter-me desde já a uma atenta e prudente guarda.
Até à moderna idade, esse poder foi exercido, com excepções episódicas,
pelos príncipes militares e/ou religiosos e, numa fase tardia por alguns poucos que se
anteciparam às eras, como capitalistas avant la lêtre. Foram estes governantes que,
entre si, estabeleceram o «mecenato competitivo». Esta invenção notável trouxe o
sossego, a estabilidade e, porque não reconhecê-lo, a fama e o proveito, a que
finalmente começaram a aceder os maiores de entre os grão mestres. Parecia ter sido
encontrada, finalmente, a fórmula alquímica da ventura institucional da profissão, por
que tinham penado todas as anteriores gerações de construtores.
Seria sol de pouca dura. Eis que chega a 1ª Revolução Industrial, junto com o
fumo negro do carvão e o apito do relógio da fábrica.
O arquitecto, ainda pouco dado a essas modernices, embatuca e deixa livre o
caminho da arquitectura civil até – imagine-se – a uns filantropos e alguns higienistas;
mantendo-se encostado à antiga aristocracia, que presumia capaz de voltar a
retomar as rédeas dos acontecimentos. Não demorou muito, todavia, a constatar a
evidência: – o seu novo senhor provinha de uma outra estirpe, em que as linhagens
eram ditadas, já não pelo berço nem pela dízima, mas pelo sucesso no comércio e
pelos lucros das aplicações bancárias. Mais, o número potencial dos seus novos
clientes era desconcertante.
Entre os finais de oitocentos e o início de novecentos, o arquitecto tinha-se
ideologicamente reciclado quanto aos interesses, motivações e idiossincrasias dos
novos patrões. Quem agora detinha o poder era a alta burguesia industrial, mercantil
e financeira que promovia, não mais o palácio ou a catedral..., mas cidades inteiras.
Magnífico. Começou a dar-se a multiplicação dos pães entre os arquitectos. Onde
até então não tinha sido necessário mais que apenas alguns, deram em desabrochar,
só não digo de «geração espontânea», porque as academias e os exércitos os
puderam suprir em quantidade.
Era chic ser-se arquitecto! — Então, como agora.
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Estabelece-se uma gramática, selecciona-se o material e a tecnologia
construtiva, define-se o destinatário – um certo homem novo – e, por pragmatismo,
seleccionam-se as «cabeças de cartaz» que dão corpo ao novo arquitecto, que
conduzirá as massas à felicidade e prosperidade, só possíveis nas “urbanidades” que
estavam a ser inventadas por esse mundo.
Foi o período heróico do arquitecto/salvador. Os patrões destes visionários
estimavam-nos e para os manter em bom recato, de quando em vez, permitiam-lhes
que construíssem alguma coisa. Era um júbilo – por cada esboço nascia uma obra-
prima e de cada traçado, uma proposta de cidade ideal.
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fazer o que quiserem, onde quiserem, contornando o que fôr preciso e anulando
quem se intrometer.
A nossa assinatura, que já foi sagrada, está ligada a incontáveis iniquidades
arquitectónicas e urbanísticas, que nos envergonham.
Tentamos disfarçá-las: na arquitectura, pelo surrealismo psicadélico dos
projectos; no urbanismo, pela paulatina e sobranceira destruição dos habitats, na
forma e na lógica de grandes traçados.
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Peço licença para alterar o rumo do tema, pois o evento levado a cabo no
último dia 8 de Outubro na FA, em que a Escola parou para reflectir sobre o Processo
de Bolonha, merece mais a atenção.
Dado não me ter sido possível participar nesses trabalhos e por entender que
uma publicação da faculdade pode, e deve, ser o veículo de transmissão e discussão
destas matérias, creio ser legítimo registar a opinião pessoal, sobre o que considero ser
um prego mais no caixão da formação do arquitecto, já de si muito depauperada.
Vem isto a propósito para recordar que a Declaração de Bolonha não é mais
do que a tentativa de «globalização» do ensino superior no espaço europeu.
Por rigor e prestando-lhes homenagem, é forçoso reavivar a memória e
relembrar que, na sua génese, Bolonha foi um genuíno e generoso movimento
encabeçado por distintos académicos, que esboçaram o quadro de articulação em
rede de algumas universidades europeias. Seria a trave mestra de um sistema que, de
forma segura e consistente, se alargaria com a adesão de novas escolas que
aceitassem integrá-lo, por via da harmonização protocolada das respectivas
organizações internas. Tudo dentro do princípio sacrossanto da «autonomia
universitária», consagrado entre povos civilizados. — Era isto o que estava no espírito
dos seus primeiros mentores.
Evidenciada a justeza do princípio, os governantes viram neste esquema o
pretexto e a oportunidade de se imiscuírem no assunto e resolverem alguns problemas
delicados que tinham entre mãos, como o financiamento público das universidades.
A partir daí, o destino de Bolonha ficou traçado. A guarda parental do processo
foi retirada aos legítimos progenitores e entregue aos... experts!
[Abro aqui um parêntesis dedicado a esta casta de que cultivo o maior resguardo, já
que não são mais do que os “comissários políticos” do poder, nas instituições. Como agentes
infiltrados e em estado letárgico, são periodicamente acordados, estimulados e postos ao
serviço das chefias, sempre de olho num convite para as cíclicas «danças das cadeiras». – As
universidades estão pejadas deles.]
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Foi esta “expertise” que acabou a conduzir o processo de Bolonha até onde ele
nos trouxe.
O que me deixa estarrecido, é como um processo tão profundo, uma tal
alteração nos métodos e nas práticas universitárias (que já não eram as melhores),
que coloca uma tão grande pressão e responsabilidade sobre o aluno, foi decretado
e será implementado como se para trás não houvesse nada. Como se antes da
universidade não estivesse um secundário moribundo.
Não existindo qualquer articulação entre os dois ministérios que superintendem
estes ensinos, criou-se um projecto virtual de reforma. Como se fosse possível redefinir,
redesenhar o ensino superior, sem acautelar e certificar previamente, o sucesso dos
níveis de aprendizagem anteriores.
Conhecem-se os frutos da miopia e ligeireza das políticas que tornaram a
“avaliação de conhecimentos” e as “estatísticas do sucesso escolar”, desde a primária
até ao fim do secundário, um exercício que só não incomoda o Ministério, mas que
envergonha todos os interessados – professores e alunos (os pais há muito que se
demitiram das suas responsabilidades).
Pois, a primeira consequência da implementação do Processo de Bolonha será
a mais do que certa contaminação do ensino superior por aquelas desgraças. A
redução do nível de exigência na Universidade, ao contrário daquilo que se pretende
fazer crer e a despeito do esforço, da vontade e da diligência dos professores, vai ser
uma inevitabilidade.
Todas as reformas estão por fazer, mas começar por onde se começou é
inexplicável e inaceitável. Presumir, também, que o estado da universidade
portuguesa pré-Bolonha é bom, é esquecer que ela não é mais do que o reflexo da
situação geral do país. A necessidade de repensar os modelos de funcionamento de
todos os sistemas estruturantes da sociedade – neste caso o da educação e formação
avançada – não só é necessário, como já vem tarde.
Este regime parece ainda não ter percebido, que não conseguirá acomodar
por muito mais tempo outros insucessos.
Aviso prévio: se não formos capazes de nos adaptarmos a Bolonha, vêem aí uns
papões – na dupla acepção da palavra – e, zás, engolem-nos, digerem-nos e
expelem-nos.
Argumentos: unificação das estruturas curriculares, comparabilidade, livre
circulação de alunos e professores, competitividade, formação para a vida, etc., etc.;
tudo coisas a subscrever de cruz e, finalmente eis que chega ela, a grande, a
enormíssima, a simplesmente “investigação”.
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Entro em assunto grave. Devo, pois, medir bem as palavras com que me vou
expressar. — NÃO SEI O QUE É ISSO DE “INVESTIGAÇÃO EM ARQUITECTURA”, NEM
ADMITO QUE NÃO ARQUITECTOS CONTINUEM A INSISTIR EM IMPINGIR-ME O QUE TAL
POSSA SER. QUANTO AOS ARQUITECTOS, AGUARDO ANSIOSO PELA DISCUSSÃO.
Será coincidência, certamente, mas muitos daqueles que mais vejo clamarem
pela «investigação», são os de quem menos se conhece a obra. A obra de
arquitectura construída, entenda-se; não os papers, artigos e projectos virtuais.
Estas são perguntas, talvez incómodas, mas que se devem começar a fazer,
porque de há muito que toleramos ser bitolados por parâmetros que nos são
estranhos. É tempo de reagirmos por convicções, sem receio dos tais experts. Ainda
que eles andem muito por aí.
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Há uma frase que começou por ser soprada há tempos por uns bem pensantes
e que é hoje debitada a torto e a direito por qualquer tolo, que diz que “a crise é uma
janela de oportunidades.” Não sei porquê, mas sempre que a oiço revejo aqueles
programas da Natureza que passam na TV, em que os super predadores – sem
alienarem nada da portentosa aura – seleccionam apenas os muito novos, os muito
velhos, ou os muito doentes, para suas presas de comezaina. Pois é... a crise é sempre
uma janela de oportunidades. — Então não há-de ser?
Prefiro outra, honestamente radical e afirmar que a humanidade está
multiplicada (no mínimo), por dois e que se metade dela se eclipsasse agora mesmo,
num piscar de olhos, não viria daí mal nenhum à espécie. Isto, desde que a família, os
amigos, eu e o leitor destas linhas, estivéssemos todos na metade sobreviva, claro está.