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A GLOBALIZAÇÃO E A NOVA SOCIEDADE DO

CONHECIMENTO – UMA INTERPRETAÇÃO CONTRA-


CORRENTE∗

Ailton Benedito de Sousa, escritor∗.

Introdução

As questões que vamos levantar se reportam à opinião do autor quanto à urgência em


mantermos, as esquerdas, sob o crivo de uma permanente crítica as manifestações de
euforia com que muitos têm atualmente recebido a avalanche de bens de consumo,
principalmente os ligados às ciências da informação, a partir daí exaltando-se não só essa
nova entidade metafísica chamada ‘a ciência’, como também a seu clero, ‘os
cientistas’.Após 1989, silenciamos nossa crítica. Bandeiras de luta caras nos anos 70, como
o combate a tecnocracia, promoção a movimentos de superação de padrões culturais
arcaicos, então chamados movimentos de contra-cultura etc. são mais do que esquecidas,
são renegadas. Nesse clima de euforia pela vitória alheia, inimiga, as inovações
tecnológicas que deveriam ser instrumentos para integração do homem a sua cultura, já que
necessariamente abertas à análise e compreensão de todos – caso do trem a vapor, do
telégrafo, do motor a explosão, da impressa, dos tipos móveis e do rádio – nessa
‘sociedade do espetáculo’ (aqui bem cabe o adjetivo virtual), em que ao povo, à mingua de
bens materiais e espirituais só resta onanisticamente absorver imagens1, têm essas
inovações tecnológicas o efeito de nos imbecilizar, já que parecem sair da cartola de um
mágico que adrede nos impôs a necessidade aplaudi-las e consumi-las sem as
compreender. Em muitos casos essas inovações tecnológica são objetos díspares ou
ímpares, corpos estranhos não só no tecido cultural, mas também na experiência das
pessoas, vetores de caos social a partir do desemprego e na medida em que sãos “caixas
pretas”, dependentes de codificadores e decodificadores de base digital. Não bastasse,
nascem com vida efêmera, já que ao saírem da matriz já nos chegam às colônias essas
bugigangas como coisas obsoletas. Estamos nos referindo à parafernália de vulgaridades
miniaturizadas: celular-gravador-filmadora-minipcê- videogame-tudo-num-só, sem nos
esquecermos das eternas ‘novas’ gerações dos tradicionais CDs, DVDs, disquetes,
pendrives etc.

Reportam-se também as questões levantadas à urgente necessidade de contra-arrestarmos a


discutível positividade absoluta de algumas das mudanças sócio-culturais em curso. Por

Texto reelaborado a partir de palestra proferida na Conferência Caio Prado Jr., Brasília, .......

Militante político com atuação ativa nos movimentos sociais após 1968, o autor foi jubilado do curso de
direito após 1968 (Faculdade do Catete, atualmente UERJ), é graduado em letras e em engenharia civil. É
membro do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – Cebela.
1
Referenciamo-nos ao livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, Editora Contraponto, 1997.
exemplo, embriagado diante desse mágico, vestido à moda Tio Sam, nossos contra-regras
que nos dirigem como a uma claque, a aplaudi-lo, insistem em desconhecer que com
acesso às novas tecnologias os seres humanos ao mesmo tempo em que confirmam a posse
de um corpo e uma personalidade no mundo dito ‘real’, “ganham” outro corpo e outra
personalidade num mundo ‘virtual’ particular, audiovisualmente configurável. Sim, o
mundo da nanosfera, o mundo dos fluxos de elétrons, abreviado como digital, é particular
sim, pois ‘possuído’ por quem mantém a propriedade privativa e o controle da tecnologia
dita de ponta. As relações harmoniosas e de conflito que meus duplos corpos e
personalidades estejam causando com os demais duplos corpos e personalidades nesses
dois mundos (virtual e real) não serão reguladas por mim nem pela sociedade em que sou
sujeito de direitos. Serão reguladas – e em meu desfavor – por grupos internacionais
impessoais, “virtuais” inatingíveis pelo braço de uma justiça nacional obsoleta.

É um campo fecundo imaginar as possibilidades de combinações interativas que essas


“quatro entidades” ou dimensões – corpo-personalidade virtual-real – abrem a um
indivíduo ainda ontem saído da vida rural, onde nem rádio em casa tinha. Por exemplo, o
uso da imagem erótica de alguém num sítio “empresarial” de pornografia, além das
compras por cartão de crédito, sugerem-nos uma idéia do que essas combinações possam
representar em termos de vulnerabilidade, insegurança, até mesmo risco de vida para as
pessoas em geral. A mídia não noticia, mas todos os dias milhares de pessoas têm suas
contas bancárias devassadas por piratas eletrônicos, pequena fração reclamando e reavendo
seus direitos. O público formado por idosos aposentados são público-alvo dessas práticas. .

No decorrer do texto desenvolver-se-á também um consciente esforço por reabilitar a ética,


a dimensão dos valores, não no campo epistemológico, mas na vida e na ação política de
cada um de nós, no planejamento social, na formulação do porvir. Por ter “isso” que se
chama consciência, o ser humano “sabe-se” efêmero, donde aspirar a uma eternidade,
mesmo se vicária – o caso da arte, da civilização, da produção e transferência do
conhecimento. Dotado de Razão e Vontade2, do seu mundo a questão dos valores não pode
ser elidida.

A farsa de um futuro sem passado e a falência das agências formadoras de sentido

Cingindo-nos ao primeiro objetivo – crítica às proposições e conceitos vanguardistas e


encomiásticos à atual fase de mudanças tecnológicas orientadas por e para um mercado “de
consciências alienadas” (Marx), proposições cujos argumentos já partem do fato de que as
referidas mudanças “realmente já introduziram outro modo de produção”
(sic) – lembremos aos propagadores dessas teses que o homem – reafirmando seus
atributos de racionalidade – só pode observar-se e emitir opiniões sobre seu ser, sua
essência, voltando seus olhos para o passado, não para o futuro. Projetar-se a partir de um
presente contingente observando-se num futuro utópico, é nada mais nada menos que
2
“Em concordância com a tradição filosófica, consideremos a natureza humana como um amálgama de razão
e apetite, ou pensamento e vontade, ou inteligência e desejo, ou cognição e cognação – a oposição tem sido
expressa de todos esses modos na literatura filosófica”. In Richard Taylor, Good and E vil – a new direction,
N. York, MacMillan Publishing Co., Inc., 1974, p. 9.
obrar em crasso paradoxo, construir um futuro que não teve presente, logo não teve
passado. Se, para o existencialismo laico, a existência precede a essência – cumpre existir
para compreender-se – demonstrado fica que a procura da essência do homem, qualquer
que ela seja, deve amparar-se no lastro de sua existência: procurar-se no real existido e não
no virtual, que pode vir a jamais existir.

Quando se fala na falência das agências formadoras de sentido como a família, a escola, o
trabalho, as igrejas, pode se ter como ilustração o referido paradoxo: - moldar o homem a
tendências de conjuntura. As ‘socialaitezinhas’ da zona sul do Rio de hoje podem ser
tomadas como modelo da mulher do futuro? Vivemos época típica? Que fizemos com as
palavras de ordem dos anos 60 e 70? O fenômeno tecnocracia não mais existe ou como
tendência hegemônica está acima da crítica?

Insista-se que se não mantivermos sob rigorosa análise crítica a caótica produção cultural
de massa dessa etapa de acelerada expansão tecnológica e científica , tendo por parâmetros
as disciplinas que historicamente vêm explicando o homem, estaremos contribuindo para a
criação de algo como um quadro terminal da esperança, algo que ainda não pode ter nome
mundo – um caos epistemológico. Os trinta ou quarenta anos de intensas derramas
tecnológicas (as caixas pretas produtoras de imagens) num mundo transformado em
“sociedade do espetáculo”, não nos dão bases à antecipação de ‘novo modo de produção’. É
o velho capitalismo capitaneando um novo imperialismo. Esse novo imperialismo,
finalizando a tarefa iniciada pelo seu antecessor no século XV, de subsunção etnocêntrica
da humanidade e domínio e seqüestro da biosfera do Planeta, inflete agora contra a
nanosfera – a dimensão atômica e molecular da matéria, o também chamado mundo
virtual. Este autor não consegue ver nesse adventício novo modo de produção senão a partir
de um quadro darwiniano da sobrevivência do mais forte à moda Jornadas na Estrelas. A
ter curso esse quadro, temos aqui um paradoxo: O ser humano desenvolver-se como um
deus...para mostrar que é bicho e morrer de solidão espiritual.

A vida tem que valer a pena, portanto não há como fugir dos valores

Na medida em que essas mudanças tecnológicas se fazem cada vez mais estranhas aos
homens, à maioria dos homens, à cultura que lhes explica, é plausível contar com
retrocessos, fastio ou repúdio. À derrama de novas tecnologias, derrama expressa em
“objetos”, “caixas pretas”, cumpre harmonizar ou compensar com uma equivalente derrama
de ‘sentido’, de ‘valores’, que tenha por objeto o homem, ou seja, uma derrama de
poéticas tecnologias sociais, nascidas das discussões acaloradas das massas, coisa que não
têm ocorrido nesse mundo ocidental dito civilizado, a cada dia mais obsoletas se tornando
as que remanesceram do século XVIII para cá – a começar pela representação política.

Reafirmando, o homem observa-se olhando para seu passado. E o existido para o homem é
a sua cultura, que se coloca em duas dimensões. Na primeira, é o agregado de artefatos e
registros com que, a partir do seu aparecimento, vem o homem ornando a si e ao mundo, é
tudo que sobre a superfície de nosso Planeta tem nome, classe e valor. É o mapa invisível
que cobre o terreno real, mapa sobre o qual se plota a realidade, em oposição ao que ainda
não está plotado nesse mapa – os astros ainda não vistos, as profundezas dos oceanos e da
crosta terrestre, quando referidos em abstrato. Na segunda dimensão, cultura é realidade
virtual, fluxo de signos, a que corresponde significados/sentidos – idéias, sentimentos e
valores, transitando em circuitos intersubjetivos de mente a mente, fluxo de signos que nos
justificam as atitudes e comportamentos na vida de todo dia e nos orientam no porvir: é a
cultura enquanto acervo e fluxo daquilo que está no silêncio da palavra poética – o
significado, o sentido, o sentimento, o valor.

É a cultura enquanto fluxo de pensamentos, de sentimentos e de valores que mais nos


interessa aqui, como campo de batalha onde devemos travar o debate contra os corifeus da
nova sociedade do conhecimento, da globalização e da tecnologia. Levantemos-lhes uma
primeira questão: Onde os transgênicos, como um invento díspar, ‘de um contra todos’, um
invento não legitimado, porque recém-empurrado na cultura para desorganizá-la, vetor de
injustiça, trouxeram ou poderão trazer sentimentos de paz, de segurança, de confiança
senão em Deus, pelo menos no homem? São solução para o problema da fome no mundo
cuja principal causa, objetivamente, é a pobreza institucionalmente produzida? Ou são os
transgênicos instrumento de escravização, na medida em que tira a competitividade da
agricultura africana? Que lugar e valor atribuir-lhe na cultura?

Tendo por base os transgênicos, suas sementes, seus insumos, avaliem-se os efeitos, por
certo irreversíveis, que a maioria das inovações tecnológicas ligadas à agricultura estão
neste momento causando aos três ou quatro bilhões de seres humanos que exploram a terra
por meios ditos tradicionais. Comece-se pelos efeitos do sistemático uso dos agrotóxicos na
cadeia alimentar – a partir dos rios, oceanos e mares. Vê-se que com a aceitação passiva de
um desenvolvimento econômico-cultural imposto pelos que detêm o conhecimento e o
usam como arma de extermínio, estamos legitimando o massacre não só da maior parte da
humanidade, que é etnicamente dividida, como também de vários ecossistemas de uma já
pressionada biosfera... Por acaso temos uma Ágora internacional para o debate e decisão
sobre a questão dos clonados, dos transgênicos, das fontes de energia, do combate a pragas
na agricultura? É justificável tecer loas às atuais tendências e configurações do
desenvolvimento da ciência e da aplicação de seus resultados? Não é bem plausível que
enquanto a esquerda aplaude a nova ciência a partir dos minipendrives, está ela
contribuindo para não só anestesiar, mas para drogar as massas?

Entendida em suas duas dimensões, a cultura por necessidade implica uma base social e
também um processo específico de transmissão no tempo e no espaço, a educação, a
aprendizagem: fluxo e circuito de signos e significados de mente para mente, de espírito
para espírito, pelo qual o ser humano, agarrado ao mundo dito real, vive em dois
momentos – um virtual e um real. Note aqui a grande diferença: no mundo cultural que vai
até os fins do século XX, é o homem, qualquer homem, que, ao falar e ao ouvir (ou ler e
escrever) transporta-se e transporta seu ouvinte para um mundo virtual, configurado pelas
cadeias de signos que ferem seus sentidos. Transportado pela leitura para o mundo de
D.Quixote, lá sou um ponto inconfigurável, um ponto de mim para mim. Agora, não. Entre
os infinitos mundos ficcionais paralelos, criou-se especificamente um a que me dão direito
de acesso contra o pagamento de um valor, contra a apresentação de uma senha, ao mesmo
tempo que a esse ganha acesso “qualquer um”. Nesse mundo, minha imagem configurada
ou inconfigurada ganha “poder de ação” quer como agente quer como paciente.. Mas...
quem cobra o valor e dá a senha?.. Quem dá o poder de ação e em que termos? Num quadro
surrealista, pressente-se a presença de uma ‘Matriz’ dominadora, mas sem rosto, a controlar
uma usina de instrumentos genericamente referidos como cibernéticos, robóticos, digitais, a
anos-luz da compreensão dos mortais. E essa Matriz estabelece os modos pelos quais ele, o
homem simples, pode não só entrar nesse mundo virtual, criar seu corpo e personalidade
virtuais, como também estabelecer relações que tenham efeitos no mundo real...À
inexistência de uma revolução que promova a difusão geral e democrática do conhecimento
científico que dá acesso às novas tecnologias, a cada dia devemos nos tornar mais
pessimistas com relação a um futuro para essa civilização. Daí que o brasileiro compreenda
o sentido do salto em direção à Educação recentemente dado por formações sociais como a
China e a Índia. Teremos ainda tempo de dar esse salto?

Voltando à cultura dos anos 80 e 90, seja-nos permitido afirmar uma obviedade: a cultura
não nasce nem transita entre todos os seres do reino animal – é privativa de uma única
espécie. Em determinados sistemas de produção ela é aberta, extensível a todos os
membros. Nas sociedades de mercado do mundo globalizado ela tem relação com a
dimensão econômica dos seres humanos. Cabe aqui outra observação: – Como predicado
do homem, se função tiver a cultura, mais que para esse homem, a função responderia
também às necessidades das demais espécies que com ele vive no mundo – logo não se
deve descartar a Teoria Gaia, de J. E. Lovelock, para a qual a Terra é um ser vivo cujo
cérebro estria na cabeça do...homem (v.na web.Wikipédia, enciclopédia livre3).

Mais consideração deve exigir a Hipótese Gaia tendo em vista que o homem, na sua
imediaticidade ou corporeidade é, também, um animal, pertence ao reino animal, seu DNA
– diz-nos a ciência da nova sociedade do conhecimento, em mais de 90% não difere do
DNA dos grandes símios. Mais foros de verdade ganha a afirmação na medida em que ao
nascer esse estranho ente não tem nem traz cultura, é essencialmente um ANIMAL, um
bicho a ser obrigado pelo grupo a se tornar Homem. Mais contraste ganha o paradoxo do
desenvolvimento de uma ciência sem valores, de uma política sem valores: O bicho supera
o bicho para se tornar bicho...

Donde se conclui que nascemos animais sem tirar nem pôr e nos tornamos “diferentes”
tanto pela vida em sociedade, quanto pela educação, da aprendizagem por intermédio do
exercício de uma habilidade dada como potencial, a de nos conectarmos a um fluxo
abstrato, inefável, de pensamentos, sentimentos e valores. Mais ainda, na medida em que
temos mente, espírito e nos conectamos aos fluxos e circuitos de uma ou de várias culturas,
somos, todos que temos essas habilidades, iguais e, até aqui, únicos no universo.

3
Este sítio deveria ser tomado como modelo na constituição de uma nova Internet.
Freud, a criação do Eu, a cultura e o homem paradoxal

Como lembra Ernest Becker4, para Freud o Eu se interpõe entre o Estímulo e a Resposta.
Ao toque do espinho (o estímulo), o ser vivo reage tão imediatamente que, às vezes, o
observador perde a noção desses dois momentos – estímulo e resposta. O quadro E-R
ilustra o âmbito do natural, do necessário e previsível. É o âmbito do ‘sempre igual,
portanto do Eterno, onde não há tempo escalonado. Toca-se a carne do ser vivo, ele reage.
Algo diferente pode ocorrer se esse ser vivo é o homem. Nele há um intervalo entre o
estímulo e a resposta. É nesse vácuo – esse intervalo – na estrutura sensível e reativa do
bicho homem que se instalaria o Eu (e logo o tempo), lugar onde esse ser atualizaria a
recriação do sensível.

Ainda de acordo com Ernest Becker em sua apresentação do pensamento de Freud, o Eu é


um órgão virtual (idem, p.28). Sua base de irradiação é o córtex cerebral, o cilindro
enrodilhado de cor acinzentada que orna a parte superior dos hemisférios cerebrais. Como a
alma em Santo Agostinho, o Eu ora parece estar no interior de nosso corpo, ora no exterior.
Órgão virtual, ele é irradiação. Do mesmo modo que no carvão em brasa o movimento das
moléculas responde pelo aumento da temperatura, que se faz visível e sensível – calor e luz
– sem nada nos dizer sobre aquilo que provoca esse calor e luz (a energia, o que põe as
moléculas em movimento, conceito abstrato), os elementos objetivos do cérebro, essa brasa
que arde sem nos queimar, nada nos dizem sobre o Eu, cuja existência, por necessidade,
afirma-se a partir do Outro. Lembre-se que o Autismo na criança é a impossibilidade de ela
diferenciar seu Eu e o ambiente. A digressão tem por objetivo dar maior contraste à função
do Eu na cultura: nela o Eu é um ator, criatura e criador da cultura.

O enigma do homem – rápido resumo das tentativas de respostas - fases da dedução e


da indução

Reafirmemos a tese de que o drama do Homem tem como núcleo sua divisão como ser
biológico que se vê em duas dimensões – uma animal, outra espiritual – o homem
constituído de razão e vontade (Sócrates, Platão, Aristóteles, ou segundo Freud, constituído
de uma base instintiva (E-R); outra reflexiva (Estímulo/ vácuo/ Resposta). Reafirme-se aqui
também seu atributo de produtor de cultura. Com esses dados em mente, vemos que por
toda a pré-História e parte da Antiguidade, a cultura problematizará esse drama – que é ser
homem? – construindo premissas a partir de dados imediatos: se fala a mesma língua,
segue os mesmos costumes, tem o mesmo sangue, é homem. O outro é o bárbaro, que

4
“O Ego permite ao organismo esperar e retardar sua resposta. Com o Ego o organismo pode manter, ao
mesmo tempo, consciente e permanentemente, vários estímulos e processos conceituais. Isso permite que o
organismo imagine diversos resultados antes que aja; e, assim, torna possível fazer escolhas pelo raciocínio; o
Ego permite ao organismo uma liberdade desconhecida na natureza”. In Ernest Becher, The birth and death
of meaning, N. York, 1972, p. 27
eventualmente não é homem, que não usa a língua como instrumento de sociabilidade, que
não tem o mesmo sangue, que é escravizável e coisificável.

Com o desenvolvimento da reflexão sistemática e seu registro – a expansão da especulação


religiosa e laica – a cultura teria diferenciado meios para o enfrentamento desse drama e
enigma, o homem. Ampliam-se as bases da dedução. Fixam-se atributos a esse ser – razão e
vontade, esta mais ligada ao campo do instinto, aquela da reflexão. Identifica-se a língua
como elemento de exumação. No discurso ou na retórica procurar-se-á a Razão, o Bem, o
Vício, a Virtude, a Justiça. Na medida em que o bárbaro não usaria (diz-se) a língua como
instrumento de reflexão, o adorno intelectual que se junta a essas palavras reforça a
oposição bárbaro vs. civilizado. Sócrates-Platão-Aristóteles, a partir do ponto de vista da
Razão perguntam e respondem o que é o Bem, a Virtude, o Vício, se estão no campo do
ser ou do dever ser, do que é tangível, objetivo ou do que é convencional, subjetivo, do
que é fato ou é convenção, ou valor. Entes como a Justiça, o Bem, a Virtude, seriam
apenas convenção, de valor contingencial, ou teriam substância, essência, valor eterno?
Para uns o Bem é um Absoluto, é Deus; para outros o Bem é o Prazer (a impressão dos
sentidos, a carne). Para outros tudo não passa de convenção, o homem é potência...Nascem
os pilares da filosofia do mundo dito ocidental. Nascem bases a que até hoje se amparam
as ditas ciências sociais. O homem é um ser teleológico, tem finalidade, estrutura-se seu
quadro de valores.

A indução na problematização e solução do enigma a partir do século XVI

Do século XVI a nossos dias, vem cada vez mais ganhando ênfase a indução, o homem
insistindo em descobrir sua essência por via da pesquisa ‘em campo’, ou seja, de uma
inquirição em si e em suas obras que procuraria dispensar narrativas anteriores, como as
ligadas à revelação. Na dedução o Eu pode estar ou ter estado ausente no momento da
elaboração das hipóteses matrizes, cabendo-lhe papel ativo apenas no desenvolvimento do
silogismo: (Premissa Maior): Todo homem é filho de Deus. (Premissa menor) Pedro é
homem. Logo....

Na indução, ao contrário, cabe ao Eu sair do particular em demanda do geral, da premissa


maior: “Eu classifico e hierarquizo, Eu sou dotado de Razão, Eu faço arranjos de
pensamentos que se encaixam uns aos outros por necessidade, Eu tenho Vontade, Eu
procuro o Bem, o meu interesse....logo Eu posso procurar fora de mim quem tem as
mesmas habilidades e comigo pode interagir, base para que Eu mesmo conclua quanto à
classificação de todos estes como iguais ou diferentes de mim.” E assim entramos no
âmago das teses iluministas racionalistas. A dispersão Europa afora, dessas idéias, a
extensão do ecúmeno ao Planeta a partir das ditas descobertas, o homem reconhecendo sua
espécie e se reconhecendo na espécie em âmbito mundial – eis a globalização no século
XVI, reafirmação do humanismo, solo fértil onde terá floração a educação laica, a ciência, a
tecnologia, Rousseau, o bom selvagem, a Revolução Francesa.

Racismo e barbárie por séculos afora

Porque os seres humanos são dotados de Razão e de Vontade, no mesmo momento em que
no nível das idéias, do discurso racional, fecundam-se e florescem conceitos como o da
igualdade essencial dos seres humanos a partir do exercício da Razão, nesse mesmo
momento, no nível Vontade, do interesse, ou seja, no mundo do Trabalho, da Produção,
meia dúzia de povos europeus – casualmente brancos – dão um salto e se distanciam de
toda a humanidade, não tanto por sua inventividade, inteligência ou o que valha, mas pela
guerra de rapina (as cruzadas) ou por pura imitação, decalque no rastro de rotas comerciais
há milênios por outros povos trilhadas, assim apropriando-se de tecnologias tidas como de
domínio público: a pólvora, o papel, os tipos móveis, o canhão, o cavalo com arreios, o
ferro e o aço, as embarcações para alto mar, a bússola e o astrolábio, sem deixar de fora, a
partir dos alfarrábios árabes, noções relacionadas à álgebra, ao zero, à esfericidade da Terra,
à centralidade do Sol, às constelações, aos planetas...

Homens bárbaros (cujo perfil característico é Pizarro) já que criados por crenças
deformadas a partir de um amálgama de revelações, teorias filosóficas e teológicas de
cunho eurocentrista, a que dava retoque essa ou aquela pontuação iluminista ou humanista,
os “exploradores do velho e do novo mundo” não encontrarão a faculdade da Razão quer
no homem africano, quer no homem americano, quer no asiático, logicamente porque ele
mesmo dela era falto. E dizimaram e escravizaram os vencidos, destruindo suas
civilizações, perpetuando a divisão da espécie, não obstante a tenaz reação dos vencidos e
dos defensores do pensamento humanista. Quando o exercício do poder político prescinde
das narrativas ligadas às revelações, acaba-se a era das guerras religiosas no Ocidente. Mas
não há superposição do quadro ideológico antigo e medieval pelo moderno, as teses de base
dedutiva, ligadas a hipóteses matrizes ou à revelação competem com as teses indutivas,
experimentalistas como o utilitarismo, extremando-se no psicologismo, no sociologismo,
antropologismo etc. Nesse quadro, que ainda é o atual, o homem não superou sua bipartição
entre Razão e Vontade, a primeira aparentemente guiando-o e justificando-o no “domínio”
da natureza, a segunda justificando-o no trato das questões sociais, no domínio/submissão
dessa segunda natureza – o ‘outro’ homem.

Do período das viagens exploratórias, suas virtudes e vícios, até 1789; de 1815 até 1917,
passando por 1989 – quer pela luta parlamentar, quer pela revolução, reage o pensamento
humanista em pulsões ou espasmos irreversíveis, estruturando algo que hoje, embora em
retirada, pode-se chamar de cultura política humanista universal – o mundo como
plasmação inacabada do sonho fraterno das massas de pobres, explorados e excluídos. O
mundo como promessa de harmonia, de repúdio à barbárie. Se hoje, no poder, o neoliberal
corre para destruir a instituição Trabalho como núcleo de uma das ‘agências’ formadoras de
sentido, uma vez que é vetor de inclusão social, é porque seu sistema de produção só pode
manter-se por via da do desperdício da riqueza espiritual do homem, a partir de sua
imbecilização .O excluído atribui sua exclusão à sua falta de estudos... Para esse mesmo
fim, cumpre-lhes aos neoliberais de direita degradar e destruir a escola pública, a saúde
pública, a previdência social. Para o defensor do neoliberalismo, o trabalho é uma falsa
questão: se é insumo à produção, empreguem-no; se esta dele prescinde, danem-se os
perdedores. Recriando a Roma do pão e circo, quer ele a sociedade do “lazer”, este nascido
do desemprego, da rapinagem, da pirataria, uma sociedade subdesenvolvida cujos 75% do
PIB venham do setor “serviços” – aí incluídos a distribuição das drogas. É imenso e variado
o acervo de ideologias para justificar o mundo da direita:ora o darwinismo, ora o
fascismo, ora o neoliberalismo, amálgama dos anteriores, diretamente justificado não
apenas pela força, como os anteriores, mas também por artifícios primários como
webshops, videogames, internets..

Depois de 1989

No plano do discurso, silenciada a esquerda, remanesce o amálgama de miasmas filosóficos


revelacionistas, redencionistas, utilitaristas (sem esquecer a auto-ajuda empreendedorista)
a amparar o pré-homem na estruturação do seu Eu e no batismo e comunhão desse Eu com
os demais Eus, para a criação e organização do mundo. Esse amálgama tem veiculação,
como já vimos, através de poderosas instituições truncadoras de sentido, providas de
instrumentos (e armamentos) que se estruturam no mundo digital, da nanosfera – os Think-
tanks, os Laboratórios (destaque para ‘a ciência’ pura e aplicada), os Arsenais, o mercado,
sem esquecer os cartéis midiáticos e a hidra financeira, em conluio com o crime
organizado – drogas, prostituição, pirataria tradicional e ecobiológica, escravização,
corrupção política, big-porno-brothers – a mixórdia propalada pelas novas tecnologias da
comunicação.

Após 1989, lado a lado remanescem os paradigmas de base dedutiva e indutiva: a


revelação, o racionalismo, o humanismo, a ciência (as exatas e não exatas – um contra-
senso) e a tecnologia, todas e todos subsumidos (classificados e controlados) pelo capital.
Assim, para as ditas igrejas protestantes, a revelação, a graça divina, se manifestaria no
sucesso empresarial, no ‘cooperativismo’ para lesar o fisco e a previdência. A seu modo, o
racionalismo e o humanismo retrocedem diante da vaga irracional; as ciências exatas
aplicam-se primeiramente em bugigangas com que posteriormente financiar projetos
bélicos; o dueto C&T descobriu o mercado das ditas commodities e as bolsas – a
tecnocracia legitimou seu papel no mundo; as ciências sociais se estiolam até mesmo
porque, mercenárias, querem justificar pelo discurso o que se justifica pelas armas – a velha
e a nova versão do imperialismo. Por falar em tecnocracia, que fizemos, nós das velhas
gerações, com esse conceito? Tornamo-lo positivo ou no mínimo anódino. Lembremo-nos
como nos anos 70 e 80, nós da minha geração entendíamos e socializávamos o conceito de
tecnocracia, conforme nossa tradução de página de Theodore Roszak5

“Por tecnocracia entendo aquela forma social em que uma sociedade industrial alcança o
zênite em sua integração organizacional. É o que o homem comum geralmente tem em mente
quando usa verbos como modernizar, atualizar, racionalizar, fazer planejamento. Amparando-se
sobre imperativos inquestionáveis como a demanda por eficiência, por segurança social, por
coordenação em larga escala de homens e recursos, por sempre crescentes níveis de afluência e cada
vez mais intensas manifestações da capacidade coletiva do homem, a tecnocracia trabalha por
costurar as anacrônicas brechas e fissuras da sociedade industrial. A meticulosa sistematização
certa vez celebrada por Adam Smith em sua bem conhecida fábrica de alfinetes agora se estende a
todas as áreas da vida, dando-nos organização humana que se equipara em precisão à organização
da máquina. Assim, chagamos à era da ‘engenheiramento social’ em que o talento
empreendedorista alarga sua província para dirigir como a uma orquestra o contexto humano total
que envolve o complexo industrial. Política, educação, lazer, entretenimento, cultura em sua
5
Roszak, Theodore, The making of a counter culture, N. York, Doubleday & Company, Inc., Anchor Book
1969, pp 5, 6, 7.
totalidade,, os impulsos inconscientes, até mesmo, como se verá, o protesto contra a própria
tecnocracia – tudo se torna objeto de um escrutínio puramente técnico, de manipulação puramente
técnica. O esforço é para criar um novo organismo social cuja saúde dependa de sua capacidade
em manter o coração tecnológico batendo regularmente”...”...A tecnocracia é, desse modo, o regime
dos expertos – daqueles que podem empregar os expertos. Entre suas instituições-chave
encontramos os “think-tank” em que têm abrigo uma multibilionária indústria de ‘brainstorm’, que
procura antecipar e integrar ao planejamento social tudo que esteja no cenário. Assim, mesmo antes
que o público em geral esteja ciente dos novos desenvolvimentos, a tecnocracia já os adulterou e
lançou seus planos para sua adoção, rejeição ou depreciação”.

No contexto pós-1989, ganha foros de legitimidade o bombardeamento de algumas das


tradicionais instituições formadoras de sentido: o Trabalho, a Escola, a Família. O Trabalho
(tanto o que “agrega conhecimento”, como dizem os novos mestrandos e pós-doutorandos
de 25 anos de idade, quanto o que “agrega burrice”) é subsumido pelo capital hegemônico,
cada vez mais robotizado o primeiro a partir do dueto C&T; o segundo, desqualificado,
obsoleto, castigo para os três-quartos da humanidade, é terceirizado, contingencializado,
paradoxalmente cooperativado; a Família, dita nuclear, uma ilha virtual desértica, ‘casa de
passagem’ para a recepção de náufragos enfeitiçados pelo canto das novas sereias:
maconha, cocaína ecstasy, crack, haxixe, ópio (e note que esses náufragos são jovens, as
novas gerações); a Escola, outra ‘casa de passagem’, uma área de lazer para proporcionar
merenda e asilo temporário a jovens cujas mães ‘trabalham fora’ e os pais estão presos; as
Igrejas, bancas, balcões ou melhor, show rooms, para a venda a retalho daquelas
promessas da revelação instrumentais ao sucesso capitalista na versão tupiniquim – isto é
camelô. Que maravilhoso mundo novo é esse?

Ciência&Tecnologia

São filhas da razão e da vontade, que não é de A nem de B, mas dos homens em
humanidade. Nesta fase seqüestradas por meia dúzia de países e grupos imperialistas, a
colheita de seus frutos fecundados por via da indução filosófica nos lembra da lenda grega
de Pandora, de cuja vagina saíram todas as desgraças do mundo, mas que se redimia diante
dos homens porque dela também saiu a Esperança. Se das atuais C&T saiu ou sairá a
Esperança, resta ficar provado. Até esta data, na opinião do autor, as mais louvadas crias do
casal C&T escarnecem da Esperança. Enumerêmo-las de modo não exaustivo, en passant:
a) Internet – roboticamente controlada e censurada pela Matriz, ao mesmo tempo um
circo romano para a baixaria, ao mesmo tempo um guichet de banco ou de cassino:
você paga para entrar numa caixa preta – o sítio – é enganado e sai como otário; de
quebra deixa seus dados com os hackers, dados de sua dimensão real que o deixam
isolado, indefensável, nessa segunda dimensão, a virtual, situação de fragilidade a
que o direito positivo das nações subdesenvolvidas neste início de século XXI
insiste em desconhecer por não poder enfrentar a Matriz. Observe-se que não há
tecnologia social que nos defenda, aos comuns dos mortais, dessa hidra de cem mil
cabeças. Nada se fala para não assustar, mas deve estar na casa das centenas de
milhar o número de trabalhadores sem seu FGTS, sem seu salário de aposentadoria
ou seguro, levado por uma das várias quadrilhas de hackers.
b) Imagens de nosso planeta fornecidas por satélites em tempo “dito” real (na realidade
com anos de atraso) – estrategicamente fornecidas para o mundo com definição a
100 metros do solo, mas para o exército israelense, a tempo real mesmo e a 2
metros do solo, para que seus mísseis acertem no pé da cama onde dormem o casal
de palestinos e seus filhos – precisão cirúrgica;
c) Os Big Brothers, as câmeras escondidas-explícitas nas ruas, nas lojas, no corredor
do nosso edifício, no nosso quarto e banheiro, implodindo com o conceito ( e
direito) de intimidade, vida íntima, de si para si. (E não há tecnologia social com
que possamos nos contrapor a isso).
d) Que mais reverenciarmos? As drogas sintéticas russas ou tchecas? Os transgênicos e
clonados como senhas para a questão da biopirataria? A propósito, já estariam
mesmo registrados como propriedade de laboratórios internacionais os princípios
genéticos da flora e fauna amazônicas? Os potentíssimos e novos explosivos e
gases letais imperceptíveis? A nanociência como segredo de grupos econômicos?
Ou a feira de bugigangas – CD, DVD, MP3, PenDrive, Palmx, caixa eletrônico,
cartão de crédito, escova de dente elétrica – para deslumbrar os bobos? Que mais? A
Aids, o Ebola, os remédios de primeira, de segunda e terceira linha? As mudanças
climáticas? A ressurgência virótica e bacteriológica, a doença da Vaca Louca ou o
desaparecimento das abelhas (e dos insetos em geral) em todo o mundo, ação dos
herbicidas-pesticidas-agrotóxicos agrícolas e domissanitários? Ou a guerra
preemptiva – Iraque, Afeganistão, Paquistão, Irã...Ou a nossa, das esquerdas,
‘rendição preemptiva’? Que mais?

A questão das tecnologias sociais como expressão de um bem comum

Os meninos neoliberais vão objetar: “A tecnologia não é boa nem má...” A que se responde:
“O automóvel, sem a noção de respeito à vida (valor) ou mesmo a legislação de trânsito
entroncada no Código Penal, não obstante em si tecnologia neutra, seria uma maldição nas
cidades”. O que induz preocupação e medo é ver seis bilhões de seres humanos reféns de
meia dúzia de empresas internacionais que livremente manipulam as sementes e os genes
do que todos comemos. E se já estivermos em rota de extinção a partir de alguns erros
genéticos?

A seguir Karl Polanyi em A grande transformação6, com o advento da Revolução Industrial


o Estado capitalista, a contragosto, descobre que não mais existindo o senhor de escravo
(responsável pela alimentação do escravo) nem o senhor feudal (pela do camponês), a
questão do pobre, ou melhor, da pobreza, não terá outra instância de solução senão ele
próprio, Estado, a partir de sua estrutura produtiva, desde que se santifique para os pobres
o princípio de que “quem não trabalha não come”.

Na Inglaterra, posta em curso essa revolução, é hora de grande trabalho teórico,


experimental e legislativo com vistas tornar a pobreza ‘orgânica’ ao capital, ou seja, fator

6
Polanyi, Karl, A grande transformação ,trad. de Fanny Wroebel, Rio de Janeiro, Campus, 1980, 307 p.
de produção. Desse país e da França, deixando-se de fora o trabalho legislativo, pululam
teorias e experimentos no campo das “tecnologias sociais”, umas com ênfase no lucro puro
e simples – mesmo a partir do emprego de presidiários ou do seqüestro de mendigos
(jamais nos esqueçamos das marinhas de guerra e mercante), outras com ênfase no
cooperativismo ou no socialismo: as Villages of Union, de Robert Owens, os Phalanstères,
de Fourrier, os Banks of Exchanges, de Proudhon, os Ateliers Nationaux, de Louis Blanc.
Dos esforços para solucionar a questão da pobreza, nasce toda uma sociologia e uma ação
política engajadas.

Com o gigantismo da produção capitalista na segunda revolução industrial, ocorre a


elevação descomunal do montante do capital fixo em relação ao variável, o Estado agora
também percebendo-se responsável não só pela pobreza, mas também pela própria
estrutura econômica capitalista (o capital imobilizado), uma vez que a desorganização dessa
estrutura econômica implica desagregação social.

Por paradoxal que pareça, é quando o volume de tecnologia social se faz mais necessário
que começam a fenecer as experiências ligadas a essa atividade – elucubração e invenção
de práticas que levassem a produção a um moto contínuo a partir da mobilização da massa
de trabalhadores sem acesso à moeda de modo permanente e sistemático. Nos países de
ponta da revolução industrial, essa atividade – produção de tecnologias sociais, que em seu
começo chegara a desbordar-se em profissões como a de engenheiro social, entra em ocaso.
Desaparece o estudo permanente, a teorização, a experimentação no campo social com
vistas a uma articulação equivalente entre as forças do capital e da sociedade em geral e dos
pobres em particular..

Karl Polanyi vai nos construir a compreensão de que quando a burguesia vê que a defesa de
seu capital imobilizado (as usinas, os complexos fabris, a organização espacial do mundo)
cabia mais ao todo Estado-nação que a ela, transfere-lhe essa tarefa – a nova configuração
da questão social, em que a “sociedade”, através de sua “opinião pública”, é levada a
compreender que ela é refém do sistema-estrutura econômicos. Legitima-se uma
compreensão prática e imediata da democracia: “todos somos responsáveis pelo sucesso de
nossa economia”, cujas instituições basilares tem respaldo nas normas constitucionais. Por
exemplo, à proximidade de uma crise no consumo, cumpre que o Estado, com os
instrumentos de macro-economia adquira o excedente e o destrua, para que se re-aqueça a
demanda – é a ação pragmática no campo das variáveis macro-econômicas de que sempre
fala o Lula, ao ler os discursos que seus áulicos lhe dão. No campo político, para que se
tenha “legitimidade democrática”, que o sistema eleitoral opere ‘sempre’ com todas as
deformações de nascença e adquiridas, assim garantindo êxito ao projeto de poder da
facção hegemônica... Que se distribua uns bons 15% do PIB à troca da permanente
legitimação institucional, à troca do voto cativo, tanto por via do “mensalão”, quanto por
via de programas como a Bolsa Família, o Cheque Cidadão (essa expressão escarnece da
cidadania como a viu J-J Rousseau... “Eu ganho um salário por mês por ter assinado um
contrato social”... E quem paga?). Para que tecnologias sociais, se já se inventou a roda, as
medidas provisórias, o superávit primário a partir da ‘rolagem’ da ‘grana’ do crime
organizado etc?
E as Esquerdas hoje?

Herdeiros do pensamento humanista iluminista, do anarquismo, do marxismo, do


socialismo, das grandes revoluções, devia a Esquerda sair a campo em defesa de suas teses
de base – sem jamais assumir sem crítica o discurso da direita. E por que não sai a campo?
Para essa esquerda, parece que embasbacada diante dos CDs e DVDs, as perenes questões
do homem se tornaram obsoletas, fora de moda. Recentemente, o pessoal do Lula saiu a
campo num trabalho de sapa para destruir, casuisticamente, cinco mil anos de reflexão
filosófica: “Que ética que nada, isso é coisa de bobo”. E relembre-se que as teses caras à
esquerda começam pela afirmação da igualdade essencial dos homens, com os corolários
daí derivados – sejam pragmáticos, sejam utópicos. Começam com o conceito de
Revolução, a substituição de uma ordem social injusta por outra que se quer justa....Logo,
começa pelo reconhecimento da dimensão dos valores.

Resquícios de um cientificismo barato hoje parece impedir a Esquerda de aceitar que a


Vida não é C&T, é antes, até mesmo por precedência, magia, poesia, filosofia, paixão,
valor... Utopia? Mas o conceito de homem – aquele que é sendo – não é pura utopia, como
não podia deixar de ser? Mesmo porque, fora da utopia – o aqui e agora, o Estímulo-
Resposta, portanto o Animal.

Não tenhamos vergonha de nossas constantes comportamentais. Gostamos de classificar,


sim, estabelecer regras, princípios, normas – é função espontânea do Eu, criador desse
animal político que se reconhece vivendo com outros Eus, livres como Eu. Observe-se que
a direita deixa “rolar” competição caótica somente na casa do inimigo, não na sua própria
casa. Exemplo imediato é o caos político na África. Veja se os EUA deixam que as
transações em petróleo se façam com Euro, com Libra, com Real? A direita nos odeia esse
hábito porque as normas que temos consagrado, da Revolução Francesa para cá, respeitam
princípios organicamente éticos e democráticos. Os tesouros da nação russa após a queda
do czar em 1917 e depois de 1989 não saíram do Kremlin por aí, roubados e vendidos em
todos os leilões da Europa e dos Estados Unidos – o que nos confirma que a moda de uma
esquerda ladra dos bens da esfera pública é coisa nova e bem circunstancial, sem falarmos
nos vinte e tantos anos de Revoluções na França – 1789-1815. Sem falarmos da China
depois de 1949...Chegando a essa importantíssima e atualíssima questão – a ética para a
Esquerda, vamos reproduzir aqui parágrafo de Sartre em 1947, nascido de sua experiência
como Maquis, quando a ruptura com a ética burguesa foi crucial:
“Se o homem não é, mas se faz e se ao se fazer assume a responsabilidade da
espécie inteira, se ele não tem nem valores nem moral que lhe sejam dados a priori,
mas se a cada caso nós devemos decidir sós, sem pontos de apoio, sem guias e, nada
obstante, a favor de todos, como poderíamos nós não nos sentirmos apavorados quando
nos é preciso agir? Cada um de nossos atos põe em jogo o sentido do mundo e o lugar
do homem no universo para cada um desses atos, pois embora nós não o queiramos,
constituímos uma escala de valores universais, e, desse modo, poder-se-á querer que
nós não sejamos tomados de pavor diante de uma responsabilidade tão imensa?” (J. P.
Sartre, Action, 27/12/1947).

A Esquerda é ética sim (pois embora não queiramos, constituímos uma escala de valores
universais...). Não pode deixar de ser ética, pois é moral. O pilar de sua ética é universal, a
defesa do Homem, de todos os homens. A ruptura com uma ética particular dada (e a “coisa
pública”, res publica na formação social capitalista, é criação da ética dada) só se pode
colocar após trabalho exaustivo de análise em que o sujeito agente, mesmo sob pavor,
conclua que está agindo em benefício de toda a Humanidade. Que entre nós jamais se fale
em moral contingente, em ética contingente. Temos valores, sim, universais, de um Eu que
sobe aos ombros de Eus que foram considerados gigantes, a se esforçar por ver mais
longe.

Conclusão já antecipada

Repudiar as novas tecnologias como os Ludistas? Não. Render-se ao brilho falacioso das
bugigangas tecnológicas, arrancado a partir das técnicas de marketing, ou seja, da
prestidigitação dos sentidos, do raciocínio, dos valores? Não. Assimilar e propagar as
cantilhenas de que está criado um novo modo de produção, o qual sem a ninguém avisar,
seqüestrou-nos a todos de tal maneira que se não pagarmos um eterno resgate, assumimos
a responsabilidade por nossa própria morte? De modo nenhum. Mas uma crítica ferrenha
aos produtos dessa tecnologia e discurso de seus produtores, de modo que as massas
retomem papel ativo no devir do mundo. Mas mostrar o lado trágico das atuais tendências
de desenvolvimento científico e tecnológico, antecipando uma versão de mundo que pode
estar vindo aí, para que com o repúdio das massas ela não venha. Mas um eficiente
apropriar-se dessas tecnologias visando seu uso em função do interesse das massas, ou o
seu descarte – a bem da humanidade. Mas um combate sem trégua ao modo de produção
que lhe dá suporte, cientes de que estamos diante de inimigos diabólicos, diabólicos
mesmo, que jamais produzirão ou produziriam “seu próprio coveiro”, como se viu em 1989
e em 2001. Nessa linha de pensamento, a revolução jamais poderá ser descartada. Até
mesmo porque as bifurcações tomadas pelo dueto C&T tendem a cada vez mais excluir o
trabalhador do trabalho, a eliminar o trabalhador e sua ‘paga’ como fatores da própria
produção, considerando-se intocáveis as atuais características da sociedade de mercado.
Não há sentido num esquema em que um robô possa produzir cinco milhões de camisas por
dia e que não haja quem as possa comprar, por falta de fluxo de moeda como
salário...Apelar-se-á cada vez mais para o Bolsa Família? É o esquema de Adam Smith
sem o trabalho das Famílias...O império romano tentou essa saída absurda e vimos no que
deu...

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