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JAIRO AUGUSTO DOS SANTOS

O MÉTODO DO DISCURSO:
ENSAIO SOBRE A EMANCIPAÇÃO HUMANA

Dissertação apresentada como requisito


parcial à obtenção do grau de Mestre em
Direito, Curso de Pós-Graduação em
Direito, Setor de Ciências Jurídicas,
Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig

CURITIBA
2003
JAIRO AUGUSTO DOS SANTOS

O MÉTODO DO DISCURSO:
ENSAIO SOBRE A EMANCIPAÇÃO HUMANA

Dissertação apresentada como requisito


parcial à obtenção do grau de Mestre em
Direito, Curso de Pós-Graduação em
Direito, Setor de Ciências Jurídicas,
Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig

CURITIBA
2003
TERMO DE APROVAÇÃO

JAIRO AUGUSTO DOS SANTOS

O MÉTODO DO DISCURSO:
ENSAIO SOBRE A EMANCIPAÇÃO HUMANA

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de


Mestre no Curso de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal do Paraná, pela seguinte banca examinadora:

Orientador: ______________________________
Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig
Setor de Ciências Jurídicas, UFPR

______________________________
Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
Setor de Ciências Jurídicas, UFPR

______________________________
Prof. Dr. Flávio Beno Siebeneichler
Departamento de Filosofia, UGF

Curitiba, 06 de novembro de 2003


Dedico este trabalho a todos
aqueles que, acreditando na libertação do
ser humano das amarras que o escravizam,
deram, dão ou darão seu sangue na labuta
cotidiana para a construção de um mundo
verdadeiramente da vida.

ii
Agradecimento

A Deus, pela augusta iluminação,


da qual comungam os santos em Sua
Sabedoria e Condescendência.

iii
Os filósofos não são capazes de
transformar o mundo. O que nós necessitamos é de
um pouco mais de práticas solidárias; sem isso, o
próprio agir inteligente permanece sem consistência
e sem conseqüências. No entanto, tais práticas
necessitam de instituições racionais, de regras e
formas de comunicação, que não sobrecarreguem
moralmente os cidadãos e, sim, elevem em pequenas
doses a virtude de se orientar pelo bem comum.
O resto de utopia que eu consegui manter é
simplesmente a idéia de que a democracia – e a
disputa livre por suas melhores formas – é capaz de
cortar o nó górdio dos problemas simplesmente
insolúveis. Eu não pretendo afirmar que iremos ser
bem-sucedidos nesse empreendimento. Nós nem ao
menos sabemos se é dada a possibilidade desse
sucesso. Porém, pelo fato de não sabermos nada a
esse respeito, devemos ao menos tentar. Sentimentos
apocalípticos não produzem nada, além de consumir
as energias que alimentam nossas iniciativas. O
otimismo e o pessimismo não são as categorias
apropriadas a esse contexto.

Jürgen Habermas, Passado como futuro

iv
SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ......................................................................... vi

RESUMO ....................................................................................................... vii

ABSTRACT ................................................................................................. viii

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 01

CAPÍTULO 1 – OBSERVAÇÃO E COMPREENSÃO ............................ 06

CAPÍTULO 2 – PRODUÇÃO E COMUNICAÇÃO ................................. 23

CAPÍTULO 3 – SISTEMA E MUNDO DA VIDA .................................... 33

CAPÍTULO 4 – MÉTODO E DISCURSO ................................................. 71

CONCLUSÃO ............................................................................................. 103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... 108

v
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Objeto visto no plano X,Y .................................................................... 10


Figura 2 – Objeto visto no plano Y,Z ..................................................................... 12
Figura 3 – Síntese hipotética do objeto a partir dos planos X,Y e Y,Z .................. 13
Figura 4 – Segunda síntese hipotética do objeto a partir dos planos X,Y e Y,Z ..... 14
Figura 5 – Terceira síntese hipotética do objeto a partir dos planos X,Y e Y,Z ..... 16
Figura 6 – Quarta síntese hipotética do objeto a partir dos planos X,Y e Y,Z ........ 17
Figura 7 – Quinta síntese hipotética do objeto a partir dos planos X,Y e Y,Z ........ 17
Figura 8 – Localização do ponto dada pelos eixos X,Y e Z .................................... 18
Figuras 9 e 10 – Objeto visto no plano X,Z ............................................................ 19
Figura 11 – Observação do objeto nos três planos .................................................. 21
Figura 12 – Síntese do objeto conforme os três planos ........................................... 22
Figura 13 – O homem enquanto sujeito .................................................................. 90
Figura 14 – A projeção do sujeito: o objeto ............................................................ 91
Figura 15 – Os eixos e suas racionalidades ............................................................. 95
Figura 16 – Acoplamento entre sistema e mundo da vida ....................................... 97
Figura 17 – Possibilidade da utopia .......................................................................100

vi
RESUMO

O presente estudo busca discutir como o discurso sobre a sociedade é apresentado e


quais as conseqüências decorrentes à medida que tornam-se claros os métodos pelos
quais tal discurso é realizado, demonstrando-se que a preocupação com a emancipação
humana não é uma constante, nem tampouco ocupa a centralidade das várias teorias e
discursos sobre a sociedade, em que a escolha e afirmação acerca deste ou daquele
paradigma não demonstram uma escolha neutra e ou isenta, meramente metodológica,
mas sobretudo, possibilitam aferir seu caráter humanista ou anti-humanista. Desta
forma, é apresentada a relação entre o paradigma da produção e o paradigma da
comunicação e suas diferentes racionalidades, explicitando que trabalho e
comunicação não são categorias que concorrem entre si ou disputam a centralidade
absoluta na explicação da sociedade contemporânea e do mundo do trabalho, mas
antes, colocando sim, ambas como categorias fundamentais não contraditórias e que
podem, cooperando entre si, permitir uma nova abordagem em relação aos desafios
apresentados por essa mesma sociedade. Contudo, o sucesso dessa nova abordagem
depende ainda da superação da forma como a sociedade é apresentada, em que sistema
e mundo da vida não se apresentem mais desacoplados, desacoplamento esse que leva
à perda de liberdade do indivíduo, mas onde sistema e mundo da vida superem a
barreira de intercâmbio entre si, levando-se assim à emancipação humana em todos os
seus aspectos.

vii
ABSTRACT

The present study intents to discuss about how the speech on the society is presented
and which the decurrent consequencies the measure that become clear the methods that
make the speech, demonstrating that preocupation with human emancipation is not a
constant, nor neither occupies the center of the several theories and speeches about
society, where the choice and afirmation about of this or that paradigm do not
demonstrate a neutral and or exempt choice, only methodical, but over all, they make
possible to survey its humanist or anti-humanist face. In this form, is presented the
relation between the paradigm of production and the paradigm of comunication and its
different rationalities, showing that work and comunication are not categories that
concur between itself or dispute the absolute center for the explication of the
contemporany society and the world of the work, but instead, placing both as not
contraditories basic categories that are able, to cooper between itself, to allow to a new
boarding in relation to the challenges presented for this same society. However, the
success of this new boarding still depends on superation of the form as the society is
presented, where system and world of the life are not present detached any more,
detached that takes the lost of the person’s freedom, but where system and world of the
life surpasses the barrier of interchanges between itself, taking in this way, to the
human emancipation in all its aspects.

viii
INTRODUÇÃO

Inicialmente, frente a algo que se problematiza diante do homem, a

inquietação pela necessidade de conhecer o desconhecido impulsiona a humanidade na

busca incessante pelo conhecimento. Decorre então, a necessidade de conhecer tudo

que se apresenta, de forma imediata ou mediata, dadas àquelas questões formuladas há

séculos e que de alguma maneira perpetuam-se ao longo da história sem uma resposta

ou respostas definitivas; perguntas que podem ser feitas isoladamente, mas que só

tomam sentido completo à medida que as outras questões são feitas, de forma a

relacioná-las entre si na busca da verdade, ou da resposta definitiva a todas elas.

Questões como “Quem somos?”, “Onde estamos?”, “Para onde vamos?” colocam-se

didaticamente de forma isolada, mas demostram sentido apenas na inter-relação

intrínseca entre si; mais que isso, o ato mesmo de perguntar denota a inter-relação

entre quem pergunta, a coisa da qual se pergunta e o que se pergunta da coisa; ademais,

de início as questões são postas como se, com a finalidade de entendê-las melhor,

fossem feitas por um único homem; além disso, a própria colocação das questões no

plural faz subentender que as mesmas não só são feitas por um único homem, mas

também são feitas por todos os homens. Só assim pode-se abstrair e afirmar que a

humanidade busca o conhecimento de forma incansável.


2

Essa busca da humanidade só pode ser afirmada justamente na soma,

contribuição e sucesso em relação à busca de cada homem ao longo da sua história, do

somatório de suas histórias, isto é, na história da humanidade.

Isto posto, quer-se afirmar que nenhuma coisa que se apresenta possa

ser estudada, analisada e compreendida de forma isenta, neutra, pura, imaculada. Os

homens são herdeiros da história e fazem história com todas as coisas.

Abstrai-se do real para o ideal para que se possa compreender melhor,

ou seja, sem interferências – este é o objetivo da abstração –, mas muitas vezes toma-

se o resultado do que foi estudado de forma abstrata como resultado final da pesquisa e

estende-se esse resultado esquecendo-se de que as incômodas interferências continuam

presentes. Eis a fonte originária das dicotomias pelas quais passa a humanidade, a

incapacidade do homem conhecer de forma absoluta aquilo que ele busca entender,

compreender. Toma-se a coisa a ser compreendida em toda sua complexidade – ou

simplicidade – e a dicotomiza-se, esquecendo-se de recompô-la na sua unidade, na sua

integralidade, como se as partes dicotomizadas não apenas fizessem mais parte do

todo, mas mais grave, como se nunca tivessem sido parte dele. Esquece-se, por

exemplo, que o real e o ideal tem a sua unidade na coisa, na possibilidade de podermos

afirmar que a coisa com a qual nos atemos antes de mais nada “é”. Contudo, sabe-se

que a coisa só é, assim como o homem, de forma relacional, não absoluta, isto é,

relativa na sua maneira de ser “espaço-temporal”.


3

Da mesma forma, mais uma dicotomia apresenta-se, isto é, o relativo e

o absoluto, como se fossem realidades extremamente distintas. Só pode-se afirmar o

relativo em relação a algo do qual se relativiza, ao absoluto; e o absoluto como sendo

aquilo do qual todas as coisas relativizadas são relativas. Assim têm-se a noção do ser,

do tempo e do espaço e, de que o homem “é”, ou melhor, “está sendo” espacialmente e

temporalmente, isto é, de forma relativa; de que não “é” todo o ser, todo o espaço e

todo tempo.

Com essa breve explanação sobre as mais variadas dicotomias com as

quais a humanidade se depara não se quer esgotar a discussão sobre as mesmas, nem

tomá-las como o objeto principal do presente estudo, contudo, não se pode

desconsiderar que elas existam e geram contínuos debates e estudos acadêmicos, cuja

finalidade seja a de compreendê-las, explicá-las ou até mesmo confrontá-las, ainda que

na grande maioria das vezes esses estudos sejam meramente analíticos, faltando muitas

vezes a síntese necessária para compreender o que foi estudado, como se o único

objetivo da pesquisa fosse a análise pela análise. Não se quer com isso dirimir em nada

a importância fundamental da análise na construção do conhecimento científico, mas

apenas atentar para o perigo de ficar-se apenas nela.

Tentar-se-á dessa forma esclarecer e expor as condições em que se

apresenta o problema que se quer tratar e a forma como se apresenta diante dele a

hipótese que foi elaborada para abordá-lo.


4

Preliminarmente, seguindo a tendência analítica tradicionalmente

hegemônica nas universidades e centros de pesquisas ter-se-ía que optar pela análise de

um fenômeno ou fenômenos a serem explicados focando todos os esforços numa visão

especialista de entendimento do problema, excluindo-se todas as demais contribuições

e elementos que interferem de forma direta ou não no objeto de pesquisa, que seriam

levados em conta através de uma outra forma de abordagem, ou simplesmente por uma

análise do mesmo problema a partir de um referencial teórico diferente; ademais em

tratando-se de uma pesquisa humano-social, elegendo-se um determinado grupo ou

grupos escolhidos previamente e que sem dúvida seguiriam a escolha subjetiva do

pesquisador, todos os demais grupos que porventura pudessem ser contemplados por

ela ficariam excluídos dos eventuais benefícios que a mesma gerasse.

Sendo assim, optou-se por uma pesquisa teórico-prática sem a escolha

de grupos determinados, o que aparentemente, faz a presente pesquisa ter uma

conotação meramente teórica. Mais uma vez uma dicotomia apresenta-se como se

teoria e prática não fossem elementos constitutivos de uma mesma realidade, sendo

que ambas apenas tem sentido efetivo apoiando-se mutuamente. Desta forma, a

pesquisa valeu-se das análises já realizadas pelos mais diversos pesquisadores e

estudiosos a fim de obter-se uma síntese capaz de dar resposta ao problema colocado e

da hipótese estabelecida previamente, sendo que o que se quis realizar não foi

meramente um trabalho analítico, tampouco meramente sintético, mas valendo-se

dessas duas formas de abordar o problema tentar visualizar o mesmo não apenas

através de uma lente focal única, mas sim, através da necessidade de buscar-se
5

compreender o problema através do maior número possível de abordagens, não se

esquecendo de relacioná-las para que um entendimento possa ser conseguido a partir

delas; levando-se a optar por um método analítico-sintético, dialético em toda sua

extensão.

Sendo assim, o primeiro capítulo apresenta, através de um exemplo

gráfico, como metodologicamente se dá a relação entre análise e síntese, entre as várias

abordagens e paradigmas, podendo-se apenas buscar a observação dos fenômenos, ou,

sobretudo, ir além da observação e buscar a compreensão desses mesmos fenômenos.

E, desta forma, a limitação à explicação de determinados fatos da realidade a um

enfoque epistêmico restrito a um único tipo de racionalidade leva a disputas

conceituais como a que é apresentada no segundo capítulo, cujas conseqüências advêm

muitas vezes do fato de como a realidade social do ser humano é pensada e

apresentada pelas várias teorias que tentam explicá-la. Conforme é apresentado no

terceiro capítulo, sistema e mundo da vida são tratados como sendo frutos de algumas

dessas teorias, aparentemente antagônicas, contudo, no tocante ao ser humano e à sua

emancipação, o acoplamento ou desacoplamento entre os sistemas e o mundo da vida

pode servir como um aferidor desse antagonismo. Por fim, o último capítulo refere-se a

como a escolha do método afeta o discurso sobre o homem, a sociedade e o mundo, e

conseqüentemente, como a factibilidade da utopia acerca da emancipação do ser

humano depende da maneira como dialeticamente se processa a sua intersubjetividade

no mundo da vida.
CAPÍTULO 1 – OBSERVAÇÃO E COMPREENSÃO

A contínua competição, ou superação, entre as mais variadas

concepções teóricas, entre os diversos pensadores e estudiosos, nas mais variadas

épocas e lugares ao longo da história da humanidade, coloca um aparente problema.

Entra em cena o enquadramento das explicações sobre a realidade a partir de

paradigmas, paradigmas esses que vão construindo-se continuamente uns após os

outros, o que demonstra a dinâmica na busca e mais que isso, na construção do

conhecimento ao longo da história.1 Contudo, há uma forte tendência a imaginar e a

conceber a construção e elaboração de novos paradigmas de forma não-dialética, como

se fosse possível inventar um novo paradigma a partir do zero, ou como se a negação

do antigo paradigma não fosse o principal elemento formador do novo, ou seja, o

paradigma antigo não apenas subjaz ao novo como lhe serve de base e fundamento, o

que analisando de forma mais detida supõe a mesma coisa, o novo está sujeito ao

antigo assim como a sujeição do antigo ao novo dá-lhe toda a vitalidade de que este

goza agora.2 Dessa forma, o que se quer é afirmar, assim como Apel, não uma

1
Cf. DEMO, Pedro. Conhecimento moderno: sobre ética e intervenção do conhecimento. Petrópolis,
Vozes, 1997.
2
Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed., São Paulo, Editora Perspectiva,
2000.
7

“sucessão incomensurável de paradigmas”3, mas sim “uma sucessão no sentido da

suprassunção (Aufhebung) de Hegel”4.

Apenas para ilustrar, o paradigma do Ser ao ser superado pelo

paradigma da Consciência (ou do Sujeito) não elimina o ser, mas dá-lhe nova

roupagem, continuando esse de alguma forma como base da consciência. Assim o

paradigma da consciência segue agregando os avanços e contribuições no campo do

conhecimento que vão acumulando-se de forma ininterrupta. Seguindo a mesma

dinâmica, a superação do paradigma do Sujeito pelo paradigma da Intersubjetividade

não elimina o sujeito, pelo contrário, reafirma sua importância, mas não apenas numa

relação unilateral, e sim, numa relação multilateral que passa a ser destacada e ter sua

importância relevada frente a resistência de ceder do paradigma anterior.5

Na etimologia da palavra “paradigma” encontram-se os seguintes

elementos, provenientes da palavra grega “parádeigma”, para = ao lado + deiknijô =

eu mostro, e que semanticamente passou a significar norma, exemplar, modelo. O que

se quer demonstrar com isso é que o paradigma tem a função de pano de fundo na

resolução de problemas, que o mesmo funciona como um instrumento de análise e não

3
APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica?, p. 320.
4
APEL, K.O. Idem, ibidem.
5
A respeito dos paradigmas filosóficos do Ser, do Sujeito e da Intersubjetividade conferir: LUDWIG,
Celso Luiz. Formas da razão: racionalidade jurídica e fundamentação do Direito. Curitiba, 1997,
UFPR, Tese (Doutorado em Direito).
8

de síntese, isso, caso ele permaneça com a pretensão de explicação do todo sozinho,

isoladamente.

Não se quer aqui propor uma mera miscelânea de paradigmas de forma

aleatória e descabida, mas sim, considerar que o significado de determinados

paradigmas completam-se e ampliam-se à medida que o processo de síntese entre eles

se dá. Imagine-se, levando em consideração a união dos elementos etimológicos da

palavra paradigma, isto é, “eu mostro ao lado”, e também o significado usual do

mesmo como “modelo”, “exemplar”, ou ainda, “padrão”, e considere-se a seguinte

analogia: diante da necessidade de diagnosticar, ou ainda, visualizar a existência de

fraturas ou outros problemas decorrentes de traumas físicos ou outras fontes, utilizam-

se procedimentos radiológicos na análise; tais procedimentos durante muito tempo

geraram radiografias que representavam de forma plana (bidimensional), e não de

forma espacial (tridimensional), o problema a ser analisado. Aquela radiografia gerada

pode ser considerada o paradigma, aquilo que serve para mostrar aos especialistas uma

visão analítica do problema a ser enfrentado. Muitas vezes uma segunda radiografia

(ou até mesmo uma terceira), com a finalidade de abordar um outro lado do mesmo

problema, é necessária, contudo, o eixo de análise agora é outro, o resultado

paradigmático gerado será diferente do primeiro, contudo, o problema a ser

diagnosticado é o mesmo. Cabe ao responsável pela pesquisa e diagnóstico sintetizar a

análise das duas radiografias a fim de obter sucesso no prognóstico.


9

No entanto, com o advento da tomografia computadorizada decorrente

do avanço da radiologia e demais ciências, a maneira de abordagem de problemas

semelhantes, ou até mais complexos do que aqueles que antes eram analisados,

melhorou significativamente; agora é possível através da integração dos três eixos

ortogonais durante a análise facilitar ainda mais o processo de síntese por parte

daqueles que buscam visualizar e compreender de forma mais clara o problema em

questão. Através de uma análise mais apurada, aumentando-se o número de elementos

e variáveis que antes não eram possíveis verificar, graças a não se contar apenas com

uma, duas ou três radiografias, mas a várias imagens produzidas pela integração dos

três eixos ortogonais que possibilitam analisar não apenas um plano, mas através da

varredura de determinado plano ao longo de um terceiro eixo ortogonal aos dois eixos

que formam o plano em questão, visualizar o todo a partir da síntese, da união das

várias seções analisadas.

Tanto melhor será a síntese quanto melhor forem as análises, assim, a

síntese consiste justamente na integração, conjunção de todos aqueles modelos,

radiografias, “paradigmas” que foram sendo conseguidos ao longo do tempo e

dispostos lado a lado, e que apenas com a sobreposição deles ao longo de um terceiro

eixo possibilita não mais uma ou várias visões bidimensionais, mas uma visão

tridimensional, podendo-se ler o problema sob quaisquer direções que se queira, tendo

uma visão do conjunto e, com isso, localizá-lo de forma mais precisa, diminuindo-se a

tolerância a uma margem de erro maior, margem de erro dentro da qual algumas ações
10

efetuadas podem seriamente levar a conseqüências nem sempre de fácil solução ou até

mesmo insuperáveis.

Dando continuidade à analogia, da mesma forma como uma visão

frontal ou lateral correspondem ao que se quer descrever numa representação

planificada, e ainda que o que seja representado corresponda à realidade e obedeça a

todos os critérios necessários a fim de esgotar as abordagens possíveis naquele plano

de análise, tal visão permanece apenas parcial, não dando conta de elementos que só

seriam vistos de forma mais clara no cruzamento de uma análise tão acurada como a

primeira, mas que possibilitasse o desprendimento do plano para o espacial, buscando

dar uma visão não apenas num plano ou dois, mas na construção de uma perspectiva

sintetizadora. Assim, considere-se a análise de determinado objeto, que tem na figura

1, a seguir, a sua representação ao longo de dois eixos ortogonais.

FIGURA 1 – OBJETO VISTO NO PLANO X,Y

Eixo Y

Eixo X
11

Vê-se que a figura 1 representada no plano de análise X,Y dá uma

idéia, uma noção de como é o objeto que se quer compreender, porém, a redução da

explicação a apenas esse plano não corresponderá ao que de fato é o objeto na sua

completitude. Mas isso não significa que a análise deva ser rechaçada ou simplesmente

trocada por outra, visto que determinados detalhes só serão captados e entendidos a

partir desse plano específico.

Sendo assim, a partir desse plano de análise inicial pode-se visualizar

detalhes e dimensionar algumas de suas características específicas e elaborar inúmeras

hipóteses acerca do que vêm a ser de fato o objeto. Ao mesmo tempo, deve-se

empreender todos os esforços e meios necessários para garantir que os resultados

obtidos a partir de tal plano de análise não serão descartados facilmente, visto que os

mesmos só são possíveis através desse foco específico, ainda que uma mudança no

foco de análise através da introdução de um segundo plano aparentemente contradiga o

que foi analisado no plano anterior e instigue a abandonar os resultados obtidos até

então. Contudo, não se pode querer ter a pretensão de eleger uma das hipóteses como

sendo a correta, com certeza, por mais completa e séria que tenha sido realizada a

análise a partir do plano X,Y e tenham se esgotadas todas as possibilidades de falar

algo mais do objeto analisando-o por esse plano.

Buscando-se prosseguir na investigação do problema proposto, qual

seja, observar, analisar, levantar algumas hipóteses que se aproxime da explicação do


12

que de fato ele é, valer-se-á agora da análise de um segundo plano, formado por um

dos eixos anteriores e a introdução de um terceiro eixo ortogonal aos dois anteriores,

desta forma tem-se assim a representação do objeto através da figura 2.

FIGURA 2 – OBJETO VISTO NO PLANO Y,Z

Eixo Y

Eixo Z
Eixo X

A segunda figura possibilita restringir mais, fechar o cerco em torno

do objeto investigado, confirmar algumas hipóteses levantadas e conseqüentemente

abrir mão de outras, ao mesmo tempo que novas hipóteses são construídas levando-se

em conta as análises anteriores, caso contrário, incorrer-se-ía nos mesmos erros e

permanecer-se-ía com hipóteses equivocadas semelhantes às elaboradas pela análise da

figura no primeiro plano.

A tentativa de já iniciar a elaboração de uma síntese pode ser feita, e

será até incentivada, contudo, deve-se cuidar para que a precipitação e a aparente
13

solução do problema não esgote a necessidade de se continuar investigando o objeto

em questão.

Desta forma, pode-se afirmar que através da análise e visão completa

de dois planos, formados independentemente através de três eixos ortogonais distintos,

já seja possível ter uma síntese, hipotética, através da representação dos mesmos numa

perspectiva, buscando uma visão tridimensional, espacial do objeto.

Com as análises realizadas pelos dois planos demonstrados até agora é

possível apresentar uma hipótese em relação ao objeto como vê-se na figura 3, hipótese

esta compatível com os planos de análise apresentados, uma hipótese coerente, e

plenamente possível.

FIGURA 3 – SÍNTESE HIPOTÉTICA DO OBJETO A


PARTIR DOS PLANOS X,Y E Y,Z

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z
14

Justamente por isso, também, uma hipótese merecedora de defesa por

parte daquele que a apresenta e, que permanecerá incólume durante todo o tempo em

que a mesma “explicar” a realidade do objeto estudado, passando de uma simples

hipótese ao “status” de teoria. Teoria que passa a dar as respostas às perguntas

formuladas e ganha importância crescente à medida que as respostas oferecidas por ela

satisfazem às dúvidas daqueles que servem-se dela para explicar algo. Como afirma

Horkheimer, “teoria é o saber acumulado de tal forma que permita ser este utilizado na

caracterização dos fatos tão minuciosamente quanto possível”6. Sendo assim, ainda

segundo Horkheimer, “no que concerne aos fatos, a teoria permanece sempre

hipotética”7.

FIGURA 4 – SEGUNDA SÍNTESE HIPÓTETICA DO OBJETO


A PARTIR DOS PLANOS X,Y E Y,Z

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z

6
HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica, p. 125.
7
HORKHEIMER, M. Idem, ibidem.
15

Ao ser confrontada com uma nova hipótese, certamente diferente da

primeira, surgem certos conflitos e divergências mesmo que as análises sigam os dois

planos anteriormente vistos. Uma nova hipótese baseada nos mesmos elementos,

porém com resultados diferentes. As certezas da teoria baseada na primeira hipótese

passam a ser trocadas agora pelas dúvidas crescentes postas pela segunda hipótese, que

conseqüentemente vai tomando ares de uma nova teoria. Pode-se ver, conforme a

figura 4, o resultado da nova síntese-hipótese para o objeto estudado a partir dos dois

planos de análise disponíveis.

Pode-se perceber que a partir dos dois planos disponíveis, ambos

fundamentais para o estudo do objeto pesquisado, surgiu uma nova hipótese cujo

resultado sintetizado foi diametralmente oposto ao resultado apresentado pela primeira

hipótese, apesar de ambas as hipóteses valerem-se das mesmas análises, ou planos de

análises, conforme as figuras 1 e 2.

Não por outro motivo que aquele decorrente da fecundidade do

resultado das análises das figuras 1 e 2 surgem inúmeras outras hipóteses, tão originais

quanto as primeiras, porém, todas elas valendo-se dos mesmos paradigmas ou dos

mesmos planos analíticos. Com a mesma fecundidade surgem tantas novas teorias

quantas sejam as sínteses bem sucedidas a partir das hipóteses levantadas para explicar

e dar cabo do mesmo objeto pesquisado. Contudo, cada nova teoria à medida que

acrescenta novos elementos que explicam os fatos de forma satisfatória e permanece

assim durante um período de tempo reveste-se da autoridade conferida pelo resultado


16

de suas respostas como se a sua síntese fosse não apenas o que é, mais um resultado da

união dos dois planos disponíveis, mas sim, apresenta-se ou é tida como sendo um

novo paradigma.

Apenas para ilustrar algumas das inúmeras hipóteses possíveis a partir

da síntese das análises das figuras 1 e 2, têm-se, além dos já apresentados pelas figuras

3 e 4, os seguintes resultados representados nas figuras subseqüentes 5, 6 e 7.

Como pôde-se observar pelos exemplos dados, todas as afirmações

acerca do objeto em questão apresentados até o momento podem ser corretas, ao

mesmo tempo em que um outro problema se coloca, isto é, qual delas é a correta, mais

do que isso, pode-se ainda indagar se alguma delas é mesmo correta e se corresponde

ao objeto representado pelos planos de análise vistos até agora.

FIGURA 5 – TERCEIRA SÍNTESE HIPÓTETICA DO OBJETO


A PARTIR DOS PLANOS X,Y E Y,Z

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z
17

FIGURA 6 – QUARTA SÍNTESE HIPÓTETICA DO OBJETO


A PARTIR DOS PLANOS X,Y E Y,Z

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z

FIGURA 7 – QUINTA SÍNTESE HIPOTÉTICA DO OBJETO


A PARTIR DOS PLANOS X,Y E Y,Z

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z
18

Para se dar a localização correta, exata, de um ponto no espaço

precisam-se não só das referências em relação às coordenadas de dois eixos ortogonais

(coordenadas estas que nos dariam a posição do ponto num plano)8, mas sim do

cruzamento formado pelos dois eixos com um terceiro eixo ortogonal aos mesmos,

conforme a figura 8.

FIGURA 8 – LOCALIZAÇÃO DO PONTO DADA PELOS EIXOS X,Y E Z

Eixo Y Localização do
Ponto

Eixo X

Eixo Z

Sendo assim, o cruzamento de apenas dois eixos localiza o ponto no

plano, como numa projeção, deixando o terceiro eixo latente, visto que este não é

levado em conta. No entanto, quando o ponto está sujeito aos três eixos sua posição no

espaço tem todas as referências mínimas para a sua localização precisa, ao mesmo

8
De forma semelhante é dada a localização feita através do Sistema de Posicionamento Global (GPS –
em inglês), em que a latitude e longitude exata de determinado ponto, ou seja, sua localização na
superfície terrestre, é dada através da triangulação feita entre pelo menos três satélites; contudo, por
mais precisa que esta seja a localização não determina a altitude, ou seja, não leva-se em consideração
se determinado ponto refere-se, por exemplo, à Holanda ou ao Monte Everest.
19

tempo em que suas projeções ao longo dos três planos formados pela conjugação dos

eixos ortogonais permanece e é possível de ser feita, mas sabendo-se agora que tais

projeções correspondem ao ponto objetivado em determinado plano.

Latente está também, em relação ao objeto representado pelos planos

X,Y e Y,Z, demonstrados respectivamente nas figuras 1 e 2, o plano analítico que falta

para definir com precisão a síntese do referido objeto, ou seja, o plano analítico

formado pelos eixos X,Z. Definindo-se o terceiro plano pode ser introduzido o

resultado da análise que faltava, conforme vê-se na figura 9, e até mesmo representar

detalhes não observáveis nesse plano à medida que o eixo Y, um dos responsáveis pela

formação dos outros planos fundamentais de análise, não está mais latente, mas é

levado em conta, como pode-se observar através da figura 10, onde a representação de

detalhes invisíveis por esse plano é feita através de linhas tracejadas.

FIGURAS 9 E 10 – OBJETO VISTO NO PLANO X,Z

Eixo Z Eixo Z

Eixo X Eixo X
Eixo Y Eixo Y
20

Contudo, ainda vale ressaltar que, apesar de se ter disponíveis os três

planos fundamentais de análise do referido objeto, isso não garante mais do que a

observação do objeto nesses três planos, conforme observa-se na figura 11. Visando

compreender o objeto pesquisado é necessário mais do que a observação detalhada de

todos os seus elementos, tarefa sem a qual a próxima etapa seria impossível, isto é,

reconstruir o objeto com a finalidade de obter um entendimento, realizar a síntese de

todas as análises disponíveis, valendo-se assim tanto das descrições nos diversos

planos como das explicações decorrentes, ou como afirma Habermas, “tanto as

descrições como as explicações têm alcances diversos, podendo ter origem à superfície

e ramificar-se até às estruturas subjacentes.”9

Segundo Habermas:

os processos reconstrutivos também são importantes para a investigação empírico-


analítica (por exemplo, na explicação das estruturas dos conceitos básicos, na
formalização de assunções inicialmente formuladas em linguagem comum, na
clarificação de relações dedutivas no campo das hipóteses particulares, na
interpretação de resultados de avaliação, etc.). Não obstante, os processos
reconstrutivos não são característicos das ciências que desenvolveram hipóteses
nomológicas sobre domínios de objectos e acontecimentos observáveis. Pelo
contrário, estes processos são característicos das ciências que reconstroem
sistematicamente o conhecimento intuitivo dos indivíduos competentes.10

9
HABERMAS, Jürgen. O que é a pragmática universal?(1976), p. 25.
10
HABERMAS, J. Idem, p. 22.
21

FIGURA 11 – OBSERVAÇÃO DO OBJETO NOS TRÊS PLANOS

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z

Dessa forma, reconstruindo-se o objeto pesquisado tem-se como

resultado a síntese conforme a figura 12. Contudo, o resultado final não se apresenta

como resposta definitiva e absoluta na explicação do objeto pesquisado, visto que todo

esse processo não realiza-se de forma estática, mas sim de forma dinâmica, cuja força

responsável por isso reside no movimento dialético da história, ou seja, assim como se

tem na estrutura triádica dos eixos ortogonais a estrutura fundamental para a descrição

do objeto no espaço, pode-se afirmar que de forma análoga a sua explicação só pode

ser considerada adequada levando-se em conta uma nova estrutura triádica formada
22

agora pelo tempo, pelo espaço e pela existência de algo justamente durante sua duração

no tempo e sua permanência no espaço.

FIGURA 12 – SÍNTESE DO OBJETO CONFORME OS TRÊS PLANOS

Eixo Y

Eixo X

Eixo Z

Têm-se assim que uma abordagem meramente analítica ou

bidimensional de determinado objeto restringe-se apenas à observação deste mesmo

objeto, ao passo que, sua compreensão será resultante de uma abordagem

tridimensional que seja capaz de sintetizar os três planos então analisados. Caso

contrário, buscar compreender determinada realidade a partir da observação de um

enfoque epistêmico único poderá levar a debates conceituais entre paradigmas como os

que se verão a seguir.


CAPÍTULO 2 – PRODUÇÃO E COMUNICAÇÃO

O debate conceitual entre o paradigma da produção e o paradigma da

comunicação situa-se e mantém um caráter conflituoso, apenas e tão somente enquanto

o problema for tratado no âmbito da “unidade da razão” ou, como afirma Maar, “o

problema da conceituação unidimensional da socialização, tal como efetivada no

‘paradigma produtivo’”11.

Mantendo-se a unidade da racionalidade social concretiza-se “uma

‘sociedade do trabalho’ erigida mediante o trabalho social, alienado no presente e

produtor de uma racionalidade reificada, cuja ‘crítica imanente’12 se sustenta na

possibilidade real de superação desta alienação no plano do trabalho social

solidariamente organizado.”13

Contudo, uma concepção diversa de sociedade, não somente uma

“sociedade do trabalho”, é apresentada por Jürgen Habermas, que partindo a

fundamentação de sua teoria de estudos da filosofia hermenêutica e da análise

11
MAAR, Wolfgang Leo. História e consciência de classe, setenta anos depois, p. 180.
12
“O confronto da ‘idéia’ com a efetivação da mesma na própria realidade em que ela se produz
caracteriza a ‘crítica imanente’. O sentido do processo histórico é imanente ao próprio processo
histórico. Já não caberia ‘realizar ideais, utopias [...] mas colocar em liberdade os elementos da nova
sociedade’.” Cf. MAAR, W. L. Idem, p. 186.
13
MAAR, W. L. Idem, p. 181.
24

lingüística de Wittgenstein verificou que a forma distintiva de vida dos seres humanos

está justamente na intersubjetividade enraizada nas estruturas da língua.14

Segundo Honneth, Habermas “viu-se conduzido a uma crítica do

marxismo que resulta em uma concepção da história ampliada no sentido da teoria da

ação: se a forma de vida humana se distingue por obter compreensão pela língua, então

a reprodução social não pode ser reduzida à dimensão única do trabalho, como propõe

Marx em seus escritos teóricos. Ao contrário, além da atividade de transformar a

natureza, a prática da interação lingüisticamente mediada deve ser encarada como uma

dimensão igualmente fundamental do desenvolvimento histórico”15.

O próprio Habermas não relega a dimensão do trabalho ao incluir a

dimensão comunicativa, ou ao sugerir uma mudança de paradigmas para explicar a

realidade da sociedade contemporânea, como se trabalho e comunicação fossem

categorias incompatíveis uma em relação a outra junto à vida dos seres humanos, pelo

contrário, segundo suas próprias palavras,

a transição de um paradigma ligado à produção para um paradigma ligado à


comunicação, que advogo, significa naturalmente que a teoria crítica da sociedade
não precisa mais se fiar nos conteúdos normativos do modelo expressivista da
alienação e reapropriação de forças essenciais. Este modelo o jovem Marx
emprestou da estética produtiva de Kant, Schiller e Hegel. A mudança de
paradigmas, de uma atividade voltada a um fim a uma ação comunicativa, não
significa, porém, que eu abandono a reprodução material do mundo da vida como
referência privilegiada de análise. Continuo a explicar o modelo seletivo da

14
Cf. HONNETH, Axel. Teoria Crítica, p. 538.
15
HONNETH, A. Idem, p. 539. Os grifos são nossos.
25

modernização capitalista e as correspondentes patologias de um mundo da vida


unilateralmente racionalizado nos termos de um processo de acumulação capitalista
amplamente desvinculado de qualquer orientação por valores de uso.16

Ainda segundo Honneth, “o passo decisivo de Habermas na direção de

uma teoria independente da sociedade, e portanto de uma nova formulação da teoria

crítica, só será dado se os dois conceitos de ação, ‘trabalho’ e ‘interação’17, forem

dotados de diferentes categorias de racionalidade. Esse passo, potencialmente fértil,

resulta do interesse de Habermas em incorporar a nova distinção entre dois tipos de

ação a uma teoria de racionalização social”18.

Em “Trabalho e Interação” Habermas parte da análise das lições que

Hegel proferiu em Iena nos anos 1804/1805 e 1805/1806, demonstrando inicialmente

as relações dialéticas provenientes das categorias linguagem, instrumento e família, ou

seja, a dialética da linguagem, do trabalho e da relação ética. A partir disso, situa o

conceito de espírito formulando a seguinte tese: “não é o espírito no movimento

absoluto da reflexão sobre si mesmo que, entre outras coisas, também se manifesta na

linguagem, no trabalho e na relação ética, mas é precisamente a relação dialética de

16
Cf. Um perfil filosófico-político: uma entrevista com Jürgen Habermas. Novos estudos CEBRAP, n.º
18, p. 94, set. 1987.
17
O conceito de “interação”, bem como o de “trabalho”, a que ele se refere é o de interação social que
Habermas vai desenvolver em Trabalho e Interação: notas sobre a filosofia hegeliana do espírito no
período de Iena, Cf. HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. p. 11-43.
18
HONNETH, A. Idem, p. 540.
26

simbolização lingüística, de trabalho e de interação que determina o conceito do

espírito”19.

Segue demonstrando como Hegel parte do conceito do Eu

desenvolvido por Kant, como a “unidade pura que a si mesma se refere”, como o “eu

penso”, que articula a experiência da identidade do Eu na auto-reflexão.20

Aprofunda a reflexão da auto-reflexão entre Fichte, que “atém-se à

dialética da relação do Eu com o outro, dentro da subjetividade do saber-se a si

mesmo” e, Hegel, que “abandona-se à dialética do Eu e do outro, no âmbito da

intersubjetividade do espírito, no qual não é o eu que comunica consigo mesmo como

com o seu outro, mas o Eu comunica com o outro eu enquanto outro”21. Sendo assim,

continua Habermas, “o espírito não é, então, o fundamento que subjaz à subjetividade

do si mesmo na autoconsciência, mas o meio em que um Eu comunica com outro Eu e

a partir do qual, como de uma mediação absoluta, se constituem ambos

reciprocamente como sujeitos”22.

Hegel universaliza o Eu como autoconsciência conferindo-lhe um

caráter abstrato, pelo que qualquer um pode dizer Eu a si mesmo, abrangendo todos os

sujeitos possíveis, mas por outro lado, ao dizê-lo o particulariza como algo de

19
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”, p. 12.
20
HABERMAS, J. Idem, p. 14.
21
HABERMAS, J. Idem, ibidem.
22
HABERMAS, J. Idem, p. 15.
27

inalienavelmente único e individual, conferindo ao Eu a identidade do universal e do

particular por meio de um espírito que possa integrar a unidade do Eu com um outro,

sem identificar-se com ele. Desta feita, Habermas afirma que: “Espírito é a

comunicação dos particulares no meio de uma universalidade, que se comporta como a

gramática de uma língua em relação aos falantes, ou como um sistema de normas

vigentes relativamente aos indivíduos agentes, e que não salienta o momento da

universalidade perante a individualidade, mas garante a sua conexão peculiar”23.

Habermas prossegue demonstrando como Hegel entende as categorias

trabalho e linguagem24 para posteriormente apresentar a relação recíproca entre

trabalho e interação e, afirmar que “não é possível uma redução da interação ao

trabalho ou uma derivação do trabalho a partir da interação”25. No entanto, Marx ao

tentar “reconstruir o processo histórico-mundial de formação do gênero humano, a

partir das leis de produção da vida social”26 reduz todas as categorias em ação

instrumental tomada como paradigma da produção, nas palavras do próprio Habermas:

Marx não explicita efetivamente a conexão entre interação e trabalho, mas, sob o
título nada específico da práxis social, reduz um ao outro, a saber, a ação
comunicativa à instrumental. A atividade produtiva que regula o metabolismo do
gênero humano com a natureza circunjacente, do mesmo modo que, na filosofia do
espírito de Iena, o uso dos instrumentos estabelece uma mediação entre o sujeito

23
HABERMAS, J. Idem, p. 16.
24
“Hegel chama trabalho à forma específica da satisfação das necessidades, que distingue da natureza
o espírito existente. Assim como a linguagem infringe a imposição da intuição e ordena o caos das
múltiplas sensações em coisas identificáveis, assim o trabalho infringe a imposição do desejo imediato
e suspende, por assim dizer, o processo de satisfação das necessidades”. Cf. HABERMAS, J. Idem, p.
25.
25
HABERMAS, J. Idem, p. 31.
26
HABERMAS, J. Idem, p. 41.
28

que trabalha e os objetos naturais – esta ação instrumental transforma-se em


paradigma para a obtenção de todas as categorias; tudo se dissolve no
automovimento da produção.27

Por fim, afirma que “a emancipação relativamente à fome e à miséria

não converge necessariamente com a libertação a respeito da servidão e da

humilhação, pois não existe uma conexão evolutiva automática entre trabalho e

interação. Apesar de tudo, existe uma relação entre os dois momentos”28. Com isso,

Habermas marca posição em relação à possibilidade, cada vez menos provável, de uma

emancipação social dentro do capitalismo desenvolvido a partir unicamente da utopia

de uma sociedade do trabalho, enquanto esta estiver restrita apenas a uma

racionalidade instrumental.29

Partindo da distinção entre trabalho e interação ele propõe um novo

enquadramento categorial ao que Max Weber chamou de “racionalização” para em,

“Técnica e Ciência como ‘ideologia’”30, demonstrar a mudança dos vários processos de

legitimação de dominação da sociedade. Entende por “trabalho” como sendo uma ação

racional teleológica que pode ser a ação instrumental orientada por regras técnicas

apoiadas no saber empírico, ou a escolha racional orientada por estratégias baseadas

num saber analítico, ou ainda, uma combinação das duas. Já a ação comunicativa,

27
HABERMAS, J. Idem, ibidem.
28
HABERMAS, J. Idem, p. 42.
29
Cf. HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o
esgotamento das energias utópicas, p. 103-114.
30
Estudo publicado em obra já citada, cujo título empresta à mesma.
29

entende como “uma interação simbolicamente mediada. Ela orienta-se segundo normas

de vigência obrigatória que definem as expectativas recíprocas de comportamento e

que têm de ser entendidas e reconhecidas, pelo menos, por dois sujeitos agentes”31.

Passando da legitimação da dominação da sociedade tradicional à

sociedade capitalista; como diz Habermas, “só com o meio de produção capitalista

pode a legitimação do marco institucional religar-se imediatamente com o sistema do

trabalho social, pois, só então pode a ordem de propriedade converter-se de relação

política em relação de produção, pois se legitima na racionalidade do mercado, na

ideologia da sociedade da troca, e já não numa ordem de dominação legítima”32. E, a

partir dessa mudança, surgem as ideologias com a finalidade de substituir “as

legitimações tradicionais de dominação, ao apresentarem-se com a pretensão da

ciência moderna e ao justificarem-se a partir da crítica às ideologias”33.

Com o desenvolvimento do capitalismo tardio, Habermas, a partir da

contribuição marcuseana, demonstra a força da ciência e da técnica ao exercerem o

papel de uma ideologia, que também serve de legitimadora da dominação, o que

explica a passividade por que passam as massas despolitizadas, já que a política é

tomada agora meramente como garantidora do sistema econômico, ao passo que a

31
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”, p. 57.
32
HABERMAS, J. Idem , p. 64.
33
HABERMAS, J. Idem, p. 66.
30

garantia de um mínimo de bem-estar é ideologicamente transferida ao rendimento

individual.

Desta forma, acrescenta ele, “a ciência e a técnica transformam-se na

primeira força produtiva e caem assim as condições de aplicação da teoria marxiana

do valor-trabalho. Já não mais tem sentido computar os contributos ao capital para

investimentos na investigação e no desenvolvimento sobre a base do valor da força de

trabalho não qualificada (simples), se o progresso técnico e científico se tornou uma

fonte independente de mais-valia frente à fonte de mais-valia que é a única tomada em

consideração por Marx: a força de trabalho dos produtores imediatos tem cada vez

menos importância.”34

Esta afirmação habermasiana tem suscitado polêmica35,

principalmente em relação à crítica de Habermas ao conceito de valor, já que segundo

Teixeira, “ele julga que a teoria marxiana do valor tornou-se supérflua, superada”36.

Mais, contrário aos argumentos habermasianos, afirma que “as transformações por que

passa o modo de produção capitalista caminham na direção de uma racionalização

brutal do trabalho vivo, enquanto fonte produtora de valor”37, argumenta que a

cientifização não dispensou o trabalho vivo dos processos de produção e conclui,

34
HABERMAS, J. Idem, p. 72. Os grifos são nossos.
35
Cf. TEIXEIRA, Francisco José Soares. Modernidade e crise: reestruturação capitalista ou fim do
capitalismo, p. 15-74.
36
TEIXEIRA, F. J. S. Idem, p. 33.
37
TEIXEIRA, F. J. S. Idem, p. 66.
31

“parece um pouco apressado anunciar o fim da teoria do valor, baseando-se apenas

numa visão quantitativa dos fatores que entram na produção da riqueza”38. Contudo, o

próprio Teixeira, mais adiante afirma que, “as modificações operadas nos processos de

produção se fizeram em nome do capital. Por conta disso, o desenvolvimento da

ciência, que se tornou a primeira força produtiva, não redundou na criação de um

tempo livre de trabalho, como possibilidade concreta para o pleno desenvolvimento

das capacidades intelectuais e espirituais dos indivíduos. Enquanto o desenvolvimento

das forças produtivas for mediado pela forma capital, o saber técnico e científico

permanece uma mercadoria-chave e fundamental na concorrência capitalista.”39

Desta forma, o próprio Teixeira reafirma o argumento habermasiano,

visto que Habermas não apresenta a ciência como a única força produtiva no

capitalismo desenvolvido, mas sim, ocupando a primeira posição, o que não exclui

nem dispensa as demais forças produtivas. Ademais, segundo Carleial,

Marx, nos Grundrisse (Gr. II, p. 193), afirmava que na fase do capitalismo na qual
a ciência dominaria enquanto força produtiva, substituindo o trabalho, seria
inevitável constatar que o tempo imediato de produção se constituiria numa ‘base
miserável’ ou numa ‘pura abstração’. Como conseqüência disto o tempo de
produção não poderia ser a medida da eficácia produtiva. Esta eficácia depende
agora da força produtiva geral do homem, da produtividade dos saberes e de suas
aplicações...40

38
TEIXEIRA, F. J. S. Idem, ibidem.
39
TEIXEIRA, F. J. S. Idem, p. 68. Os grifos são nossos.
40
CARLEIAL, Liana Maria da Frota. Mudanças no trabalho e implicações sobre a mensuração da
produtividade: uma primeira aproximação, p. 25. Os grifos são nossos.
32

Sendo assim, o que se quer demonstrar é a necessidade de pensar os

complexos desafios que a realidade apresenta, mas não mais de forma unilateral e

unidimensional a partir de uma única racionalidade; mas reconhecendo em cada ação,

seja instrumental, estratégica ou comunicativa, sua racionalidade própria. Assim, não

apenas pensar as mudanças no mundo do trabalho será importante, segundo uma

racionalidade instrumental oriunda da filosofia da consciência, mas também, pensar as

mudanças no contexto do mundo da vida41 (Lebenswelt) com os recursos colocados à

sua disposição, segundo uma razão comunicativa.

41
Cf. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade, p. 416.
CAPÍTULO 3 – SISTEMA E MUNDO DA VIDA

Os desafios que a realidade apresenta não se fixam simplesmente na

busca de entendimento entre o mundo do trabalho e o mundo da vida, ou como

afirmou-se anteriormente, nos contextos dos paradigmas da produção e da

comunicação. Para pensar as mudanças no contexto do mundo da vida utilizando-se

dos seus recursos faz-se necessário ainda, refletir acerca da relação entre sistema e

mundo da vida, pensando em possibilidades de superar mais essa aparente aporia

conceitual.

O instigante questionamento feito por Giannotti, a saber, “se a

tecnologia contemporânea pode criar sóis, não seria ela também capaz de instaurar

novas sociedades? Não caberia resolver nossas vicissitudes por meio duma engenharia

social, de sorte que equacionados os problemas, calcular-se-iam soluções?”42, traz à

baila a perplexidade frente às incoerências por que passa a humanidade, não só ao

longo da sua história, mas mais precisamente na atualidade contemporânea. E o mesmo

prossegue afirmando, “a idéia de revolução, a reconstrução ab ovo duma sociedade, se

cruza, pois, com a idéia de engenharia social, por conseguinte, duma razão tecnológica

42
GIANNOTTI, José Arthur. A sociabilidade travada, p. 50.
34

capaz de divisar os fins duma nova sociedade e de encontrar os meios para sua

implementação.”43

Na mesma linha segue Habermas ao afirmar que “a atualidade

concebe-se recorrentemente como uma passagem para o novo; ela vive na consciência

da transitoriedade dos acontecimentos históricos e na expectativa de outra

configuração de futuro.”44 E, logo após afirmar que a modernidade está abandonada a

si mesma na busca de soluções aos problemas que o passado lhe legou constata:

“Daqui em diante, a atualidade autêntica é o lugar onde se entrelaçam a continuação da

tradição e a inovação.”45

No entanto, antes de se apresentar uma proposta que se queira

inovadora e ao mesmo tempo que se entrelace à tradição na busca de compreender e

explicar a realidade atual de forma autêntica, necessita-se expor, ainda que em linhas

gerais, o que vem a ser sistema e também, mundo da vida.

Segundo Lieber, “a história da teoria de sistemas remonta aos

Sumérios na Mesopotâmia, anterior a 2500 aC., e vai até aos dias atuais nas diferentes

propostas para elaboração e aperfeiçoamento de software. Em todo esse percurso de

quase 5.000 anos é possível identificar-se o mesmo propósito perseguido, resumindo

43
GIANNOTTI, J. A. Idem, ibidem.
44
HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência, p. 103.
45
HABERMAS, Idem, ibidem.
35

os objetivos da teoria de sistemas: O esforço humano para prever o futuro.”46 Segundo

ele ainda, a própria criação do calendário, do ano com 12 meses, dos sistemas de

numeração decimal e hexadecimal, por exemplo, surgiram à medida que se buscou

controlar o tempo, a partir das observações em que se destacou uma regularidade entre

os astros, sendo possível estabelecer uma “ordem, lógica e previsível, ou seja, um

sistema.”47 De uma forma geral, pode-se afirmar que, “sistema é, portanto, uma forma

lógica de apreensão da realidade. Ao se formular sistemas, não se busca um ‘reflexo’

do mundo real, mas sim a descrição ou destaque daqueles ‘traços’ da realidade, cujo

conjunto permite a percepção de uma condição de ordem e a proposição de uma forma

operativa voltada para um dado objetivo.”48

No que concerne, porém, à adaptação social da teoria dos sistemas,

teoria esta proveniente das mais diversas searas do conhecimento humano, desde a

termodinâmica até a biologia49, passando pela cibernética, etc, foi Niklas Luhmann,

seguindo principalmente Talcott Parsons, quem apresentou uma das mais complexas e

sofisticadas teoria dos sistemas sociais, e, que através do debate conceitual entre ele e

Habermas contextualiza o que se quer refletir sobre sistema e mundo da vida.

46
LIEBER, Renato Rocha. Teoria de Sistemas, p. 1.
47
LIEBER, R. R. Idem, ibidem.
48
LIEBER, R. R. Idem, ibidem.
49
Cf. MATHIS, Armin. O conceito de sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, p. 3.
36

Contudo, Luhmann não permanece de todo discutindo os sistemas

sociais seguindo o que vinha sendo afirmado sobre sistemas sociais, ou seja, apenas

numa tendência funcionalista e estruturalista, mas avançando sua concepção de

sistemas sociais a partir da influência dos sistemas autopoiéticos50, ou como afirma

Domingues,

Baseada em uma abordagem sistêmica mais tradicional na primeira fase de sua


carreira teórica, a segunda e última fase da teorização de Luhmann sofreu uma forte
inflexão sob a influência da teoria dos “sistemas autopoiéticos” de Maturana e
Varela. Em lugar de pôr o foco sobre sistemas abertos que interagem com seu meio
ambiente, Luhmann (1984, 1992 e 1997) agora vê os sistemas sociais como auto-
referidos, auto-conduzidos e assim autopoiéticos na medida em que se reproduzem
mediante a recriação de seus próprios elementos. Eles mantêm relações de “input” e
“output” com seu meio, do qual se esforçam por distinguir-se, sustentando uma
identidade definida e exclusiva baseada na redução de possibilidades que são
oferecidas pela situação total em que se encontram inseridos. Não é a ação (vista
como um conceito excessivamente tradicional) que se acha em questão neste
argumento, sendo substituída pela noção de “comunicação”. Lançados em um
mundo prenhe de contingências e tendo que interagir com outros sistemas sem
perder o controle de si mesmos, os sistemas sociais reduzem a complexidade e
recorrem a seus próprios elementos para mudar, permanecendo contudo eles
próprios.51

Conforme relatam Bechmann e Stehr, “sistema, para Luhmann, quer

dizer uma série de eventos relacionados um ao outro, ou de operações. No caso de

seres vivos, por exemplo, esses são processos fisiológicos; no caso de sistemas

50
A palavra grega poíesis, que significa produção, formação, criação, tem na língua portuguesa o
elemento de composição –poese, do qual derivam palavras como “hematopoese, hematopoético,
galactopoese, galactopoético”, mas também, palavras como “poesia, poeta, poética, poético”, ou seja,
com a mesma derivação etimológica, imporia a utilização do termo “autopoese” (e conseqüentemente
“autopoético”) à tradução de autopoiesis. Contudo, com a finalidade de não fomentar qualquer tipo de
ambigüidade no texto, ou melhor, na compreensão do termo, optou-se pela não tradução do termo.
51
DOMINGUES, José Maurício. Criatividade e tendências mestras na teoria sociológica
contemporânea, p. 3.
37

psíquicos, os processos são idéias; e em termos de relações sociais, são comunicações.

Os sistemas se formam ao se distinguirem do ambiente, no qual esses eventos e

operações ocorrem, e que não pode ser integrado a suas estruturas internas.”52

Sem a finalidade última de esgotar a análise acerca da teoria

autopoiética dos sistemas sociais de Luhmann, o que se busca num primeiro momento

é apresentar os seus principais conceitos e posteriormente refletir sobre os mesmos,

priorizando sua análise sobre a sociedade sem, contudo, deixar de realizar tal tarefa em

paralelo com uma reflexão sobre o mundo da vida. Além disso, segundo Luhmann,

“Habermas sempre entendeu que a teoria de sistemas fornece uma descrição adequada

do estado de coisas na sociedade, faltando-lhe, porém, um instrumental teórico para

realizar a transformação dessa sociedade, o qual seria fornecido pela teoria

habermasiana.”53

Luhmann, após manifestar a não univocidade acerca da teoria dos

sistemas e demonstrar suas mais diversas variações em aplicações das mais distintas,

faz uma afirmação no tocante à discrição e não atualização da sociologia e, logo após,

diz que “para obter um panorama é preciso um significativo esforço de abstração,

sendo necessário sobretudo desistir de transpor conhecimentos de uma disciplina a

outros domínios da realidade simplesmente de forma metafórica ou por analogia.”54 E

52
BECHMANN, Gotthard; STEHR, Nico. Niklas Luhmann, p. 190.
53
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna, p. 96.
54
Cf. LUHMANN, Niklas. Por que uma “teoria dos sistemas”?, p. 432.
38

continua sua crítica contra a utilização de analogias argumentando que, “já que, ao

contrário do antigo pensamento europeu, não existe mais um conceito de mundo que,

através de concepções como as de natureza ou criação, pudesse sugerir uma unidade

subjacente do mundo e com isso um continuun de racionalidade, justificando, deste

modo, as analogias.”55 No entanto, o próprio Luhmann realiza essa transposição,

contudo ressalva a possibilidade de utilização de “ofertas teóricas abstratas que não

silenciam sobre sua própria contingência”56 ao longo da história da teoria, ao valer-se

da tese da termodinâmica a respeito da entropia nos sistemas fechados. Apesar do alto

nível de abstração apresentado em sua teoria dos sistemas sociais, a transposição do

conceito de entropia para a sociedade e sua interpretação como desordem do sistema

podem ter conseqüências sérias ao querer analisar a sociedade como um sistema57,

observada através da distinção entre sistema e ambiente (Umwelt). A respeito da

distinção entre sistemas fechados e sistemas abertos Luhmann afirma que,

sistemas fechados tendem à entropia; ou seja, à perda de todas as diferenciações.


Conseqüentemente, o problema jazia em primeiro lugar no esclarecimento da
neguentropia. A questão daí decorrente era a de como a ordem era possível frente a
uma tendência contínua à entropia; e a resposta encontrava-se no conceito dos
sistemas abertos. Sistemas abertos são aqueles que, através de relações de trocas
com seu ambiente, através de input e output, podem manter-se num estado de
ordem complexa.58

55
LUHMANN, N. Por que uma “teoria dos sistemas”?, p. 432.
56
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
57
Cf. FOERSTER, Heinz von. Sui sistemi auto-organizzatori e i loro ambienti, p. 51-69.
58
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
39

No entanto, Luhmann segue o avanço da teoria geral dos sistemas e

realiza algumas mudanças em sua teoria, como afirma Mathis, “uma das mudanças

principais foi a substituição do conceito sistema aberto / fechado pelo conceito de

autopoiesis. Autopoiesis significa que um sistema complexo reproduz os seus

elementos e suas estruturas dentro de um processo operacionalmente fechado com

ajuda dos seus próprios elementos.”59 Acerca da introdução do conceito de autopoiesis,

que trouxe uma nova visão sobre a relação entre sistema e ambiente, Luhmann e De

Giorgi fazem a seguinte consideração:

Neste nível da discussão um momento novo constituiu-se da contribuição de


Humberto Maturana, que elaborou o conceito de autopoiesis. Sistemas
autopoiéticos são sistemas que produzem eles mesmos não somente as suas
estruturas, mas também os elementos dos quais eles são compostos, próprio na rede
destes elementos. Os elementos – sobre o plano temporal são operações – dos quais
os sistemas autopoiéticos são constituídos, não têm uma existência independente:
não se encontram simplesmente; não vêm simplesmente coligados. Eles vêm ao
contrário produzidos no sistema, e exatamente pelo fato que (qualquer que seja a
base energética ou material) vêm utilizados como distinções. Os elementos são
informações, são distinções que fazem diferença no sistema. E neste sentido são
unidades de uso para a produção de unidade de uso, pelas quais no ambiente não há
correspondência. 60

59
MATHIS, A. Idem, ibidem.
60
“A questo livello della discussione un momento nuovo è costituito dal contributo di Humberto
Maturana, che ha elaborato il concetto di autopoiesi. Sistemi autopoietici sono sistemi che producono
essi stessi non soltanto le loro strutture, ma anche gli elementi dei quali essi sono composti, proprio
nella rete di questi elementi. Gli elementi – sul piano temporale sono operazioni – dei quali i sistemi
autopoietici sono costituiti, non hanno una esistenza indipendente: non si incontrano semplicemente;
non vengono semplicemente collegati. Essi vengono piuttosto prodotti nel sistema, ed esattamente per
il fatto che (qualunque sai la base energetica o materiale) vengono utilizzati come distinzioni. Gli
elementi sono informazioni, sono distinzioni che fanno differenza nel sistema. E in questo senso sono
unità d’uso per la produzione di unità d’uso, per le quali nell’ambiente non c’è corrispondenza.” Cf.
LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della società, p. 21. A tradução livre é nossa.
40

Mas mesmo essa substituição não o exime da crítica daqueles que,

como por exemplo Maturana e Varela, afirmam que o conceito de autopoiesis deve

referir-se apenas a sistemas vivos. Beyme descrevendo mais detidamente sobre a

evolução e avanços da teoria geral dos sistemas e sobretudo à posição de Maturana e

Varela afirma o seguinte:

Em contraste com a teoria de sistemas funcionalista de cunho antigo, Maturana e


Varela sublinharam que as finalidades, os objetivos e as funções dos sistemas vivos
só existem na imaginação do observador. As funções não têm nenhum valor
explicativo no âmbito dos fenômenos, posto que não atuam como elementos
causais na reformulação de um fenômeno qualquer. Conseqüentemente, o
prognóstico do estado futuro do sistema não é considerado mais que como a
“antecipação de um dos estados sucessivos da máquina na consciência de um
observador”.
A autopoiesis se caracteriza na complementaridade de estrutura e função, de
estabilidade e instabilidade. A autoprodução e a auto-renovação dos sistemas
autopoiéticos leva-se a cabo em uma dinâmica que parece estável e que, não
obstante, não chega nunca a deter-se. 61

Prosseguindo em sua descrição sobre o que pensam os pensadores da

segunda geração da teoria geral dos sistemas a respeito da utilização do conceito de

autopoiesis e sua aplicação política e social Beyme escreve o que segue:

61
“En contraste con la teoria de sistemas funcionalista de cuño antiguo, Maturana y Varela (1985: 190)
subrayaron que las finalidades, los objetivos y las funciones de los sistemas vivos sólo existen en la
imaginación del observador. Las funciones no tienen ningún valor explicativo en el ámbito de los
fenómenos, puesto que no actúan como elementos causales en la reformulación de un fenómeno
cualquiera. Consecuentemente, el pronóstico del estado futuro del sistema no es considerado más que
como la ‘anticipación de uno de los estados sucesivos de la máquina en la conciencia de un
observador’.
La autopoiesis se caracteriza en la complementariedad de estructura y función, de estabilidad e
inestabilidad. La autoproducción y la autorrenovación de los sistemas autopoiéticos se lleva a cabo en
una dinámica que parece estable y que, sin embargo, no llega nunca a detenerse.” Cf. BEYME, Klaus
von. Teoría política del siglo XX – De la modernidad a la postmodernidad, p. 205. A tradução livre é
nossa.
41

A segunda geração de teóricos dos sistemas auto-organizados se voltou mais cética


com respeito à aplicação de seus conceitos à política e à sociedade do que haviam
sido os pais fundadores em seu entusiasmo de descobridores. Em grande medida,
há acordo em que só pode denominar-se autopoiéticos aos sistemas vivos.
Ocasionalmente, também se tratou em termos autopoiéticos a partes dos sistemas
vivos. Ainda que o cérebro do homem seja auto-referencial, posto que seus estados
estão organizados circularmente, não é contudo um sistema autopoiético, posto que
não produz ele mesmo seus componentes, quer dizer, os neurônios.
As antigas analogias de cérebro e sistema nervoso no modelo cibernético todavia
atribuíam a estes componentes do sistema uma importância unilateralmente
exagerada.
A categoria epistemológica dos sistemas é debatida. Luhmann partia de que seus
sistemas não eram unicamente construções do observador. Também Maturana se
inclinava a este essencialismo. Varela, pelo contrário, sentia-se perspectivista. Os
traços dos sistemas autopoiéticos foram considerados características da observação
de sistemas. Se propôs como solução levar a analogia unicamente até o princípio de
auto-referencialidade. Muitos subsistemas do sistema social, sobretudo os do
direito, da ciência e da religião, se caracterizam pela circularidade de seu código.
Pelo contrário, nas ciências sociais se poderia renunciar a todos os elementos
teóricos da autopoiesis biológica que aceitavam a autoprodução. Não obstante, os
enfoques derivados da teoria de catástrofes, aplicados à investigação de revoluções,
também sublinham a autoprodução dos sistemas políticos. Finalmente, também
parece de todo ponto insustentável a translação aos sistemas sociais da
característica de auto-reprodução, da qual, em todo caso, só pode falar-se em
sentido metafórico. Estabeleceram-se objeções de peso à exportação da
terminologia autopoiética desde a biologia às ciências sociais:
- Os sistemas sociais não geram os sistemas vivos que constituem os sistemas
sociais. Para citar um exemplo popular: um time de futebol não gera seus
jogadores.
- Os sistemas autoconservados podem ser sistemas sem cérebro. Os sistemas
sociais não são controlados por uma espécie de super cérebro, como esperou em
tempos a utopia cibernética. Não obstante, tem lugar neles uma espécie de
coordenação que não tem comparação em todos os sistemas vivos. A cooperação de
muitos cérebros em uma sociedade não foi, contudo, interpretada em uma teoria
plausível, se não se considera suficiente diluir esta cooperação em “comunicação”.
- Os sistemas humanos constituem uma pluralidade de sistemas sociais ao
mesmo tempo. Sua cooperação apenas foi resolvida teoricamente, como mostra o
debate em torno ao sistema mundial em relação com as sociedades nacionais.
Todos os componentes dos sistemas sociais têm um acesso direto ao ambiente do
sistema em questão, muito diferente dos elementos integrantes dos sistemas
biológicos. 62

62
“La segunda generación de teóricos de los sistemas autoorganizados se ha vuelto más escéptica
respecto a la aplicación de sus conceptos a la política y a la sociedad de lo que habían sido los padres
fundadores en su entusiasmo de descubridores. En gran medida, hay acuerdo en que sólo puede
denominarse autopoiéticos a los sistemas vivos. Ocasionalmente, también se ha tratado en términos
autopoiéticos a partes de los sistemas vivos. Aunque el cerebro del hombre es autorreferencial, puesto
42

Os sistemas sociais para Luhmann são uma forma de reduzir a

complexidade do mundo, e em função desse reducionismo é que se vê uma ampla

utilização da abstração por parte dele, com suas conseqüentes conceitualizações para

explicar o que ele chama de sistemas sociais. Segundo Mathis, “a complexidade do

mundo é sempre maior do que a complexidade de um sistema, que por outro lado,

precisa de um grau de complexidade que lhe permita a redução da complexidade no

seu meio. Para sistemas sociais a redução da complexidade do mundo se traduz no

que sus estados están organizados circularmente, no es sin embargo un sistema autopoiético, puesto
que no produce él mesmo sus componentes, es decir, las neuronas (Roth 1986: 177). Las antiguas
analogías de cerebro y sistema nervioso en el modelo cibernético todavía atribuían a estos
componentes del sistema una importancia unilateralmente exagerada.
El rango epistemológico de los sistemas es debatido. Luhmann partía de que sus sistemas no eran
únicamente constructos del observador. También Maturana se inclinaba a este esencialismo. Varela
(1979: 53 y ss), por el contrario, se sentía perspectivista. Los rasgos de los sistemas autopoiéticos
fueron considerados características de la observación de sistemas. Se propuso como solución llevar la
analogia únicamente hasta el principio de autorreferencialidad. Muchos subsistemas del sistema
social, sobre todo los del derecho, la ciencia y la religión, se caracterizan por la circularidad de su
código. Por el contrario, en las ciencias sociales se podría renunciar a todos los elementos teóricos de
la autopoiesis biológica que aceptaban la autoprodución (Roth 1987: 283). Sin embargo, los enfoques
derivados de la teoría de catástrofes, aplicados a la investigación de revoluciones, también subrayan la
autoproducción de los sistemas políticos. Finalmente, también parece de todo punto insostenible la
traslación a los sistemas sociales de la característica de autorreproducción, de la que, en todo caso,
sólo puede hablarse en sentido metafórico. Se han planteado objeciones de peso a la exportación de la
terminologia autopoiética desde la biología a las ciencias sociales:
- Los sistemas sociales no generan los sistemas vivos que constituyen los sistemas sociales. Por citar
un ejemplo popular: un equipo de fútbol no genera sus jogadores.
- Los sistemas automantenidos pueden ser sistemas sin cerebro. Los sistemas sociales no son
controlados por una especie de supercerebro, como esperó en tiempos la utopía cibernética (cfr.
cap. I.3.d). No obstante, tiene lugar en ellos una especie de coordinación que no tiene parangón en
todos los sistemas vivos. La cooperación de muchos cerebros en una sociedad no ha sido, sin
embargo, interpretada en una teoria plausible, si no se considera suficiente diluir esta cooperación
en “comunicación”.
- Los sistemas humanos constituyen una pluralidad de sistemas sociales al mismo tiempo. Su
cooperación apenas ha sido resuelta teóricamente, como muestra el debate en torno al sistema
mundial en relación con las sociedades nacionales (cap. II.3.d).
Todos los componentes de los sistemas sociales tienen un acesso directo ao entorno del sistema en
cuestión, muy a diferencia de los elementos integrantes de los sistemas biológicos.” Cf. BEYME, K.
Teoría política del siglo XX – De la modernidad a la postmodernidad, p. 216. A tradução livre é nossa.
43

problema de como enfrentar a dupla contingência.”63 Para Luhmann, “na teoria dos

sistemas sociais o teorema da dupla contingência cumpre esta função”64, ou seja,

“oferecer uma interpretação passível de ser aplicada autologicamente; isto é, à própria

teoria dos sistemas.”65 Segundo a explicação do próprio Luhmann, “numa contingência

de dupla posição (Zwei-Stellen Kontingenz) aquilo que se constitui como sistema

torna-se capaz de auto-restrição. Chamemos as duas posições de Ego e Alter. Torna-se

então claro que aquilo que Ego dá a conhecer como expectativa, restringe o intervalo

de liberdade de Alter. A própria restrição permanece contingente, não sendo preciso

chegar à formação de um sistema. Mas se chegar a formar um sistema, este estará

capacitado para a auto-restrição, delimitando-se assim frente a um ambiente.”66

Mathis afirma que “a existência e o relacionamento das contingências

dos diversos sistemas ao seu redor constitui para o sistema focal a complexidade do

seu meio. Para poder enfrentar essa complexidade no seu meio, o sistema é obrigado a

corresponder com a elaboração de estruturas complexas, que por sua vez, podem

aumentar a contingência do sistema e assim iniciar um processo evolutivo.”67

Contudo, o entendimento sobre como para a teoria dos sistemas ocorre

esse processo evolutivo torna-se mais claro, sobretudo, à medida que se compreende

63
MATHIS, A. Idem, p. 5.
64
LUHMANN, N. Por que uma “teoria dos sistemas”?, p. 431.
65
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
66
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
67
MATHIS, A. Idem, p. 6.
44

como se desenvolveu o entendimento acerca do que são sistemas, mais que isso, acerca

da evolução da própria teoria dos sistemas. Demonstrando o desenvolvimento dessa

evolução Luhmann afirma que “permanecia contudo não esclarecido o que são

realmente os sistemas, de modo a terem a capacidade de se manterem a si próprios

através de relações de trocas com seu ambiente e de se transformarem em input e

output.”68 Segue apresentando desde como o funcionalismo, ou melhor, o estrutural-

funcionalismo, respondia a isso através de “fórmulas como manutenção dos limites

(boundary maintenance) ou com a designação dos ‘structural prerequisites’ da

conservação dos sistemas”69, até a aceitação por parte daqueles mais próximos à

cibernética do conceito de “black box”. Desistindo-se assim de esclarecer o modo de

funcionamento interno dos sistemas formou-se uma lacuna teórica que possibilitou

posteriormente o desenvolvimento do que Luhmann chamou de “um ‘attractor’

evolucionário”70 em relação a conceitos auto-referentes e, que “vale acima de tudo para

a teoria dos sistemas que se auto-organizam, que constroem e alteram suas próprias

estruturas com suas próprias operações e que, neste sentido, são ‘autônomos’; mas que,

como mostrou principalmente Ashby, depende de um ambiente que forneça os pontos

de referência para o autocondicionamento.”71

68
LUHMANN, N. Idem, p. 432.
69
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
70
LUHMANN, N. Idem, p. 433.
71
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
45

No sentido de demonstrar a relação existente entre ambiente e sistema,

e conseqüentemente, a partir da distinção entre ambos, Luhmann e De Giorgi afirmam

o seguinte no tocante ao significado de evolução para a teoria dos sistemas:

... a teoria dos sistemas não se ocupa de um particular tipo de objetos; ela usa uma
determinada distinção, isto é, a distinção entre sistema e ambiente. Na perspectiva
da teoria dos sistemas, evolução não significa outro se não que: as transformações
da estrutura, uma vez que podem ser efetuadas só ao interno do sistema (em modo
autopoiético), não se produzem à discrição do sistema, mas devem afirmar-se em
um ambiente que o sistema mesmo não pode sondar, em todo caso não pode incluir
em si através de uma planificação. A diversificação evolutiva e o incremento dos
sistemas é ao mesmo tempo uma diversificação e um incremento do ambiente. Só a
diferença entre sistema e ambiente torna possível a evolução. Em outros termos:
nenhum sistema pode evoluir a partir de si. Se o ambiente não evoluísse sempre de
modo diverso do sistema, a evolução teria rapidamente fim em um “optimal fit”.
Primeiro de tudo, porém, é considerar que a diferença entre sistema e ambiente dá a
toda transformação um efeito de multiplicação. Ela transforma um sistema e com
isto, ao mesmo tempo, o ambiente (relevante ou irrelevante) dos outros sistemas.
Toda transformação, então, ativa com grande probabilidade uma multiplicidade de
série de efeitos que, contemporaneamente, e portanto independentemente um do
outro produzem efeitos, pelos quais pois, vale o mesmo princípio.72

Todavia, para se compreender melhor a relação existente entre sistema

e ambiente Luhmann apresenta o que ele chama de uma nova trindade conceitual, ou

72
“... la teoria dei sistemi non si occupa di un particolare tipo di oggetti; essa usa una determinata
distinzione, cioè la distinzione tra sistema e ambiente. Nella prospettiva della teoria dei sistemi,
evoluzione non significa altro se non che: le trasformazioni della struttura, poiché possono essere
effettuate solo all’interno del sistema (in modo autopoietico), non si producono a discrezione del
sistema, ma devono affermarsi in un ambiente che il sistema stesso non può sondare, in ogni caso non
può includere in sé attraverso una pianificazione. La diversificazione evolutiva e l’incremento dei
sistemi è allo steso tempo una diversificazione e un incremento degli ambiente. Solo la differenza tra
sistema e ambiente rende possibile l’evoluzione. In altri termini: nessun sistema può evolvere a partire
da sé. Se l’ambiente non evolvesse sempre in modo diverso dal sistema, l’evoluzione avrebbe
rapidamente fine in un “optimal fit”. Prima di tutto, però, è da considerare che la differenza tra sistema
e ambiente dà ad ogni trasformazione un effetto di moltiplicazione. Essa trasforma un sistema e con
questo, allo stesso tempo, l’ambiente (rilevante o irrelevante) degli altri sistemi. Ogni trasformazione,
allora, attiva con grande probabilità una molteplicità di serie di effetti che, contemporaneamente, e
quindi indipendentemente l’uno dall’altro producono effetti, per i quali poi, vale lo stesso principio.”
Cf. LUHMANN, N.; DE GIORGI, R. Teoria della società, p. 177. A tradução livre é nossa.
46

seja, “a tríade de Autopoíesis, ‘fechamento operacional’ e ‘retroalimentação estrutural’

de sistemas auto-referenciais.”73 Segundo ele ainda,

o conceito de autopoíesis desloca o princípio de auto-referência do nível estrutural


para o operativo. De acordo com ele um sistema é constituído por elementos
autoproduzidos – e por nada mais. Tudo o que opera no sistema como unidade
mesmo que seja um último elemento, não mais passível de ser decomposto – é
produzido no próprio sistema através da rede de tais elementos. Isto tem, como
conseqüência lógica, a tese de um fechamento operacional de tais sistemas. O
ambiente não pode contribuir para nenhuma operação de reprodução do sistema. O
sistema, obviamente, também não pode operar no seu ambiente. Conseqüentemente
o sistema não pode – e isso, apesar de ser uma conseqüência lógica, surge como
algo um pouco surpreendente – utilizar suas próprias operações para estabelecer
contatos com seu ambiente. Todas as operações do sistema são operações
exclusivamente internas.74

Visando esclarecer como se inter-relacionam estes conceitos Teubner

afirma que “a idéia de auto-referência e autopoiesis pressupõe que os pilares ou bases

do funcionamento dos sistemas residem, não nas condições exógenas impostas pelo

meio envolvente às quais tenham de se adaptar da melhor forma possível (como era

entendido pela teoria dos sistemas abertos), mas afinal no próprio seio

sistémico[sic].”75 Ademais, segundo ele, em sistemas noéticos, ou de “sentido”, as

bases sobre as quais se assentam a funcionalidade dos sistemas não ficam tão evidentes

e tampouco são de fácil apreensão quanto à comparação em relação às bases

moleculares e bioquímicas nos sistemas vivos. E ainda acrescenta que, “a clausura

auto-referencial de um sistema parece ocorrer sempre que complexos processos

73
LUHMANN, N. Por que uma “teoria dos sistemas”?, p. 433.
74
LUHMANN, N. Idem, p. 434.
75
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético, p. 32.
47

sistémicos[sic] conduzem, de uma forma hiper-cíclica ou de uma forma ultra-cíclica, à

produção das suas próprias condições originárias de produção, tornando-se desse modo

independentes do respectivo meio envolvente.”76 Sendo assim, para ele, “auto-

referencialidade e clausura organizacional (‘organizational closure’, ‘selbstreferentielle

Geschlossenheit’) significam assim uma e a mesma coisa: o caráter fechado, circular e

recursivo da organização dos processos auto-reprodutivos de um sistema.”77

No entanto, resta ainda esclarecer de forma mais detida a diferença

entre sistema e ambiente a partir da introdução do conceito de “retroalimentação

estrutural”, sem o qual teríamos que pensar a relação entre sistema e ambiente como

sendo fruto lógico da auto-referência de um “si-mesmo” (Selbst), o que não seria

possível, visto que não se poderia nem mesmo designá-lo “se não existisse nada mais

além deste ‘si-mesmo’”78. Conforme afirma Luhmann,

a teoria dos sistemas autopoiéticos constrói, por essa razão, o conceito de


“retroalimentação estrutural” para indicar que e como cada tipo de relação ao
ambiente é compatível com a autopoíesis e com o fechamento operativo. Nem o
conceito de produção (poíesis), nem o conceito de fechamento operacional
estabelecem qualquer enunciado causal. Eles não implicam que todas as causas
necessárias para o êxito do sistema (e isso significaria, em última análise, o mundo
inteiro) precisam estar reunidas no próprio sistema. Eles se referem somente à
constituição e preservação daquela unidade, da qual um observador possa então
dizer que ela depende de determinadas causas e possui determinados efeitos.79

76
TEUBNER, G. Idem, ibidem.
77
TEUBNER, G. Idem, p. 33.
78
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
79
LUHMANN, N. Idem, ibidem. Os grifos são nossos.
48

Sem isso, no entender de Luhmann, “conceitos como dependência ou

independência também perderiam sua referência.”80 Para ele, “fala-se de

‘retroalimentação estrutural’ para designar que, e como, dependências em relação ao

ambiente são compatíveis com auto-reprodução autopoiética. Já que o ambiente não

contribui para nenhuma operação do sistema (uma vez que neste caso as realizações

correspondentes não seriam as do ambiente, mas aquelas do próprio sistema), mas

pode prejudicar, irritar ou, como diz Maturana, perturbar as operações do sistema

quando (e somente quando) os efeitos do ambiente aparecem no sistema como

informação e podem ser processados nele como tal.”81

Por conseguinte, derivam-se assim as conseqüências epistemológicas

da teoria dos sistemas auto-referenciais e com isso a diferença entre sistema e ambiente

se dá também com relação aos sistemas cognitivos, sistemas esses que para Luhmann

são processadores de informação e produtores de conhecimento, e nesse contexto, a

linguagem desempenha um papel relevante ao excluir em grande parte a possibilidade

de confusão entre sistema e ambiente. Segundo o próprio Luhmann, “o sistema nunca

chegaria a construir sua própria complexidade e seu próprio saber se se confundisse

continuamente com o ambiente. Mas já a linguagem exclui essa possibilidade quase

com certeza: quase nunca se cai na tentação de confundir a palavra ‘maçã’ com uma

80
LUHMANN, N. Idem, p. 435.
81
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
49

maçã.”82 E continua, ao afirmar que, “dependente de operações internas o sistema

precisa, por esta razão, poder diferenciar no âmbito interno (aonde mais?) entre auto-

referência e referência externa. Somente com esta condição tornar-se-á capaz de operar

de modo cognitivo.”83

À análise da estrutura da consciência, formulada por Husserl para o

sujeito transcendental a partir da fenomenologia, Luhmann acrescenta que tal

especificidade não se trata apenas da consciência, mas também aparece em todas as

comunicações, no caso dos sistemas sociais. No seu entender, a concepção da

fenomenologia “era a de que a consciência sempre se refere simultaneamente a si

própria e a fenômenos. Nenhuma dessas duas referências pode ser deixada de lado,

sem que a consciência perca sua qualidade de consciência. A forma-ação da

intencionalidade é então aquele momento que permite uma ligação de auto-referência

(nóesis) e referência externa (nóema); e isso numa forma processual, temporal, de tal

modo que a consciência pode oscilar entre entrega ao mundo (Hingabe an die Welt) e

reflexão e estabelecer e deslocar ênfases.”84 Ao passo que, “também no modo de

operar da comunicação a auto-referência e a referência externa atuam contínua e

necessariamente juntas. Só é possível entender a comunicação, e ela mesma só pode

controlar em relação a entendimento ou a mal-entendidos, quando se pode diferenciar

entre mensagem (Mitteilung) e informação, ou seja, novamente auto-referência e

82
LUHMANN, N. Idem, p. 437.
83
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
84
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
50

referência externa, e ligá-las no uso de forma ad hoc.”85 E complementa, “a mensagem

é a auto-referência necessária da comunicação; o componente da informação é, ao

contrário, livre para designar seja a própria comunicação, sejam circunstâncias

externas.”86

Desta forma, têm-se um panorama geral acerca dos principais

conceitos e categorias da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann,

sem que houvesse um esgotamento de sua análise a partir de pormenores, visto que os

lineamentos então obtidos possibilitam não apenas a crítica, mas também a

continuidade da reflexão. Desta feita, vale destacar alguns pontos antes que se mude o

foco para o mundo da vida, contudo levando-se em conta o que já foi visto.

De acordo com Bechmann e Steher, “Luhmann introduz três premissas

em sua análise da sociedade que produziram não apenas críticas vigorosas, mas

também muita incompreensão, a ponto de ser acusado de ter um pensamento anti-

humanista e cínico: 1. A sociedade não consiste de pessoas. Pessoas pertencem ao

ambiente da sociedade. 2. A sociedade é um sistema autopoiético que consiste de

comunicação e mais nada. 3. A sociedade só pode ser adequadamente entendida como

sociedade mundial.”87

85
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
86
LUHMANN, N. Idem, ibidem.
87
BECHMANN, G.; STEHR, N. Niklas Luhmann, p. 193.
51

Somando-se a isso, Siebeneichler afirma que Luhmann “lança fora

definitivamente a ‘razão’ e o seu oposto, a ‘dominação’, bem como a idéia de

emancipação, com o argumento de que esses conceitos não servem mais para nada, não

são funcionais no atual sistema de sistemas. No seu lugar entra a relação funcional

universal entre sistema e mundo circundante, tida como a única capaz de reduzir a

complexidade do mundo.”88 E complementa dizendo, “parece que a teoria do sistema

não cumpre o que promete, isto é, não fornece ajuda quando se trata da escolha de

possibilidades, nem desmonta a complexidade do mundo. Ela fornece apenas um

pseudo-alívio para a complexidade do indivíduo, que não decide por si mesmo, uma

vez que o sistema já decide preliminarmente em nome dele.”89

Tal postura, a priori, anti-humanista da teoria dos sistemas de

Luhmann confronta-se diretamente com a postura crítica de Habermas, principalmente

a partir do momento em que este último denuncia a possibilidade de colonização do

mundo da vida por parte de uma visão unicamente sistêmica, tendo-se como

conseqüências prováveis o aumento da manipulação da tradição cultural com base em

exigências de direção e controle, chegando-se assim à neutralização da história.

Segundo Habermas, “Luhmann afirma que as sociedades complexas não são mais

capazes de produzir identidade através da consciência dos membros de seu sistema. A

intersubjetividade do conhecimento, da experimentação e da ação num mundo da vida

88
SIEBENEICHLER, Flávio Beno. A Sociedade como Mundo da Vida e como Sistema – Um
confronto entre J. Habermas e N. Luhmann, p. 38.
89
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, p. 39.
52

social – intersubjetividade produzida através de sistemas simbólicos de interpretação e

de valor – tem uma capacidade muito reduzida para articular entre si os carecimentos

de direção e de controle que são próprios de sistemas parciais altamente

diferenciados.”90 E Habermas dá seqüência à sua crítica ao demonstrar como Luhmann

pensa acerca da relação entre a sociedade e os indivíduos, sem que haja a necessidade

de nenhum sujeito para se manter a unidade de um sistema, ou seja, “a identidade da

sociedade mundial – esta é a tese – só pode ter lugar no plano da integração do

sistema, ou seja, no sentido de que os sistemas parciais altamente diferenciados

representem ambientes reciprocamente adequados, e não mais no plano da integração

social. A realidade sistêmica da sociedade foi, por assim dizer, posta além da

intersubjetividade de um mundo de vida povoado por indivíduos socializados. Os

indivíduos pertencem agora ao ambiente que circunda seu sistema social. A sociedade

adquire em face deles uma objetividade que, não mais se referindo à subjetividade, já

não se deixa recuperar por uma conexão intersubjetiva de vida.”91

Conseqüentemente a isso, Habermas demostra como ocorre o processo

de des-humanização da sociedade a partir do pensamento objetivante da teoria

sistêmica e em função disso, da perda do terreno da intersubjetividade, afirma como

“no curso da desmitologização das imagens do mundo, a esfera da natureza foi

dessocializada e tornou-se livre objeto do pensamento objetivante; esse processo

90
HABERMAS, Jürgen. Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 95.
91
HABERMAS, J. Idem, ibidem.
53

prosseguiria agora na forma de uma des-humanização da sociedade, de modo que –

numa segunda onda de objetivação – esta é alienada do mundo compreensível, mas não

para cair sob o pensamento objetivante, e sim para atribuir aos sujeitos a posição de

ambientes sistêmicos. Porém, tão logo os indivíduos e sua sociedade passam a manter

entre si uma relação recíproca de sistema e ambiente, desaparece o terreno que pode

tornar possível aquela articulação entre identidade do Eu e identidade de grupo, na qual

se expressam estruturas complementares de intersubjetividade.”92

Segundo Habermas, essa auto-objetivação de uma sociedade

desumanizada agora não só toma o lugar da consciência histórica, que passa então a

ser silenciada, mas também supera o objetivismo diante de uma natureza

dessocializada da qual se ocupa a Dialética do iluminismo de Horkheimer e Adorno.

Assim, tal sociedade desumanizada “não apenas se autonomiza enquanto sistema com

relação aos indivíduos, mas termina por se estabelecer fora do mundo habitável por

indivíduos.”93

Não obstante, Habermas acrescenta que, “por outro lado, as estruturas

do mundo da vida devem ser encaradas como elementos constituintes de um sistema

social e como algo que faz parte – enquanto delimitações – da análise sistêmica dos

problemas de direção e controle. Uma teoria dos sistemas ensandecida, que negligencia

92
HABERMAS, J. Idem, p. 96.
93
HABERMAS, J. Idem, p. 97.
54

tal questão, torna-se vítima da dialética inserida no aumento da complexidade dos

sistemas, dialética que mataria a sociedade no ato mesmo de desenvolver-lhe a vida no

sentido da evolução. Com efeito, de acordo com os critérios de uma vida social que

realiza suas individualizações através da socialização, uma sociedade separada dos

seus membros por relações sistema-ambiente seria uma sociedade morta.”94

De forma semelhante, Domingues ao analisar a ambição da teoria

luhmanniana em explicar a sociedade a partir de um estruturalismo funcional

radicalmente sistêmico afirma que “seu descartar integral dos atores individuais e de

qualquer tipo de agência significa que se a sociologia luhmanniana deve reter a sua

vitalidade após a morte de seu fundador, ela terá de seguir seu caminho sozinha, ao

menos no futuro previsível”95.

A aproximação de Luhmann com o pensamento filosófico husserliano,

isto é, da fenomenologia, não garantiu a Luhmann a mesma visão sobre o mundo da

vida que tinha Husserl e posteriormente Habermas. Segundo Beyme, o mundo da vida

para Luhmann não é mais que um aspecto, não merecendo assim qualquer defesa

normativa de sua parte; ao passo que mesmo que a evolução dos sistemas traga em si

contradições e rupturas, ele já não as critica. Nesse sentido, Beyme afirma que “muitas

vezes se denominou Luhmann como continuador da tradição do hegelianismo de

94
HABERMAS, J. Idem, p. 98.
95
DOMINGUES, J. M. Criatividade e tendências mestras na teoria sociológica contemporânea, p. 7.
55

direita. Provavelmente, de Hegel lhe atraía sobretudo sua compreensiva ambição

teórica. Parece muito mais forte seu vínculo com a fenomenologia de Husserl. Neste

aspecto podem descobrir-se paralelismos com Habermas, em cujo desenvolvimento

teórico também é evidente a vinculação da tradição filosófica alemã com a

investigação norte-americana de sistemas.”96

Beyme traça ainda um perfil de Luhmann ao afirmar como este

realizou suas pesquisas e construiu sua teoria, e conseqüentemente qual foi o preço

pago por tal escolha, ou seja, colocando a comunicação como unidade elementar de

autoconstrução dos sistemas no lugar que antes era ocupado pela ação no, segundo sua

concepção, velho paradigma. Dessa forma, tudo o que ocorre no sistema aparece como

gerado e controlado interiormente, ainda que elementos do controle interno tenham sua

origem fora do sistema, tendo assim que adequar-se à circularidade interna a partir do

momento em que são redefinidos como meras comunicações. Segundo ele, Luhmann

“no plano empírico se ocupou de dados autoproduzidos, no teórico com clássicos

autoproduzidos e se mostrou incapaz de aprender no contexto interdisciplinar. A

capacidade de aprendizagem de Luhmann, pelo contrário, superou consideravelmente a

mera importação de conceitos desde a biologia. Luhmann os interpretou de modo

96
“Muchas veces se ha denominado a Luhmann continuador de la tradición del hegelianismo de
derechas (Spaemann 1990: 64). Probablemente, de Hegel le atraía sobre todo su comprehensiva
ambición teórica. Parece mucho más fuerte su vínculo con la fenomenología de Husserl. En este
aspecto pueden descubrirse paralelismos con Habermas, en cuyo desarrollo teórico también es evidente
la vinculación de la tradición filosófica alemana con la investigación norteamericana de sistemas.” Cf.
BEYME, K. Teoría política del siglo XX – De la modernidad a la postmodernidad, p. 227. A tradução
livre é nossa.
56

peculiar e levou a novas e surpreendentes associações. O preço de tanta originalidade

foi contudo elevado: teve como conseqüência a sobregeneralização, a confusão de

planos e novas coisificações. Seus sistemas autopoiéticos se expuseram à suspeita de

haver sido definidos de forma conscientemente inaplicável e não operacionalizável.”97

A análise da arquitetônica sistêmica luhmanianna segue, contudo, a

partir do que afirma Ingram ao demonstrar como Luhmann ao observar o mundo e os

desafios peculiares que este apresenta ao sistema social é obrigado a reconhecer que os

mesmos não são simplesmente dados, mas sobretudo, aparecem seletivamente pré-

interpretados com relação a faixas de possível significação, isto é, a sobrevivência de

uma sociedade depende não apenas da sobrevivência biológica, mas também da

preservação de padrões de interação social a que se atribui valor cultural. Desta forma,

conforme Ingram salienta, “o modelo de Luhmann pressupõe que os problemas

relacionados com a complexidade do sistema podem ser especificados

independentemente das estruturas sociais, como se fossem fatos objetivos aos quais

estas últimas precisam se ajustar. Contudo, os problemas enfrentados pelas sociedades

97
“En el plano empírico se había ocupado de datos autoproducidos, en el teórico con clásicos
autoproducidos y se había mostrado incapaz de aprender en el contexto interdisciplinario. La
capacidad de aprendizaje de Luhmann, por el contrario, superó considerablemente la mera importación
de conceptos desda la biología. Luhmann los interpretó de modo peculiar y llevó a nuevas y
sorprendentes asociaciones. El precio de tanta originalidad fue sin embargo elevado: tuvo como
consecuencia la sobregeneralización, la confusión de planos y nuevas cosificaciones. Sus sistemas
autopoiéticos se expusieron a la sospecha de haber sido definidos de forma conscientemente
inaplicable y no operacionalizable (Bühl 1987: 229).” Cf. BEYME, K. Teoría política del siglo XX –
De la modernidad a la postmodernidad, p. 228. A tradução livre é nossa.
57

complexas não podem ser identificados objetivamente em termos da mera

sobrevivência biológica.”98

Além disso, a crítica de Habermas ao modelo de Luhmann é

apresentada por Ingram quando o primeiro afirma que neste modelo “é impossível

dizer ‘quando uma expansão das possibilidades alternativas de ação, ao custo da

desestruturação (processos de iluminação), é funcional, e quando a ‘estruturificação’

de certas decisões, ao custo da contração do horizonte de possibilidades (como no caso

da dogmatização), é funcional’”99. E Ingram salienta mais adiante que “Habermas nos

lembra que os valores culturais ‘servem não só para orientar os sistemas sociais mas

funcionam também dentro do sistema para objetivos que não estão nele refletidos’.

Esses objetivos dizem respeito a interesses emancipatórios que, não podendo

expressar-se autenticamente em valores institucionalizados, estão, contudo, implícitos

nos estados-meta preferidos do sistema, juntamente com os requisitos não-normativos

da integração do sistema.”100

Contudo, a crítica habermasiana à teoria dos sistemas de Luhmann

intensifica-se à medida em que esta última, no entender de Habermas, apropria-se da

herança da filosofia do sujeito. Segundo Habermas, “essa teoria dos sistemas não

conduz a sociologia ao caminho seguro da ciência; pelo contrário, apresenta-se como a

98
INGRAM, David. Habermas e a dialética da razão, p. 181.
99
INGRAM, D. Idem, ibidem.
100
INGRAM, D. Idem, p. 182.
58

sucessora de uma filosofia dispensada. Pretende herdar os conceitos fundamentais e os

questionamentos da filosofia do sujeito e, ao mesmo tempo, suplantar sua capacidade

de resolver problemas. Para tanto, efetua uma mudança de perspectiva que torna inútil

a autocrítica de uma modernidade em conflito consigo mesma. Aplicada sobre si

mesma, a teoria sistêmica da sociedade não pode senão adotar uma atitude afirmativa

com respeito à crescente complexidade das sociedades modernas.”101 Após demonstrar

a substituição de conceitos realizada pela teoria sistêmica, que conserva figuras de

pensamento da filosofia da consciência, e suas conseqüências reveladoras, Habermas

afirma que “nem a relação sujeito-objeto nem a relação sistema-mundo circundante

oferecem ligações conceituais com a intersubjetividade lingüística genuína do

consenso e do sentido comunicativamente compartilhado.”102 Tal permanência da

teoria sistêmica no âmbito da filosofia do sujeito leva Habermas a concluir que sob

esse aspecto “é o próprio mundo da vida que deve ser apropriado em uma perspectiva

de auto-objetivação, de modo que tudo aquilo que, dentro de seu horizonte, se nos abre

normalmente de maneira performativa apareça, do ângulo de vista extramundano,

como um acontecer simplesmente estranho a todo sentido, exterior e casual, explicável

apenas segundo os modelos das ciências naturais.”103 Assim sendo, Habermas ressalta

que “um efeito de objetivação realiza-se à medida que a teoria dos sistemas penetra no

mundo da vida, introduzindo uma perspectiva metabiológica a partir da qual este

101
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade, p. 511.
102
HABERMAS, J. Idem, p. 525.
103
HABERMAS, J. Idem, p. 532.
59

aprende a compreender a si próprio como um sistema em um mundo-circundante-com-

outros-sistemas-em-um-mundo-circundante – como se o processo do mundo não se

efetuasse senão por meio das diferenças sistema-mundo-circundante.”104Com isso,

continua ele, “na medida em que a teoria de sistemas não presta sua contribuição

específica de disciplina somente no interior do sistema científico, mas com suas

pretensões de universalidade ainda penetra no mundo da vida, ela substitui as

convicções metafísicas de fundo pelas metabiológicas.”105

Habermas ainda, teme pela vida consciente do sujeito à medida em

que a teoria de sistemas adquire características próprias de um paradigma filosófico, ou

nas palavras do próprio Habermas,

Luhmann, tomando de empréstimo elementos de Maturana e de outros, flexibilizou


e estendeu a tal ponto os conceitos básicos de sua teoria do sistema, que eles se
tornaram aptos a portar um paradigma filosófico em condições de concorrer. A
idéia de um processo mundial realizando-se através de diferenças entre sistema e
mundo ambiente, coloca de escanteio as premissas ontológicas comuns de um
mundo do ente racionalmente ordenado, de um mundo de objetos representáveis,
referido a sujeitos do conhecimento, ou de um mundo de estados de coisas
existentes e representáveis por intermédio da linguagem. A massa herdada da
filosofia do sujeito pode ser aceita e absorvida facilmente numa teoria de sistemas
que se produzem a si mesmos de modo auto-referente. Por isso, é difícil afirmar
que uma contraposição paradigmática a esse naturalismo operante a nível
filosófico, mas que se encontra em fase de realização, deveria ser buscada numa
teoria da vida consciente, que tem o seu forte numa auto-descrição não objetivista
do homem-em-seu-mundo. Eu temo que a vida consciente do sujeito, em sua dupla
posição, já se assemelhe demais à auto-afirmação do sistema – auto-afirmação que
mantém os limites – em sua dupla relação: consigo mesmo e com o mundo
ambiente.106

104
HABERMAS, J. Idem, p. 533.
105
HABERMAS, J. Idem, p. 534.
106
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, p. 31.
60

No que tange à introdução do conceito de mundo da vida, vale

ressaltar que tal conceito só foi desenvolvido por Habermas a posteriori, servindo-se

este, do conceito cujo estabelecimento foi primeiramente realizado por Edmund

Husserl; ao que Beyme, referindo-se a Husserl e aos problemas que sua fenomenologia

enfrentava, escreve:

Para a fenomenologia não era já possível um retorno à metafísica. Husserl havia


retido a concepção da filosofia como “guia da humanidade”. A filosofia parecia
chamada a lutar contra o “dilúvio cético” da ciência positiva, como outrora a
concepção grega da episteme (ciência) se havia enfrentado à mera doxa, a
experiência cotidiana intuitiva. À natureza cientificamente “idealizada”,
expressemos assim, das ciências naturais opôs Husserl a natureza intuitiva pré-
científica, o mundo da vida: “este mundo realmente intuitivo, realmente
experimentado e experimentável, no que se desenvolve na prática nossa vida
inteira”. Este mundo da vida não é transformado em seu “próprio estilo causal
concreto” pela razão cindida racionalmente. O mundo da vida como “razão oculta”,
o “acertado retorno à ingenuidade da vida”, foi contraposto à ingenuidade
objetivista da filosofia tradicional, que não estabelece nenhuma “reflexão que se
levanta por cima de si mesma” sobre a vida.107

Com relação, justamente, à contraposição objetivista da filosofia

transcendental é que Gadamer descreve a maneira como Husserl opõe o conceito de

mundo da vida a todo objetivismo, ou seja,

107
“Para la fenomenología no era ya posible un retorno a la metafísica. Husserl había retenido la
concepción de la filosofía como “guía de la humanidad”. La filosofía parecía llamada a luchar contra el
“diluvio escéptico” de la ciencia positiva, como otrora la concepción griega de la episteme (ciencia) se
había enfrentado a la mera doxa, la experiencia cotidiana intuitiva. A la naturaleza científicamente
“idealizada”, expresémoslo así, de las ciencias naturales opuso Husserl (1982: 12, 54) la naturaleza
intuitiva precientífica, el mundo de la vida: “este mundo realmente intuitivo, realmente experimentado
y experimentable, en el que se desarrolla en la práctica nuestra vida entera”. Este mundo de la vida no
es transformado en su “propio estilo causal concreto” por la razón escindida racionalmente. El mundo
de la vida como “razón oculta”, el “acertado retorno a la ingenuidad de la vida”, fue contrapuesto a la
ingenuidad objetivista de la filosofía tradicional, que no plantea ninguna “reflexión que se levanta por
encima de sí misma” sobre la vida.” Cf. BEYME, K. Teoría política del siglo XX – De la modernidad
a la postmodernidad, p. 243. A tradução livre é nossa.
61

O fato de que Husserl tenha em vista, a todo momento, o “desempenho” da


subjetividade transcendental corresponde simplesmente à tarefa da investigação
fenomenológica da constituição. Mas é característico de seu verdadeiro propósito,
não mais falar de consciência, nem sequer de subjetividade, mas de “vida”. Ele
quer posicionar-se por trás da atualidade da consciência que intenciona, e mesmo
por trás da potencialidade da co-intenção retrocedendo até a universalidade do
produzido, ou seja, do constituído em sua validez. É uma intencionalidade
basicamente anônima, ou seja, não produzida nominalmente por coisa alguma,
através da qual constitui-se o horizonte do mundo que abarca o universo do que é
objetivável pelas ciências. Husserl chama a esse conceito fenomenológico do
mundo de “mundo da vida”, ou seja, o mundo em que nós introduzimos por mero
viver nossa atitude natural, que, como tal, não se torna cada vez objetivo, mas que
representa o solo prévio de toda experiência. Esse horizonte do mundo é
pressuposto também em toda ciência e que, por isso, é mais originário do que elas.
Como fenômeno de horizonte, este “mundo” está essencialmente vinculado à
subjetividade, e essa vinculação significa, ao mesmo tempo, que “tem seu ser na
corrente do ‘cada vez em cada caso’” (Jeweiligkeit). O mundo da vida se encontra
num movimento de constante relativização da validez.
Como vimos, o conceito de mundo da vida se opõe a todo objetivismo. Trata-se de
um conceito essencialmente histórico, que não tem em mente a um universo do ser,
a um “mundo que é”. Nem mesmo a idéia infinita de um mundo verdadeiro,
partindo-se da progressão infinita dos mundos humano-históricos, deixa-se
formular com sentido na experiência histórica. É verdade que se pode indagar pela
estrutura do que abrange a todos os mundos ambientais experimentados alguma vez
pelos homens, que representa, com isso, a possível experiência do mundo como tal
e, nesse sentido, é que se pode perfeitamente falar de uma ontologia do mundo.
Uma tal ontologia do mundo continuaria sendo sempre algo bastante diferente do
que poderiam produzir as ciências da natureza, pensadas até o fim. Ela
representaria uma tarefa filosófica que toma a estrutura essencial do mundo por
objeto. Mas mundo da vida quer dizer outra coisa, o todo em que estamos vivendo
enquanto seres históricos. E aqui já não se pode mais evitar a conclusão de que,
diante da historicidade da experiência nela implicada, a idéia de um universo de
possíveis mundos da vida históricos é fundamentalmente irrealizável. A infinitude
do passado, mas sobretudo o caráter aberto do futuro histórico não é conciliável
com essa idéia do universo histórico. Husserl extraiu explicitamente essa
conclusão, sem retroceder ante o “fantasma” do relativismo.
É claro que o mundo da vida será sempre, ao mesmo tempo, um mundo
comunitário que contém a co-presença de outros. Ele é mundo pessoal, e um tal
mundo pessoal está sempre pressuposto como válido na atitude natural. Porém,
como se fundamenta essa validez partindo de um desempenho da subjetividade?
Essa é a tarefa mais difícil que se coloca à análise fenomenológica da constituição,
e Husserl esteve incansavelmante(sic) refletindo sobre os seus paradoxos. Como
pode surgir no “eu puro” algo que não possua validez de objeto, mas que quer ser
ele mesmo “eu”?
O postulado básico do idealismo “radical”, que é o de sempre retroceder aos atos
constituintes da subjetividade transcendental, tem, obviamente, de esclarecer a
universal consciência de horizonte “mundo”, e principalmente a intersubjetividade
deste mundo – embora o que está assim constituído, o mundo enquanto comum a
62

muitos indivíduos, abranja, por sua vez, a subjetividade. A reflexão transcendental,


que deve suspender toda validez de mundo e todo dado prévio de tudo que é
diferente dela, tem de pensar-se a si mesma como abarcada pelo mundo da vida. O
eu que reflete sabe que vive sob determinações de objetivos, para os quais o mundo
da vida representa o fundamento. Nesse sentido, a tarefa de uma constituição do
mundo da vida (assim como a da intersubjetividade) é paradoxal. Mas Husserl
considera tudo isso como sendo paradoxos aparentes. Está convencido de que, a
fim de desfazê-los, basta manter de forma verdadeiramente conseqüente o sentido
transcendental da redução fenomenológica e não ser tomado por um medo infantil
ante um solipsismo transcendental. Em vista dessa clara tendência da formulação
do pensamento de Husserl, parecer-me-ia sem sentido colocar na boca de Husserl
alguma ambigüidade no conceito da constituição, atribuindo-lhe uma posição
intermediária entre determinação de sentido e criação. Ele mesmo assegura haver
superado por completo, no curso de seu pensamento, o medo de qualquer idealismo
generativo. A sua teoria da redução fenomenológica pretende, antes, levar à
realização, pela primeira vez, o verdadeiro sentido desse idealismo. A subjetividade
transcendental é o “eu-originário” e não “um eu”. Para ela, o solo do mundo dado
de antemão já foi suspenso. Ela é o não relativo por excelência, aquilo a que está
referida toda relatividade, inclusive a do eu investigador.
Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de fato ameaça despedaçar
essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do
idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele
alcança o conceito “vida”. “Vida” não é meramente o “ir vivendo” da atitude
natural. “Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente
reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida”
encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da
ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste
em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual
entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna
de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “vida
produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração
interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na
unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que
somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas...”
Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível
nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos”
anônimos da vida. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do
que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra.
Se acompanharmos essas e outras indicações lingüísticas e conceituais parecidas,
que se encontram de quando em quando em Husserl, sentimo-nos próximos do
conceito especulativo da “vida” do idealismo alemão. O que Husserl pretende dizer
é, sem dúvida, que não se deve pensar a subjetividade como oposta à objetividade,
porque esse conceito de subjetividade estaria então sendo pensado de maneira
objetivista. Sua fenomenologia transcendental pretende ser, ao contrário, uma
“investigação de correlações”. Mas isso quer dizer que o primário é a relação, e que
os “pólos” nos quais se desenrola estão circunscritos por ela, da mesma forma que o
ser vivo circunscreve todas as suas manifestações vitais na unidade do seu ser
orgânico. “A ingenuidade do discurso que fala da ‘objetividade’, que deixa
63

totalmente fora de questão a subjetividade, a qual experimenta e conhece e é a


única que produz de uma maneira verdadeiramente concreta; a ingenuidade do
cientista da natureza e do mundo em geral, que é cego para o fato de que todas as
verdades que ele ganha como objetivas, e mesmo o próprio mundo objetivo que é o
substrato de suas fórmulas, é a sua própria configuração de vida, que se tornou nele
mesmo – essa ingenuidade deixa de ser possível na medida em que se coloca a vida
como objeto de consideração”. É o que escreve Husserl com relação a Hume.108

Desta forma, Husserl intenta superar a dicotomia entre os aspectos

objetivos e subjetivos utilizando-se do conceito de mundo da vida ao se pensar a

relação existente entre estes dois momentos, e mais do que isso, ao apresentar o

modelo fenomenológico que propõe antes de tudo essa forma de investigação de

correlações, ele possibilita não só os meios iniciais necessários para o avanço do

estudo acerca do mundo da vida, mas também como uma base para o desenvolvimento

não só do conceito de mundo da vida por parte de Habermas, como também de toda a

sua teoria da ação comunicativa, substituindo assim a análise da consciência da

fenomenologia de Husserl pela análise da linguagem, ao que Beyme afirma o seguinte:

Para Habermas lhe parecia inadmissível exigir dos científicos empíricos que
meditassem sobre a construção transcendental do mundo social. Por isso, se
substituiu a análise da consciência da fenomenologia pela análise da linguagem. As
análises da linguagem permitiam reconstruir as estruturas da experiência e da
comunicação tal como se davam na realidade social. Habermas se distanciava na
forma mais decidida da fenomenologia: “As mônadas não têm a intersubjetividade
da linguagem senão a partir de si mesmas. Todavia não se percebeu que a
linguagem é como uma tela de cujos fios pendem os indivíduos e donde, e só aí, se
constituem como indivíduos”. Habermas tomou o termo básico de “mundo da vida”
da fenomenologia. Com ele não pretendia, contudo, penetrar nas estruturas da
consciência subjetiva, senão investigar as condições formais da “intersubjetividade
na comunicação lingüística”.109

108
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, p. 374.
109
“A Habermas (1982: 233) le parecía inadmisible exigir de los científicos empíricos que meditasen
sobre la construcción transcendental del mundo social. Por ello, se sustituyó el análisis de la conciencia
de la fenomenología por el análisis del lenguaje. Los análisis del lenguaje permitían reconstruir las
estructuras de la experiencia y de la comunicación tal como se daban en la realidad social. Habermas
64

O próprio Habermas afirma a necessidade da mudança de enfoque e

tratamento agora dado ao conceito de mundo da vida, não fixando-o à teoria da

constituição do conhecimento por parte da fenomenologia, mas levando-o até a

abrangência das interações lingüísticas, isto é,

O conceito fenomenológico “mundo da vida” sugere que se trata de um termo da


constituição do mundo, cedido pela epistemologia, que não pode ser aplicado sem
mais nem menos à sociologia. Para escapar das dificuldades da fenomenologia
social, a teoria da sociedade precisa separar-se, logo no início, da teoria da
constituição do conhecimento e travar relações com as diretrizes da pragmática da
linguagem, a qual abrange naturalmente interações mediadas lingüisticamente. Por
isso, o tema “mundo da vida” deve ser introduzido como um conceito
complementar do agir comunicativo (1). A investigação pragmático-formal, que se
conscientiza tomando o caminho de uma análise dos pressupostos que constituem o
pano de fundo do mundo da vida, é realizada na perspectiva participante e
reconstrutiva de um falante. O emprego desse conceito numa ciência social exige
uma mudança metódica do enfoque: é preciso passar do enfoque (performativo) da
segunda pessoa para o enfoque (teórico) da terceira pessoa (2).110

Com isso, o conceito de mundo da vida tem, em Habermas, uma

correlação direta com a ação comunicativa, conforme a síntese apresentada por

Rezende Pinto, que afirma:

... para Habermas, a ação comunicativa surge como uma interação de, no mínimo
dois sujeitos, capazes de falar e agir, que estabelecem relações interpessoais com o
objetivo de alcançar uma compreensão sobre a situação em que ocorre a interação e
sobre os respectivos planos de ação com vistas a coordenar suas ações pela via do
entendimento. Neste processo, eles remetem-se a pretensões de validade criticáveis
quanto à sua veracidade, correção normativa e autenticidade, cada uma destas

se distanciaba en la forma más decidida de la fenomenología: ‘Las mónadas no tejen la


intersubjetividad del lenguaje sino a partir de si mismas. Todavía no se ha percibido que el lenguaje es
como una tela de cuyos hilos penden los individuos y donde, y sólo ahí, se constituyen como
individuos’ (1982: 240). Habermas tomó el término básico de ‘mundo de la vida’ de la fenomenología.
Con él no pretendía, sin embargo, penetrar en las estructuras de la conciencia subjetiva, sino investigar
las condiciones formales de la ‘intersubjetividad en la comunicación lingüística’.” Cf. BEYME, K.
Teoría política del siglo XX – De la modernidad a la postmodernidad, p. 253. A tradução livre é nossa.
110
HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico, p. 87.
65

pretensões referindo-se respectivamente a um mundo objetivo dos fatos, a um


mundo social das normas e a um mundo das experiências subjetivas. Para
construção deste conceito, ele baseou-se no interacionismo simbólico de Mead, no
conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein, na teoria dos atos de fala de
Austin e na hermenêutica de Gadamer.
O conceito de alcançar o entendimento que decorre da ação comunicativa requer,
por sua vez, a definição do contexto em que estes procedimentos acontecem. Isto
porque aquilo que o falante quer dizer com seu pronunciamento depende do
conhecimento acumulado e realiza-se sob o pano de fundo de um consenso cultural
anterior. É neste ponto que Habermas introduz o conceito de mundo da vida
(Lebenswelt), entendido como o contexto não problematizável, o pano de fundo
que propicia os processos de se alcançar o entendimento. Como ele afirma, no
sentido cotidiano o mundo da vida pode ser entendido como aquele em que “os
atores comunicativos situam e datam seus pronunciamentos em espaços sociais e
tempos históricos” (...). Ele é constituído por um saber implícito sobre o qual nós,
normalmente, nada sabemos porque ele é simplesmente não problemático, não
atinge o limiar dos pronunciamentos comunicativos que podem ser válidos, ou não.
Como ele escreve, “... se a verdade é o que é fundamentado, então o fundamento
não é verdadeiro, ou falso (...). [ Mesmo porque ], os atores estão sempre se
movendo dentro do horizonte do seu mundo da vida, eles não podem se colocar de
fora dele. Como intérpretes, eles próprios pertencem ao mundo da vida, por meio
de seus atos de fala, mas não podem se referir a ‘algo no mundo da vida’ da mesma
forma que podem fazer com fatos, normas e experiências subjetivas (...).”
O mundo da vida por sua vez é dividido em três componentes estruturais: Cultura,
sociedade e pessoa.
- Cultura, entendida como o estoque de conhecimento do qual os atores se suprem
de interpretações quando buscam a compreensão sobre algo no mundo;
- Sociedade, entendida como as ordens legítimas através das quais os participantes
regulam suas relações no grupo social;
- Pessoa, entendida como as competências que tornam um sujeito capaz de falar e
agir, ou seja, de compor sua própria personalidade (...).
Para Habermas existe uma correlação direta entre ação comunicativa e mundo da
vida, já que cabe à primeira a reprodução das estruturas simbólicas do segundo
(cultura, sociedade, pessoa). Assim, sob o aspecto do entendimento mútuo, a ação
comunicativa serve para trasmitir(sic) e renovar o saber cultural, sob o aspecto de
coordenar a ação, ela propicia a integração social e, sob o aspecto da socialização
ela serve à formação da personalidade individual.
Por outro lado, a reprodução do substrato material do mundo da vida ocorre através
de ações dirigidas a fins pelos quais os indivíduos associados intervêm no mundo e
realizam seus objetivos.111

111
PINTO, José Marcelino de Rezende. Administração e liberdade: um estudo do conselho de escola à
luz da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, p. 75.
66

Segundo Siebeneichler, Habermas incrementa assim, através de um

duplo enfoque, o conceito originário de mundo da vida advindo da fenomenologia, a

saber, “na perspectiva do participante da ação comunicativa, o mundo da vida constitui

o contexto ou lugar quase-transcendental onde se formam os processos de

entendimentos e onde os falantes e ouvintes se movimentam”112 e, “na perspectiva do

teórico, do observador da ação, o mundo da vida constitui uma reserva ‘ressource’ de

idéias e convicções não problemáticas, um celeiro de saber estruturado

linguisticamente e transmitido culturalmente, uma fonte de modelos de interpretação,

da qual os participantes da ação lançam mão para suprir as exigências e necessidades

de entendimento que aparecem numa determinada situação.”113 E acrescenta,

demonstrando a distinção entre a teoria habermasiana da ação comunicativa e a teoria

dos sistemas de Luhmann, nos seguintes termos:

A colocação surpreendente do agir comunicativo, do mundo da vida e da razão


comunicativa nestes termos leva Habermas a dar um passo ousado: opondo o agir
comunicativo ao princípio objetivista da teoria do sistema, de Luhmann, ele procura
construir um acesso hermenêutico à sociedade que constitui um tecido urdido com
as malhas de interações linguísticas que tem como pano de fundo o mundo da vida.
A sociedade não é mais vista como uma simples natureza exterior, acessível apenas
à observação, ou como um sistema de sistemas. Por ser um mundo da vida
estruturado simbolicamente, ela pode ser aberta agora a partir de dentro, isto é, a
partir das perspectivas de ação dos participantes da interação ou da comunicação e
a partir de uma razão em movimento, em processo argumentativo: a razão
comunicativa.114

112
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, p. 42.
113
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, p. 43.
114
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, p. 44.
67

Contudo, apesar da introdução do conceito de mundo da vida e da

tentativa de Habermas de colocar em contato as partes objetivas e subjetivas da

comunicação, Beyme apresenta que por mais que haja a tentativa crescente de

integração, Habermas ainda se preocupa com o que ele denomina colonização do

mundo da vida, e na seqüência apresenta as conseqüências da análise habermasiana

para a sociologia; assim sendo, afirma ele,

Por meio da integração dos aspectos teóricos do mundo da vida e do sistema, o


debate em torno aos enfoques do mundo da vida saiu dos círculos das pequenas
seitas. Foi frutífera a conclusão de que a teoria do sistema não pode ser adscrita
exclusivamente à macroinvestigação, igual que os enfoques do mundo da vida não
podem ser adscritos exclusivamente à microteoria. Habermas intentou prestar uma
maior atenção aos pontos de contato entre as partes objetivas e subjetivas da
comunicação. Como Husserl, constatou que persistia a ameaça sobre os campos
subjetivos do mundo da vida em sociedade. Esta ameaça foi conceituada sob a
fórmula transparente de “colonização do mundo da vida”. Com outras
denominações, a tese da colonização havia sido tema de muitas teorias crítico-
dialéticas.
Na sociologia de Karl Marx, uma das idéias centrais consistia em que o processo de
produção capitalista, que se independentiza do trabalho concreto e da orientação
das pessoas pelo valor de uso dos produtos, se vê envolto cada vez mais na lógica
de ação do pensamento econômico-calculador. O mundo da vida do trabalho se vê
ameaçado por esse processo.
Em Habermas, a análise da sociedade está tão fortemente “parsonizado”, que o
esquema de base-superestrutura não serve já como ponto de partida. O mundo da
vida ocupa o lugar que as circunstâncias econômicas ocupavam em Marx. No
entanto, as relações de câmbio de ambos setores são bastante mais complexas que
nos enfoques marxistas. Contudo, Habermas teve que defender-se ante a crítica de
que ele havia desligado completamente um setor do outro e que, com isso, os havia
coisificado. No modelo de sociedade de Habermas, o mundo da vida está, na
realidade, unicamente desligado dos subsistemas da política e da economia sujeitos
aos meios de controle, porém não de todos os mecanismos de integração no
conjunto do sistema.115

115
“Por medio de la integración de los aspectos teóricos del mundo de la vida y del sistema, el debate
en torno a los enfoques del mundo de la vida salió de los círculos de las pequeñas sectas. Fue fructífera
la conclusión de que la teoria del sistema no puede ser adscrita exclusivamente a la
macroinvestigación, igual que los enfoques del mundo de la vida no pueden ser adscritos
exclusivamente a la microteoría (Habermas 1986: 394). Habermas intentó prestar una mayor atención
a los puntos de contacto entre las partes objetivas y subjetivas de la comunicación. Como Husserl,
68

Beyme acrescenta ainda que, “na teoria da racionalidade

comunicativa, o mundo da vida cobrava uma nova classe racional. Não se contrapunha

de forma enfática o mundo da vida ao ‘mundo’ ou ao ‘sistema’. Os dois âmbitos são

esferas em condição de igualdade.”116 E segue afirmando que, “a colonização do

mundo da vida representava para Habermas o fenômeno patológico mais importante da

modernidade. Se percebem aqui de novo influências tanto da tradição da teoria

marxista da alienação como, uma vez mais, da fenomenologia de Husserl.”117

Diferenciar a racionalidade que subjaz à teoria sistêmica da

racionalidade comunicativa presente no mundo da vida é por demais importante, e não

constató que persistía la amenaza sobre los campos subjetivos del mundo de la vida en sociedad. Esta
amenaza fue conceptuada bajo la fórmula transparente de “colonización del mundo de la vida”. Con
otras denominaciones, la tesis de la colonización había sido tema de muchas teorías crítico-dialéticas.
En la sociologia de Karl Marx, una de las ideas centrales consistía en que el proceso de producción
capitalista, que se independiza del trabajo concreto y de la orientación de las personas por el valor de
uso de los productos, se ve envuelto cada vez más en la lógica de acción del pensamiento económico-
calculador. El mundo de la vida del trabajo se ve amenazado por este proceso.
En Habermas, el análisis de la sociedad está tan fuertemente “parsonizado”, que el esquema de base-
superestrutura no sirve ya como punto de partida. El mundo de la vida ocupa el lugar que las
circunstancias económicas ocupaban en Marx. Sin embargo, las relaciones de cambio de ambos
sectores son bastante más complejas que en los enfoques marxistas (cfr. cap. I.3.c). Con todo,
Habermas tuvo que defenderse ante la crítica de que él había desligado completamente un sector del
outro y que, con ello, los había cosificado. En el modelo de sociedad de Habermas, el mundo de la vida
está, en realidad, únicamente desligado de los subsistemas de la política y la economía sujetos a los
medios de control, pero no de todos los mecanismos de integración en el conjunto del sistema.” Cf.
BEYME, K. Teoría política del siglo XX – De la modernidad a la postmodernidad, p. 250. A tradução
livre é nossa.
116
“En la teoría de la racionalidad comunicativa, el mundo de la vida cobraba un nuevo rango racional.
No se contraponía de forma enfática el mundo de la vida al “mundo” o al “sistema”. Los dos ámbitos
son esferas en condición de igualdad.” Cf. BEYME, K. Idem, p. 252. A tradução livre é nossa.
117
“La colonización del mundo de la vida representaba para Habermas el fenómeno patológico más
importante de la modernidad. Se perciben aquí de nuevo influencias tanto de la tradición de la teoria
marxista de la alienación como, una vez más, de la fenomenología de Husserl.” BEYME, K. Idem, p.
253. A tradução livre é nossa.
69

se coloca de forma secundária, mas vai mesmo à raiz de toda a questão. Dentro desse

contexto, Lima Vaz afirma que “a racionalidade que organiza em sistema a produção

material é necessariamente uma racionalidade instrumental, pois a acumulação da

riqueza não é um fim em si.”118 Beyme por sua vez apresenta a posição habermasiana,

ou seja,

para Habermas, a racionalidade estava ligada à capacidade de comunicação


lingüística. Não é, ao contrário do que ocorre no racionalismo ocidental, uma
racionalidade instrumental enfocada sobre objetos externos e sobre a dominação da
natureza, e tampouco se refere unicamente de forma reflexiva a si mesma, como na
autopoiesis, sobre a que segue recaindo a suspeita de constituir uma escolástica de
processos sem indivíduos. A intersubjetividade pressupõe a existência do mundo,
comum ao ego e ao alter, os quais mantêm entre si uma relação discursiva e não
estão, como as mônadas, fechados em si mesmos.119

Diferenciando-se de Parsons, afirma Beyme sobre Habermas, este

último “não interpretou os aspectos sistêmicos como incremento das margens de

liberdade do indivíduo. Contudo, tampouco ofereceu uma teoria unilateral da

degradação: o mundo da vida não está submetido unicamente à colonização, senão que

experimenta também uma racionalização que se julga positiva.”120 E conclui também,

118
VAZ, Henrique C. de Lima, Escritos de filosofia II: ética e cultura, p. 24. Os grifos são nossos.
119
“Para Habermas (1981, tomo 1:25), la racionalidad estaba ligada a la capacidad de comunicación
lingüística. No es, al contrario de lo que ocurre en el racionalismo occidental, una racionalidad
instrumental enfocada sobre objetos externos y sobre la dominación de la naturaleza, y tampoco se
refiere únicamente de forma reflexiva a sí misma, como en la autopoiesis, sobre la que sigue recayendo
la sospecha de constituir una escolástica de procesos sin individuos. La intersubjetividad presupone la
existencia del mundo, común al ego y al alter, los cuales mantienen entre sí una relación discursiva y
no están, como las mónadas, cerrados en sí mismos.” BEYME, K. Idem, p. 254. A tradução livre é
nossa.
120
“no interpretó los aspectos sistémicos como incremento de los márgenes de libertad del individuo.
Sin embargo, tampoco ofreció una teoría unilateral de la degradación: el mundo de la vida no está
sometido únicamente a la colonización, sino que experimenta también una racionalización que se juzga
positiva.” BEYME, K. Idem, p. 259. A tradução livre é nossa.
70

mais adiante, demonstrando a diferença entre as conclusões de Habermas e Weber no

tocante à análise do racionalismo, isto é, Habermas, segundo ele, “se desprende das

conclusões as quais havia chegado Weber em sua análise do racionalismo ocidental. A

perda de liberdade do indivíduo já não se atribue – como em Weber – à

burocratização, senão ao desacoplamento entre sistema e mundo da vida.”121

Contudo ainda, vale ressaltar que Habermas apresenta uma importante

diferença com relação a Luhmann, haja vista que este último assume a posição do

observador ao passo que o primeiro opta por uma postura de quem participa,

hermenêutica. Desta forma, Habermas não nega a importância do sistema, mas sim, o

reinterpreta a partir da ação comunicativa. Assim, na seqüência se verificará a

possibilidade que tal acoplamento entre sistema e mundo da vida poderá trazer à

emancipação humana, à medida que a relação estabelecida entre método e discurso, no

âmbito da razão e suas respectivas racionalidades, passe do enfoque meramente

objetivo para uma perspectiva intersubjetiva.

121
“se desprende de las conclusiones a las que había llegado Weber en su análisis del racionalismo
occidental. La pérdida de libertad del individuo ya no se atribuye – como en Weber – a la
burocratización, sino al desacoplamiento entre sistema y mundo de la vida.” BEYME, K. Idem, p. 260.
A tradução livre e os grifos são nossos.
71

CAPÍTULO 4 – MÉTODO E DISCURSO

Como se observou até o momento, tanto a teoria dos sistemas sociais

de Niklas Luhmann como a teoria da ação comunicativa, através de sua abordagem

própria do mundo da vida, apresentam características importantes e fundamentais para

uma análise mais acurada e, conseqüentemente, uma forma de se compreender a

sociedade contemporânea em toda sua complexidade.

Contudo, permanecendo-se com a opção metodológica da explicação

de tal sociedade complexa desconsiderando-se, ora o ser humano como sujeito agente

dentro dessa mesma sociedade, ora toda a influência dos sistemas sociais sobre as

possibilidades de ação desses mesmos sujeitos, sem que haja ao menos uma tentativa

de diálogo entre essas duas concepções diferentes de estudo da sociedade, ainda que

não se saiba quais serão seus resultados e suas conseqüências, só leva a inferir que tais

análises, permanecendo desvinculadas uma da outra, revelam não apenas o resultado

peculiar de suas pesquisas, mas também toda a intencionalidade do método escolhido,

cuja manifestação se dá através do discurso apresentado.

Desta forma, ao estabelecer-se um método o discurso resultante do

processo de análise e estudo será fruto e obedecerá aos limites impostos pelo método

mesmo. O método possui um discurso próprio que permite à análise resultados

confiáveis, em que pese que, o discurso sobre o método garante à busca pelo
72

conhecimento, e também ao conhecimento científico, toda a credibilidade necessária

para que tal conhecimento seja entendido em todas as suas particularidades e nuanças

e, conseqüentemente, seja aceito. Contudo, de forma análoga, pode-se afirmar que,

após a avaliação e a aceitação do discurso, fica claro que não é simplesmente o método

que possui um discurso que o valide, mas sobretudo, é o discurso mesmo que possui,

utiliza-se e vale-se agora de métodos que caracterizam-se não mais como instituintes

de novos saberes, mas sim como garantidores do conhecimento já instituído e

institucionalizado, em que tal discurso apresenta-se, como afirma Marilena Chaui,

ideologicamente, como sendo o discurso competente, cujo método apresenta-se assim,

de forma subserviente.

Merece assim, antes das considerações necessárias sobre o método

propriamente dito, uma breve explanação sobre a ideologia tácita do discurso, assim

chamado competente, através da análise de Marilena Chaui. Segundo ela,

a ideologia não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício


da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a
inversão imaginária do processo histórico na qual as idéias ocupariam o lugar dos
agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social
moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si
mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência
(que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por
ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o
ocultamento ou a dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo
sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir.
A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito
precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular
a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da
identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa
73

lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada, isto é, a imagem da classe dominante.122

Ao universalizar o particular a ideologia apaga as diferenças e

contradições, ganhando coerência e força ao apresentar-se como um discurso lacunar

fora do lugar e também fora do tempo. Segundo Chaui, “a ideologia é aquele discurso

no qual os termos ausentes garantem a suposta veracidade daquilo que está

explicitamente afirmado.”123 Ou seja, “as idéias deveriam estar nos sujeitos sociais e

em suas relações, mas, na ideologia, os sujeitos sociais e suas relações é que parecem

estar nas idéias.”124 Ainda, “dizer que a ideologia não tem história significa apenas

dizer, em primeiro lugar, que as transformações ocorridas em um discurso ideológico

não dependem de uma força que lhe seria imanente e que o faria transformar-se e, sim,

que tais transformações decorrem de uma outra história que, por meio da ideologia, a

classe dominante procura escamotear; em segundo lugar, e mais profundamente,

significa que a tarefa precisa da ideologia está em produzir uma certa imagem do

tempo como progresso e desenvolvimento de maneira a exorcizar o risco de enfrentar a

história.”125

Assim sendo, “o discurso competente é aquele que pode ser proferido,

ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem)

122
CHAUI, Marilena de Sousa, O discurso competente, p. 3.
123
CHAUI, M. S. Idem, p. 4.
124
CHAUI, M. S. Idem, ibidem.
125
CHAUI, M. S. Idem, ibidem.
74

porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem.”126 Ou seja, segundo

afirma Chaui,

O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre


uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a
qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O
discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente
permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram
previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares
e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir
e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da
esfera de sua própria competência.127

Com isso, afirma que o discurso competente do ponto de vista do

conhecimento é o discurso do especialista, discurso este que parte de lugares

hierárquicos autorizados, não se inspira em idéias e valores, mas na suposta realidade

dos fatos e na suposta eficácia dos meios de ação e, que tem o papel de dissimular a

existência real da dominação sob a capa da cientificidade. Entretanto, Chaui continua a

afirmar que as “determinações da linguagem competente não nos devem ocultar o

fundamental, isto é, o ponto a partir do qual tais determinações se constituem. A

condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como discurso

do conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência

dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos.”128 E conclui, “para que esse discurso

possa ser proferido e mantido é imprescindível que não haja sujeitos, mas apenas

homens reduzidos à condição de objetos sociais.”129 Pode-se assim, em virtude de

126
CHAUI, M. S. Idem, p. 7.
127
CHAUI, M. S. Idem, ibidem.
128
CHAUI, M. S. Idem, p. 11.
129
CHAUI, M. S. Idem, ibidem.
75

várias similitudes, se não atribuir tal discurso competente ao discurso sistêmico,

identificando-os diretamente, ao menos afirmar que o método que tal discurso possui

visa garantir ao mesmo uma autoridade objetiva, restringindo dessa forma a

possibilidade de participação e autoria desse mesmo discurso a um número mínimo de

sujeitos habilitados a fazê-lo, contrariando assim, a possibilidade da realização de um

discurso intersubjetivo mediado lingüisticamente através dos atos de fala de todos os

envolvidos.

Isto posto, pode-se agora considerar as possíveis relações entre

metodologia e método e, buscar tais relações já a partir de suas raízes etimológicas,

haja vista que, segundo demonstra Castanheira Neves, “a palavra (o discurso, a razão,

o pensamento) de odos, o caminho para algo além, meta – é a raiz etimológica de

metodologia (...). E nessa base poderá ela definir-se como a ‘lógica’, a razão (a

racionalidade) ou o pensamento de um proceder (modus, processo) que visa um fim

específico ou se propõe um certo objectivo(sic).”130 Enquanto o logos destacar-se

como o condutor numa relação intencional do método, a “metodologia é ou propõe-se

ser a razão intencional de um método – a racionalidade ou o pensamento de (ou sobre)

esse método.”131

130
NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais, p. 9.
131
NEVES, A. C., Idem, ibidem.
76

Segundo Castanheira Neves, pode-se pensar a relação intencional entre

o logos e o método, implícita em metodologia, segundo três tipos intencionais

diferentes, a saber: como uma relação de exterioridade construtiva, como uma relação

de imanência constitutiva ou como uma relação de reconstrução crítico-reflexiva.

Pode-se comparar as relações intencionais que afirma Castanheira

Neves com a relação que faz Habermas entre conhecimento e interesse132, e

consequentemente a isso pode-se correlacionar também, e isso será visto mais adiante,

os tipos de ações praticadas pelo homem que terão a partir dos tipos específicos de

racionalidades como que os vetores, ou seja, os eixos que conduzem essas mesmas

ações.

Como uma relação de exterioridade construtiva, afirma ele,

... o método será objecto da razão que o modela como um instrumentum (uma
operatória instrumental) finalisticamente predeterminado – é o sentido que
corresponderá ao método definido nestes termos: “um conjunto de procedimentos
intelectuais ordenados segundo um plano racional pré-estabelecido aplicáveis a um
dado domínio em vista de um certo fim” (...), que já estava na definição de
DESCARTES (Regulae ad directionem ingenii: “por método entendo um conjunto de
regras certas e fáceis, graças às quais todos aqueles que as seguirem jamais tomarão
por verdadeiro aquilo que é falso e, sem sobrecarregarem a mente inutilmente, mas
aumentando progressivamente o saber, obterão o conhecimento verdadeiro de todas
as coisas de que forem capazes” (...) ), e em que ele se nos oferece, nesse seu modo
de processo teleologicamente programado de actividade(sic) intelectual,
verdadeiramente como um artifício (artefacto) racional que se avalia pela sua
aptidão a lograr o fim em vista, e assim com a índole de uma técnica. Trata-se de
um modelo prescrito para uma prática, e que não só pré-determina e mesmo pré-

132
Cf. a esse respeito: HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse.
77

constitui uma prática, como será ainda o decisivo critério de validade dessa
prática.133

Através dessa relação de exterioridade construtiva pode-se observar o

tipo de racionalidade que direciona as ações humanas, ou seja, a metodologia que será

fruto dessa relação intencional buscará um conhecimento que sirva de instrumento, isto

é, o interesse inerente a esse tipo de conhecimento é o técnico, segundo afirma

Habermas, e que segue a corroboração de Castanheira Neves, cujas palavras vêem-se

supra citadas.

Já como uma relação de imanência constitutiva, segundo ele, “a razão

é o constituens da prática e apenas pela própria prática manifestado (numa intencional

unidade de razão e prática) e o ‘método’ simplesmente o interno modus operandi dessa

mesma prática e por isso só reconhecível a posteriori através de uma sua análise

explicitante. Se no primeiro caso o método era o objecto-produto da razão, agora a

razão é a racionalidade constitutiva do método que a prática em si mesma realiza e

manifesta – a razão, o método e a prática são aqui de uma incindível unidade.”134

Dessa forma, pode-se ver também aqui a relação entre o método e o

logos, cuja imanência manifesta-se na prática, ou seja, caracteriza-se segundo uma

racionalidade, que tem na prática, a junção entre o conhecimento e o interesse. A

133
NEVES, A. C. Idem, p. 10.
134
NEVES, A. C. Idem, p. 11.
78

metodologia inerente a esse interesse prático seguirá uma racionalidade tipicamente

estratégica.

Contudo, Castanheira Neves ainda apresenta um terceiro tipo, ou seja,

como uma relação de reconstrução crítico-reflexiva em que a razão não prescreve


a priori um método à prática e também o não descobre apenas a posteriori na
descrição de uma prática metódica e antes a razão, assumindo intencionalmente
uma certa prática, vai referir esta aos sentidos fundamentantes – aqueles que
correspondem à própria intencionalidade e vocação da prática em causa – para a
reconduzir, numa atitude criticamente reflexiva que terá naqueles fundamentos o
seu horizonte e justificação, como que à própria razão dessa mesma prática. O
logos que vai implicado no pensamento metodo-lógico não será aqui prescritivo,
como no primeiro caso; nem descritivo, como no segundo caso; mas justamente
crítico-reflexivo.135

Por último, vê-se presente nesse terceiro tipo de relação intencional,

ou seja, uma relação de reconstrução crítico-reflexivo, aquele interesse emancipatório

que afirma Habermas, ligado à busca de conhecimentos também emancipatórios, que

têm, como será visto adiante, a tarefa de através da realização de uma crítica, que seja

também reflexiva, tirar o homem daquela situação em que ele é tratado como objeto e

levá-lo a refletir criticamente sobre sua própria condição e assim assumir sua condição

de sujeito, o que lhe possibilitará desta forma relacionar-se intersubjetivamente com os

outros sujeitos, cujas ações seguirão os ditames de uma racionalidade comunicativa.

A tematização a que uma metodologia se vê submetida através de uma

crítica e reflexão autônomas só chega a ser considerada, no entender de Castanheira

135
NEVES, A. C. Idem, ibidem.
79

Neves, quando a prática racional do domínio que lhe corresponde e ela pressupõe se

tenha tornado problemática, mais especificamente na forma de um problema de

segundo grau, isto é,

sempre a problemática exige, para que emirja como tal, uma certa situação de crise:
quando surgem as aporias (“dificuldades ou ausência do caminho”) o que até então
era natural e, portanto, se resolvia naturalmente (acriticamente), torna-se ou
explicita-se como problema que exige uma crítica (uma reflexão crítica). E de
modo muito especial é assim nos problemas de segundo grau – só a suspeição
quanto à “natural” intentio directa provoca que se reverta problematicamente à
intentio obliqua que a constitua, e que, porque a constitui, vai nela oculta. “Natural”
é conhecer, e só quando o conhecimento natural se faz em si mesmo duvidoso ou
aporético, a interrogação se dirige ao implícito e constitutivo actus do
conhecimento enquanto tal.136

E desta forma, ele relaciona as crises do conhecimento com a crítica,

ao afirmar que esta é fruto da tematização do problema gnosiológico, epistemológico e

metodológico daquelas crises, constituindo-se assim, a metodologia também como

uma crítica. E acrescenta,

Lembremos que a palavra odos foi invocada pela primeira vez por PARMÊNIDES,
quando, tendo chegado à consciência do pensamento puro (ou da lógica), procurava
para ele um “caminho” recto. E se SÓCRATES se enfrentou com os problemas
postos pela crise sofística, pôde dele dizer W. JAEGER (Paideia, trad. esp., p. 444)
que o “diálogo socrático não pretende exercitar nenhuma arte lógica de definição
sobre problemas éticos, pois que é simplesmente o caminho, o ‘método’ do logos
para chegar a uma conduta acertada”. Assim como não ignoramos também que
PLATÃO, ao querer dar solução ao sentido problemático aberto por SÓCRATES, teve
de constituir o método da dialética – a própria palavra método é sua (...). Nem por
outra razão no tempo de ruptura e, portanto, de crise que foram os sécs. XV e XVI,
não só se divulgou a palavra methodus (tradução latina da correspondente grega),
como tiveram um quase obsessivo tratamento os problemas especificamente
metodológicos (...). E a presidir ao grande século da “crise da consciência
europeia” (P. HAZARD) não esteve o Discours de la méthode de DESCARTES? E o
que significa a actual grande discussão gnoseológica-epistemológica-metodológica
sobre a “ciência” – T. S. KUHN, The Structure of Scientific Revolutions, 2ª ed.;

136
NEVES, A. C. Idem, p. 23.
80

GADAMER, Wahrheit und Methode, cit.; J. HABERMAS, Erkenntnis und Interesse,


cit.; K. POPPER, Logik der Forschung, cit.; G. BACHELARD, Le philosophie du non
– Pour une philosophie du nouvel esprit scientifique; J. MITTELSTRASS, Die
Möglichkeit von Wissenschaft; KURT HÜBNER, Kritik des Wissenschaflichen
Vernunft; E. MORIN, La méthode (nos três primeiros volumes); Fernando Gil,
Provas, etc., etc. – senão uma profunda crise do sentido da ciência e da sua prática
metódica?137

Nesse sentido, apenas para ilustrar, vê-se como um dos autores supra

citados, Gadamer, apresenta a questão a partir do que ele chama de “insuficiência do

moderno conceito de método”138, ao que ele acrescenta o seguinte:

Não obstante, a justificação filosófica mais importante dessa insuficiência é a


apelação expressa ao conceito grego do método por parte de Hegel. Sob o conceito
da “reflexão externa”, Hegel critica esse conceito de método, que se realiza numa
ação junto à coisa e alheia a ela. O verdadeiro método seria o fazer da própria coisa.
Naturalmente essa afirmação não quer dizer que o conhecimento filosófico não seja
também um fazer que requer seu esforço, o “esforço do conceito”. Mas esse fazer e
esse esforço consistem em não entrar arbitrariamente, através de idéias que nos
ocorram, ou lançando mão desta ou daquela idéia preconcebida, na necessidade
imanente do pensamento. Obviamente que a coisa não anda seu caminho nem segue
seu curso sem que nós pensemos. Pensar, porém, quer dizer precisamente
desenvolver uma coisa em sua própria conseqüência. E manter a distância as
representações “que costumam se interpor”, e ater-se estritamente à conseqüência
do pensamento faz parte disso. É a isso que, desde a filosofia grega, se deu o nome
de dialética.
Para descrever o verdadeiro método, que é o fazer da própria coisa, Hegel se
reporta, por sua vez, a Platão, que gosta de apresentar o seu Sócrates em
conversação com os jovens, porque estes estão dispostos a seguir as perguntas
conseqüentes de Sócrates, sem fazer caso das opiniões reinantes. Ele ilustra seu
próprio método do desenvolvimento dialético com esses “jovens flexíveis”, que se
abstêm de se imiscuir no curso da coisa e não alardeiam sobre as idéias que lhes
ocorrem. Dialética não é aqui mais que a arte de conduzir uma conversação e,
sobretudo, de descobrir a inadequação das opiniões que dominam uma pessoa,
formulando conseqüentemente perguntas e mais perguntas. A dialética é aqui,
portanto, negativa, ela desconcerta as opiniões. Mas este desconcerto é ao mesmo
tempo um esclarecimento, pois libera o olhar e lhe permite orientar-se
adequadamente para a coisa. Tal como na conhecida cena do Ménon, o escravo é
conduzido desde o seu desconcerto até a verdadeira solução do problema

137
NEVES, A. C. Idem, p. 24.
138
GADAMER, H.G. Idem, p. 672.
81

matemático que lhe colocam – uma vez que lhe falharam, uma após a outra, todas
as opiniões prévias e insustentáveis –, toda negatividade dialética contém uma
espécie de desenho prévio do que é verdade.
E não somente na conversação pedagógica, mas em todo pensamento, a única coisa
que deixa emergir o que há na coisa é a perseguição de sua conseqüência objetiva.
A própria coisa consegue fazer-se valer, na medida em que nos entregamos por
completo à força do pensar e não deixamos valer as idéias e opiniões que pareciam
lógicas e naturais. Platão une a dialética eleática, que conhecemos sobretudo por
Zenão, com a arte socrática da conversação, e a eleva em seu Parmênides, a uma
nova etapa da reflexão. O fato de que, na conseqüência do pensamento, a coisa se
inverta sob nossa mão e se converta em seu contrário, que o pensamento ganhe
força “ainda que sem conhecer o ‘quê’, mas extraindo tentativamente conclusões, a
partir de supostos contrários”, tal é a experiência do pensamento, a que apela o
conceito hegeliano do método como autodesenvolvimento do pensamento puro na
direção do todo sistemático da verdade.139

Castanheira Neves salienta ainda, a diferenciação entre o conceito de

discurso, o de raciocínio e o de juízo, cuja explanação é apresentada na seqüência,

assim sendo,

O discurso é uma mediação estruturada do pensamento ou uma articulação


intencionalmente unitária entre sucessivos elementos do pensamento – “uma
operação de pensamento é dita discursiva quando ela atinge o fim a que tende por
uma série de operações parciais intermédias” (LALANDE). E o raciocínio é o
elemento concludente do discurso: é aquele seu elemento noético que opera com
base em relações lógicas de algo (princípio, premissa, etc.) a algo (conclusão,
consequência, etc.) e permite desse modo (mediata e discursivamente) obter
conclusões. Se dissermos, com PIERCE, “ilativas” aquelas relações lógicas, o
raciocínio será então “uma cadeia ilativa que, orientada para um fim de
conhecimento (teórico ou prático), conduz duma premissa inicial tida por adquirida
a uma conclusão final” (...). E consoante o tipo das relações lógicas ou ilativas,
teremos raciocínios dedutivos, indutivos, abdutivos, analógicos, etc.
E o “juízo” não se identifica com o raciocínio, pois tem uma índole intencional
diferente. Decerto que não é impossível redutivamente identificá-los, dizendo, p.
ex., que a lógica é sobretudo a “ciência do juízo” (...). Só que sempre haverá
necessidade de se distinguir desse juízo puramente lógico, e em todos os seus tipos
lógicos – o juízo enquanto inferência –, o juízo enquanto julgamento – o juízo que
realiza o sentido prático de julgar ou o juízo do julgamento prático (...). É esse juízo
que aqui queremos especificamente considerar, reconhecendo que ele, se encontra
num discurso o seu modus operandi e em raciocínios a sua estrutura lógica, o que

139
GADAMER, H.G. Idem, ibidem.
82

tem noeticamente de específico reside na sua particular índole prático-


argumentativa. Sabe-se que um argumento não é uma premissa (proposição
pressuposta de uma inferência necessária) – com ele constitui-se antes uma racional
conexão-passagem de certas proposições ou posições a outras proposições ou
posições num sentido intencional e materialmente justificativo ou fundamentante,
em referência ao contexto de pressuposição significante de uma situação
comunicativa e em termos de essa conexão racional se oferecer nessa situação
comunicativa como concludentemente inovadora (...).140

Resta ainda, contudo, esclarecer um pouco mais acerca do conceito de

razão, bem como sobre o conceito de racionalidade, cuja problemática apresenta na

atualidade, no entender de Castanheira Neves, um dos temas mais complexos e

controversos. Segundo ele,

Ratio, se implica etimologicamente “relação” (cálculo, ponderação), no domínio


cultural da racionalidade significa decerto relação discursiva (...).
Trata-se, naquele primeiro sentido, da relação entre uma certa posição ou conclusão
e certos pressupostos, sejam materiais (como fundamentos, causas, fins, motivos,
etc.), sejam formais (como um sistema de cânones ou “processo”, um sistema
institucionalizado de regras procedimentais, etc.) que discursivamente a sustentam
– conferindo-lhe um sentido ou concludência, explicando-a ou justificando-a. Uma
posição ou conclusão diz-se assim racional quando é sustentável pela referência a
certos pressupostos, através de uma medição estruturada de pensamento – quando
deste modo manifesta a sua “razão-de-ser”. Por isso a antítese da “razão” têmo-la
na “intuição” e na “emoção”, enquanto atitudes vivenciais sem medição pelo
pensamento e o seu discurso e, portanto, também sem pressupostos de
fundamentação e justificação – que o mesmo é dizer, sem validade (ou pretensão de
validade) transubjectiva ou objectiva. O que nos permite dizer que a racionalidade
(MAX WEBER) será a característica de um pensamento que tem ou se propõe ter
validade objectiva (V. J. HABERMAS, Theorie des kommunikativen Handelns, I, p.
27) e que esta validade se afere pela “capacidade de fundamentação” e pela
“criticibilidade” (cfr. HABERMAS, ibid., p. 27 ss.) da medição racional-discursiva
das afirmações desse pensamento (das posições ou conclusões por ele
manifestadas).141

140
NEVES, A. C. Idem, p. 30.
141
NEVES, A. C. Idem, p. 34.
83

E apresenta a discriminação entre o que ele chama de três modalidades

básicas (intencionais e estruturais) de racionalidade, a saber:

1) A racionalidade de pura discursividade ou de exclusiva relação entre proposições


num modo de inferência necessária entre elas (proposições implicam certas
proposições), segundo regras que exprimem uma estrutura estritamente
“sintáctica”, e cuja validade se afere pela mera compossibilidade entre esses
elementos proposicionais – a fundamentação que exige e a criticibilidade que
permite esgotam-se no respeito por essa estrutura de compossibilidade. É a
racionalidade puramente lógica ou do discurso lógico. A lógica é a “ciência da
verdade de proposições com fundamento unicamente na forma” (a = b = c, a = c),
posto se possa pensar ou numa concepção “ontológica” ou numa concepção
“pragmática” da lógica (...).
2) A racionalidade de um discurso de referência objectiva, mediante uma relação
(ou o esquema) sujeito/objecto, que por isso se poderá dizer teórico (teoria = visão,
contemplação, e que os romanos traduziram mesmo por contemplatio – (...) ) e com
uma validade que se pretende medir pelo próprio objecto referido – pela
correspondência à realidade heterónoma que o objecto (ob-jectum) postula ou,
segundo a formulação clássica, pela adequatio rei et intellectus e que tabém(sic)
classicamente se diz verdade (...).142

Segundo ele, esta última apresenta especificamente três subtipos de

discursos, ou seja, em primeiro lugar, “o discurso que se tem pela racionalidade das

próprias coisas ou pela explicitação da realidade objectiva (transcendente) em si, como

o inter-legere, se não o espelho (speculum) discursivo dela e que por isso se dirá

discurso ‘intelectual’ ou puramente especulativo – o discurso da racionalidade em que

a validade se identificaria com a verdade – e que ia na intenção clássica do pensamento

e da filosofia ontológico-metafísicos”143; em segundo lugar, “o discurso de construções

racionais de universalidade explicativa ou teorias: onde cada elemento objectivo

142
NEVES, A. C. Idem, p. 35.
143
NEVES, A. C. Idem, ibidem.
84

referenciado encontra a sua razão de ser ou fundamento explicativo em outros

elementos objectivos segundo uma certa conexão e no todo da conexão, conexão ou

todo da conexão que se concebem universais e assim necessários para todos os

elementos objectivos da mesma natureza”144, discurso esse cuja validade, “é uma

validade cognitiva que acaba por sustentar-se num modelo processual ou

procedimental de construção (teórica) e de comprovação (empírica) – pelo que essa sua

validade é afinal validade metodológica”145 e; por último, o discurso “que se

matém(sic) numa referência objectiva à realidade, mas em que a realidade é apenas

considerada como condição e possibilidade para a consecução de certos fins propostos

ou programados, segundo uma relação funcional (função-efeitos) ou o esquema

‘técnico’ (meio-fim), e no qual a validade é a adequação funcional ou aptidão

instrumental e a racionalidade eficiência ou eficácia – é o discurso funcional ou

instrumental e de uma racionalidade funcional técnico-finalística.”146

Já a terceira modalidade de racionalidade é apresentada por ele da

seguinte maneira:

3) Como terceiro tipo de racionalidade, havemos de considerar o que não se limita à


compossibilidade (lógica) e não se realiza numa referência objectiva (seja teórico-
especulativa, seja teórico-explicativa, seja funcional-técnica) e sim numa actividade
comunicativa, numa relação entre sujeitos segundo o esquema sujeito/sujeito (...).
Manifesta-se ela num discurso argumentativo, numa troca comunitária e dialógico-
dialéctica de argumentos. Discurso que não visa deste modo nem a inferência ou a
demonstração necessárias, nem o conhecimento verdadeiro e a explicação
universais, nem a adequação e a aptidão funcionais e técnicas mas a plausibilidade

144
NEVES, A. C. Idem, p. 36.
145
NEVES, A. C. Idem, ibidem.
146
NEVES, A. C. Idem, ibidem.
85

razoável-situacional e prático-contextual – nem a necessidade da compossibilidade


(compossibilidade sintáctico-estrutural), nem a verdade (a correspondência ou a
adaptação à realidade), mas a validade em sentido prático estrito (a fundamentação
ou justificação comunicativas). Trata-se da racionalidade prática, em que vai
excluído o absoluto e o impessoal (quer no modo de uma estrutura formal
pressuposta, quer no modo de uma “consciência em geral”, quer no modo de um
solipsismo metódico-objectivo) e antes afirmado o histórico-concreto e a
intencionalidade pragmática (a não confundir com a intencionalidade
“técnica”...)147

Pode-se agora, a partir de tudo o que foi visto até o momento, refletir

acerca da emancipação humana propriamente dita, e de como chegar até ela, visto que

o ponto de onde se parte quando se fala em emancipação é sempre o de limitação,

restrição ou até mesmo o de total ausência de liberdade ou possibilidade de ação, ou

melhor, só se fala em emancipação se temos dentro de um determinado contexto uma

situação de exploração, escravização e ou dominação.

Quer-se aqui, dessa forma, colocar não apenas uma preocupação com

o homem de uma maneira geral, e sobretudo em sua realidade existencial complexa

através da relação com os demais, mas sim, apresentar uma proposta, como viu-se

anteriormente, que seja inovadora e que se entrelace com a tradição. Assim sendo, o

que virá apresentado na seqüência nada mais é do que uma tentativa, uma proposta

mesmo, dentre tantas outras que possam vir a existir, de como superar a perda de

liberdade supra citada, atribuída por Habermas ao desacoplamento entre sistema e

mundo da vida.

147
NEVES, A. C. Idem, ibidem.
86

Busca-se assim, desenvolver o que Siebeneichler chama de “uma visão

de conjunto – ‘macroscópica’ – em condições de enfrentar o problema da colonização

do mundo da vida e capaz de revelar para o sujeito humano o sentido dos diferentes

fragmentos dos sistemas nos quais a sociedade, a ciência, a arte, a educação, etc. estão

se decompondo, ou seja, uma visão que torne possível relacionar entre si esses

fragmentos e, em última instância, com a vida humana, a nível do sujeito e da

sociedade.”148

É a partir dessa idéia de visão, de uma visão de conjunto que

possibilite integrar os aspectos sistêmicos com os aspectos do mundo da vida, que se

busca uma justificação plausível para a utilização dos esquemas gráficos, à semelhança

dos apresentados no capítulo 1, para uma explicação que leve em conta a necessidade

de ter coerência, validade e unidade com relação ao que se quer refletir. Além disso,

Siebeneichler apresenta três condições estabelecidas pelo próprio Habermas para se

obter uma visão de conjunto das sociedades complexas, a saber:

1 – A possível saída não pode dar-se fora dos trâmites da razão.


2 – Além disso, caso ela realmente exista, sua tarefa consistirá em propiciar uma
visão de conjunto, macroscópica.
3 – É preciso tentar uma mediação hermenêutica e interdisciplinar em três níveis
distintos, a saber: a) entre a filosofia e o sistema das ciências; b) entre a ciência, a
moral, o direito e a arte; c) entre a filosofia, as ciências, a moral, a arte e a vida
cotidiana.149

148
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, p. 40.
149
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, ibidem.
87

O próprio Habermas, demonstrando a necessidade de proteger o

mundo da vida de uma possível colonização por parte do sistema, afirma que isso “só

poderia funcionar se ao mesmo tempo adviesse uma nova partilha do poder. As

sociedades modernas dispõem de três recursos que podem satisfazer suas necessidades

no exercício do governo: o dinheiro, o poder e a solidariedade. As esferas de

influência desses recursos teriam de ser postas em um novo equilíbrio. Eis o que quero

dizer: o poder de integração social da solidariedade deveria ser capaz de resistir às

‘forças’ dos outros dois recursos, dinheiro e poder administrativo.”150 Habermas mais

adiante, buscando explicar melhor essa idéia de esferas de influência e como a teoria

dos sistemas apresenta como resultado uma política simbólica a partir da relação entre

o que ele chama de um público de cidadãos e um público de clientes, serve-se agora do

modelo utilizado de forma corrente pela ciência política, ou seja, o de arenas, e

apresenta a distinção dessas arenas feitas por Claus Offe e na seqüência apresenta o seu

posicionamento frente a isso, ao que ele mesmo escreve:

... arenas diferentes sobrepondo-se umas às outras. Claus Offe, por exemplo,
distingue três dessas arenas. Na primeira, facilmente reconhecível, elites políticas
levam a termo suas resoluções de dentro do aparelho estatal. Abaixo está uma
segunda, na qual um grande número de grupos anônimos e de atores coletivos
influem uns sobre os outros, formam coalizões, controlam o acesso aos meios de
produção e comunicação e, já menos nitidamente reconhecível, delimitam
progressivamente (através do seu poder social) o campo para a tematização e
resolução de questões políticas. Por fim, uma terceira arena encontra-se abaixo, na
qual fluxos de comunicação dificilmente palpáveis determinam a forma da cultura
política e com ajuda de definições de realidade rivalizam em torno do que Gramsci
chamou hegemonia cultural – aqui realizam-se as reviravoltas nas tendências do
espírito da época. A reciprocidade entre as arenas não é fácil de captar. Até agora
os desdobramentos parecem ter primazia na arena do meio. Saia como se sair a

150
HABERMAS, J. A nova intransparência, p. 112. Os grifos são nossos.
88

resposta empírica, agora nosso problema prático deixa-se apreender mais


concretamente: todo projeto que quiser redirecionar forças em favor do exercício
solidário do governo tem de mobilizar a arena inferior ante as duas de cima.”151

Sendo assim, a fim de prosseguir com a explanação de um projeto que

intente realizar o que Habermas afirma, ou seja, redirecionar a solidariedade, com fins

de equilibrar as forças, frente ao dinheiro e ao poder, faz-se necessário, antes de tudo,

retomar a discussão a partir da questão mesma do processo de formação do homem, ou

seja, quais os elementos necessários que o caracterizam como tal. A resposta a essa

colocação está diretamente ligada à crítica que Habermas faz à racionalidade

instrumental que prometia levar o homem a uma emancipação a partir do progresso da

ciência e da técnica. Siebeneichler apresenta o problema da seguinte forma, “onde

apoiar o processo de emancipação, uma vez que está excluída a identificação pura e

simples da emancipação com o progresso da ciência e da técnica?”152; e na seqüência

apresenta a resposta de Habermas a partir dos três mediuns dialéticos, a saber:

linguagem, trabalho e eticidade (ou ainda família ou interação), buscados em Hegel a

partir de suas lições em Jena, ao que Siebeneichler afirma:

Habermas concorda com Hegel que o processo de formação, que culmina numa
identidade racional, dá-se através do emprego de símbolos lingüísticos (dar nome
às coisas), da utilização de instrumentos (trabalho), que leva à satisfação de
carências e necessidades humanas, à libertação em relação à fome e à fadiga, bem
como através do agir voltado para a reciprocidade (interação), que leva à libertação
da escravidão e da degradação humana.153

151
HABERMAS, J. Idem, p. 113. Os grifos são do autor.
152
SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação, p. 48.
153
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, ibidem.
89

Ainda que o Hegel posterior não derive “mais a unidade dos três

mediuns do processo de formação do homem a partir do nexo entre trabalho e

interação. Porque esta unidade já é dada anteriormente, na dialética do conhecer-se a si

mesmo no outro. E sendo assim, linguagem, trabalho e interação não são mais

considerados elementos heterogêneos, que é preciso separar dialeticamente”154;

Habermas mantém sua posição enfatizando a necessidade rigorosa em distinguir

trabalho e interação. Quer-se aqui, contudo, mantendo juntamente com Habermas a

distinção entre trabalho e interação, não excluir a linguagem dessa distinção,

garantindo a cada um dos três mediuns sua autonomia categorial com relação aos

demais. Dessa forma pode-se assim afirmar, que o homem caracteriza-se como tal, ou

seja, só o é de fato, porque nele se cruzam não três mediuns, mas sim três eixos que

fazem com que este homem tenha assim sua existência marcada e pontuada no tempo e

no espaço, ou como afirma Habermas, num tempo histórico e num espaço social. Faz-

se aqui essa distinção não porque não se possa falar em mediuns, mas apenas para

tentar superar a dicotomia entre o individual, ou seja, o particular; e o social, isto é, o

universal.

Assim sendo, o indivíduo situa-se, ou melhor só apresenta-se como

tal, no cruzamento dos três eixos, agora tendo cada um deles seu nome distintivo, ou

seja, a linguagem, o trabalho e a eticidade. Com isso o que se pretende é distinguir

num primeiro momento como o homem, ou ainda, o indivíduo, pode ser tratado a partir

154
SIEBENEICHLER, F. B. Idem, ibidem.
90

do aspecto subjetivo, depois considerar como uma abordagem objetiva afeta o seu

processo emancipatório, para posteriormente poder considerá-lo no aspecto

intersubjetivo. Não se quer aqui simplesmente repetir a máxima de Protágoras, com

seu princípio do homo mensura, de que o homem é a medida de todas as coisas, mas

afirmar mesmo, que mais que medida, é no homem mesmo que se dá a síntese de todas

as coisas, ou seja, a síntese entre linguagem, trabalho e eticidade dá-se apenas no

homem, pois a elas está sujeito (do latim, subjectus, a, um = lançado debaixo), ou seja,

submetido, como pode-se observar na figura 13.

FIGURA 13 – O HOMEM ENQUANTO SUJEITO


Trabalho O Homem como
sujeito

Linguagem

Eticidade

O aparente paradoxo proveniente do fato do homem ser e estar sujeito

pode ser desfeito ao se demonstrar os efeitos advindos das tentativas de objetivação do

homem, ou do ser humano, tentando-se fugir ou desligar de qualquer um dos três eixos

mencionados, tentativa essa sempre frustrada, visto que no cruzamento mesmo de dois

dos três eixos aparece sempre o terceiro eixo, eixo esse do qual se tenta desligar, de
91

forma latente. Assim, observe-se a figura 14 que demonstra o que significa essa

objetivação, isto é, quando tomamos o homem não por sujeito, mas por objeto (do

latim objectus, a, um = lançado diante).

FIGURA 14 – A PROJEÇÃO DO SUJEITO: O OBJETO

Trabalho
Objeto
(Sujeito projetado)

Objeto Sujeito
(Sujeito projetado)

Linguagem

Objeto
Eticidade (Sujeito projetado)

O projetar-se do sujeito, ou a projeção do sujeito por parte daquele(s)

que o quer(em) ver projetado, ou melhor, como um objeto, demonstra através da figura

o que Chaui afirma sobre a diferenciação que o filósofo alemão Martin Heidegger faz a

respeito das palavras ôntico e ontológico, a saber: “Ôntico se refere à estrutura e à

essência própria de um ente, aquilo que ele é em si mesmo, sua identidade, sua

diferença em face de outros entes, suas relações com outros entes. Ontológico se refere
92

ao estudo filosófico dos entes, à investigação dos conceitos que nos permitam conhecer

e determinar pelo pensamento em que consistem as modalidades ônticas, quais os

métodos adequados para o estudo de cada uma delas, quais as categorias que se

aplicam a cada uma delas. Em resumo: ôntico diz respeito aos entes em sua existência

própria; ontológico diz respeito aos entes tomados como objetos de conhecimento.”155

Assim, quando Heidegger apresenta o homem como Dasein (ser-aí)

ele o faz afirmando que o homem é um ser-no-mundo (In-der-welt-sein), contudo um

ser angustiado face à morte, ou seja, o homem sente-se como um ser-para-a-morte.

Chaui analisando a partir de Heidegger como o homem reage frente à essa realidade

afirma o seguinte:

A partir desse estado de angústia, abre-se para o homem, segundo Heidegger, uma
alternativa: fugir de novo para o esquecimento de sua dimensão mais profunda, isto
é, o ser, e retornar ao cotidiano; ou superar a própria angústia, manifestando seu
poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo. Aqui surge um dos
temas-chave de Heidegger: o homem pode transcender, o que significa dizer que o
homem está capacitado a atribuir um sentido ao ser. O homem está naturalmente
fora de si mesmo, sobre o mundo, em relação direta com o mundo que ele produz e
para o qual ele se projeta incessantemente: “Produzir diante de si mesmo o mundo é
para o homem projetar originariamente suas próprias possibilidades”.
Entretanto, nesse projetar-se sobre o mundo, o homem não estaria sozinho. Ele é
um ser-com, um ser-em-comum e isso se manifesta sobretudo no trabalho, mas
ainda mais profundamente na solicitude por outrem, fato que conduz ao amor e à
comunicação direta. É principalmente em relação a si mesmo e a seu próprio futuro
que o homem não cessa de transcender-se. O ser humano jamais seria um ser
acabado e nunca seria tudo aquilo que pode ser; estaria sempre diante de uma série
infinita de possibilidades, sobre as quais se projeta. Estabelecendo um estado de
permanente tensão entre aquilo que o homem é e aquilo que virá a ser, essa
projeção constituiria a inquietação. A inquietação estrutura o ser do homem dentro
da temporalidade, prendendo-o ao passado, mas, ao mesmo tempo, lançando-o para
o futuro. Assumindo seu passado e, ao mesmo tempo, seu projeto de ser, o homem

155
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia, p. 238. Os grifos são nossos.
93

afirma sua presença no mundo. Ultrapassa então o estágio da angústia e toma o


destino nas próprias mãos.156

Contudo, essa saída heideggeriana apresenta o paradoxo que o ser

humano enfrenta em sua existência, ou seja, diante desse estado permanecer

angustiado, fugindo de uma reflexão acerca de sua própria condição, ou tentar superar

essa angústia projetando-se sobre o mundo. Esse projeto (do latim projectus, a, um =

lançado, alongado, abandonado) ao mesmo tempo que busca superar a angústia da

condição humana ao tentar transcendê-la, abandona no ato mesmo da projeção aquilo

que o ser humano tem como característica de sua condição propriamente humana. Mas

apesar disso, apesar dessa constante tensão, dialética, porque não dizer, pode-se atingir

o estado de inquietação, justamente porque a solução não encontra-se na projeção,

mas no retorno que se faz depois dela, através de um processo crítico de reflexão

mesmo. Essa seria a dimensão dialética do próprio homem, diante de uma situação

aparentemente de crise, ao estabelecer determinado aspecto ou circunstância como

tese, ou melhor, ao defrontar-se com algo dado já afirmado, busca ele superar tal

situação negando-a, isto é, estabelecendo sua antítese, contudo, a resposta satisfatória

frente ao problema que se coloca só apresenta-se a partir do momento em que este

nega a própria negação, realizando assim o retorno, mas não ao mesmo lugar e nas

mesmas condições, mas concluindo um processo de síntese capaz de lhe dar sentido.

156
CHAUI, Marilena de Souza. Vida e Obra. In: Heidegger (Coleção Os Pensadores), p. 9.
94

Com relação ainda ao pensamento heideggeriano, Habermas diz que

“a análise do Dasein, realizada em Ser e Tempo, permaneceu, em geral, uma teoria do

‘encontrar-se-no-mundo’, por mais existencialmente enraizada que estivesse. Isto

explica o contraste, sempre de novo observado, entre a pretensão a um pensamento

histórico radical e a abstracção da historicidade, persistentemente preservada nos

próprios processos históricos (enquanto condicionamento para uma experimentação

histórica, em geral).”157 E mais adiante afirma que, “Heidegger, com a imposição da

invariável constituição fundamental do Dasein, obstruiu, logo desde o início, o

caminho de uma historicidade para uma história real. Em seguida, Heidegger não

encontra a dimensão da socialização e da intersubjectividade, com o estatuto do ‘Mit-

sein’ (estar-com) simplesmente derivado.”158 Contudo, desde logo, interessa

demonstrar como se dão as correlações entre os sujeitos, ou seja, a socialização e a

intersubjetividade que, segundo Habermas, Heidegger não atingiu. Antes, porém, vale

ressaltar a exposição daqueles três eixos supra citados, mas agora levando-se em conta

a racionalidade própria a cada um deles, ou ainda, qual aspecto da razão é específico e

correspondente a cada um. Assim, pode-se observar na figura 15 o que acaba de ser

exposto.

157
HABERMAS, J. Martin Heidegger – Obra e concepção do mundo. In: Textos e contextos, p. 53.
158
HABERMAS, J. Idem, p. 55.
95

FIGURA 15 – OS EIXOS E SUAS RACIONALIDADES

Razão Instrumental
O Homem como
(Trabalho)
sujeito

Razão Comunicativa
(Linguagem)

Razão Estratégica
(Eticidade)

Com isso, a saída proposta para a emancipação humana não se faz fora

dos trâmites da razão. A razão comunicativa apresenta-se como sendo aquela capaz de

trazer o homem de volta ao seu lugar de sujeito, justamente por ser o aspecto de uma

racionalidade comunicativa, frente às racionalidades instrumental e estratégica, o que

permite suprir os elementos que faltam para a integração e realização do homem no seu

todo. Assim, o que se quer é afirmar a necessidade da razão comunicativa sim, mas não

apenas ela, visto que racionalidade comunicativa, instrumental e estratégica fazem

parte e compõem a razão humana, que têm sua unidade e ponto de integração, sua

síntese mesmo, no próprio homem. Veja-se, por exemplo, o caso da emancipação

humana, que tem muitas vezes sua busca e sua luta em aspectos que ainda são faltantes

ou deficitários no que possibilitaria a emancipação do homem como um todo; mas,

muitas vezes, por ser mais grave um aspecto do que outro, seja ele o social, o político

ou ainda o econômico, quer dizer, muitas vezes fala-se apenas em emancipação


96

política por já estar pressuposto que não é preciso lutar, ao menos por ora, pelos outros

dois aspectos de emancipação, sejam eles o social e o econômico. Da mesma forma,

fala-se da necessidade em se buscar cada vez mais desenvolver e utilizar uma

racionalidade comunicativa, justamente por ser esta a racionalidade por ora em déficit

no ser humano, para fazer frente, ou melhor, possibilitar uma integração com as outras

formas de racionalidades já presentes e bem desenvolvidas junto ao homem e à

sociedade. Não se quer aqui propor meramente a troca de uma pela outra, mas sim,

afirmar a necessidade de equilibrar as forças entre as três; e isso só pode ser feito no

contexto próprio do mundo da vida, visto que ao tratar-se cada uma delas isoladamente

cai-se necessariamente no campo de um objetivismo sistêmico.

A partir daqui, pode-se ir construindo aquela visão macroscópica,

saindo do aspecto meramente subjetivo, ou da formação do indivíduo, e passando-se

agora a um aspecto intersubjetivo, através da relação dos homens entre si. Para isso,

observe-se a figura 16, que já segue apresentando os elementos presentes tanto sob o

aspecto sistêmico, como também a integração desses mesmos aspectos de forma

intersubjetiva, no mundo da vida, tendo a subjetividade própria de cada ser humano

como o ponto de síntese que caracteriza a individualidade de cada um, tão necessária

na formação do aspecto coletivo da humanidade. A partir do momento em que os

aspectos intersubjetivos estão presentes, bem como as racionalidades específicas a

cada um dos três eixos, o aspecto sistêmico encontra-se como que subsumido ao

mundo da vida, estando acoplado um ao outro.


97

FIGURA 16 – ACOPLAMENTO ENTRE SISTEMA E MUNDO DA VIDA

Razão Instrumental
(Trabalho)

Sistema ECONÔMICO
Sistema SOCIAL
Plano do Dinheiro
Plano da Solidariedade
(distribuição x acumulação)
(cooperação x competição)

Integração dos aspectos


sistêmicos no contexto
intersubjetivo do
Mundo da Vida

Razão Comunicativa
(Linguagem)

Sistema POLÍTICO
Plano do Poder
(consenso x dissenso)
Razão Estratégica
(Eticidade)

Portanto, pode-se assim denominar e diferenciar as categorias

utilizadas nessa visão macroscópica, isto é, entre as categorias ditas individuais ou

pontuais, que podem ser objetivas (bidimensionais) ou subjetivas (tridimensionais), a

saber: a linguagem, o trabalho e a eticidade, ou ainda, respectivamente, sob o âmbito

da razão: a racionalidade comunicativa, a racionalidade instrumental e a racionalidade

estratégica; e ainda aquelas categorias ditas coletivas, cuja constituição pressupõe as

categorias supra citadas, que podem ser planas ou espaciais, podendo ainda, ser

objetivas (nos sistemas) ou intersubjetivas (no mundo da vida), a saber: o poder, a


98

solidariedade e o dinheiro. Contudo, tais categorias são dialéticas, ou seja, cada uma

delas tem em si uma tensão constante tentando determiná-las, ou seja, com relação ao

poder, por exemplo, a expansão de poder através do consenso intersubjetivo, e que será

refletida objetivamente no sistema político, sendo esta uma característica determinante

do mundo da vida sobre o sistema, e não o contrário, já que a tentativa do sistema em

determinar o mundo da vida seria apenas reflexiva, e tiraria deste sua característica

intersubjetiva, ou segundo afirma Habermas, o sistema colonizaria assim o mundo da

vida, colonização essa que teria como resultado justamente uma concentração objetiva

de poder, fruto do dissenso e, conseqüentemente, um poder mantido por uma força

coerciva.

A questão é saber se no âmbito do poder haverá expansão ou

concentração de poder, justamente pela maior ou menor participação de sujeitos

envolvidos no processo, ou seja, se respectivamente a síntese dialética atingida será

baseada no consenso democraticamente produzido (que realiza-se justamente na busca

de superação do dissenso de forma discursiva por parte de todos os sujeitos

envolvidos), ou no dissenso (muitas vezes estabelecido, instituído, como um consenso

imposto coercivamente por um número mínimo de sujeitos envolvidos no processo de

decisão a um número maior de afetados que serão atingidos de alguma forma por tal

medida).

Ora, está aqui se discutindo não se haverá consenso ou dissenso

simplesmente, mas antes, buscar saber se os sujeitos envolvidos (pertencentes ao


99

mundo da vida) são tratados como tal ou, se relega-se seu poder de decisão a outros, e

sistemicamente os exclui, tratando-os como objetos. A democracia radical

habermasiana dá-se justamente aqui, ou seja, todos são sujeitos e como tal estão aptos

a participar de uma comunidade, que só não é ainda, uma comunidade ideal de

comunicação porque lhes é negado o tratamento adequado e conforme sua condição

humana. Coisifica-se o ser humano e passa-se a tratá-lo como objeto, com o argumento

de que não é possível a participação de todos, seja ouvindo, opinando ou decidindo, e

dessa forma, para a manutenção do funcionamento do sistema, dentro do qual não há

necessidade de sujeito algum, ou seja, nega-se-lhe, ideologicamente, através da

utilização de um discurso metodicamente construído, sua realização enquanto o que ele

é, isto é, um ser humano.

Analogamente, com relação ao dinheiro e à solidariedade da mesma

forma, ou seja, é através de um tratamento intersubjetivo, tratamento esse que não é

concedido benevolamente por nenhum outro sujeito, isto é, não é nenhum favor que se

faz quando trata-se o homem como homem, em sua dignidade propriamente humana,

sujeito de e à sua própria história. Tê-lo por objeto é simplesmente coisificá-lo a ponto

dele poder ser manipulado, e daí a recusa dos integrantes da Escola de Frankfurt em

trabalhar suas reflexões a partir do conceito de massa. Se há democracia, autêntica, não

há massa, a massa não pensa, não reflete, não decide. Com relação a isso, Chaui afirma

que “para os pensadores da Teoria Crítica, a cultura dita de ‘massa’ é a negação de

uma cultura democrática, pois em uma democracia não há massa; nela, o aglutinado
100

amorfo de seres humanos sem rosto e sem vontade é algo que tende a desaparecer para

dar lugar a sujeitos sociais e políticos válidos.”159

Portanto, aqui abre-se espaço para o desenho de um projeto de utopia,

não como sendo este o projeto do irrealizável, do sonho distante e impossível, mas sim

como aquilo que ainda não tem lugar, mas que pode vir a ter, em contraposição

justamente a um niilismo e à possibilidade, infelizmente não muito remota, da

aniquilação do ser humano poder ser realizada por ele mesmo. Com isso, resta saber

para qual espécie de utopia a humanidade caminha. Tal afirmação pode ser ilustrada

pelo esquema da figura 17.

FIGURA 17 – POSSIBILIDADE DA UTOPIA

Desenvolvimento
Evolução
Utopia
consenso cooperação distribuição

poder solidariedade dinheiro

dissenso competição acumulação


Niilismo
Destruição
Aniquilação

159
CHAUI, M. S. O discurso competente, p. 8.
101

A factibilidade de tal utopia depende menos das condições existentes

na realidade, do que de uma postura e um resgate do homem de sua condição de sujeito

de sua história, mas não como se realizasse sua história e determinasse sua vida

sozinho, subjetivamente apenas, mas levando em conta que só se realizará e atingirá

sua felicidade se sua subjetividade for posta não em função da objetivação de outros

homens, mas sim, como elemento necessário para que uma intersubjetividade

realmente autêntica aconteça.

Não compete aqui responder como se dará tal emancipação, para

aqueles que ainda estiverem sendo tratados objetivamente, nem mesmo afirmar se

compete àqueles que já são sujeitos, ou tentam a todo custo não deixar-se objetivar,

restaurar ou levar àqueles que estejam dominados, explorados ou até mesmo

escravizados em sua condição humana, o sucesso e a responsabilidade de tal

empreitada rumo à emancipação. Contudo, vale lembrar que mesmo aqueles que

aparentemente tenham sua subjetividade negada, e consequentemente, negada também

sua possibilidade de atuar no mundo da vida intersubjetivamente, possuem e gozam

daquela resistência e inquietação típicas de cada ser humano. Ainda que o fato destes

verem negados, através dos sistemas, sua subjetividade, tal negação tenta esconder na

realidade, ideologicamente, aquilo que de fato não pode ser escondido, ou seja, a

existência mesmo destes homens no mundo da vida. Ademais, nenhuma colonização

sistêmica ao mundo da vida poderia esconder por muito tempo, ou suportaria a

pressão, caso todos esses homens manipulados em sua condição humana, se

insurgissem contra o processo coisificante que se lhes impôs e, resgatassem a autoria


102

do discurso e curso de suas próprias vidas. Esse sim, é o desejo mais genuinamente

humano de que se tem notícia ao longo de toda a história da humanidade.

Como bem salienta Foucault, “por mais que o discurso seja

aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo,

rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto

que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que

manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que

– isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que

traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o

poder do qual nos queremos apoderar.”160

Concluindo, pode-se aqui refrisar as palavras de Habermas contidas na

epígrafe desse trabalho, sem querer assim afirmar se o que aqui foi proposto ou

apresentado resultou do empreendimento de uma reflexão bem-sucedida.

Os filósofos não são capazes de transformar o mundo. O que nós necessitamos é de


um pouco mais de práticas solidárias; sem isso, o próprio agir inteligente
permanece sem consistência e sem conseqüências. No entanto, tais práticas
necessitam de instituições racionais, de regras e formas de comunicação, que não
sobrecarreguem moralmente os cidadãos e, sim, elevem em pequenas doses a
virtude de se orientar pelo bem comum.
O resto de utopia que eu consegui manter é simplesmente a idéia de que a
democracia – e a disputa livre por suas melhores formas – é capaz de cortar o nó
górdio dos problemas simplesmente insolúveis. Eu não pretendo afirmar que iremos
ser bem-sucedidos nesse empreendimento. Nós nem ao menos sabemos se é dada a
possibilidade desse sucesso. Porém, pelo fato de não sabermos nada a esse respeito,
devemos ao menos tentar. Sentimentos apocalípticos não produzem nada, além de
consumir as energias que alimentam nossas iniciativas. O otimismo e o pessimismo
não são as categorias apropriadas a esse contexto.161

160
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, p. 10.
161
HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro, p. 94.
103

CONCLUSÃO

Pode ter o homem, o ser humano, e conseqüentemente a humanidade

toda, a sociedade, esperança de alcançar, conquistar e manter sua liberdade através de

um processo de emancipação? Ligadas a essa questão estão outras duas que darão

sentido completo à primeira, ou seja, saber se tem o homem necessidade disso e, se

assim conseguirá fruir da felicidade?

A resposta a essas questões não são simples e não se quis através desse

estudo ter a pretensão de esgotar as possibilidades de respostas ou dar uma resposta

definitiva, mas contudo, a preocupação com o ser humano em função das dificuldades

em responder tais questões não pode ser abandonada, sendo esta preocupação o que

orientou e serviu como baliza para que não se incorresse justamente naquelas

possibilidades de erros de análise que aqui buscou-se criticar, chamando-se a atenção

para a necessidade de não se perder o foco de que é o homem o elemento de síntese do

qual e para o qual convergem todas as ações.

Quando Habermas diz que os filósofos não são capazes de transformar

o mundo ele está corretíssimo em sua afirmação, haja vista o papel dos filósofos na

história da humanidade e mesmo na história da filosofia, quando, à semelhança da

alegoria utilizada por Platão na célebre passagem do mito da caverna, fica claro que o

papel pela transformação do mundo é de cada um e, por conseguinte, de todos.


104

Contudo, essa transformação só será atingida quando, em primeiro

lugar, o homem em sua condição de escravo, cujo representação de mundo que este

possui é o de um mundo de sombras, for levado a tomar consciência de sua condição e

mais que isso, consciência de todo o seu potencial frente a um mundo novo que se

apresenta, um mundo da vida efetivamente. Marx sabia disso, e conclama todos os

trabalhadores a tomarem consciência da dominação a que estavam submetidos, tendo

sido Marx na ocasião aquele que retorna à caverna depois de contemplar tudo aquilo

que os que estavam dentro dela estavam deixando de fruir. No entanto, a análise de

Marx foi a possível à época, dados os contextos históricos por ele vividos, e em grande

parte tudo aquilo que o motivou a chamar a atenção e o fruto mesmo de sua reflexão

permanecem ainda hoje.

O próprio Marx colheu do pensamento de Hegel elementos dos quais

se utilizou para elaborar sua teoria e desenvolver seu próprio pensamento, contudo,

assim como a dialética não passou a existir, ou melhor, a explicar a realidade apenas a

partir do momento em que Hegel a criou, mas pode-se retroativamente ver o

movimento dialético da história antes mesmo de Hegel, de forma análoga, pode-se

afirmar que quando Habermas afirma que Marx compreende a realidade social de sua

época a partir apenas de uma razão instrumental, não significa que devamos assim

condenar o pensamento marxista em função disso. O fato de Marx não ter

desenvolvido o conceito de uma racionalidade instrumental, tarefa realizada algumas

décadas depois pelos teóricos da primeira Escola de Frankfurt, mais especificamente

por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, não significa que tal conceito não possa
105

ser a posteriori utilizado para interpretar melhor a complexidade das relações humanas

desde o tempo de Marx. Dessa forma, quando Habermas chama a atenção para a sua

teoria da ação comunicativa e afirma que, mais que pensar num mundo apenas do

trabalho, devemos pensar num mundo da vida, isso não significa que esteja rechaçando

toda a análise marxiana, nem tampouco excluindo-se a categoria do trabalho de seu

lugar, ou talvez até esteja quando pensa-se esse lugar como sendo um lugar central,

quando conclui-se a partir do estudo realizado que o conceito de trabalho é

fundamental sim, mas não central, bem como as categorias da linguagem e da eticidade

também são fundamentais, mas nenhuma delas deve ocupar a centralidade.

Não é no conceito abstrato de trabalho, de linguagem ou de eticidade,

disputando entre si uma posição central, que se sintetizam e se resolvem os problemas,

ou mais especificamente a necessidade de emancipação do ser humano para que este

possa realizar-se enquanto tal. É sim, o homem, enquanto sujeito a essas três

categorias, não apenas o responsável por sintetizá-las, mas o elemento mesmo dessa

síntese, o ponto de conexão e agregação daqueles três eixos fundamentais para que ele

possa existir espaço-temporalmente com dignidade.

Observou-se também, que sistema e mundo da vida disputam espaço e

prioridade na explicação da realidade humana e social enquanto permanecerem

desacoplados, à semelhança do desacoplamento existente entre a ciência e a filosofia.

No entanto, quando do acoplamento de ambos possibilita-se fugir daquele discurso

ideológico, que arroga-se competente, em que apenas alguns privilegiados estariam


106

aptos ao discurso em qualquer lugar e a qualquer tempo. Não basta a preocupação com

o método, e neste caso visualizamos aqui a preocupação com o discurso do método que

tem na ciência papel de fundamental importância para construir o conhecimento.

Contudo, tal conhecimento é fruto de análises inúmeras que são sistematizadas nos

mais diversos campos ou planos do conhecimento humano, sem que se preocupe em

interligá-lo ou saber qual o ponto de toque, de conexão, entre todos eles. Provém daí o

mito de uma ciência neutra, assim como ao pensar-se em sistemas retira-se a

responsabilidade pela forma de pensar a sociedade, visto que os vários sistemas

específicos funcionariam como se tivessem vida própria, independente do ser humano.

Nesse sentido, não se está aqui mais apenas garantindo um discurso ao método, para

que ele seja eficiente e eficaz na busca do conhecimento, mas sim garantindo ao

discurso um método que seja capaz de fazer crer que é o homem fruto do sistema e não

o contrário, ou seja, invertem-se os papéis e é o homem que vive em função dos

sistemas e não os sistemas em função do homem.

Com isso, exime-se o homem de quaisquer responsabilidades no

tocante à condução histórica de sua vida, já que teríamos, por exemplo, em relação ao

sistema econômico, o mercado guiando e conduzindo as ações e as vidas dos homens,

sendo toda a culpa atribuída ao mercado, uma entidade que obtém assim uma

característica praticamente metafísica. Da mesma forma, no tocante ao sistema

político, temos o Estado ocupando essa posição de destaque, como se tudo que

ocorresse nele não fosse fruto das ações políticas de todos os homens, sejam elas ações

propriamente ativas ou passivas manifestadas na total apatia daqueles que deveriam


107

participar de todo o processo político. Ainda, no tocante ao sistema social, tem-se a

sociedade, seja ela civil ou não, querendo determinar aquilo que no fundo ela só

reflete, ou seja, as relações que os homens realizam entre si.

Contudo, é só a partir do contexto e com os recursos do mundo da vida

que o homem consegue sair da objetividade dos sistemas e conquistar sua

subjetividade e, a partir de então, relacionar-se com outro sujeito, interligando-se como

através de uma teia intersubjetiva que se forma, possibilitando-se assim a síntese entre

todas aquelas análises sistêmicas, contudo, transferindo-se o controle das ações

novamente aos sujeitos, deixando estes de ter o status de meros objetos, cuja

responsabilidade e autoria daquelas ações presentes nos sistemas são agora também

transferidas aos sujeitos dentro de um contexto intersubjetivo do mundo da vida. Ou

seja, não se esquecer do homem ou deixar este esquecer-se ou acomodar-se como

naquela caverna platônica, mas chamar a atenção à necessidade do homem inquietar-se

com sua própria realidade, tomar consciência de sua condição, ser sujeito de sua

própria história e, assim sair da caverna que o aprisiona.


108

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