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Ficha Técnica
Direção
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon
Conselho
Des. Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira
Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Assessoria
Isabel Cristina Lima Selau
Direção de Secretaria
Eliane Maria Salgado Assumpção
Organização
Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling
Revisão
Leonardo Schneider
Maria Aparecida Corrêa de Barros Berthold
Maria de Fátima de Goes Lanziotti
Capa e Editoração
Alberto Pietro Bigatti
Arthur Baldazzare Costa
Marcos André Rossi Victorazzi
Rodrigo Meine
Apoio
Seção de Reprografia e Encadernação
Contatos
E-mail: emagis@trf4.gov.br
Fone: (51) 3213-3041, 3213-3043 e 3213-3042
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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Lenio Luiz Streck
Apresentação
2
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Lenio Luiz Streck
Índice:
Ficha Técnica................................................................................................................................................. 01
Apresentação................................................................................................................................................. 02
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Lenio Luiz Streck
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Lenio Luiz Streck
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Doutor em Direito do Estado; Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica; Procurador de
Justiça-RS; Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS. Professor con-
vidado da UNESA-RJ; Universidad de Valladolid-ES e Faculdade de Direito da Universidade de Lis-
boa-PT. Coordenador da parte brasileira do ACORDO INTERNACIONAL CAPES-GRICES entre a
UNISINOS e a FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA-PT. Autor de
Hermenêutica Jurídica E(m) Crise (5ª ed), As interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais,
Ciência Política e Teoria Geral do Estado, Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais, entre outras, todas da
Editora Livraria do Advogado, RS; também Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova
Crítica do Direito, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003.
2
A expressão “solidão constitucional” vem a propósito do romance de Gabriel Garcia Marquez “Cem
anos de solidão”, numa alusão à baixa constitucionalidade - representada pelo papel secundário que
tem sido dado à Constituição - que tem assolado o país, desde a independência aos nossos dias. Ocor-
reu, pois, um “esquecimento” constitucional.
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Informativo do STF n. 240/2001.
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Agravo de Instrumento 313.238-5/1-00, Rel. Des. Antonio Rulli.
7
Ac. 94.116 – TJDF, DJU 14.5.97, p. 9.378. No mesmo sentido, o acórdão n. 94.117.
8
Apelação e Reexame Necessário n. 70000205609 – 4a. Câmara Cível – TJRS; incorrendo no mesmo
equívoco, o acórdão 70003602152 – Primeira Câmara Cível – TJRS.
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Confrontado pela vez primeira com um caso concreto em que um pai, condenado a 12 anos de reclu-
são por ter estuprado sua filha, solicitava o benefício, suscitei a inconstitucionalidade (não-recepção)
do aludido dispositivo (70006451827 – 5a Câmara Criminal do TJRS), com base no princípio da pro-
porcionalidade, em face da violação da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ver, para
tanto, Streck, Lenio Luiz. “Da Proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção defici-
ente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”. In: Re-
vista IHJ, n. 2, pp. 243-284.
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dois anos, ou multa”. Com isto, dezenas de infrações passaram, por um passe de
mágica, a fazer parte do rol de crimes de menor potencial ofensivo, como: infrações
previstas no Código Penal: exposição ou abandono de recém nascido (art. 134) e
subtração de incapazes – que equivale, mutatis mutandis, a um seqüestro (art. 249);
violação de domicílio, cometido durante a noite ou em lugar ermo, ou com o empre-
go de violência ou de arma ou por duas ou mais pessoas (art. 150, par. 1º); atentado
ao pudor mediante fraude (art. 216); desacato (art. 331), desobediência (art. 359) e
fraude processual (art. 347); infrações previstas em leis esparsas: crimes contra a
ordem tributária (art. 2º da Lei n. 8.137); crimes ambientais (art. 45 da Lei n. 9.605);
crimes cometidos contra criança e adolescente (arts. 228, 229, 230, 232, 234, 235,
236, 242, 243 e 244 da Lei n. 8.069); “crime de porte ilegal de arma” 10 (art.10, caput,
e parágrafo primeiro, incisos I, II e III, da 9.437); crimes ocorridos nas licitações (arts.
93, 97 e 98 da Lei n. 8.666); crimes de abuso de autoridade 11 . Embora a contrarie-
dade de parte da comunidade jurídica, que demonstrou, inicialmente, uma certa per-
plexidade de “índole pragmática”, pelo choque que representou o “rebaixamento” de
determinadas infrações, nada foi feito – em termos de jurisdição constitucional - para
corrigir essa anomalia. Novamente a crise aparece pela metafísica equiparação en-
tre vigência e validade. Inconformado, suscitei a inconstitucionalidade de parte da
lei 12 , a partir da propositura de uma nulidade parcial sem redução de texto (Teilni-
10
No crime de porte ilegal de arma é que se pode aquilatar a dimensão da crise do direito. Com efeito,
como que para demonstrar o total afastamento da materialidade da Constituição, o legislador, primeiro
através da Lei n. 10.259/01, rebaixou o delito à categoria “crime de menor potencial ofensivo” (sic),
para, depois, pela recentíssima Lei n. 10.826/03, catapultar o mesmo delito ao rol dos crimes de
“grande potencial ofensivo”, a ponto de colocá-lo como “inafiançável” (sic). Como não há critério,
nada surpreenderia se, amanhã, o legislador optasse por descriminalizar o porte de arma. De qualquer
sorte, tais “idas e vindas” do legislador não encontrar(i)am qualquer obstáculo de índole constitucional
no seio dos operadores jurídicos. Afinal, “lei vigente é lei válida”...! E pronto!
11
A justificativa constitucional encontra-se em Streck, Lenio Luiz. “Juizados Especiais Criminais à
Luz da Jurisdição Constitucional. A filtragem hermenêutica a partir da aplicação da técnica da nulida-
de parcial sem redução de texto”, in Caderno Jurídico, v. 2, n. 5, São Paulo: ESMP, 2002.
12
Na 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS, a tese da inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto tem sido rejeitada sob o fundamento de que, na medida em que a norma (art. 2º da Lei
n. 10.259/01) traz benefícios ao cidadão-réu, a declaração da inconstitucionalidade parcial de algumas
incidências “importa em afronta aos princípios básicos do direito penal e inversão da leitura constitu-
cional da legislação penal – interpretação restritiva de norma para beneficiar o débil: dirigida para
dentro, na direção autoritária!” (sic) (v.g., por todos, o Processo n. 70005655584, Rel. Des. Amilton
Bueno de Carvalho). É possível perceber um nítido viés iluminista na tese esboçada pelo aludido Ór-
gão Fracionário, que nitidamente obstaculiza as possibilidades de extensão da função de proteção pe-
nal aos bens de interesse para além da relação inter-individual. No fundo, trata-se da assunção da
velha oposição (iluminista) entre Estado e Sociedade (Ferreira da Cunha, Maria da Conceição. Consti-
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condutas. 14 Também aqui – com raríssimas exceções – não tem havido qualquer
resistência constitucional no plano da operacionalidade do Direito.
14
Vale lembrar que o Procurador-Geral da República ingressou com Ação Direta de Inconstitucionali-
dade contra o aludido art. 9 (ADIn n. 3002).
13
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A 5ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, junto a qual tenho acento como
Procurador de Justiça, já de há muito vinha aplicando a tese da obrigatoriedade da presença do defen-
sor no interrogatório, aferível, facilmente, do princípio constitucional da ampla defesa.
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Cfe. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta,
1995, p. 223. Não se está tratando, neste ponto, da questão positivista da separação entre direito e
moral. O que se está a tratar é a questão de o direito penal não ingressar na esfera da moralidade (jo-
gos, prostituição, ato obceno, etc.), estabelecendo criminalizações “behavioristas”.
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Do conjunto de tipos contravencionais, apenas dois restam compatíveis com a Constituição: disparo
de arma de fogo e perturbação do sossego. A retirada de tais tipos deixaria sem proteção penal bens
jurídicos que podem ser considerados relevantes.
18
Despiciendo referir a inconstitucionalidade (não recepção) de tipos penais como casa de prostitui-
ção, rufianismo, etc, bem como os crimes de dano, esbulho possessório, incompatíveis com os fins a
que se destina o Direito Penal do Estado Democrático de Direito.
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cesso Penal”. 19 Trago a lume, ainda, alguns episódios que, pela sua dramaticidade,
procuram chamar a atenção da comunidade jurídica para aquilo que pode ser cha-
mado de a necessária republicanização do Direito em nosso país e a resistência
constitucional como compromisso ético do jurista: recentemente, na cidade de Tra-
mandaí-RS, ocorreu a prisão em flagrante de uma mulher acusada de tentar furtar
uma tampa de lata de lixo. Note-se que essa mulher tirava seu sustento do recolhi-
mento de materiais na rua para vendê-los. O flagrante foi homologado, sendo a indi-
ciada recolhida à Penitenciária Estadual Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre,
distante mais de cem quilômetros, onde permaneceu presa durante longos seis dias.
Somente por intermédio de habeas corpus deferido pela 5a. Câmara Criminal do TJ-
RS é que a autora do delito foi posta em liberdade ( Processo nq 70004159984 –
Rel. Des. Aramis Nassif). Comparece-se este caso com a recente estatística que dá
conta de que, durante a vigência da lei da lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98), por-
tanto, entre 1998 e 2004, somente ocorreu uma condenação por esse crime com
trânsito em julgado.
19
Ver, para tanto, nota n. 2 da dissertação de mestrado intitulada Os Princípios do Direito Administra-
tivo e a Hermenêutica da Constituição Brasileira de 1988, de autoria de Everton Luis Mendes de Je-
sus. São Leopoldo, Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, 2000.
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Ficam evidentemente ressalvadas as inúmeras decisões implementadoras de direitos proferidas por
juízes e pelos Tribunais da República. No decorrer desses quinze anos, houve significativos avanços
na doutrina e na jurisprudência. Não se pode esquecer, de todo modo, que cumprir a Constituição é,
mais do que um dever, é um compromisso ético.
21
Em 1801 o Presidente Adams, do Partido Federalista, não conseguiu se reeleger, sendo derrotado
por Thomas Jefferson, do Partido Democrata Republicano (que mais tarde redundaria no Partido De-
mocrata). Antes de entregar o poder, Adams fez uma série de nomeações para cargos do Poder Judici-
ário. Entre essas nomeações, estava a de John Marshall para a Supreme Court. Em 17 de fevereiro de
1801, Jefferson foi eleito Presidente. Embora indicado para a Suprema Corte, Marshall permanece no
cargo de Secretário de Estado do governo Adams até a posse de Jefferson, em 03 de março de 1801.
Logo após a eleição de Jefferson, o Congresso Federalista iniciou seus esforços para manter o controle
do Judiciário Federal. A lei conhecida como Circuit Court Act, de 13 de fevereiro de 1801, criou de-
zesseis cargos de Juiz Federal de Apelação – os Circuit Court Judges. Como esperado, todos os novos
cargos foram para Federalistas. Foram chamados “midnight judges”, por terem sido nomeado no apa-
gar das luzes da administração de Adams. William Marbury, o protagonista do caso em exame, não
estava entre os midnight judges. Ele foi nomeado ainda mais tarde: o Organic Act of the District of
Columbia foi aprovado em 27 de fevereiro de 1801, menos de uma semana antes do fim do mandato
de Adams. Aquela lei autorizava o Presidente a nomear juízes de paz para o Distrito de Columbia.
Adams nomeou 42 juízes em 02 de março de 1801 e o Senado confirmou as nomeações em 03 de
março, o último dia de Adams no cargo. As nomeações dos Juízes de paz que ajuizaram a ação, inclu-
indo William Marbury, foram assinadas de imediato por Adams – assim como assinadas e carimbadas
(sealed) por seu Secretário de Estado, Marshall – mas nem todos tomaram posse antes do fim do dia..
Então, o novo Presidente, Jefferson, recusou-se a dar posse a eles, por considerar as nomeações nulas.
Esse foi o contexto da decisão Marbury v. Madison (5 U. S.)137, 2 L. Ed. 60 (1803). Como a nova
administração de Jefferson decidiu desconsiderar as nomeações do governo Adams, Marbury e alguns
colegas desapontados decidiram ir diretamente à Suprema Corte, visando compelir o Secretário de
Estado de Jefferson, James Madison, a lhes dar posse. Em 24 de fevereiro de 1803, saiu a decisão pro-
ferida pelo Chief Justice (John Marshall). A Corte não negou que Marbury tivesse direito à nomeação.
O que não existia era um remédio jurídico para garantir essa nomeação. A lei (act) que estabelece as
cortes judiciais dos Estados Unidos autorizam a Suprema Corte “a expedir ordens mandamentais
(writs of mandamus) em casos garantidos pelos princípios e costumes de direito, a qualquer corte ofi-
cial, ou a pessoas no exercício de cargos, sob a autoridade dos Estados Unidos”. Sendo o Secretário de
Estado (Secretary of State) uma pessoa exercendo um cargo sob a autoridade dos Estados Unidos, ele
está precisamente dentro da descrição do texto legal; a se esta corte não estiver autorizada a emitir um
mandado contra tal oficial, só poderá ser por que a lei (o Judiciary Act) é inconstitucional e, portanto,
absolutamente incapaz de conferir a autoridade e as obrigações que seus termos buscam conferir e
determinar. Ou seja, se a Constituição estabelece que a Suprema Corte é um órgão recursal (appellate
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jurisdiction), não poderia a lei ordinária dizer mais do que a Lei Suprema do país. Se o Congresso
mantém a liberdade de atribuir à Corte jurisdição recursal, onde a Constituição declarou que sua juris-
dição deve ser original; e atribuir jurisdição originária onde a Constituição declarou que deveria ser
jurisdição recursal; então, a distribuição de jurisdição feita na Constituição é forma sem substância.
Não há meio termo: ou a Constituição é uma lei superior, direito supremo, imutável por meios ordiná-
rios, ou estará no mesmo nível de leis ordinárias e, como tais, poderá ser alterada segundo a vontade
do Legislativo. Por isto, a norma deve ser anulada (The rule must be discharged). Para um exame
mais aprofundado, ver o excelente trabalho de Paulo Klautau Filho. A primeira decisão sobre controle
de constitucionalidade: Marbury v. Madison (1803).
22
Cfe. Tribe, Laurence. American Constitutional Law. Foundation Press, Meneola, 1978, p.9,; tb. Os
comentários feitos por Holmes, Stephen. “El precompromisso y la paradoja de la demcoracia”. In:
Constitucionalismo y Democracia. Jon Elster y Rune Slagstad (org). México, Fondo de Cultura Eco-
nómica, 2003, pp.217.
19
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23
Idem, ibidem.
24
Cfe. Holmes, op.cit., p.219.
25
Cfe. Dworkin, Ronald. Uma questão de Princípio. São Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 80 e segs.
20
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26
Também nesse sentido, ver Sarlet, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre, Livra-
ria do Advogado, 2003.
27
Com propriedade, Koselleck assevera que Rousseau, sem perceber, desencadeou a revolução per-
manente em busca de um verdadeiro Estado. Buscava a unidade da moral e da política, mas acabou
encontrando o Estado total, a revolução permanente sob o manto da legalidade. A vontade geral, que é
absoluta e não tolera exceção, reina sobre a nação. Soberana pelo simples fato de existir, é sempre – e
totalmente – o que deve ser. A vontade geral que não tolera exceção é a exceção pura e simples. As-
sim, a soberania de Rousseau revela-se uma ditadura permanente. É congênita da revolução permanen-
te em que seu Estado se transformou. Cfe. Koselleck, Reinhart. Crítica e Crise. Trad. de Luciana Vil-
las-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro, Contraponto, pp. 141 e 142.
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espada com dois fios. As decisões atuais, tomadas tendo em mente o futuro, logo
pertencerão ao passado. E o mesmo Madison pergunta: se podemos estabelecer
que gerações subseqüentes tratarão com soberano desprezo nossas escolhas feitas
pensando no futuro, por que haveríamos de pensar mais no futuro do que no passa-
do? Desejamos atuar de maneira responsável acerca das gerações sucessivas en-
quanto tendemos a rechaçar o conceito de que as gerações anteriores são por nós
responsáveis. Porém, é congruente adotar essa atitude? A resposta é dada por Jon
Elster, em forma de paradoxo: cada geração deseja ser livre para obrigar as suas
sucessoras, sem estar obrigada por suas predecessoras. 28
Na verdade – e a tradição que engendrou o constitucionalismo nas suas
diversas fases aponta para esse desiderato – a democracia constitucional é o siste-
ma político talhado no tempo social que vem tornando-o a cada dia mais humano
porque se enriquece com a capacidade de indivíduos e comunidades para reconhe-
cer seus próprios erros. 29 A Constituição é uma invenção destinada à democracia
exatamente porque possui o valor simbólico que, ao mesmo tempo em que assegura
o exercício de minorias e maiorias, impede que o próprio regime democrático seja
solapado por regras que ultrapassem os limites que ela mesma – a Constituição –
estabeleceu para o futuro. Esta, aliás, e a sua própria condição de possibilidade. Ve-
ja-se, e a lembrança vem novamente de Holmes, que Locke, Kant e tantos outros
aprovaram as regras constitucionais duradouras ainda que não inalteráveis. E assim
fizeram porque reconheciam que tais regras podiam fomentar o futuro aprendizado.
Os mortos não devem governar os vivos; devem, sim, facilitar a que os vivos se go-
vernem a si próprios. 30
Por tudo isto, a discussão acerca do constitucionalismo contemporâneo –
e de suas implicações políticas - é tarefa que (ainda) se impõe. O constitucionalismo
não morreu. As noções de força normativa da Constituição e de Constituição dirigen-
te e compromissória não podem ser relegadas a um plano secundário, mormente em
um país em que as promessas da modernidade, contempladas nos textos constitu-
cionais, carecem de uma maior efetividade. Daí a pergunta: como relegar a um se-
28
Ver, para tanto, Holmes, op.cit., p. 262.
29
Idem, ibidem, p. 262.
30
Idem, ibidem.
22
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gundo plano as promessas que fizemos a nós mesmos (para utilizar as palavras de
François Ost 31 )?
Nesse sentido, torna-se fundamental discutir, para uma melhor compre-
ensão de toda essa problemática, o papel da Constituição e da jurisdição constitu-
cional no Estado Democrático de Direito, bem como as condições de possibilidade
para a implementação/concretização dos direitos fundamentais-sociais a partir desse
novo paradigma de Direito e de Estado. Afinal, o Estado Democrático de Direito trás
ínsita a pactuação que aponta para o resgate das promessas da modernidade, re-
presentada pela concretização dos direitos sociais (Estado Social - art.3º da CF),
que, a toda evidência, constituem direitos fundamentais prestacionais, como bem
lembra Sarlet. Nesse sentido, a preocupação primordial é com a esfera dos direitos
fundamentais a prestações, que tem por objeto uma conduta positiva por parte do
destinatário, consistente, em regra, numa prestação de natureza fática ou normativa.
Assim, aduz Sarlet, enquanto os direitos de defesa se identificam por sua natureza
preponderantemente negativa, tendo por objeto abstenções do Estado, os direitos
sociais prestacionais (portanto, o que está em causa aqui é precisamente a dimen-
são positiva, que não exclui uma faceta de cunho negativo) têm por objeto precípuo
uma conduta positiva do Estado ou particulares destinatários da norma. 32
Parece que a inserção da Constituição na noção de paradoxo – pelos “in-
teresses” contraditórios que nasceu para albergar – trás implícita a discussão da
problemática da tensão entre legislação e jurisdição, pela simples razão de que a
primeira é fruto da vontade geral (majoritária) e a segunda coloca freios nessa mes-
ma vontade geral.
31
Ver, para tanto, Ost, François. O Tempo do Direito. Lisboa, Piaget, s/d.
32
Cfe. Sarlet, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op.cit., pp. 272 e segs. Relati-
vamente à vinculação dos particulares (eficácia inter privatos) aos direitos fundamentais, consultar
Bilbao Ubillos, Juan Maria. Los derechos fundamentales em la frontera entre público y lo privado.
Madrid, Estúdios Ciências Jurídicas, 1997. Essa problemática – horizontalidade dos direitos funda-
mentais – vem muito bem desenvolvida na sentença 122/1970 do Tribunal Constitucional Italiano,
dando conta de que os direitos subjetivos garantidos pela Constituição – incluídos aí os direitos de
liberdade – não são “direitos públicos” no sentido da doutrina alemã do século XIX, isto é, direitos
“frente ao Estado”; pelo contrário, são direitos garantidos erga omnes, frente a qualquer um. Isto signi-
fica que as normas constitucionais são aplicáveis não somente nas controvérsias que oponham um
cidadão frente a um poder público, senão também nas relações entre particulares, entre cidadãos. Por
conseqüência, todos os juízes têm o poder – e o dever – de aplicar diretamente as normas constitucio-
nais nas controvérsias que se encontram por julgar. Cfe. Guastini, Ricardo. “La “constitucionaliza-
ción” del ordenamiento juridico”. In: Neoconstitucionalismo(s), op.cit., p. 68.
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Talvez seja por isto que Bachof tenha chamado atenção para a inevitabili-
dade do surgimento de uma “certa relação tensionante entre o direito e a política. O
juiz constitucional aplica certamente direito; mas a aplicação deste direito acarreta
33
consigo necessariamente que aquele que a faz proceda a valorações políticas.”
E parece que disto não podemos escapar. Afinal, a evolução da Teoria do
Estado – que não pode existir à margem da Constituição (Bercovici) - implica o sur-
gimento da “politização” da Constituição. Afinal, do normativismo constitucional sal-
tamos para a Teoria Material da Constituição. Este é o momento da imbricação entre
Constituição e política. E o Estado Democrático de Direito será o locus privilegiado
deste acontecimento.
Por isto, é possível afirmar que a dimensão política da Constituição não é
uma dimensão separada, mas, sim, o ponto de estofo em que convergem as dimen-
sões democrática (formação da unidade política), a liberal (coordenação e limitação
do poder estatal) e a social (configuração social das condições de vida) daquilo que
se pode denominar de “essência” do constitucionalismo do segundo pós-guerra. Por-
tanto, nenhuma das funções pode ser entendida isoladamente. É exatamente por
isto que Hans Peter Schneider vai dizer que a Constituição é direito político: do, so-
34
bre e para o político.
Decorre daí a importância que deve ser dada à discussão acerca do tipo
de justiça constitucional encarregada de realizar o controle da constitucionalidade do
ordenamento jurídico de cada país. O deslocamento do pólo de tensão relacionado à
clássica questão da divisão-separação de Poderes recebe, destarte, uma nova con-
cepção a partir do estabelecimento de tribunais que não fazem parte – stricto sensu
– da cúpula do Poder Judiciário, trazendo consigo, em sua estruturação, a efetiva
participação do Poder Legislativo. Registre-se, desde logo, que o Brasil, durante o
33
Cfe. Bachof, Otto. “Estado de Direito e Poder Político”. Boletim da Faculdade de Direito de Coim-
bra, vol. LVI. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 10.
34
As três dimensões das funções da Constituição podem ser encontradas em Schneider, Hans Peter. La
Constituición – Función y Estrutuctura. In: Democracia y Constituición. Madrid, CEC, 1991, pp. 35-
52; tb. Bercovici, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo, Max Limo-
nad, 2002, p. 288. Importa registrar que, se a Constituição é direito político e, portanto, se o direito
constitucional é direito político, isto não pode significar – e a advertência vem de Eloy Garcia e Ber-
covici – que a Constituição venha a resumir ou abarcar em si a totalidade do político, para que não se
caia em um positivismo jurisprudencial, a partir da despolitização das questões constitucionais. A
Constituição deve ser compreendida também de acordo com o papel que desempenha no processo
político, ou seja, o pensamento constitucional precisa ser orientado para a necessária reflexão sobre
conteúdos políticos.
24
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35
Cfe. Prieto Sanchis, op.cit., p. 157.
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apenas estes, aos quais se opõem os teóricos de perfil substancialista, 36 como Gar-
cia Herrera, 37 para quem cuando se defiendem los princípios constitucionales no se
36
Para uma melhor compreensão acerca do debate entre procedimentalismo e substancialismo, isto é,
entre as teses processuais-procedimentais e as materiais-substantivas acerca da Constituição, remeto o
leitor para o meu Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, op.cit., em especial capítulos III e IV; na
especificidade, Habermas, Jürgen. Direito e Demcoracia – entre faticidade e validade. Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1997, vol. I e II; The Constitution, the Court and Human Rights. An Inquiry into the
Legitimacy of Constitutional Policymaking. Yale University Press, New Haven and London, 1982;
Más allé del Estado Nacional. Madrid, Trotta, 1997; Ely, J.H. Democracy and Distrust. A theory of
Judicial Review. Cambridge, Mass, 1980; Tribe, L. H. “The Puzzling Persistence of Process-Based
Constitutional Theories”, in The Yale Law Journal, vol. 89, 1073, 1980, p. 1065 e segs.; Ibidem,
American Constitutional Law. The Foundation Press, Mineola, New York, 2a. ed., 1988; Ibidem
“Taking Text and Structure Seriously: reflection on free-form method in constitutional interpretation”,
In Harvard Law Review, vol. 108, n. 6, 1995. Conferir, também, Diaz Revorio, Francisco Javier. La
constituición como orden abierto. Madrid: Estudios Ciencias Jurídicas, 1997. p. 161 e segs; Perry,
M.J. “The Constitution, the Courts and Human Rights. An Inquiry into the Legitimacy of Constitu-
tional Policymaking by the Judiciary”. Yale University Press, New Haven and London, 1982; tb. Wel-
lington, H. H. “Common Law Rules and Constitutional Double Standards: Some Notes on Adjudica-
tion”. The Yale Law Journal, vol. 83, n. 2, dezembro de 1973; Bercovici, Gilberto. Desigualdades
Regionais, op.cit., p. 278; Estevéz Araújo, José Antonio. La Constituición como Proceso y la Des-
obediencia Civil. Madrid, Trota, pp. 139-143; Leite Sampaio, José Adércio. A Constituição reiventa-
da. Belo Horizonte, Del Rey, 2002. Tenho, assim, a convicção de que o papel da Constituição, sua
força normativa e o grau de seu dirigismo vão depender da assunção de uma das duas teses (eixos
temáticos) que balizam a discussão do constitucionalismo e da democracia: de um lado, os defensores
das teorias processuais-procedimentais, e, do outro, os que sustentam posições materiais-substanciais
acerca da Constituição. Parece não haver dúvidas, também, que esse debate é de fundamental impor-
tância para a definição do papel a ser exercido pela jurisdição constitucional. A toda evidência, as
teses materiais reforçam a regra contramajoritária, colocando freios às vontades de maiorias eventuais,
o que, do lado dos substantivistas só vem a reforçar a relação Constituição-democracia, e do lado dos
defensores das teorias procedimentalistas, enfraquece a democracia, pela falta de legitimidade da justi-
ça constitucional. No Brasil, há um elenco considerável de juristas que – contrapondo-se às teorias
processuais-procedimentais - defendem uma atuação mais efetiva da justiça constitucional, questão
que assume maior visibilidade em face da notória inefetividade da Constituição e da omissão dos po-
deres legislativo e executivo na execução de políticas públicas, circunstância que demanda a utilização
dos mecanismos (ações constitucionais, controle de constitucionalidade, etc) aptos à realização dos
direitos substantivos previstos na Constituição (veja-se, nesse sentido, Paulo Bonavides, Fabio K.
Comparato, Lenio Streck, Clémerson Clève, Ingo Sarlet, para citar apenas alguns). Do outro lado, as
teses procedimentais ganham corpo a cada dia, a partir das posturas self restraint assumidas pelos
Tribunais Superiores e pela acusação de judicialização da política que sofrem as teses que sustentam a
possibilidade de revisão judicial de atos parlamentários – e do próprio poder executivo - que dizem
respeito às questões diretamente relacionados à dimensão assumida pela omissão no disciplinamento e
na efetivação das políticas relacionadas ao cumprimento dos direitos de índole prestacional. Minha
crítica às teses procedimentais vai no sentido de que, em nome de uma democracia de perfil nivelador
– e estou fazendo uso aqui do contraponto feito por Ackerman entre o dualismo e as posturas nivela-
doras - , e em nome de uma leitura procedimental da Constituição, relega-se direitos fundamentais-
sociais a um plano secundário, o que enfraquece a noção de Constituição compromissária. Na verdade,
determinadas teses procedimentais, como as advogadas por Juan Carlos Bayón, (“Derechos, Demcora-
cia y Constituición”. In: Neoconstitucionalismo(s), op.cit., p. 211 e segs) apontam para um constitu-
cionalismo débil, pelo qual a Constituição tem a função de somente limitar o poder existente, sem
prever especificamente uma defesa material dos direitos fundamentais. Nesse sentido, talvez não seja
desarrazoado afirmar que o problema fundamental das teorias processuais reside no fato de procura-
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hace política sino defensa juridiscional de la Constitución. Talvez por isto alguns
autores aduzem ser el Tribunal Constitucional el protector último de los derechos
fundamentales. 38
Parece inexorável – e isto não deveria causar nenhuma surpresa - que
ocorra um certo tensionamento entre os Poderes do Estado: de um lado, textos
constitucionais forjados na tradição do segundo pós-guerra estipulando e apontando
a necessidade da realização dos direitos fundamentais-sociais; de outro, a difícil
convivência entre os Poderes do Estado, eleitos (Executivo e Legislativo) por maiori-
as nem sempre concordantes com os ditames constitucionais.
Daí o constante questionamento da legitimidade de o Poder Judiciário
(justiça constitucional) deter o poder de desconstituir atos normativos do Poder Exe-
cutivo ou declarar a inconstitucionalidade de leis votadas pelo parlamento eleito de-
mocraticamente pelo povo, questão que assume ainda maior complexidade em paí-
ses (Brasil, por exemplo) que mantém o sistema difuso de controle de constituciona-
lidade.
Esse tensiosamento assume contornos mais graves quando o sistema se
depara com decisões do Poder Judiciário (brasileiro) tidas como “invasoras de sub-
sistemas” ou epitetadas como típicas decisões que “judicializam a política”, como é o
caso de sentenças emanadas pelos juízes e tribunais brasileiros determinando a
inclusão/criação de vagas em escolas públicas, fornecimento de remédios com fun-
damento no art. 196 da Constituição, a extensão, com base no princípio da isonomi-
a, de benefícios a categorias de trabalhadores não contempladas em ato normativo,
rem colocar no procedimento o modo (ideal) de operar a democracia, a partir de uma universalização
aplicativa. Com isto, o procedimento acaba sendo uma espécie de “novo princípio epocal”, na tenta-
tiva de superar aquilo que na fenomenologia hermenêutica podemos denominar de “diferença ontoló-
gica”, afastando qualquer possibilidade de intervenção substantiva-subjetiva, uma vez que calca o
“resultado” final nos “valores adjetivos”. Afinal, como afirma Luhmann, nas sociedades complexas a
natureza das decisões deve ceder lugar aos procedimentos, que generalizam o reconhecimento das
decisões; os procedimentos (processo legislativo e o próprio processo judicial) tornam-se a garantia de
decisões que terão aceitabilidade. Por tudo isto, alinho-me aos defensores das teorias materiais-
substanciais da Constituição, porque trabalham com a perspectiva de que a implementação dos direi-
tos e valores substantivos afigura-se com condição de possibilidade da validade da própria Constitui-
ção, naquilo que ela representa de elo conteudístico que une política e direito.
37
Cfe. Garcia Herrera, Miguel Angel. Prólogo a la segunda edición del Manual de Derecho Constitu-
cional. Benda, Maihofer, Vogel, Hesse, Heide. Madrid: Marcial Pons, 2001.
38
Cfe. Juan Antonio Doncel Luengo. “El modelo español de justicia constitucional. Las decisiones
más importantes del tribunal constitucional”. Sub judice, janeiro/junho, 20/21. Coimbra: Docjuris,
2001, pp. 79 e segs.
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o problema das ocupações de terras improdutivas por movimentos sociais que cla-
mam pelo cumprimento do dispositivo constitucional que estabelece a função social
da propriedade, só para citar alguns exemplos.
39
Cfe. Grau, Eros Roberto. Canotilho e a Constituição Dirigente. Jacinto N.M. Coutinho (org). Rio de
Janeiro, Renovar, 2003.
28
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40
Cfe. Lerche, Peter. Übermass und Verfassungsrecht: Zur Bildung des Gezetzgebers an die Grund-
sätze der Verhältnismässigkeit und der Erforderlichkeit. 2a. Goldbach, Keip Verlag, 1999, pp. 60 e
segs.
41
Ver, nesse sentido, Canotilho, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 4ª ed.
Coimbra, Coimbra Editores, 1994.
42
Em vários textos Canotilho tem feito a revisão da tese da Constituição Dirigente. Para tanto, remeto
o leitor para os seguintes: “O Direito Constitucional na Encruzilhada do Milênio. De uma disciplina
dirigente a uma disciplina dirigida”. In: Constitución y Constitucionalismo Hoy. Caracas, Fundación
Manuel García-Pelayo, 2000, pp. 217-225; “Rever ou Romper com a Constituição Dirigente? Defesa
de um constitucionalismo moralmente reflexivo”. In: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política, n. 15, pp. 7-17; “O estado Adjetivado e a teoria da Constituição”. In: Revista da Procurado-
ria Geral do Estado RS, n. 56, dez/2002; ainda Canotilho e a Constituição Dirigente. Jacinto Nelson
Miranda Coutinho (org). Rio de Janeiro, Renovar, 2002.
29
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43
Ver, para tanto, meu Jurisdição Constitucional, 2ª ed., op.cit., cap. 3.
44
Ver, para tanto, Morais, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais.
Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996.
45
A idéia de um “constitucionalismo adequado” aparece, de certa maneira, em Ernst-Wolfgang
Böckenförd. Los Metodos de la Interpretación Constitucional. Inventario e Critica. Escritos sobre
30
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Derechos Fundamentales. Baden-Baden, Nomos, 1993, pp. 13-14; 37-39; nessa linha Bercovici, Desi-
gualdades, op.cit., p. 287, fala de uma teoria material da Constituição constitucionalmente adequada).
46
Essa tese desenvolvo com mais especificidade no meu Jurisdição Constitucional e Hermenêutica,
op.cit.
47
Essa associação do Estado e Constituição, Constituição e Estado é endossada por Canotilho em seu
“O Estado Adjetivado”, op.cit., p. 29; ver, tb. Bercovici, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e
Constituição. São Paulo, Max Limonad, 2002, pp. 271 e segs.
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Aliás, quando Canotilho dá ênfase ao papel dos tratados, mostra exatamente sua preocupação com a
questão européia, onde tal questão surge como um paradoxo: ao mesmo tempo em que, no velho con-
tinente, a tese da Constituição dirigente e o papel do Estado nacional perdem importância, o conjunto
normativo comunitário da União Européia assume cada vez mais foros de “dirigismo jurídico-
político”, como se fosse uma superconstituição. Afinal, é de se perguntar: os textos constitucionais
vinculam menos que o “legislador” supranacional?
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49
Cfe. Bercovici, Gilberto. “Constituição e superação das desigualdades regionais”. In: Direito Cons-
titucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001.p. 96.
50
Quero deixar claro que a defesa da força normativa da Constituição não significa alçar a Constitui-
ção à condição de texto sagrado. Acrescento, ademais, que o texto constitucional também não pode ser
compreendido “como” (als) categoria ou hipótese, o que igualmente seria resvalar em direção à meta-
física. Hermeneuticamente, todo texto é um texto aberto, que não passa incólume pelo rio da história..
Numa palavra, se os direitos sociais-fundamentais constituem a “essência” da Constituição, parece
razoável afirmar que a idéia da programaticidade da Constituição deve ser mantida, pela simples razão
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de que, sem a perspectiva dirigente-compromissária, torna-se impossível realizar os direitos que fazem
parte da essência da Constituição.
34
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51
Ver, para tanto, Canotilho, O Estado Adjetivado, op.cit., p. 40.
52
Ver, para tanto, Canotilho, O Estado Adjetivado, op.cit., p. 30.
53
Ver, para tanto, meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 5ª. Edição. Porto Alegre: Livraria do Advo-
gado, 2004.
54
Cfe. Castanheira Neves, Antonio. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I.
Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pp. 287 e segs.
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55
Cfe. Castanheira Neves, Antonio. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I.
Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 346-347.
56
Esse como é um como hermenêutico: algo sempre aparece “como” algo (Etwas als Etwas).
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in), damo-nos conta da ausência de justiça social (cujo comando de resgate está no
texto constitucional); compreendemos a Constituição “como” Constituição quando
constatamos que os direitos fundamentais-sociais somente foram integrados ao tex-
to constitucional exatamente porque a imensa maioria da população não os têm; a
Constituição é, também, desse modo, a própria ineficácia da expressiva maioria dos
seus dispositivos (que é, finalmente, a realidade social); percebemos também que a
Constituição não é somente um documento que estabelece direitos, mas, mais do
que isto, ao estabelecê-los, a Constituição coloca a lume (denuncia) a sua ausência,
desnudando as mazelas da sociedade; enfim, não é a Constituição uma mera Lei
Fundamental (texto) que “toma” lugar no mundo social-jurídico, estabelecendo um
novo “dever-ser”, até porque antes dela havia uma outra “Constituição” e antes desta
outras quatro na era republicana..., mas, sim, é da Constituição, nascida do proces-
so constituinte, como algo que constitui, que deve exsurgir uma nova sociedade.
Isto significa dizer que uma “baixa compreensão” acerca do sentido da
Constituição – naquilo que ela significa no âmbito do Estado Democrático de Direito
– inexoravelmente acarretará uma “baixa aplicação”, com efetivo prejuízo para a
concretização dos direitos fundamentais-sociais. As condições de possibilidades pa-
ra que o intérprete possa compreender um texto implicam (sempre e inexoravelmen-
te) a existência de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade (que
a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurídico-político-social. Desse belvedere
compreensivo, o intérprete formulará (inicialmente) seus juízos acerca do sentido do
ordenamento. E sendo a Constituição o fundamento de validade de todo o sistema
jurídico – e essa é a especificidade maior da ciência jurídica – , de sua interpreta-
ção/aplicação (adequada ou não) é que exsurgirá a sua (in)efetividade.
Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem resulta de
fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa da
Constituição a interpretação constitucional, a qual se encontra necessariamente
submetida ao mandato de otimização do texto constitucional. Trata-se, pois, de pro-
blema fundamentalmente hermenêutico.
Dito de um modo mais simples: se o intérprete possui uma baixa pré-
compreensão, isto é, se o intérprete pouco ou quase nada sabe a respeito da Cons-
tituição (e, portanto, da importância da jurisdição constitucional, da teoria do Estado,
da função do Direito, etc), estará condenado à pobreza de raciocínio, ficando restrito
38
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57
No plano da hermenêutica, a isto se chama de “entificação do ser”.
58
Cfe. Ferrajoli, Luigi. Jueces y politica. Derechos y Liberdades. In: Revista del Instituto Bartolomé
de las Casas. Año IV. Janeiro de 1999, n. 7. Madrid, Universidad Carlos III.
59
Esta é a diferença fundamental entre as teses aqui propostas e a de autores como Bercovici. Compar-
tilho da desconfiança de Bercovici para com o Poder Judiciário, o que pode ser facilmente percebido
pelas agudas críticas que tenho lançado à atuação da justiça brasileira, afora as críticas à doutrina e ao
ensino jurídico. Entretanto, entendo que as promessas da modernidade contidas no texto da Constitui-
ção não podem ficar à mercê de vontades políticas ad hoc dos Poderes Legislativo e Executivo. Veja-
se, para tanto, o que se passou – e principalmente o que não se passou – nestes quinze anos de Consti-
tuição (compromissória e dirigente)...Ao negarem-se a concretizar os direitos constitucionais, tais po-
deres solapam o papel dirigente e compromissório da Constituição. Daí a necessidade de se lançar mão
da jurisdição constitucional, mesmo que esta não responda adequadamente as demandas propostas.
39
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Cfe. Krell, Andréas Joachim. “Realização dos Direitos Fundamentais Sociais Mediante Controle
Judicial da Prestação dos Serviços Públicos Básicos”. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Di-
reito. n. 10. Recife: UFPE, 2000, p. 56-57.
40
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lores materiais da Constituição, uma atitude ativa na realização desses fins sociais
da correição de prestações dos serviços sociais básicos. Afinal, para que servem
regras contramajoritárias se não se pode colocá-las em prática? O que fazer com a
norma prevista no art. 3o. da Constituição brasileira? Ela vincula ou não o legislador
e o poder executivo?
Não se pode ignorar que tais questões podem esbarrar naquilo que se
denomina de “financeiramente possível” e na (de)limitação do âmbito (político) de
esfera de competência. Calha, nesse sentido, a lição de Cristina Queiroz 61 , para
quem quando existe um direito, este se mostra sempre como justiciável. Sucede é
que, por vezes, no caso dos direitos de natureza econômica e social, estes necessi-
tam ainda de uma configuração jurídica particular a levar a cabo pelo legislador. A
‘reserva do possível’, ‘no sentido daquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir
da sociedade’ (BverfGE 33, 303, 333; 43, 291, 314), não tem como conseqüência a
sua ineficácia jurídica. Essa cláusula expressa unicamente a necessidade da sua
ponderação. Konrad Hesse fala, a esse propósito, de uma ‘obrigação positiva’ de
‘fazer tudo para a realização dos direitos fundamentais, ainda quando não exista a
esse respeito nenhum direito subjectivo por parte dos cidadãos’.
Por isto, ainda com Garcia Herrera, propugno uma resistência constitucio-
nal enquanto política de Direito destinada a salvaguardar a vigência e a eficácia do
projeto constitucional, assim como a vocação transformadora consubstancial da
Constituição. 62 Assim que propugnar por uma resistência constitucional significa “de-
tectar el conflicto entre principios constitucionales y la inspiración neoliberal que
promueve la implantación de nuevos valores que entran en contradicción con aqué-
llos: solidaridad frente al individualismo, programación frente a competitividad, igual-
61
Cfe. Queiroz, Cristina. Interpretação e Poder Judicial – sobre a epistemologia da construção cons-
titucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 65. Veja a esse propósito o seguinte acórdão do Tribu-
nal Constitucional de Portugal: ”Todo este complexo normativo, que não é meramente programático e
contém antes uma vinculação para o legislador ordinário, não pode desprender-se de princípios fun-
damentais consagrados na Constituição como seja o empenhamento da República ‘na construção de
uma sociedade livre, justa e solidária’, o objectivo da ‘realização da democracia econômica, social e
cultural’, as tarefas fundamentais do Estado de promover ‘a efectivação dos direitos econômicos, soci-
ais e culturais’ e assegurar ‘o ensino e a valorização permanente'”. Ac. TC 148/94
62
Cfe. García Herrera, op.cit.
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63
Consultar Garcia Herrera, Miguel Angel. Poder Judicial y Estado Social: Legalidad y Resistencia
Constitucional. In: Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Andrés
Ibáñes (Editor). Madrid, Editorial Trotta, 1996, p.83.
42
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64
Cfe. KÄGI, Werner. Die Verfassung als rechliche Grundordnung des Saates. Untersuchungen über
die Entwicklungstendenz im modernen Verfassungsrecht. Zurich: Polygraphischer Verlag, 1945, p.
147. - (Diz-me a tua posição quanto à jurisdição constitucional e eu te direi que conceito tens da Con-
stituição).
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65
Cfe. Binenbojm, Gustavo. A nova jurisdição constitucional. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 224.
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Sobre a concepção de tempo social, ver Ost, François. O tempo do Direito. Lisboa, Piaget, s/d.
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vez que, respeitados os limites do procedimento e reforma, a todo instante será pos-
sível alterar o texto constitucional. Daí a pergunta: se o texto constitucional – livre de
amarras contramajoritárias – pode ser alterado a todo instante, ainda será “constitu-
cional” no sentido de “Constituição”, que – e reafirma-se o paradoxo – nasce justa-
mente para impedir ao mesmo tempo o uno e o todo?
É neste ponto que a opção por uma ou por outra tese assume especial re-
levância. Repete-se a pergunta: o que é vinculante na Constituição? Como conter
as ações de futuras maiorias eleitorais? Madison, pai fundador da democracia ame-
ricana, reconhece, no Federalista, com Jefferson, que o povo, única força legítima do
poder, deve poder, em ocasiões especiais, dar a conhecer a sua decisão por via
constitucional. Mas esta possibilidade deve permanecer contida na Constituição,
precisamente. Contra os inimigos da Constituição, que poderiam desviar o recurso
ao povo, é preciso que o povo constituinte possa conter a ação de futuras maiorias
eleitorais. Isso é próprio de uma democracia constitucional: ela se exerce no quadro
traçado pela Constituição. Assim, o povo preserva-se dos perigos da instabilidade e
do extravasamento sempre possível da razão pelas paixões: aceitando uma Consti-
tuição preestabelecida (institucionalizada, nas palavras de Madison), um povo ata
suas mãos, mas liberta-se a si próprio de fardos consideráveis. 67
Desse modo, o cumprimento do que foi pactuado constitucionalmente no
tempo depende, fundamentalmente, da concepção que se tem acerca do papel da
Constituição e do alcance dos frenos anclados en la Constituición, que, em maior ou
menor escala, estabelecem não só os limites temporais como também as condições
de possibilidade de se conferir eficácia ao texto, circunstância que sempre vai obri-
gar a discussão acerca da importância da jurisdição constitucional, (sempre) visce-
ralmente dependente da dimensão das cláusulas que impõem os mecanismos con-
tramajoritários no texto constitucional. Esta parece ser a equação que rege a pro-
67
Cfe. Madison, James. O federalista. Campinas Russel, 2003. Também Ost, François. O Tempo do
Direito, op.cit., p. 276.
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Tampouco se defende, como bem assinala Garcia Herrera, la transformación de la magistratura en
sujeto político, ni se propugna recuperar la pugna entre Constituición y Ley, marginando al Parla-
mento y transformando al juez en protagonista principal del desarrollo constitucional; antes bien, la
apelación a jurisdición (constitucional) no se confronta con la relación Ley-Constituición, sino que se
asienta en la fase del desarrollo constitucional en el que nos encontramos caracterizada por la contra-
dicción entre los valores constitucionales y las propuestas alternativas con motivo de la crisis del Esta-
do social, y por la pérdida de sustantividad de la Ley que deja unos márgenes de decisión que deben
ser llenados con y desde la Constituición, desde sus derechos y decisiones fundamentales: “Enlazando
con las premisas antes enunciadas, el significado de la jurisdición no puede desligarse de las caracte-
rísticas de una Constituición asentada en un pacto contradictorio, basada en contenidos materiales,
traspasada por valores contrapuestos pero finalizada hacia la consecución de objetivos de igualdad
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sustancial, aunque haya unos principios de consenso universal (dignidad, democracia). Cfe. García
Herrera, Miguel Angel. Poder judicial e Estado social. In: Corrupción y Estado de Derecho – el papel
de la jurisdicción. Perfecto Andrés Ibáñez (Editor). Madrid, Trotta, 1999, p. 83.
69
Como bem assinala Bruce Ackerman, ao tratar da problemática norte-americana, declarando incons-
titucional um determinado dispositivo legal, o Tribunal está desempenhando uma função dualista críti-
ca. Ele está indicando à massa de cidadãos privados que algo especial está ocorrendo nos corredores
do poder; que seus pretendidos representantes estão tratando de legislar com pouca credibilidade; e
que, uma vez mais, há chegado o momento de determinar se nossa geração responderá fazendo o es-
forço político requerido para redefinir, como cidadãos privados, nossa identidade coletiva. Cfe. Ac-
kerman, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona: Gedisa, 1999, p.203.
70
Ademais, não se pode esquecer que os freios contramajoritários não podem conduzir a interpreta-
ções que alcem o Poder Judiciário a dono da Constituição. Como muito lembra Stephen Holmes, o
Tribunal pode entrar em conflito com as maiorias eleitorais tanto quando venera como também quando
desdenha a intenção dos criadores da Constituição. E este é um problema que pode ser detectado em
nosso país, onde ocorre o que Marcelo Neves chamou de “concretização desconstitucionalizante”, isto
é, a deturpação do texto constitucional no processo de concretização. A concretização normativo-
jurídica do texto constitucional é bloqueada de modo permanente e generalizado por fatores econômi-
cos ou políticos, não havendo qualquer relação consistente entre o texto e sua concretização. Resultado
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disso é a Constituição não se torna referência válida para os cidadãos, em geral, e para os agentes pú-
blicos, em particular, cuja atividade se desenvolve apesar dela e até contra os seus dispositivos. Cfe.
Neves, Marcelo. “Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica
da Constituição e Permanência das estruturas reais de poder”. RTDP n. 12. São Paulo, Malheiros,
1995. Ou seja, como denuncia Bercovici, em nosso país o Supremo Tribunal Federal decide contra a
Constituição. Desse modo, “ao se considerar o ‘dono’ da Constituição, interpretando-a em desacordo
com seus princípios fundamentais, o Supremo Tribunal está usurpando poderes constituintes, que ele
obviamente não tem.” Cfe. Bercovici, op.cit., pp. 209 e 310.
71
O desafio é proposto por Bercovici, op.cit.
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ção dos sentidos atribuíveis aos textos constitucionais. 72 Com efeito, Häberle propõe
a vinculação, no processo de interpretação da Constituição, todos os órgãos esta-
tais, setores da sociedade e cidadãos. Os números de intérpretes não pode ser ex-
clusivista. Quem vive a norma, interpreta-a. A legislação infraconstitucional deve ser
integrada ao estudo da hermenêutica constitucional. Assim, a interpretação jurídica é
somente um filtro, que disciplina a canaliza as múltiplas formas de participação dos
vários intérpretes constitucionais. 73
Até aqui a tese häberliana parece se encaixar muito bem. O problema é
que não há indicadores mais precisos acerca de como isto funciona ou de como po-
de vir a funcionar em sociedades periféricas como o Brasil. Ou seja, a pergunta que
cabe é: como desenvolver as condições para a construção de uma sociedade aberta
de intérpretes da Constituição no Brasil? Parece evidente que, em países que ado-
tam a forma mista de controle concentrado-difuso, uma efetiva implementação do
controle difuso proporcionaria uma capilarização da idéia de Constituição, circuns-
tância que poderia provocar uma “abertura” no processo de “dar-sentido-a-
Constituição”. Contudo, não nos empolguemos com isto! Com efeito, os dados acer-
ca do efetivo exercício da jurisdição constitucional no plano difuso apontam para
uma “baixa constitucionalidade”, 74 o que facilmente pode ser verificado pelo reduzido
número de incidentes de inconstitucionalidade e pela quase nenhuma utilização dos
mecanismos da interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem re-
dução de texto em sede de controle difuso, para citar apenas estes. É visível, ainda,
a equiparação entre vigência e validade e entre texto e norma, o que torna a doutri-
na e a jurisprudência reféns de um pensamento metafísico, uma vez que essa equi-
paração suprime o tempo do direito. Enfim, com a equiparação texto e norma, vigên-
cia e validade, “ocorre uma objetivação que suspende a temporalidade”, como bem
lembra Adeodato. 75 Em algumas áreas como o direito penal, chega a existir uma
72
Sobre o assunto, ver, no Brasil, por todos, Binenbojm, op.cit., pp. 114 e segs.
73
Häberle, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Menes.
Porto Alegre, Fabris,1992. Vários autores colocam restrições à tese de Häberle. Para Bonavides, corre-
se o perigo do afrouxamento da normatividade constitucional. Ver, também, Adeodato, João Maurício.
Jurisdição Constitucional à brasileira – situações e limites. In: (Neo)constitucionalismo – ontem, os
códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, IHJ,
2004, n. 2, p. 180.
74
Sobre o assunto, permito-me remeter o leitor ao meu Jurisdição Constitucional e Hermenêutica,
op.cit., mormente os capítulos 1 a 5.
75
Cfe. Adeodato, op.cit., p.180.
51
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79
Para tanto, ver Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, 5a. ed., op.cit.
80
Ver, nesse sentido, Stein, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. Ijui, Ed. Unijui, 2002, pp. 88 e 89 .
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Sobre a diferença ontológica e as conseqüências desse “esquecimento”, ver Streck, Hermenêutica
Jurídica, op. cit., em especial o posfácio.
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Kauffamnn, Arthur. “A problemática da filosofia do direito ao longo da História”, in Introdução à
filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. A. Kaufmann e W. Hassemer (org.). Tradu-
ção de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
83
Ver, para tanto, Streck, Hermenêutica, op.cit..
84
A afirmação “a norma é (sempre) produto da interpretação do texto”, ou que o “intérprete sempre
atribui sentido (Sinngebung) ao texto”, nem de longe pode significar a possibilidade deste – o intérpre-
te – poder “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, atribuindo sentidos de forma arbitrária aos
textos, como se texto e norma estivessem separados (e, portanto, tivessem “existência” autônoma).
Daí a necessidade desse esclarecimento, uma vez que freqüentemente a hermenêutica – na matriz aqui
trabalhada – tem sido acusada de relativismo. Gadamer rejeita peremptoriamente qualquer acusação de
relativismo (ou irracionalidade)à hermenêutica filosófica. Com efeito – e a lição agora é de Grondin –
não há qualquer problema em se combinar a pretensão de verdade com o compreender diversamente.
Gadamer deixa isto muito claro: com freqüência compreendemos diversamente porque nós mesmos
falamos novamente sobre a verdade, quando aplicamos à nossa situação algo verdadeiro (uma afirma-
ção exata, uma crítica, etc). Sem dúvida, cada indivíduo, a sua maneira e diversamente, assim o faz, a
cada época. Mas, o que cada tentativa de compreensão pretende, segue sendo uma verdade, sobre a
qual se pode eventualmente discutir. Seria um curto-circuito histórico explicar como relativista a ver-
dade aceita, no caso, de maneira diversa. Daí a incisiva advertência de Grondin: para a hermenêutica,
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quando se falava do relativismo, este nunca passou de um fantasma, isto é, uma construção elaborada
para nos provocar susto, mas que não existe. Na verdade, arremata, um relativismo, comumente enten-
dido como a concepção segundo a qual determinada coisa, ou mesmo qualquer coisa, é exatamente
como qualquer outra, de fato nunca foi defendido seriamente. Cfe. Grondin, Jean. Introdução á her-
menêutica Filosófica. São Leopoldo, UNISINOS, 1999, pp. 229 e segs. Para maiores detalhes, reme-
to o leitor ao meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 5ª. Ed., op.cit., pp. 310 e segs, em que procuro
exemplificar com casos concretos a presente problemática.
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Cfe. Adeodato, op.cit., p. 183.
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Cfe. Souza e Brito, José. Hermenêutica e Direito. Coimbra, Coimbra, 1990, p.8.
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Para se ter uma idéia do problema do alcance e da dimensão do pensamento metafísico, vale lembrar
que alguns autores do Processo Penal ainda acreditam na “busca da verdade real”, como se fosse pos-
sível ao julgador alcançar a essência das coisas (sic). Por todos, veja-se Fernando Capez (Curso de
Processo Penal, 8ª ed., SP, Saraiva, 2002, p.26), para quem “no processo penal, o juiz tem o dever de
investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constan-
te dos autos” (sic). Agregue-se a isso que parcela considerável do pensamento dogmático do Direito
continua acreditando na existência de “um mundo-em-si”, cuja estrutura o jurista (no caso, o juiz)
pode apreender/conhecer/captar por intermédio da “razão cognitiva”, para, depois, “comunicar” aos
outros pela linguagem, via sentença judicial. Repristinam, assim, a tese de que há um sujeito que co-
nhece o objeto e/ou a tese – tão metafísica como a anterior – de que há uma verdade absoluta, que
independe do conhecimento do sujeito, e que a este se impõe a partir do exterior (o ser em sua essência
- sic). Ora, a tese da “busca da verdade real” (a outra “verdade” seria a formal?) implica acreditar em
uma espécie de “Juiz Hercules”, que, com sua “mente privilegiada”, conseguiria superar/resolver a
angústia que persegue a humanidade desde que o logos suplantou o mito: como se dão os sentidos?
Como se dão nomes às coisas? pergunta constante, aliás, já nos primórdios da filosofia em “Crátilo”,
primeiro grande livro de filosofia da linguagem que trata da grande discussão entre sofistas e pré-
socráticos. Assim, desde a aurora do conhecimento houve uma sucessão de modos de compreensão do
ser e de explicitação do ente, no interior da história da metafísica -clássica e moderna, como o eidos
platônico, a ousia aristotélica, o ens creatur tomista, o cogito cartesiano instaurador da razão assujei-
tadora, o sistema do saber absoluto hegeliano, o eu transcendental kantiano, e, finalmente, a vontade
do poder em Nietzsche, identificada por Heidegger como o último standard de racionalidade da era da
metafísica. Todos são princípios epocais sustentados na entificação e na objetificação. O que ocorreu é
que, no campo jurídico (se se quiser, na ciência do Direito) faltou a compreensão da grande revolução
copernicana representada pela viragem lingüística (ou ontological turn, no seu sentido mais hermenêu-
tico), pela qual é possível superar os dualismos metafísicos que dominam o imaginário dos juristas.
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Ver, para tanto, Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra, Coimbra Editora,
1994, p. 224; também Grau, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e Críti-
ca. 2ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991, p. 176 e 177.
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Cfe. Pérez, Miguel Angel Aparicio. Modelo Constitucional de Estado y realidad Política. In: Co-
rrupción Y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Ibañez (Editor). Madrid, Edito-
rial Trotta, 1996, p. 30.
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Bibliografia:
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