Você está na página 1de 1

Dicionário Cultural da TV Globo

Com a publicação do Dicionário da TV Globo (Editora Globo, 2003), ao lado da


idéia de se fornecer, por meio desse pai-dos-burros, uma vasta teia de informações acerca
dos artefatos globais, um fenômeno interessante começou a ganhar corpo nos bastidores
sócio-culturais brasileiros.
Pela primeira vez, a televisão brasileira lança mão de um instrumento difusor
cultural de cunho acadêmico – um dicionário -, para, assim, realizar uma metalinguagem
cultural de sua própria produção, o que nos soa, aqui, entretanto, tão inovadora quanto
nociva. A partir da publicação do dicionário da TV Globo, o vocábulo cultura passou a ser
sinônimo, também, de programação de televisão. E não de todas as emissoras de televisão,
mas de uma em particular – eis uma face do aspecto nocivo da idéia. No caso em destaque,
a totalidade da cultura brasileira, atualmente, passou a ser, metonimicamente reconhecida
pelo grande público, como sendo a parcialidade tele-transmitida pela programação histórica
da Rede Globo de Televisão.
O ícone material desse contexto foi o lançamento do aludido dicionário, e o item
exemplificativo nefasto - por ser limítrofe -, o temos na programação das tardes, durante a
semana. A emissora em voga transmite um programa de jogos, ancorado pela loura
Angélica – o Vídeo Game. Ali, são realizadas provas e sabatinas com artistas renomados ou
não, além de integrantes do BBB (Big Brother Brasil). Eles são inquiridos, sobretudo, sobre
a rotina de produção dos programas, personagens, datas de exibição, relações entre
personagens entre si – é uma versão plural do “quem ficou com quem, ontem” que, assim
abordado, na televisão, apoiado por um dicionário e tudo, perde o lugar visível de fofoca e
futilidade, e ganha o status privilegiado e subliminar de cultura geral indispensável.
Essa pretensa idéia de cultura geral é perniciosa ao público, na medida em que, em
sendo a emissora Globo, a campeã nacional de audiência da televisão aberta, no Brasil,
acaba, por isso, difundindo um paradigma limítrofe, no qual se entende que o cabedal de
nossa cultura geral é constituído, essencialmente, por ocupações fúteis e desnecessárias
para a vida real.
Nessa balada, não iremos estranhar se, daqui algum tempo, os vestibulares das
grandes universidades do país começarem a cobrar em suas provas, os nomes dos
protagonistas da última novela das oito, a cor do carro novo do filho do empresário da
novela tal, quem foi o assassino do Dr. Lineu (personagem da novela Celebridade – 2004 -,
vivido pelo ator Hugo Carvana), etc.
Ao redor dessa aura de frivolidade que ameaça tomar de assalto a totalidade cultural
brasileira, o que se deve questionar, não é o mérito, até certo ponto louvável, de se lançar
um dicionário, um referencial para a memória histórica de uma empresa de
telecomunicação (e, aqui, ressalta-se a face positiva da inovação), mas, sim, se esse fato
não esteja ratificando uma idéia de consenso, na qual se vê que a maioria dos
telespectadores da Rede Globo, ao invés de ocuparem-se, preferencialmente, e não
exclusivamente, de aprender com os fatos do mundo, estejam se dedicando mais em
apreender passivamente o que o mundo lhes esteja oferecendo, o que impede que se
desenvolva um pensamento crítico com relação àquilo que se apresenta diante dos sentidos.
Enquanto não se chega a uma conclusão, das opções abaixo, a recomendação é que
se escolha a melhor, segundo o desejo e disponibilidade de cada um: ou nos preparamos
para dominar e melhorar o mundo, ou somos dominados por um mundo cada vez pior,
regido pelo ponto de vista dos outros, e não pelo nosso.

Você também pode gostar