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Daí-me o Pão e o Circo

Estamos cada vez mais interessados na vida alheia – é a nossa melhor diversão. Será
que devemos consultar nosso advogado? Do jeito que a coisa anda, logo seremos
processados por termos invadido a privacidade de um cachorro. Perdemos a noção do
plausível e junto também um pouco do nosso instinto de preservação da ordem natural. A
vida tem seus princípios incorruptíveis e a sociedade seus padrões de conduta ética que
deveriam ser invioláveis. Para Jean-Jacques Rousseau, no livro O Contrato Social, Cultrix:
São Paulo, 1995, a sociedade se ordenaria através de pactos aceitos por todos os membros
do grupo social e, as regras de convivência estabelecidas, teriam, por fim primeiro, a
preservação dos pactuantes. O contrato social seria, então, uma predestinação consensual –
todos são o que melhor convir a cada um e terão o que desejarem e combinarem entre si. A
prática política moderna, de orientação neoliberal, alimenta algo em sentido oposto – reina
a regra que diz que poderá mais quem chorar menos. Essa máxima é uma síntese grotesca
do darwinismo social, mas que ressalta a sobrevivência do mais apto, do mais treinado para
dizer sim. Se, no entanto, somos treinados para aceitar passivamente a realidade do mundo
que nos rodeia – manifestamos uma espécie de comportamento típico da personagem do
mundo de Truman (filme de Jim Carrey, de 1998) -, porque às vezes entramos em crise e
tentamos muda-lo? É a síndrome de Dom Quixote. Há uma nova esperança, uma coisa boa
sempre poderá ser feita. E talvez o mundo não seja redondo, o homem não tenha ido à Lua,
o universo seja finito, a vida seja bela.
Na Roma antiga atiravam-se pães às pessoas que presenciavam aos espetáculos no
Coliseu. Isso amainava a fome e calava o germe da rebelião. Caetano e Gil, na letra da
canção Panis et Circenses, dizem que “essas pessoas da sala de jantar são ocupadas em
nascer e morrer”. Cada povo tem o ópio que merece. Hoje, devido à busca incessante pela
fofoca, pela invasão de privacidade, pomo-nos a comer de tudo ansiosamente diante da
exibição televisiva de programas como “Casa dos Artistas”, “No Limite”, “Domingo da
Gente”, “Cidade Alerta”, “Big Brother”, na expectativa de vermos revelados nos deslizes e
sucessos dos outros as nossas próprias fraquezas e realizações da vontade. É a expectativa
de uma solução passiva para os nossos problemas. Se não conseguimos resolver nossos
conflitos ou satisfazer nossos desejos, que alguém os consiga por nós – viva a catarse! O
Santo Daime, a bebida amazonense, com propriedades psicoativas, é estudada e ingerida
por pessoas no mundo inteiro. Ela tem o seu nome derivado das orações feitas pelos fiéis
que rogam às entidades espirituais: “daí-me isso, daí-me aquilo, etc.”. Daí, Santo Daime.
Chico César, na canção “Perto demais de Deus”, alerta: “Cristo assim perto demais..., tem
gente incapaz de viver sem Deus, Deus me livre, Deus me guarde, Deus me faça a feira”.
Não discutamos o efeito da bebida – que é a filosofia da coisa -, mas pensemos no daimista,
que é o filósofo. Todos somos iguaizinhos a eles. Vamos lá. Domingo, o Maracanã está
lotado e, em campo, artistas e políticos atiram ao povo, sentado e catártico diante das
câmeras aflitas por um deslize – uma cusparada, uma coçada no nariz, um olhar sedutor,
enfim, um vexame qualquer que agrade à audiência - frascos de Santo Daime, pães bentos
pelo Padre Marcelo e panfletos com uma oração poderosa para afastar encosto.
Parece que o que nos une, o que nos torna irmãos, não é o pacto social nem o anseio
pelo pão de cada dia, mas a corrupção da natureza humana do corpo pela natureza orgânica
do estômago. Ou seja, ou temos o entretenimento que desejamos ou é o entretenimento que
não está preparado para atender aos nossos desejos. De qualquer maneira, vem aí mais um
campeão de audiência – o “Big Brother Brasil”, ou bbb. O ano de 2006 está tendo bastante
pão: o novo bbb na rede globo, a copa do mundo e as eleições. Só vai faltar mesmo um
contato imediato de 4º grau. É, porque de 3º grau já o tivemos com o ET de Varginha.

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