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Jean-Pierre Vernant Entre MITO&POLITICA @ pensar de Vernant ¢ inseparavel do efeito que desperta em seus leitores, nao por causa CO nee Se ent te ete puiblico do autor inclui o préprio autor, nao reece noice eens Aen Rer tre) de si por exceléncia. Esse duplo estar e corr Panna VEE a te ey) COS Crit eM rte ett SDE an ers eee ete ra mais luz do que a verdade. Vernant ilumina, de uma luz que nao é dele: passa por ele, escolhe-o. E dos poucos sdbios que acredita mais no mundo do que em si OS eee eta eee belos, sua didatica, no caso, nao é falante, nem meramente expositiva, tal como se diz que tod: SEO e Rag ceca Ccrenseen eatin) espirito, um apanhar para passar a frente, comc procedia Hesiodo com as Musas, ¢ isto nao é coisa s6 de estilo ou de clareza. A forga desse COSCO U OR cn nT eee etre iste De EL aoe tte Ome Ca coe nnn etl Dern Cs PSOne CMa crea an reconhecer por meio deles, e a se enxergar Pee OS COU Ce ttc ees csc CSE man tne teeter hens Sor OE ecm rent te tet ante NOES OO oe nett eee tt Vernant procura, mas a elogiiéncia, a fala deles, ENTRE MITO E POLITICA Usp Reitor Vice-reitor bez Presidente Comisste Editoriat Diretora Edixoriat Diretora Comercial Diretor Administrative Editor-assistente UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Jacques Mareovitch Adolptio José Melfi [EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Plinio. Martins Filho (Pro-tempore) Plinio Martins Fillo (Presideme) José Mindlin Laura de Mello e Souza Murillo Marx Oswaldo Puslo Forattini Silvana Biral liana Urabayash Renato Calbueci Joo Bardeira ENTRE MITO E POLITICA JEAN-PIERRE VERNANT &s 2) ( BIBLIOTECA 3} _ tina nan ee Fe Copyright © 1996 by Editions du Seuil ‘Titulo do original em francés: Entre mythe et politique dos Internaciomas de Catalogu na Publicago (CIP) (Camara Boilers do Livro, SP, Brasil ‘Vernant, Jean-Piere Ene Mio e Poles! Jean-Pierre Vemant: radu de Cristina Muracheo, - Sto Paul Editors da Universidade de S30 Paul, 2001 “Talo original Bare myth et poiiqus ISBN 85-314-0502:5, 1. Chilizagio gegs 2, Mitologia 3 Mitblogos~ Fraga 4. Politica S$. Religito L Thwlo, 98.1250 cpp-s088 fnice pra castogo sister 1 Misloga : Biogrtia€ obea 291.1302 Direitos em lingua portuguesa rese-vades Edusp ~ Editora da Universidade de $9 Paulo Ax. Prof. Luciano Gualberco, Travessa J, 37 66 andar ~ E4. da Antiga Reitoria ~ Cidade Universitaria (05508-900 ~ Sio Paulo ~ SP - Brasil = Fax (Oxx11) 3818-$151, Tel. (xxl |) 3818-4008 / 3818-4150 ‘weww.splvedusp ~ e-mail: edusp@eds.usp br Printed in Brazil 2001 Fo feito © depisito legal Nota da edigio Apresentacio . Preficio . SRA Aanewne 10. AL 12. 13. 14. 15. SUMARIO FRAGMENTOS DE UM ITINERARIO Tecer a Amizade .. ws . As Etapas de um Percurso ... Pesquisador no CNRS . A Grécia, Ontem e Hoje Do Outro a0 Mesmo A Fabricagao de Si A Morte nos Olhos - . A Religidio, Objeto de Ciéncia? Questdes de Método PSICOLOGIA E ANTROPOLOGIA HISTORICAS Ler Meyerson ee Psicologia Historica e Experiéncia Social . : Aspectos do Individuo na Obra de Jules Renard... Sobre a Antropologia da Grécia Antiga ..... Os Gregos sem Milagre de Louis Gernet . OHomem Grego ......2...cecce eves 11 15 19 27 39 47 53 59 63 7 87 95 121 139 153 157 163 169 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22, 23. 24. a. 26. 27. 28. 29. 30. ai. aa, 33 34, as. 36. 37. 38. 39. 40. AL. 42. 43. 44. 45. 46. ENTRE MITO E POLITICA RAZAO, RACIONALIDADES GREGAS Razio de Ontem e de Hoje ... Formas de Crenga e de Racionalidade na Grécia . O Advento do Pensamento Racional ...... Racionalidade e Politica: Sobre Clistenes MITOLOGIAS A Questo Mitoldgica . . ‘A Longa Vida dos Deuses Gregos Cosmogonia ao Teogonia Prometeu Edipo © Castigo das Danaides. Lendas do Matricidio Perigo e Virtude do Maculado Mestres da Verdade .... O Mito na Voz Reflexiva .. IMAGEM, IMAGINARIO, IMAGINACAO Da Presentificagao do Invisfvel 4 Imitago da Aparénci Figuragao ¢ Imagem Os Semblantes de Pandora .. Visto de Frente : Sob os Othos do Outro DO TRAGICO Um Teatro da Cidade Edipo, Nosso Contemporineo? A Tragédia de Heitor é © Ciclope: Entre a Odisséia e as Bacantes . Awalidade da Tragédia? A Identidade Trégica MORTALIDADE, IMORTALIDADE A “Bela Morte” de Aquiles - Corpo Divino, Corpo Imortal . Esplendor Divino Psykhé: Duplo do Corpo ou Reflexo do Divino? . ‘Tempo Est6ico, Tempo dos Homens .... 191 197 209 219 229 233 239 255 263 269 273 277 281 285 289 295 309 323 337 343 347 359 381 389 393 397 407 415 421 427 435 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 37: 58. RUMEN ieee NTE Tn. SUMARIO POLITICA: DENTRO/FORA O Partido Comunista Francés ¢ a Revolucio Argelina ... Carta da Célula Sorbonne-Lettres (10 de outubro de 1958) Retrato de um Militante: Victor Leduc . Maio de 68 oe O Buraco Negro do Comunismo . 1940: Os Velhos Demonios ...... Copernic PARIS-MOSCOU Reflexdes sobre 0 Stalinismo Francés ..........22.00000e0eeeeeeee Sécrates Georgiano ...... Encontro em Moscou . No Momento Atual ..... Quando Alguém Bate a Porta. 439 449 459 463 467 4723 475 479 487 493 497 503 513 NOTA DA EDIGAO Para que 0 leitor possi compreender como as palavras gregas foram trans- literadas para 0 portugués, o professor Luiz Alberto Machado Cabral, revisor téc- nico desta tradugdo, apresenta aqui a explicagdo sucinta de todas as regras formais que garantem a leitura correta dos termas citados PRONUNCIA ETRANSLITERAGAO DAS PALAVRAS GREGAS A prontincia exata do grego antigo 6, ainda hoje, objeto de especulagiio dos estudiosos. Por esse motivo, hi trés sisiemas de prontincia do grego antigo: a pro- niincia erasmiana (criada pelo sbio Erasmo de Rotterdam na Renascenga), a prontincia restaurada (uma tentativa de recriar a prontincia do grego no dialeto {tico, tal como era falado no perfodo clissico em Atenas, tomando como base os escritos de antigos gramiticos) e a prontincia do grego moderno (que, apesar de no ser a mesma para o perfodo clissico, possui a vantagem de unir a lingua an- tiga com sua continuagaio moderna). A prontincia erasmiana, embora seja inteiramente artificial (jamais foi em- pregada pelos gregos), possui a grande vantagem de ser a mais simples e a mais tradicional nos meios académicos e, por esta raziio, foi adotada para a presente edigao. Letra grega Nome alfa beta gama delta épsilon dzeta eta teta iota capa lambda, my ny csi émicron pi 16 PROOENMP p> z $ VaoMmMer yn - ost Ox~weA 7 sigma tau ve hipsilon xoM 4 phi Ki psi mega Dexe ENTRE MITO E POLITICA ALFABETO GREGO Prontincia erasmiana a (longa ou breve) b et d e [breve, fechada (é)] dz e [longa, aberta (€)] th Cinglés ¢his) i (longa ou breve) k 1 m n x (sempre cs) 0 (breve, fechada (6)} P F (como em duro) 's (nunca com som de z) t (longa ou breve) f ch (alemio machen) ps © [longa, aberta (6)] Transliteragao a: Gpxr: arkhé bBactheds: basileds £& ytyvdoxu: gigndsko d: Sijuoc: démos e: el80¢: eidos th: OdpBoc: thémbos i: Uetv: idein k: xpdroc: krdtos I: Adaoa: Iyissa m: potpa: mofra avd: xanthés 0: Svouc: énoma Pi mpaBig: praxis rh(inicial): 6A: 1: 8Gjpov: déron s: ofPag: sébas t Tut: time Pps: ybris u: Hodoa: mots ph: 61A‘a: philia kh: xdog; klidos ps: bux: psyklid 0: Gkig: Oks héma *O y (gama) é sempre pronunciado como em gata, mesmo diante de €, 9, t. Ex.: yépag: guéras (privilégio), ytyvouan: guignomai (tornar-se, vir a ser). No en- tanto, diante de y, x, x, ele é transliterado e pronunciado como o nosso n. E: dyyedos: dnguelos (mensageiro), ’vaNyxK10¢: enalinkios (semelhante) ** Essa dltima forma do sigma (¢) é empregada apenas quando ele se encontra no final de uma palavra. Ex.: Adyo¢: [dgos (palavra, discurso). Em posigiio in- tervocilica, a forma é sempre (a): aloa: aisa (pronuncia-se dissa: decreto divi- no, destino). NOTA DA EDICAO ##% Q U, u (hipsilon) pronuncia-se como o id do alemiio (ex. Miller) e s6 pode ser transliterado por y quando estiver em pasigao vocilica. Ex.: OBpis: hybris (ultraje”), hSooa: Iyssa (furor). Nos outros casos, deve ser transliterado pelo u: adtdv: autdn (ele); yoOTa: moiisa (musa); voUS: nofis (mente, esptrito). OBSERVAGOES: 1) E preciso marcar a distingio entre as vogais longas h/w das breves correspon- dentes e/o, sem o que torna-se impossivel perceber a diferenga entre palavras trans- literadas como yépac: guéras (privilégio) e yfipag: guéras (velhice). Desta forma, na transliteragiio, devemos assinalar as vogais longas (nw) pelo sinal ~: ovAArn- twp: sylléptor (0 que protege, auxilia). Todas as vogais acentuadas com circun- flexo so sempre longas: 0c: éthos (cardter), onde €=n; 00g: mythos (mito), el50¢: efdos (aspecto exterior, forma). 2) Os ditongos so formados pela adigdio das semivogais i ¢ u As outras vogais. 3) Os “espiritos” sio sinais ortograficos colocados sobre toda vogal inicial das palavras e sobre o 0 (hipsilon) e 0 6 (r6) iniciais (sempre marcados pelo espirito rude e transliterados por /ty e rh). Ha o espirito doce ou brando (”), que nfo tem influéncia alguma na prontincia, mareando apenas a auséncia de aspiragio, € por isso nfo é levado em conta na transliteragio: éxodetv: akotiein (ouvir); € 0 espf- rito rude ou dspero ("), que marca a aspiragio e é pronunciado como h do in- glés: 6pd: horé (vejo). Se uma palavra comega por um ditongo, 0 espirito deve ser colocado sobre a segunda vogal, seja ele rude ou brando. Ex.: aitia: aitfa (causa, motivo); aipeais: hairesis (escotha, preferéncia). 4) Os sinais de acentuagdo sio colocados sobre cada palavra para indicar a sflaba acentuada. Hé trés acentos: 0 agudo (”), 0 grave (*) € © circunflexo (), este dlti- mo sempre transliterado por *. O acento agudo pode ser colocado sobre as trés Gltimas silabas de uma palavra, o circunflexo (perispomeno) somente sobre as duas {iltimas, e 0 acento grave apenas sobre a diltima (quando a palavra seguinte for acentuada). O acento, assim como 0 espirito, é sempre colocado sobre a segunda letra dos ditongos e € desse modo que os termos gregos devem ser transliterados para o portugués: BaotAeuc: basiletis (pronuncia-se basiléus: rei). 5) Quanto aos sinais de pontuagio, cumpre observar que os gregos antigos no pontuavam seus textos. O emprego da pontuagio s6 se manifesta bem mais tarde B ENTRE MITO E POLITICA € 86 se torna um sistema coerente na Idade Média, com o desenvolvimento da mimiscula. A virgula © 0 ponto gregos tém 0 mesmo valor que em portugués. No lugar dos nossos dois pontos e do ponto-e-virgula, os gregos empregavam um ponto alto (:) € 0 ponto-e-virgula em um texto grego (:) corresponde ao nosso ponto de interrogagdo. O ponto de exclamagio nio era conhecido, embora seja empre- gado em algumas edigdes. 6) Algumas vezes o t (iota) é subscrito, isto é, colocado embaixo da vogal que 0 precede. Ex. @, 0) \, S80 por at, nt, wt. Sé se coloca 0 iota subscrito sob vogais longas mas ele nao € pronunciado (proniincia erasmiana). Quando a vogal prece- dente for maidscula, 0 iota no € subscrito, mas adscrito (no entanto, continua niio sendo pronunciado nem acentuado): AtSng: (Hades). Na transliteragao o iota 6 sempre adscrito e s6 a indicagio de que a vogal final é longa & que permitiré a correta identificagaio da palavra grega: Ex.: Adyou: légoi (discursos), de Ady: légdi (no discurso), Tia las honras, dativo instrumental), de TyiGc: timais (tu honras, verbo). imats (pe: 14 APRESENTACAO Entre Mito e Politica € um texto fundamental para se compreender a traje- t6ria intelectual de Jean Pierre Vernant; sem dtivida, um dos mais renomados helenistas da atualidade. Nao somente por esclarecer, nos minimos detalhes, a peculiaridade de sua formagio académica, fruto de sua atuagao multidisciplinar na drea de ciéncias humanas, ou por exemplicar, por meio de ensaios admiraveis, a aplicagio precisa dos conceitos que norteram-Ihe a pesquisa sobre os mais im- portantes fendmenos culturais da Grécia antiga, mas também por fornecer-nos a biografia politica de um estudioso que viveu os momentos cruciais da histéria do século XX no centro da cultura européia. fato de ter atuado como diretor da Escola Pritica de Estudos Avangados, nas comissdes de sociologia e de linguas e civilizagdes clissicas; de ter desem- penhado a fungao de secretirio de redagio da revista Journal de Psychologie, no qual se dedicava a pesquisas de psicologia hist6rica; além de ter desenvolvido sua pesquisa no Centro Nacional de Pesquisas Cientificas (CNRS), possibilitaram- Ihe 0 contato com uma pléiade de eruditos das mais diversas Greas, que trocavam entre si as experiéncias adquiridas no estudo de diferentes culturas. Foi esse con- tato que Ihe permitiu familiarizar-se com os hibitos mentais e os procedimentos de pesquisa de fildlogos, socidlogos, historiadores, arquedlogos, iconologistas psic6logos, possibilitando-Ihe buscar informagdes num campo mais amplo e ex- plorar 0 terreno segundo Angulos de abordagem variados. Uma das vertentes de sua metodologia inscreve-se na linha da psicologia histérica, cujos fundamentos foram estabelecidos na Franga por I. Meyerson. Com ENTRE MITO E POLITICA Meyerson, Vernant aprendeu que o que caracteriza 0 homem € o pensamento sim- bélico. Por esse motivo, seus estudos incidem sobretudo no pensamento religio- so dos gregos, pois a religitio € 0 que ha de mais simbélico no homem, uma vez que afirma que “por trés de tudo que vé, de tudo que se diz, existe um outro pla- no, um além. E como o homem € histérico de ponta a ponta, como ele é dentro de si 0 sujeito de uma hist6ria, € preciso reconstituir essa histéria”. As caracteris- ticas que Vernant mais admirava em Meyerson (e que mais tarde também viriam a ser suas) eram “a sua consciéncia aguda das complexidades humanas, o respei- to pelas nuangas ¢ a preocupagao constante em corrigir e explicitar as formula- ges antigas para levi-las mais adiante”. Meyerson mostrou-Ihe que 0 homem é um animal que fabrica ¢ fabrica a si mesmo, que € responsavel por seu destino espiritual e social, os quais ele constréi simultaneamente. Foi também por meio de Meyerson que Vernant conheceu Louis Gernet e, desta forma, veio a se estabelecer seu objeto de estudo: a antigtiidade grega. Foi © conhecimento e a extraordinéria inteligéncia de Gernet que Ihe revelaram uma realidade da Grécia que ele nao conhecia. Em sua preocupagiio de compreender a construgdio de uma linguagem juridica na Grécia antiga, Gernet “revelou uma forma de pensamento marcado pela dupla e constante preocupagdo de partir de realidades coletivas, em todos os nfveis, para apreciar corretamente seu peso so- cial, mas sem jamais separé-las das atitudes psicolégicas ¢ dos mecanismos men- tais, sem os quais 0 advento, a marcha e as transformagies das instituigdes seriam inteligiveis”. Foi também Gernet que o fez interessar-se pela transigdio do univer- so intelectual do mundo mitico-relioso para o que ele, Gernet, chamou de razdo. Essas abordagens mestras, de capital importncia para se compreender a andlise que Vernant faz dos fendmenos socio-culturais, vieram coincidir com outra vertente de sua metodologia, complementando-a: o pensamento de Karl Marx. De Marx, Vernant hauriu o sentido de que a histéria nfo passa de uma transformagio continua da natureza humana, uma vez que “é na concretude de sua existéncia que os homens se definem pela rede das priticas que os ligam uns aos outros”. Ver- nant, porém, tem 0 cuidado de precisar que 0 marxismo que o influenciou nao foi 0 “desse catequismo revisto e corrigido ao qual foi reduzido, primeiro para justi- fiear determinada pritica politica, e, em seguida, para justificar um sistema de Estado burocratizado € de governo autoritiirio”. Vernant chegou a0 marxismo através do atefsmo revoluciondrio. Mas ao se aprofundar nos mitos gregos € na religitio gre- ga, ele compreendeu que as relages entre religidio e sociedade nao eram simples, © que o levou tanto a empreender uma leitura mais cuidadosa dos préprios textos de Marx e do marxismo, quanto a desenvolver uma anélise interna do pensamen- to religioso grego. Assim, chegou A conclusiio de que, sob certos aspectos, uma 16 APRESENTAGAO Sociedade ndio pode ser entendida se no se trabalhar “no s6 com as instituigdes religiosas oficiais, como também com todos os grupos divergentes, sectérios, marginais € com as relagdes entre estas aspiragGes religiosas dos grupos margi- nais € 0 que constitui 0 centro da vida social e o cerne da experiéncia religiosa” ‘Sob a influéneia de Marx, Vernant definiu 0 objeto de estudo de sua tese: A Nogao de Trabalho em Platdo, 0 que o levou a indagar “em que momento 0 ho- mem passou a sentir que trabalhava e que sentido deu a isso?". A. partir dat, evi- dencia-se a caracterfstica mais admirivel e talvez a maior contribuigio de Vernant Para a compreensio da especificidade de varios fendmenos culturais da Grécia antiga: a precisio em definir a natureza do objeto de estudo. Desse modo, como ele mesmo afirma, nao existe o trabalho e sim varios tipos de trabalho ¢ o homem esté longe de ter sempre vivido suas atividades de trabalho da mesma forma que nés, Pelo mesmo motivo, o sujeito ndo é uma categoria Gnica: “nao & a mesma coisa quando 0 ‘eu’ encontra-se em um epitafio ou quando Homero e Hesfodo dizem ‘eu’. E diferente também quando Deméstenes ou Isécrates, em seu discur- So para defender uma causa, colocam-se a si mesmos em cena ou quando histo- tiadores como Herddoto ou Tucidides intervém para dar sua opinizio ou manifestar suas diividas”. Por esse motivo, Vernant rejeita toda interpretagio que postula, “por tris das transformagdes das condutas ¢ das obras humanas, um espfrito imutével, fungGes psicoldgicas permanentes, um sujeito interior fixo”, pois “6 preciso reco- nhecer que homem é, dentro de si, o lugar de uma hist6ria e a tarefa do psicélogo € justamente reconstruir 0 seu percurso”. O importante, como ele diz, é nao escolher uma etiqueta: rejeita também o rotulo de estruturalista se “se entender 0 termo no sentido da moda que assolou Por algum tempo o meio intelectual parisiense e que levou a expulsar a hist6ria do campo das ciéncias sociais em proveito de modelos formais de esquemas abs- tratos”. Mas admite-o em sua abordagem da histéria das religides, “que se vale da contribuigo dos estudos linguifsticos dos tltimos cingiienta anos, com nogdes de sistema e de sincronia, ¢ do partido que os mit6logos tiraram delas para per- ceber os sistemas de oposigdes ¢ homologias que constituem o arcabouco das narrativas miticas”. ‘Vernant passa em revista todos os seus livros, discute e complementa os Pontos mais problematicos de sua incansdvel investigago através de debates com Outros intelectuais de seu circulo: sto didlogos que explicitam os pontos de par- tidas nas pesquisas, os seus devios de natureza epistemol6gica e como alguns desses livros nasceram das etapas de um projeto de pesquisa mais amplo (As Origens do Pensamento Grego, por exemplo, surgiu em uma das etapas da pes- Quisa para se compreender “como 0 que chamamos de formas de pensamento 7 SVHODYLld ACVAINOVA - VOSLOMIaIa ENTRE MITO E POLITICA racional puderam emergir dos testemunhos que dispomos sobre 0 pensamento mitico”). Mas nao é s6 isso: hé também textos fundamentais para todo leitor que se interessa pela Grécia antiga, como O Homem Grego, A Longa Vida dos Dew- ses, € muitos outros. Sem diivida, Figuragdo e Imagem, que pesquisa sobre a existéncia de uma terminologia especifica para a representago figurada na Gré- cia antiga e investiga as nogdes de eikén / eiddlon, constitui a maior contribuigzo de Vernant a0 campo da iconologia grega. Hé também o homem politico. Vernant 0 foi ¢ participou ativamente dos acontecimentos que marcaram a histéria da Franga no século XX: seu envolvi- mento com o partido comunista, sua visio da revolta estudantil de Maio de 1968, suas relagdes com a Rassia, constituem episédios que revelam a dimensiio hu- mana e questionadora deste extraordindrio intelectual, sempre preocupado com 0s acontecimentos decisivos da hist6ria humana, seja na antigiidade grega ou no presente, pois “se a Grécia constituiu o ponto de partida da nossa ciéncia, filoso- fia, se inventou a razao, a politica e a democracia no sentido em que as entende- mos, em suma, se dev cultura ocidental seus tragos mais marcantes, procurar explicar historicamente 0 que € chamado de ‘milagre grego’ é tentar situar nossa prépria origem no lugar que Ihe cabe na histéria humana”. Luiz ALBERTO MACHADO CABRAL a 18 PREFACIO Para Lida E quando se chega a reta final que nos Perguntamos — ou, mais exatamente, que nos perguntam — qual o caminho que foi seguido. A resposta é dificil. Ha viam sido fixadas, no inicio, algumas diregdes. Eu gostava de proclamar, em minha juventude, como um Jema em uma bandeira: um grande amor, uma grande tare- fa, uma grande esperanga. Lindo programa! Fora 0 amor, sobre 0 qual nada di- rei, percebo hoje que, no lugar de um itinerdrio tnico cujo tragado poderia ser reconstitufdo a posteriori, existiram vias miiltiplas que me atrafram tanto quanto as escolhi, peregrinacdes, desvios. Caminhamos com o tempo, melhor dizendo: somos deslocados por ele, ndo por inteiro, mas por pedagos, para finalmente chegar em um ponto em que nao acreditivamos dever chegar, deslocados no lugar que nos era mais conhecido, diferentes em nossa forma de continuarmos iguais, Se € que tenho algum talento de escritor, ele por certo niio é autobiogrifico. A pena cairia de minhas mios se eu pretendesse fazé-la contar o percurso de minha vida: como desembaragar os fios ¢ para qué? Alias, seri posstvel percorrer a vida como se percorre uma terra que desejamos explorar ou como se percorre um li- wo, folheando-o em diagonal, pulando paginas, para capté-lo apressadamente, sem realmente conhecé-lo? Foi, contudo, a palavra “percurso” que me ocorreu para 0 titulo deste livro quando conversava sobre ele com Maurice Olender, cuja amizade me convence- ra, afinal, a empreender com ele esta compilagao e entregar-Ihe, bem como a Héléne Monsacré, sua organizagéio. Uma compilagio é um pouco como uma vida: um amontoado feito de pegas € pedagos. Entretanto, até na sacola que um men- ENTRE MITO E POLITICA digo carrega consigo e onde poder-se-ia crer que enfia tudo 0 que Ihe cai entre as mios aleatoriamente, a ordem que preside aquele monte de coisas vem tanto de uma escolha quanto do acaso e, para quem souber olhar, dé um testemunho do perfil e do itinerdrio singulares de um individuo. Do pacote de escritos reunidos para constituir este volume, poder-se-4 dizer, a0 que me parece, que, chamando- 0 de Entre Mito e Politica, balizou-se justamente o espago onde se situam, por mais diversos que sejam, os textos escolhidos. Quando olho para tras, penso que, de fato, € possivel representar o curso de minha vida e meu percurso cientifico como uma trajetéria tensa, por vezes dilacerada, entre dois pélos inimigos, i migos fntimos, os dois pélos opostos e associados do mito e da politica. Para as pessoas de minha gerag’o que conheceram e, no caso de algumas, acompanha- ram 0 jovem antifascista que fui no Quartier Latin, 0 membro da Resisténcia do Sudoeste da Franga, 0 militante anticolonialista do pés-guerra, nao vale a pena insistir, Entre Mito e Politica, eles de alguma forma entendem 0 que isso pode jovens, os tempos que vivi com meus co- querer dizer. Mas para os outros, ma legas, dos quais to poucos restaram — 0 nazismo, 0 comunismo, a Ocupagiio, a Libertagdo —, devem aparecer como tempos tao estranhos e opacos quanto a épo- ca de Joana d’Are ou de Carlos Magno. Sem diivida, é em parte com a esperanga de fazé-los entender 0 que era 0 horizonte em que se inscreviam ento nosso pen- samento e nossa ago, de que forma esse contexto, ao mesmo tempo em que li- mitava a ambos, cegando-os por vezes, conferia a cada um sentido e forga, que escolhi reunir, como pegas de um quebra-cabega, essa multiplicidade de escritos. Entre Mito e Politica, entao. E ainda preciso tomar cuidado com interpre- tagdes demasiado simples, tanto mais tentadoras quando a formulagdo, em sua aparente clareza, corre o risco de sugerir. Como, por exemplo, considerar como mito 0 conjunto dos estudos que fiz sobre a mitologia grega e como politica mi- nha militdincia nos acontecimentos contemporaneos. Terfamos assim um percur- 80 que, dependendo das circunstancias e dos momentos, me teria levado em ziguezague, indo e voltando, da Antigiiidade ao mundo de hoje, da pesquisa pura e desinteressada ao engajamento, do pesquisador isolado em sua biblioteca 20 homem piiblico lutando de bragos dados com seus camaradas. Mas, em um es- quema desse tipo, nem o helenista, nem o militante encontram seu lugar. Ambos ngo se reconhecem nesse retrato de face dupla. Em primeiro lugar porque a pesquisa “cientifica” sobre a Grécia antiga nao se limita ao religioso e ao mitico. Ela estava orientada, no inicio, pelo politico, cujas condigées de surgimento procurava perceber, localizando a série de inova- ‘gSes, sociais ¢ mentais, 2s quais estava ligado, com 0 nascimento da cidade gre- ga como forma de vida coletiva, seu surgimento. O terreno da Antigiiidade devia 20 PREFACIO dar ao historiador a oportunidade de delinear mais claramente as fronteiras que separam 0 pensamento mitico-religioso de uma racionalidade grega engajada na politica, solidéria dela na medida em que esta aparecia como filha da pélis. No outro pélo, o da politica moderna, o curso da hist6ria no deixou de abrir 68 olhos do militante sobre o quanto havia de ilusio, de utopia, de mito, a0 lado dos motivos de ordem racional ¢ da andlise objetiva, naquilo que comandava sua visio do mundo e determinava seu engajamento. Na cidade antiga como em nos- sos Estados modernos, no percurso do pesquisador como nas escolhas dos mili- tantes, os dois pélos do mito ¢ da politica encontram-se mais ou menos representados sem que, entre eles, o equilibrio seja inteira e definitivamente rom- pido em proveito de um ou de outro. E preciso ir mais longe. Mal esbogou a fronteira entre a mentalidade miti- co-religiosa e a racionalidade politica, o historiador jé se sentia tentado, se no a questioné-la, pelo menos a relativizar seu alcance ressaltando seu cardter indeci so, flutuante, poroso. Se 0 mito nao comportasse ele mesmo suas préprias for- mas de racionalidade, nao poderfamos conseguir nos livrar dele, sair dele. E possivel passar de uma ordem intelectual para outra, diferente, € nao do caos, da auséncia de ordem para alguma coisa. Assim, minha tarefa, nesse campo, como foi a dos mit6logos que me antecederam ou que se associaram a mim, terd sido encontrar, nas tradigdes lendarias gregas, as estruturas que comandam a ordem das narrativas e, mais profundamente, a organizacio intelectual subjacente a0 trabalho da imaginago mitica, a essa obra de criagio to rica que opera segundo uma légica ligada & ambigtiidade das nogdes e dos enunciados, em vez de visar 2 ndo-contradigao. Na outra ponta, naquilo que o especialista da Antigliidade consegue ~ difi- cilmente ~ perceber sobre a origem da cidade grega, sobre a figura daqueles que sto considerados seus fundadores, sobre as finalidades e os caminhos de sua agio piblica, os aspectos religioso ¢ lendério nao esto apenas presentes ao lado do aspecto politico (o adivinho inspirado Epiménides ao lado do nomoteta refor- mador Sélon), mas estio nele inclufdos. Na politica grega, mesmo se ela impli- ca um processo de “Iaicizagio", existe uma dimensio religiosa. Mesmo quando um regime democritico foi estabelecido, como o de Atenas na época classica, no poderfamos entender como as instituigdes funcionaram nem o que foi a pré- tica social cotidiana dos cidadios se nao levarmos em conta 0 que Nicole Lo- raux chamou de uma “Atenas imaginéria”, sem a qual a vida politica “real” nao poderia ter sido 0 que foi. Essa imbricagio dos contrérios, sua unio mantida dentro e pela tensio que 0s opdem sé fazem lembrar ao helenista as formulagdes de Herdclito sobre 0 mun- an ENTRE MITO E POLITICA do como um acordo de forgas antagdnicas, tensGes estendidas e distendidas a cada vez, como a lira e 0 arco. Permitem que ele entenda melhor o alcance atual de tum dos aspectos mais importantes de sua pesquisa, quando ele trabalha para per- ceber, no mundo antigo, de um lado as razées do mito (para retomar o titulo de um dos capitulos de Mito e Sociedade), de outro o quanto ha de imagindrio no seio do politico. Entre passado ¢ presente, entre a pesquisa erudita sobre os tem- pos antigos ea participagio ativa nas lutas de hoje, apesar dos contrastes que as opdem, existem interferéncias, deslocamentos, zonas de encontro cujo eco esta compilagdo gostaria de mostrar. Na abertura do livro, os “Fragmentos de um Itinerério” retinem textos pro- nunciados em datas ou cerimonias significativas que marcaram meu caminho, de- bates sobre questdes de método ou de fundo, conversas propicias a algumas confidéncias. Trata-se de marcar as principais etapas e as grandes orientagdes de um percurso cientifico. Em “Psicologia e Antropologia Hist6ricas”, explicito mi- nhas raizes intelectuais, minha filiagio como pesquisador. Pago minhas dividas para com dois mestres que me formaram: Ignace Meyerson e Louis Gernet. Acres- cento a esses testemunhos, como contribuiga0 pessoal a uma antropologia hist6- rica do mundo antigo, a anélise geral que propus recentemente, na qual tento esbogar um retrato do homem grego!. Sobre este aspecto de meu trabalho, pode- se buscar referéncias hoje em dois tomos do livro publicado por Riccardo Di Donato com 0 titulo: Passé et présent. Contributions & une psychologie histori- que®. R. Di Donato, em sua perspectiva de historiador e de arquivista, esté inte- ressado em repertoriar e coligir todos os documentos, entre meus escritos, que remetem, de perto ou de longe, & psicologia histérica e assim esclarecer 0 modo como essa nova disciplina pode ser utilizada no estudo do mundo antigo, que caminhos contribuiu para abrir, em qu® modificou o olhar do estudioso da Anti- gilidade. Nao é de se espantar entiio, apds essas observagdes, que dois dos maiores capitulos do presente compéndio sejam dedicados, um &s mitologias, outro as ra- cionalidades gregas, ambas no plural, como € evidente para aquele que se recusa ‘a postular uma Raza Ginica e intemporal confrontada com um Mito que também © seria. Assim, trata-se de formas diversas de racionalidade politica e de fabula- cdo lendéria: a esses dois pontos precisei acrescentar, como terceiro item, o tema da imagem, do imaginrio, da imaginagao: em qual momento, segundo quais mo- 1. L'Homme gree (O Homem Grego) organizado por Jean-Pierre Vemant, Paris, 1993, 370 p. 2 (Passado e Presenie. Contribuigdes para uma Psicologia Histérca), Roma, Eizion di Storia e Leteratu- 11, Raccolta di Studi e Testi, 1995, 2 vols. n. 188-189, 798 p PREFACIO dalidades, em quais setores da criagiio plistica ¢ literdria os gregos conceberam o ficticio como constituindo um campo especffico de experiéncia, diferente tanto da simples aparéncia quanto da plena realidade: 0 mundo propriamente humano da arte ou das artes? Se dois conjuntos de textos aparecem como complemento para fechar a parte relativa aos estudos antigos, € porque os problemas que levantam encontram hoje, de forma muito direta, seus prolongamentos: em primeiro lugar, a tragédia e 0 trigico e, em seguida, o tempo, a mortalidade dos homens frente ’ permanéncia, a imortalidade dos deuses. Os escritos reunidos no fim do volume si algumas explicagées. Duas rubricas, uma chamada “Politi “Paris-Moscou”. Sob a primeira aparecem trés textos que redigi antes de deixar o Partido Co- munista, quando ainda estava dentro; 0s outros, mais recentes, so posteriores & minha partida. Eles nio esto mais destinados, se posso falar tal coisa, ao consu- mo interno, nem especialmente enderegados aos militantes do Partido Comunis- ta. Expresso-me, entiio, em meu préprio nome; estou falando de fora. Mas, ainda assim, as coisas siio menos simples do que parecem. As trés anilises politicas internas, pelas criticas que formulam, pelas pro- postas que apresentam, situam-se fora da linha do Partido Comunista, em oposi- gio declarada a sua pratica politica ¢ A sua direcdo. Elaborada em comum por Victor Leduc e eu, a carta da célula do partido Sorbonne-Lettres, que questiona- va toda a estratégia do Partido, foi naturalmente combatida e condenada em to- dos os escaldes da hierarquia. A andlise critica da politica argelina do Partido foi publicada, sob o pseud6nimo de Jean Géréme, na revista Voies nouvelles, que pu- blicévamos, para infelicidade dos oficiais, como uma tribuna da oposigzio comu- nista. Minha intervengo na época das Jornadas de Maio de 1968 situa-se no con- texto dos protestos que a atitude da diregdo do Partido Comunista para com a con- testacdio estudantil levantava, junto & maioria dos intelectuais e em outros meios. Para os dirigentes do Partido, eu j4 estava, como muitos outros de meus amigos, do lado de fora. E do meu ponto de vista também havia, entre eles e nés, uma de outra natureza e requerem : Dentro/Fora”, a outra linha de separago insuperdvel. Dois textos breves, muito posteriores, relativos a 1940 e & bomba da rua Co- pernic, nada tém que ver com 0 comunismo. Eles esto, contudo, marcados pelo que vivi quando passei por Id. Assim como existem fraturas naquilo que imagi- namos ser monolitico, existem continuidades que vo além das rupturas e das mu- dangas. Dentro e fora, a0 mesmo tempo. 23 ENTRE MITO E POLITICA Para 0 tltimo capitulo, os leitores se perguntardio e me perguntardo: por que “Paris-Moscou”? Em 1932 — eu acabava de entrar no comunismo ~ conheci, du- rante as férias de verdio em Saint-Jean-de-Luz, todo um grupo de jovens russos, rapazes € mogas, principalmente as mogas, cujos nomes em a, masculinos e fe- mininos, nao deixaram de me surpreender’. Filhos de imigrantes, seus pais, anti- gos sociais-democratas ou socialistas revoluciondrios refugiados na Franga, nao eram nem brancos nem vermelhos: eram cor-de-rosa. Unido e variado, aquele bando ao qual me juntei estava préximo de mim e assim permaneceré a0 mesmo tempo por tudo 0 que compartilho com ele ¢ pelo que ele me traz de diferente, de ins6lito em seu modo de ser, seus modos de viver, de pensar, de se expressar. A minha existéncia de jovem estudante na Sorbonne, ao circulo de meus colegas do Quartier Latin, esse bando acrescentou uma nova dimensiio que comegaria pela descoberta de um mundo diferente: um pouco de Moscou em minha Paris. Eu poderia dizer, como o escreveu Aragon: “Jd amava as estrangeiras”. Lida tinha, naquela época, catorze anos, ¢ eu dezoito. Casamos em 1939. E foi com ela, por ela, por seus olhos e por sua voz que conheci a cultura russa: romances, poesia, teatro, pintura, danga, miisica, cantos; e que aquela Russia tornou-se parte de mim‘, Quando visitei a Unido Soviética pela primeira vez, em 1934, encontrei 14 uma daquelas mogas, Lila, que acabava de voltar para sua terra, vinda da Franga onde eu aconhecera. Voltamos a encontra-la muito depois, minha mulher ¢ eu, em 1962, apés anos de siléncio forgado; ela entdio se chamava Lounguina. Ela e seu mari- do, Sima, nos fizeram descobrir, viagem apés viagem, outra Ruissia, a dos dissi- dentes, do samizdat, dos antigos deportados*’. Em “Encontro em Moscou”, Publicado na revista Le Nouvel Observateur em 1982 sob 0 titulo “Libertem Fio- dorov ¢ Murjenko”, evocando a repressiio ¢ os campos de concentragio, escrevi “Aqueles que amam os russos € a Riissia, sofrerio”. Lida e eu sofremos. E na raiva, na indignagio, na rejeigo daquilo que cu estava vendo na Unido Soviéti- ca, havia, como ainda hé hoje, meu velho amor pelos russos e pela Riissia. Em mim, Moscou e Paris, como em cada um de nés, sem diivida, 0 outro e 0 mesmo, como dois pélos opostos, jamais deixaram de se ligar. 3. Muitos nio estio mais entre nds. Cito seus nomes na ordem em que me vm mente: Lida, Gula, Zina, Ella, Lola, Nina, Nata, Tania, Maia, Fira e, para os rapazes: Tola, Lala, Kira, Volodia e Churik, para salvar a dife- renga masculina. Em compensacio, para ser assimilado 20 bando, Henri Pierre, futuro correspondente do Jjomal Le Monde em Moscou, foi batizado de Pia. 4. Lida Vernant ensinou lingua e literatura russas na Universidade de Paris-VIII. 5. Ver Lila Lounguina, Les Saisons de Moseou, 1933-1990 (As Estacdes de Moscow), contadas a Claude Kicjman, Paris, 1990, 220 p. FRAGMENTOS DE UMITINERARIO 1. TECER A AMIZADE Existe em grego uma espécie de sentenga, um ditado que expressa um con- senso: entre amigos, tudo € comum. Conhecemos bem a distingao grega entre o privado e 0 pablico: o privado é 0 que pertence a cada um propriamente, em sua singularidade, sua diferenga; o piblico é 0 que deve ser posto em comum e igual- mente repartido entre os membros do grupo. A amizade aparenta-se a ambos os campos; ela liga e rege a ambos. Toda amizade é, de fato, “particular”: a cada individuo cabe seu cfrculo pessoal de amigos, mas este cfreulo forma uma co- munidade que € como a imagem reduzida da cidade. Para que exista cidade, € preciso que seus membros estejam unidos entre si pelos lagos da philfa, de uma amizade que os torna, entre si, semelhantes e iguais. No espago privado que desenham os amigos, tudo € repartido entre iguais, tudo € comum, como no es- paco piiblico da cidadania. A amizade se tece na articulago do privado, do pré- prio, do diferente com o piblico, 0 comum, 0 mesmo. Eu diria, depois do que vivi em diferentes circunstincias, que sio amigos aqueles com os quais temos as coisas essenciais em comum: as lembrangas, as experiéncias, os valores... Dizer que entre amigos tudo € comum significa que existe, como na cidade grega, uma relago particular de igualdade em virtude da qual a prépria vida privada, ao menos em muitos de seus componentes, é com- partilhada com os outros. Nao & s6 porque podemos dizer aos amigos coisas que nao dirfamos a outros; mas as recordagGes, as alegrias, as tristezas, que nada tm a ver com 0 dominio piblico, no sentido grego do termo, e sim com o que eu chamaria de préprio, particular, so vivenciadas na participagio com os outros em uma relagio de troca igualitéria, SVYEODYLld Favamnowa- VOSLOIIgIa ENTRE MITO E POLITICA Com efeito, a igualdade é fundamental na amizade. Quando se € amigo, mesmo se existir discordincia ou rivalidade, é-se igual. Para um grego, s6 é pos- sivel ter amizade por alguém que 6, de alguma forma, um semelhante: um grego para com outro grego, um cidadao para com outro cidadio. A philia consiste em tornar um grupo homogéneo, em unificé-lo; mas ao mesmo tempo, niio hé philfa sem rivalidade, éris; 0 sentimento profundo da comu- nidade de iguais sempre inclui a idéia de uma competigao pelo mérito, pela gl6- ria. O ponto de vista aristocritico esta presente no prdprio interior de uma visio democratica da vida social e do Estado e, sem essa tensio, nao funciona. Demo- cracia significa discussio, ela também implica a possibilidade do conflito, e a uni- dade da cidade grega contém a cada momento a possibilidade de uma divisio. No Centro Louis-Gernet, grupo de pesquisas que fundei em 1964 ¢ que dirigi por vinte anos, tratava-se de criar uma comunidade cuja hierarquia nio fosse nem imposta nem institucionalizada fora da prépria vida do grupo. Foi o que sempre tentei fazer com as pessoas que trabalharam comigo. Eu era 0 mais velho, 0 fundador do grupo; muitos daqueles que dele participavam haviam sido meus alunos, mas eu nunca Ihes impus nada, acredito, porque sempre os consi- derei como meus iguais. E € porque eram meus iguais que eram diferentes e que tinham 0 direito nao s6 de me contradizer, mas até mesmo de trilhar cami- nhos completamente divergentes. Em contrapartida, a amizade se inscreve em realidades psicol6gicas, histé- ricas € sociais que mudam segundo os contextos. Aconteceu-me de encontrar pes- soas muito diferentes, as quais chamarei realmente de amigos simplesmente porque, de repente, tive o sentimento de descobrir neles uma dimensio da exis- téncia completamente diversa da minha e, ao mesmo tempo, com ressonancias nela; ela me tocava € me emocionava. Nesses momentos, mesmo entre homens, @ amizade tende, na minha opinido, a oscilar um pouco para o tipo de sentimento que se pode sentir por uma mulher. Existe amor nesses casos... Existem amizades apaixonadas que se aproximam do que chamamos de amor, As fronteiras no sao nitidas. Entretanto, 0 amor € outra coisa. O que 0 ca- racteriza nao € 0 fato de dividir coisas com alguém, mas de estar dividido dentro de si, ou seja, de ser parte do outro a0 mesmo tempo em que o outro é uma parte de si; nesse sentido, no amor, a presenga do outro est sempre inscrita em nosso horizonte, com todas as dificuldades que isso comporta. No entanto, o amor im- plica, na minha opinidio, uma espécie de exclusividade do objeto para o qual se dirige: diremos “o(a) amado(a)” e “os amigos”, mesmo que possa ai haver tam- bém os amados e 0 amigo. TECER A AMIZADE Na amizade, existem também os “colegas”, les copains d’abord (os amigos em primeiro lugar), para retomar o tftulo da cangao de Brassens... Ser colega é estar préximo no dia-a-dia. Quando comemos, bebemos ¢ rimos juntos, e faze- mos também coisas graves € sérias, essa cumplicidade cria lagos afetivos tais que s6 sentimos nossa existéncia como plena na e pela proximidade do outro. Em minha juventude, no Quartier Latin, a palavra copains designava aqueles com quem tinhamos relagdes desse tipo, em um plano de troca igualitéria. Por exem- plo, chamavamos de copains as pessoas com quem militévamos, que tinham a mesma posi¢‘o. Dizer de alguém “E um copain” significava neste caso: “E um comunista”. Na Resisténcia, retomamos esse termo para designar aqueles com quem nos tinhamos comprometido. A experiéncia politica assim compartilhada passa para 0 que os gregos chamayam de vida privada, para as formas de ser e de se comportar, para as pessoas que freqientamos e 0 tipo de vida que levamos. O que € pessoal encontra-se implicado na esfera das atividades piblicas porque sio coisas fundamentais. Quando essa palavra € usada para designar a mulher com quem vivemos — no se diz: “E meu amor”, ¢ sim “E minha copine” (feminino de copain) -, ela adquire um sentido muito forte. Néo evoca apenas a relagdio amorosa que temos com uma mulher, mas também a forma como ela esti integrada em uma comuni dade, e essa dimensio ainda reforga 0 lago amoroso. Mesmo se nao militamos com ela, ela é assimilada a esse grupo dos iguais que se distinguem um pouco dos outros. Esse tipo de relagio desempenhou um papel importante para mim. Meu pai foi morto na guerra, minha mae morreu quando eu era muito jovem e, por mais remotamente que eu me lembre da minha infancia, parece-me que minhas recor- dagGes estio menos ligadas a uma figura paterna ou materna do que as de meu irmio e de meus primos. Minha infancia esté colocada sob o signo dos irmios, mesmo tendo apenas um, sob o signo do grupo no qual eu era o mais jovem, mas em que colocdvamos tudo em comum no plano da igualdade. Mais tarde, no co- Iégio, vivi da mesma forma minha experiéncia escolar por meio dos circulos de colegas que iam aumentando. A idéia de que eu estava Id para aprender passou por mim s6 de leve. Os professores eram completamente externos a isso, mesmo se alguns exerceram uma grande influéncia sobre mim. Tive professores exce- lentes, que me marcaram muito, em letras, é claro; em outras disciplinas, tive alguns que eram gentis e que tiveram de me suportar, pelos quais senti afeicao e admiragio. Mas, em certa medida, eles eram o exterior, o estrangeiro, eu nao diria © inimigo, mas em todo caso estavam fora de meu espaco. Eu estava ld em pri- meiro lugar para estar com meus colegas, aproveitar 0 que era bom e depois dis- 29 ENTRE MITO E POLITICA cutir com eles sobre isso. Ao mesmo tempo, temo que o essencial era organizar a bagunga. Mesmo dentro do grupo que formivamos, havia alguns de quem nao gostévamos: aqueles que eram alunos bons demais, aqueles que eram muito bur- gueses e déceis... Para ser um grupo de copains é preciso ter inimigos. Entzo, como nas classes primérias, armévamos contra eles brincadeiras, ataques... Isso foi a escolaridade para mim: a experiéncia de uma comunidade de alu- nos, de um grupo unido pela solidariedade de quem pertence a um mesmo ni- cleo, com tudo o que isso implica: em ninguém denunciar 0 outro, por exemplo... Vivi a mesma coisa, depois, no Quartier Latin. Mesmo sendo fundamental para mim, a amizade pode designar realidades diferentes daquela que acabo de evocar. Como, numa relagiio de tipo igualitério, segundo aquela dimensdo que permitia aos gregos definir os amigos, podem apa- recer autoridade e prestigio? Como, entre amigos, quando tudo é comum, podem distinguir-se diferentes niveis de responsabilidade, determinar-se diferentes esta- tutos, diferentes estratégias? A questio se colocava no caso dos grupos da Resis- téncia. Como € possivel que, de imediato, alguns tenham ocupado fungdes de dirigentes enquanto outros aceitavam obedecer ¢ arriscavam a pele, quando aqueles que davam ordens no tiravam seu comando de nenhuma instituigdo? Podem-se encontrar diversos motivos: as vezes eram as qualidades pessoais, as vezes era 0 costume, era preciso que houvesse um chefe... A influéncia pessoal, a confianga que sentimos em certas circunstancias para cumprir tal ou qual tarefa também en- tram em consideragio. Tudo é comum, tudo € igual, mas ndo somos os iguais de qualquer um. As pessoas que escolhemos, aqueles com quem temos afinidades sio aquelas que nos inspiram uma confianga total. Existe nisso algo da ordem da esco- tha, da avaliagao; o “nds” nao existe necessariamente apenas porque trabalhamos no mesmo setor ou porque temos as mesmas idéias. Na Resisténcia, alguns logo me deram a sensagao de que com eles dava para caminhar. E a questo do funcio- namento da autoridade na auséncia de qualquer instituigdo, de qualquer regra, de qualquer determinagao pelo estatuto social ou pelo nascimento. Nao encontro um modelo institucional que me permita entender esse fendmeno. Por que é determi- nado individuo que exerce a autoridade? Pode ser porque ele suprimiu seus con- correntes, mas, se conseguiu fazé-lo, foi com 0 apoio dos outros que, em um dado momento, 0 ouviram. Também aconteceu, naqueles grupos da Resisténcia, que a autoridade de certos chefes departamentais ou regionais fosse questionada. Actedito que, se alguns puderam desempenhar um papel de direcio e ter todos os meios sob controle, é porque os niicleos fundadores do movimento eram constituidos de amigos, que faziam parte de um mesmo corpo e pensavam do 30 TECER A AMIZADE mesmo modo sobre uma série de planos. Esses grupos de amigos tinham o senti- mento de ser os iguais de seus dirigentes e podiam, assim, aceitar vé-los desem- penhar esse papel. Mas € possivel também que aqueles que ocupavam essa posigdo 86 pudessem pensé-la considerando os outros como seus iguais. A questo esti af: aceitar, ao mesmo tempo, uma posigdo de dirigente relagdes de igualdade. Na Resisténcia, eu s6 me questionava sobre coisas priticas, técnicas. Foi re- centemente, lendo a tese de um jovem historiador, que pensei na seguinte questio: Que tipo de grupo social um movimento da Resisténcia forma? Como 0 corpo so- cial, as instituigdes, a policia ¢ a magistratura haviam passado para um lado, aque- les que, do outro, queriam a vit6ria eram forcados a se constituir como sociedades seeretas. Poderiamos falar de uma espécie de “mafia”. Mas esse termo implica uma cumplicidade que nos marginaliza frente a ética de uma sociedade; alids, 0 objetivo, dentro de uma mafia, sio beneficios, enquanto na Resisténcia, ao contré- rio, o desinteresse era total. De certa forma, funcionava um pouco como entre os bandidos, mas bandidos que, em vez de pensar em ficar ricos, teriam sido idealis- tas... Em um bando de bandidos, existem certamente coisas que no consigo ima- ginar muito bem porque no tenho essa experiéncia, mas acredito que a amizade também esteja presente. Os membros do bando siio unidos, eles obedecem, sentem que pertencem a uma comunidade. E no existe comunidade sem philfa, sem 0 sentimento de que, entre o outro € nés, alguma coisa circula, a qual os gregos po- diam representar sob a forma de um dafmdn alado, que voa de um para o outro. Pode-se fazer reconhecer a autoridade simplesmente porque se tem divisas. Um capitio é obedecido porque possui trés divisas e, mesmo se tivesse apenas duas, ou uma, ou nenhuma, seria obedecido em virtude do jogo institucional. © fa- to de possuir titulos também pode ser uma fonte de autoridade. Toda sociedade est fundada em hierarquias. A autoridade implica uma diferenga de niveis; e o proble- ma de saber como ela pode se instituir em um grupo em que a nio-distancia é fun- damental sempre me preocupou muito, inclusive em minha profissio de professor. Se nos colocamos do ponto de vista do exereicio da autoridade, existe sempre uma parte de representago. Um professor age como um ator quando chega numa sala de aula. Mas existem diferentes formas de atuar. Podemos bater na mesa e mostrar toda a distancia que separa os alunos do professor. Podemos também jogar 0 jogo contrério, ¢ foi o que fiz. quando dei aulas no colégio: no s6 sendo informal com os alunos, como também procurando abolir, até nas roupas ¢ no vocabulario, qual- quer indicio de uma autoridade conferida por uma hierarquia social. Evidentemen- te, 0 professor sabe muito bem, seja qual for a estratégia que adotar, que nio é a mesma coisa ser professor e ser aluno. Aquele que est sentado em sua carteira e an ENTRE MITO E POLITICA aquele que se encontra atrés da mesa no possuem 0 mesmo estatuto. A estratégia da nao-distancia pode ser muito eficiente ou, ao contrario, conduzir aquele que a usa para a catistrofe. Mas, se ele a usa no lugar de outra, no se trata de pura estra- tégia. E porque ela corresponde a idéia que tem da relagao entre professor ¢ alunos, do que é um grupo. Se ele entra no jogo da aboligZo da hierarquia, no € apenas por habilidade, trata-se também de uma estética, e de uma ética da relago social. E preciso comegar por deixar de ser professor para poder sé-lo. Isso signi- fica, obrigatoriamente — na minha opiniaio, trata-se de uma idéia grega —, que toda relaco social, tanto com uma turma quanto com o grupo no qual nos engajamos na Resisténcia, implica um cimento, que a amizade. Esse elemento fundamen- tal € 0 sentimento de uma cumplicidade, de uma comunidade essencial sobre as coisas mais importantes. Na relagdo do professor com seus alunos, é 0 fato de compartilhar uma certa imagem do que deve ser uma pessoa, de ter em comum uma forma de sensibilidade e de abertura para 0 outro, de concordar com a idéia de que ser outro significa também ser semelhante. Para mim, o tipo de relagdes que cu queria instituir em minha sala de aula devia ser idéntico aquele que eu co- nhecia de outras experiéncias. Era a mesma coisa que meus alunos pensavam, e foi o que me disseram mais tarde. Tratava-se de construir a realidade da sala de aula um pouco calcada no modelo da experiéncia que eu ja tivera, prolongada e modificada em condigdes diferentes das da guerra e da Resisténcia. Experiéncia de uma proximidade estranha, de uma proximidade com pessoas que sio dife- rentes de nés e que de repente ficam proximas. Apagar a distancia Sei agora a que ponto o desejo de reconstituir 0 modo de relago que eu vivera quando era aluno desempenhou um papel fundamental quando cheguei a minha sala de aula, no final de novembro, inicio de dezembro de 1940, no colégio de Toulouse, Era uma forma de recusar-me a saltar para 0 outro lado do piilpito, a rectiar a espécie de sociedade que eu conhecera em minha infancia e a continuar assim 0 que havia sido uma parte tio importante de minha vida. Mas, a0 mesmo tempo, era absurdo, impossivel e certamente demasiado orgulhoso, eu diria vaidoso. Nao se pode ser a0 mesmo tempo professor e aluno... Essa atitude pode dar certo se ela se fundar, como era meu caso, em algo bastante profundo, e foi o que aconteceu, creio, com meus alunos do colégio de Toulou- se. Mas é verdade também que as estratégias igualitérias tm um aspecto hip6- crita, demagégico, e podem na verdade reforgar as posigées de poder. 32 TECER A AMIZADE O sentimento de comunidade que esta no cerne da amizade pode ser igual- mente encontrado nos lagos familiares. Para um grego, existe na amizade cfvica algo de um pouco semelhante a familia. Os membros da mesma familia brigam, dao os piores golpes uns nos outros, mas encontram-se unidos a0 mesmo tempo por uma espécie de solidariedade fundamental. Eu disse muitas vezes que na Resisténcia também havia algo assim. Quando encontro alguém que nao conhe- cia e que sei que foi um membro ativo da Resisténcia, mesmo se for um adversé- rio politico, vem-me um sentimento de pertencimento andlogo aquele que posso ter ao reencontrar um primo distante: “Ele € dos nossos...”. Em uma familia, as historias que circulam, as tradigGes que ouvimos contar, as recordagdes da infan- cia formam uma espécie de horizonte comum que compartilhamos. Quando al- guém nele se inscreve, no quer dizer que ele seja um amigo ou um copain, nem que tenhamos impeto de abrag4-lo, mas ainda assim o abragamos, o que é uma forma de reconhecé-lo como préximo. As ratzes comuns, os lagos familiares vém repentinamente reforgar nossa identidade e reconstruimos a nés mesmos quando voltamos a encontrar membros da familia & qual pertencemos. Nossos sentimen- tos por nés e pelos outros esto ligados ao que outrora sentimos. No fundo, trata- se da questo do tempo: nao somos mais os mesmos, as coisas se desmancham, € refazemos nosso tecido pessoal com a presenga daqueles que nao vimos hé muito tempo, quando podemos evocar com eles uma série de recordacées sobre as quais nunca pensamos. O passado retorna, € retorna compartilhado. Quando pensamos sozinhos, nao sabemos se € verdade, mas quando o passado esté integrado ao fol- clore familiar torna-se uma parte de nossa hist6ria. De outro lado, a solidariedade familiar evoca também a idéia de cla, ¢ 0 cla supde a exclusio, 0 segredo; os agregados nio esto “por dentro”. Na amizade diferente, j4 que nao se trata de uma relago genealdgica, mas de uma escolha. Por certo, sempre haverd na escolha um elemento que ndo depende de nés, mas dos acasos da vida ou de pressées de toda espécie; apesar de tudo, temos a sensa- Ho de que escolhemos nossos amigos. Os parentes, a0 contrério, no os esco- Ihemos, n6s os recebemos. E verdade que os amigos podem constituir uma espécie de familia e que podemos fazer com eles 0 que nao farfamos com outros, inclu- sive, as vezes, coisas que nao aprovamos. Mas a amizade sempre implica afini- dades relativas is coisas essenciais. Ndo posso ser copain de um membro do Front Nacional*, isso nio é possfvel. A amizade tem uma particularidade: ela nos transforma. Voltando a Resis- téncia, esta foi uma experiéncia que transformou aqueles que a viveram. Antes * Purtido da extrema-direita (N. da.) 33 ENTRE MITO E POLITICA da guerra, eu tinha grupos de amigos que pensavam como eu. Durante a guerra, aconteceu-me de estar préximo a pessoas que eram militantes catdlicos, ou até pessoas que haviam sido membros da Action Frangaise*. O fato de termos, jun- tos, com paixiio, corrido riscos muito grandes levou-me a no mais vé-los como 08 via, e eu ndo sou mais 0 mesmo depois disso. Nao olhei mais da mesma forma 08 cristdios, nem mesmo os nacionalistas, em certo sentido, quando se tornaram quase que automaticamente meus amigos, ou seja, pessoas préximas, por nosso engajamento comum em coisas de uma importancia afetiva consideravel. Da mesma forma, aqueles que eram comunistas e que participaram ativamente da Resisténcia ao lado de néio-comunistas foram profundamente modificados em sua forma de serem comunistas; a meu ver, deixaram de acreditar que era preciso conquistar os outros ou eliminé-los. Foram levados a pensar que deveria existir um meio de se entenderem com os outros para criarem algo juntos. E a amizade também € isso: entrar em acordo com alguém que é diferente de nés para cons- truir algo em comum. E por isso que a maioria dos comunistas que estiveram na Resisténcia, principalmente na Resisténcia nio-comunista, foi rapidamente ex- cluida nos anos que se seguiram & guerra: nao podia mais ver as coisas como antes. Mas aqueles que no querem ou niio podem mudar, quer se trate de individuos ou de grupos politicos ou sociais, aqueles que nio aceitam a idéia de que a mu- danga é um modo de constituir sua propria identidade, esses edificam em torno de si um muro de Berlim. Na Resisténcia, ao contririo, as identidades nao eram imutéveis, a nfo ser com relag&o ao inimigo. Havia pessoas extremamente diver- sas. A Resisténcia foi, por conseguinte, uma espécie de laboratério onde se ela- borou uma certa concepgdo da Franga e do progresso social. Da mesma forma, se nfo quisermos mudar, no podemos nos apaixonar! E mais seguro... O problema do amor: desprender-se de si A questo do amor coloca-se hoje de forma diferente da que se colocava para os gregos. Platéo nos diz que o que amamos no outro é a n6s mesmos, 0 que olhamos no outro é a nossa prépria imagem. Acrescento que existem duas for- mas de se ver: uma em sua limitagio, em seu ego e em seu egotismo; outra, para Plato e principalmente para Plotino, consiste em ir ao limite extremo do que se 6, ou seja, finalmente, até o divino, ¢ essa extrema alteridade € 0 elemento essen- * Nacionalistas (N. da) 34 TECER A AMIZADE cial. E por ela que encontramos a nés mesmos, mas esse “si mesmo” nao € mais um ego, € 0 cosmos, 0 universo, 0 todo, Deus, que é a perfeigio. A construgiio de si passa pela abertura para o outro. Nao sou, contudo, uma pessoa religiosa, para mim a busca da identidade niio é a busca do absoluto. O “si mesmo” no est orientado para o absoluto nem fechado sobre o ego. Isso é © mundo, a vida, a finitude. Somos homens e cada um molda sua prépria identi dade com os outros ¢ com 0 outro, mas nio com qualquer outro. E. nesse ponto que aparece a amizade. E preciso ter afinidades com esse outro com 0 qual va- mos nos defrontar ¢ que vai nos fazer refletir sobre nds. Perguntar-se por que temos afinidades com alguém, por que sentimos prazer em estar com ele, tudo isso implica um conhecimento afetivo, uma simpatia para com ele e, assim, uma volta sobre nés mesmos € uma mudanga dentro de nés, uma fabricagio de nés que € ao mesmo tempo uma fabricagiio do outro. Pois o outro também, nés o construfmos: como poderfamos conhecé-lo, seniio fabricando-0, moldando uma imagem dele, encontrando caminhos até ele? Assim, nos momentos de guerra, de perigo, os amigos, os copains, tormam- se de repente como que os membros de uma espécie de mafia e, por conseguinte, 08 lagos sio mais fortes. Além disso, experimentamos 0 sentimento de nossa diferenga. Os homens que estavam no front durante a Guerra de 1914-1918 sentiam-se unidos por algo que os colocava completamente a parte dos outros. Do mesmo modo, as pessoas que se engajaram na Resisténcia de forma muito ativa tinham a sensagio de que elas mesmas e aqueles que encontravam para fazer seu trabalho eram homens a parte. Aristoi, diriam os gregos, os melhores, os bons. O tecido da amizade Existimos com e pelos outros, que, ao mesmo tempo, so e nio so como 1nés. A “psicologia” dos individuos est sempre inclufda em relagées de tipo so- cial, em relagdes com 0 coletivo que no se deve absolutamente institucionalizar. E assim também que se tece a amizade, por meio de percursos mais ou menos dificeis, de fracassos, de contra-sensos, de retomadas... Nao existe imediato no homem. Tudo acontece por meio de construgdes simbélica: Por vezes, também, € preciso dar umas tesouradas no tecido, mesmo com pessoas de quem gostamos muito, cortar para que 0 tecido continue. A imagem e © vocabulério da tecelagem estio carregados de valor no pensamento antigo; 35 ENTRE MITO E POLITICA permitem entender uma série de fendmenos, em particular a constituigao do “tecido” social. Plato, quando quer mostrar como se edifica uma cidade, diz que se deve ter um rei-teceldo. Por qué? Quando preparamos um tear, temos a urdidura, ele- mento masculino, e a trama, elemento feminino. Em grego, as palavras que de- signam a urdidura sio masculinas. A urdidura € vertical, € o fio tenso, forte, suspenso por pesos amarrados com uma espécie de gancho: Aristételes explica que sio compariveis aos testiculos. Da mesma forma, na literatura érfica, mitos, a palavra que quer dizer urdidura, pode significar 0 sexo ou 0 esperma; e, em certos vasos, a0 lado de uma mulher, aparece um jovem rapaz que representa 0 macho que se chama mitos. A trama, ao contririo, € feminina. Temos, assim, um qua- dro em que 0 masculino e o feminino se entrecruzam como 0 vertical e 0 trans- versal, e todo o ato de tecer consiste em criar um tecido associando esses elementos opostos. Se, como diz Plato, o rei € tecelio, € porque os homens que ele deve unir em uma espécie de comunidade cerrada sfio compostos, de um lado, por a- queles que esto do lado da andrefa, os enérgicos, os violentos e, de outro, por aqueles que estio do lado da sephrosyné, os suaves, os temperados. Organiza-se primeiro isso tudo por meio de casamentos, procurando ndo unir sempre © igual com 0 igual, senio tudo acabou! Depois pela educagio, paideia, que deve ir a0 mesmo tempo no sentido da andrefa e no da sdphrosyne. E nao é tudo: € preciso fabricar com a urdidura e a trama desses dois elementos contrérios um tecido que seja coerente e unido e que se apresente como um 86 e tinico tecido. Mas, para isso, a oposig%o € necessdria. A trama consiste em passar pela frente, por tris, pela frente, por trés. E, de certa forma, essa imagem da constituigio de um teci- do social comunitério é também a imagem grega da amizade, € uma forma de phi- ia, porque a philia também supde esse trabalho ¢ essa tensio. O que faz Clistenes quando tenta fundar a cidade grega? Esforga-se em unir, nas novas instituigdes que cria, as partes de Atenas que eram partes diferentes, 0 litoral, o interior mon- tanhoso e a cidade, para que cada tribo comportasse uma parte desses trés ele- mentos. Construfmos a nés mesmos desta forma, procurando reunir aquilo que foge por todos os lados... e a solidez é fruto de um tecer a partir de elementos separa- dos, heterogéneos. Encontramos também uma espécie de luta na amizade. A amizade se tece. Acontece 0 mesmo com 0 amor, que niio teria essa intensidade sem a possibilidade da fratura. Aqueles que sio figis o so no amor ¢ na amizade. Isso no quer dizer que no rompam; pode-se cortar o tecido para ser fiel, fiel a si mesmo. Mas existem pessoas que nao querem ser figis, que sentem a necessidade, a cada momento, de 36 TECER A AMIZADE romperem nio s6 com aqueles que eram seus amigos, mas consigo mesmos. S6 conseguem ser eles mesmos cortando niio 86 0 tecido que 0s une aos outros, como também aquele que os une a si mesmos. Dentre todos aqueles que safram do Partido Comunista, alguns nao conseguiram fazé-lo sem se tornarem exatamente © contrério do que haviam sido. Outros romperam dolorosamente. A ruptura foi, para eles, um verdadeiro corte ¢ tentaram nJo renegar a si mesmos, ou seja, con- tinuaram a concordar com os motivos pelos quais haviam sido comunistas. Outros ainda, como eu, romperam alegremente. Por qué? Porque eu considerava que, naquela ruptura, eu estava sendo absolutamente fiel ao que havia de mais pro- fundo, de mais véilido também, em meu primeiro engajamento. Alguns, na estrutura de sua personalidade e por conseguinte também em suas relagdes de amizade e de amor, so pessoas da descontinuidade; outros, quando evoluem, sentem continuamente a necessidade de reatar 0s fios de seu préprio tecido. Quando eu dava aulas de filosofia no colégio de Toulouse e falava da me- méria, explicando aos alunos o que era uma fabricagio de si, dizia-lhes, creio, algo do tipo: “Entendam: na medida em que caminhamos, sentimos a necessida- de, para sabermos quem somos, de termos um passado mais ou menos coordena- do. Essa construgiio se faz por meio do contexto social, mas também pela remoldagem de nosso pr6prio passado. E como uma donzela que caminha, usan- do um vestido com uma longa cauda; quando muda bruscamente de diregio, com um leve pontapé ela coloca a cauda novamente atrés de si”. E também o que nés fazemos. 37 SVHODYMd HAVANA - VORLOraIe 2. AS ETAPAS DE UM PERCURSO Por que, depois da guerra, ter escolhido a Grécia como campo de estudos? Os motivos de uma escolha so miiltiplos e freqiientemente obscuros. No meu caso, parece-me que se combinaram elementos muito diversos: 0 choque que senti, du- rante 0 verdio de 1935, quando descobri a Grécia que percorri a pé com meu irmio € meus amigos; minha admiragao pela literatura grega clissica, particularmente por Plato, cuja obra me fascinava; a sensagiio de que, adotando como campo de estu- dos a Grécia antiga, um pesquisador politicamente engajado, como eu o era entio, em um partido que regia a vida intelectual, também disporia de uma liberdade de espirito muito maior do que se trabalhasse no campo da vida contemporanea. Ao adotar como assunto de tese “A nogo de trabalho em Plato", eu continuava sendo mais historiador da filosofia do que helenista. Progressivamente, arrastado pelo proprio movimento de minha pesquise, acabei ampliando os qua- dros da pesquisa ¢ interrogando-me sobre tudo 0 que separa o trabalho, tal como se apresenta hoje em sua forma de grande conduta social unificada, das diversas atividades laboriosas que os gregos distinguiam e opunham entre si, conferindo acada uma significados e valores particulares. E como muitos desses valores eram religiosos, fui levado a me interessar pela religitio e pelos lagos muito estreitos que ela mantinha com as outras esferas da vida coletiva Vindo da hist6ria da filosofia, derivei para uma antropologia religiosa da Gréci Sem 0 aporte das disciplinas cldssicas tradicionais: filosofia, arqueologia, epigrafia, papirologia, nada do que empreendi numa perspectiva antropol6gica teria sido possivel. De resto, a imagem que se tem com freqéncia, mesmo na ENTRE MITO E POLITICA comunidade cientifica, do trabalho dos helenistas nao Ihes faz justiga. Nao se trata, para eles, de gerenciarem uma tradigao jé fixada, de acrescentarem seus comen- térios Aqueles que jé existem. Ao descobrir, publicar, interpretar documentos novos: textos, inscrigdes, imagens, vestigios arqueolégicos de todo tipo, eles revelam aspectos da civilizagdo grega até eno desconhecidos e que acarretam as vezes uma profunda revisio das idéias recebidas; fazem um trabalho de “descobrido- res”, semelhante ao de um paleont6logo, ou talvez de um fisico, em todo caso, um trabalho idéntico ao dos orientalistas que, durante 0 dltimo século, fizeram emergir das trevas em que ficara mergulhado 0 mundo sumério. Dinamismo dos estudos sobre a religido grega deciframento re- Para ater-me 2 religiio, vou limitar-me a trés exemplos: cente do linear B das tabuletas micénicas nos d4 a prova de que, entre os séculos XIV e Xia. C., em Creta e no Peloponeso, a maioria dos grandes deuses gregos jd era objeto de culto e, entre eles, Dioniso: até entdo os estudiosos 0 considera- vam como uma divindade exstica, cuja intrusio teria ocorrido em uma data mais tardia, vindo da Trécia ou da Lidia, Do mesma modo, ao mostrar a amplitude das mudangas que foram iniciadas em todos os campos (demografia, metalurgia do ferro, ocupagio e cultivo do solo) da segunda metade do século XI até o século IX a. C., que levariio aquilo que Snod- grass chamava de “revolugdo estrutural”, da qual saiu 0 tipo muito particular de vida coletiva constituido pela “cidade-estado”, os arquedlogos nos convidam a reconhe- cer que, por volta do século VIII a. C., a prépria religiao deve ter sido modificada muito profundamente para satisfazer a uma dupla exig€ncia: responder ao particu- larismo de cada grupo humano que se coloca, com seu tertit6rio, sob a protegiio de suas préprias divindades polfadas; mas instaurar, no mesmo movimento, por meio dos grandes santuérios, dos jogos e do desenvolvimento da literatura épica, um pantedo € uma cultura religiosa comuns ao conjunto da Hélade. Todo o sistema da religido, remodelada e reorientada, apresenta-se entiio sob uma nova luz em que 0 religioso ¢ o civico estiio intimamente ligados. A desco- berta, por fim, nos anos de 1950, de um poema cosmogénico de Alemi, do sécu- lo Vit a.C., e depois, muito recentemente, do papiro de Deverni, mostra que cosmogonias desviantes com relagio norma de Hesfodo existiram desde a ida- de arcaica © que as cosmogonias ligadas & corrente érfica circulavam em pleno século V a.C. Nao se poderia interpreté-las, entio, como se estava inclinado a fa- zer, em fungao de uma mentalidade religiosa prdpria ao periodo helenistico. 40 AS ETAPAS DE UM PERCURSO Dessa vez, 0 lugar e 0 estatuto da literatura drfica em suas relagdes com 0 culto e a teologia oficiais passam a necessitar de um novo exame. Nao existe “chave universal” para entender 0 humano “Entra-se na pesquisa como se entra em religido: dedica-se a ela completa- mente.” Esta frase de Ignace Meyerson, um dos dois mestres (0 outro é Louis Ger- net) que literalmente me moldou para a pesquisa — mas falarei sobre isso mais tarde! -, pode resumir convenientemente 0 que procuro fazer h4 cingiienta anos. Como niio creio que exista, para os fatos humanos, uma explicago tnica, uma “‘chave universal”, uso todos os instrumentos disponiveis, desde que me paregam adapta- dos ao problema que tenho para resolver. Tento apenas entender. Parece-me que € por isso que minha pesquisa modificou-se, desenvolvendo-se em uma série de planos sucessivos. Interroguei-me primeiro sobre as condigdes que tornaram possfvel, no sé- culo Via. C., nas colénias gregas da Asia Menor, o surgimento de um pensamento filos6fico. Do Mito & Raziio, 0 que se manteve, o que se transformou no vocabu- lério, no instrumental conceitual, nos modos de raciocfnio nos grandes quadros do pensamento, nos prineipios égicos? Eu procurava, ao mesmo tempo, perceber as mudangas, medir suas exten- sGes € situd-las em seus contextos hist6ricos. A razdo grega apareceu-me assim como solidéria de toda uma série de transformages sociais ¢ mentais ligadas a0 advento da pélis. Ela surgiu em um contexto em que podiam se desenvolver a re- térica, a sofistica, a demonstragio de tipo geométrico, certas formas de historia e de medicina, mas no a ciéncia experimental: uma razio imanente a linguagem, A troca verbal, e que visa agir sobre os homens, a convencé-los ou a persuadi-los mais do que transformar a natureza. Dentro desses limites, assim como em suas inovagées, a raziio grega € de fato filha da cidade grega. Mas as mutages que a Grécia conheceu em poucos séculos nao interessam apenas as formas do discurso, ao funcionamento da inteligéncia e aos mecanis- mos do raciocfnio. Assistimos ao nascimento da cidade e do direito, ao advento de um pensa- mento positivo e racional, de fato, mas é preciso acrescentar também a criagio de formas de arte novas: poesia lirica e teatro trégico nas artes da linguagem, es- cultura e pintura — concebidas como artificios imitativos, como simulacros que 1. Sobre Meyerson, ver infra “Ler Meyerson’, pp. 105 ¢ ss. 4 ENTRE MITO E POLITICA reproduzem a aparéncia das coisas reais — nas artes plasticas. Essas inovagdes marcam uma mudanga de mentalidade tao profunda que foi possfvel considerd- las como a certidao de nascimento do homem ocidental. Do homo religiosus das culturas arcaicas ao homem politico e racional para quem foram elaboradas as definig&es de um Aristételes, trata-se de uma transformagdo que pée em xeque todos os grandes quadros do pensamento e todo o painel das funges psicolégi- cas: tempo, espago, meméria, imaginagao, forma do trabalho e espirito técnico, vontade, pessoa, modo da expressdo simbélica e utilizagio dos signos. Procurei entiio, em Mito e Pensamento entre os Gregos, acompanhar as trans- formagGes que afetam essas categorias, modificando ao mesmo tempo sua estru- tura interna e seu equilibrio geral. Darei um Gnico exemplo, para ser mais bem entendido: 0 caso da meméria. Os gregos divinizaram a meméria e elaboraram ‘uma vasta mitologia da reminiscéncia. Essa “meméria” religiosa esti ligada a té- nicas de rememoracio muito particulares, praticadas no interior de grupos fecha- dos e especializados: nas confrarias de aedos, por exemplo, fazem parte do aprendizado da inspiracao poética e da vidéncia que esta Ihe dé; nos circulos de magos, elas preparam uma conquista do éxtase divinat6rio; nas seitas religiosas, inserem-se em exercicios espirituais de purificagio e de salvagio. Fora do quadro institucional e do contexto mental dos quais sio solidé- rias, essas condutas rememoradoras perdem todo significado e tornam-se sem objeto. Nao visam, como as nossas, explorar o passado individual ou coletivo do homem, pensar 0 tempo, e sim escapar dele para unir-se a divindade. Alids, na medida em que, por meio da reflexio dos sofistas e dos trabalhos dos histo- riadores, as relages da meméria com o tempo ¢ 0 passado se tornarem mais precisas, essa fungio perderd, aos olhos dos gregos, o prestigio que outrora a cercava. Jd em Arist6teles, a meméria, despojada de seus antigos valores reli- giosos e miticos, esté relacionada aquela parte puramente sensivel da alma que 0s homens tém em comum com os animais. O lugar do religioso Estudar a religio grega por si e em si constitui o degrau dltimo de minha pesquisa, na qual ainda me encontro mergulhado. Ainda assim, seria necessério explicar que 0 religioso nao constitui, na Grécia, uma esfera & parte, separada da vida social. Todos os atos, todos os momentos da existéncia pessoal e coletiva possuem uma dimensio religiosa. Isso é verdade, para os individuos, no caso de uma refeico, de uma partida para uma viagem, da volta ao lar, da recepgao de 4a AS ETAPAS DE UM PERCURSO um héspede estrangeiro. Ocorre 0 mesmo no dominio ptiblico, no caso de uma sessiio na assembléia, de uma prova no ginfsio, de uma representagao teatral.. Ou seja, entre o sagrado e o profano, nao hd uma oposicao radical, nem mes- mo, na maioria das vezes, um corte nitido. Um rito tio central na economia do sistema religioso quanto o sacrificio néio arranca ninguém da vida mundana, da existéncia cotidiana. Ao contririo, instala a pessoa em seu lugar e nas normas que devem ser as suas, em conformidade com a ordem central ¢ césmica. O sacrificio é ao mesmo tempo uma ceriménia religiosa — um agougue e uma cozinha ritualizados, correspondentes as normas alimentares que os deuses fixaram para os homens ~ e um ato social, reforgando os lagos que devem unir os cidadaos em uma mesma comunidade de iguais. E por isso que todos os desvios no regime alimentar, todas as mudangas no modo de preparar e de cozinhar a carne — quer se trate da recusa a alimentar- se de carne € a condenagio do sacrificio sangrento, como € 0 caso dos érficos, ou da devoracdio da carne crua de um animal despedagado vivo, como em certas formas do dionisismo — possuem um significado propriamente religioso. Trata- se sempre, por meio dessas aparentes bizarrices do comportamento alimentar, de se desfazer a marca do culto oficial, para instituir com 0 divino um tipo de relagao que a religido civica profbe. No campo do religioso, minha pesquisa orientou-se por duas vias principais: decifragdio dos mitos e evidenciagao das estruturas do pantedo. Aplicando méto- dos de andlise estrutural, propus uma leitura nova, em alguns sentidos, dos mitos cosmogénicos, contando a emergéncia progressiva de um mundo diferenciado, a partir de entidades primordiais; dos mitos de soberania que ligam a vit6ria de Zeus € a seu acesso ao trono a instauragZo de uma ordem estavel, justa e permanente, ¢ dos mitos antropomérficos enfim, que, como 0 mito de Prometeu, explicam a con- digZo humana. Condigao ambfgua, contrastada, na qual se mesclam inextricavel- mente as alegrias e as tristezas, na qual toda luz tem sua sombra, a felicidade implicando a desgraga, a abundéincia © trabalho duro, 0 nascimento a morte, 0 ho- mem a mulher, a inteligéncia e o saber se unindo nos mortais & tolice e & imprevi- déncia. Esse tipo de discurso mitico parece obedecer a uma l6gica que poderfamos definir, em contraste com a I6gica aristotélica da identidade, como uma légica da ambigiiidade, da oposiga0 complementar, da oscilagdo entre pélos contririos. ‘Seguindo as idéias de Dumézil, abordei 0 estudo do politefsmo grego, con- siderando que cada deus se define pela rede de relagdes que, em diversas confi- guragées, 0 une e 0 opde as outras divindades do pantedo. Sob a forma de uma hierarquia organizada de poderes que se delimitam re- ciprocamente, um pantedo apresenta-se como um sistema de classificagzo que pre- 43 ENTRE MITO E POLITICA side & ordenagio das poténcias do além e que se aplica, assim, a0 mundo da na- tureza ¢ a0 universo humano. O sistema dos poderes divinos tem, ao mesmo tempo, um valor de cosmo- logia, de sociologia, de psicologia e de ética. Ao procurar decifrar certas estrutu- ras do pantedo, como o par Hermes-Héstia, ou 0 grupo dos deuses caracterizados por sua esperteza — sua métis -, eu nao desejava apenas delimitar a natureza dos lagos que associam os deuses em pares ou em trfades ou de outra forma, procura- va entender a forma como esses esquemas teolégicos, inseridos no proprio teci- do da vida coletiva, organizam o pensamento e regulam as praticas institucionais. Meu objetivo era, nesse contexto, perceber melhor as formas e os graus de imbricago entre o religioso, o social e 0 mental Um novo campo de estudos: 0 papel simbélico da imagem As imagens, ou, melhor, 0 que eu chamaria, no plano religioso, de fatos de figuragdo do divino, ndo remetem menos ao pensamento simbélico do que os mi- tos ou os rituais. Se é verdade que os gregos atribufram, na época clissica, um lu- gar privilegiado em seus templos & grande esttua cultual, antropomérfica, do deus, de outro lado eles conheceram todas as formas de representago do divino: simbo- los anicénicos que podiam ser um objeto natural como uma érvore ou uma pedra bruta, ou um produto moldado pela mao do homem, como um poste, um pilar, um cetro; figuras icOnicas diversas: pequenos idolos malformados nos quais a forma do corpo, dissimulada pelas vestes, no é nem mesmo vistvel; figuras monstruosas nas quais 0 bestial se mescla ao humano, simples mscaras em que o divino € evo- cado por um rosto emaciado, de olhos fascinantes; estétuas plenamente humanas. Todas essas figuras no sio equivalentes nem convém indistintamente a to- dos os deuses ou a todos os aspectos de um mesmo deus. Cada uma tem sua for- ma propria de traduzir determinados aspectos do divino, de “presentificar” o além, de inscrever e localizar 0 sagrado no espago presente; um pilar ou um poste fin- cados no solo nao possuem a mesma fungiio nem 0 mesmo valor simbélico de um pequeno {dolo deslocado ritualmente de um lugar a outro; ou do que uma imagem trancada em um depésito secreto, com as pernas amarradas para impe- di-la de fugir; ou do que uma grande estétua de culto instalada para sempre em um templo para dar a ver a presenga permanente do deus em sua casa. Cada forma de representagao implica para a divindade figurada uma forma singular de se manifestar aos humanos ¢ de exercer, por meio dessas imagens, 0 tipo de poder sobrenatural que a caracteriza. “4 AS ETAPAS DE UM PERCURSO Se mito, figuragio, ritual se inscrevem no mesmo registro do pensamento simbélico, entendemos que possam associar-se para fazer de cada religiio um conjunto no qual, retomando as palavras de Georges Dumézil: “Conceitos, ima- gens e ages se articulam e formam, ao se ligarem, uma rede na qual, de direito, toda matéria da experiéncia humana deve ser capturada e distribufda”. ‘Assinalar as malhas dessa rede, cercar as configuragées que sua trama de- senha nela devem ser as tarefas do historiador. Ainda é preciso acrescentar que, no caso da Grécia, a pesquisa sobre a expresso figurada do divino comporta uma nova dimensao; entre os séculos Vile IV a. C., € possfvel observar, tanto esse campo quanto em outros, uma verdadeira mutagio: 0 idolo divino torna- se imagem. Passamos da presentificagio do invisfvel & imitagiio da aparéncia. O simbolo figurado através do qual um ser do além, em si mesmo invisivel, é atua- lizado, presentificado neste mundo, transformou-se em um simulacro, uma ima- gem, 0 produto de uma imitagao de especialista que, por seu carter de artificio técnico e de procedimento ilusionista, entra doravante na categoria do ficticio. A religiio desemboca na arte. A atualidade dos estudos gregos ¥ evidente que a Antigiidade grega é estudada no conjunto dos paises euro- peus onde os estudos clissicos fazem parte de uma tradigo cultural muito profun- da. £0 caso de toda a Europa Ocidental. E igualmente 0 caso, em graus diversos, na Europa do Leste; a Polénia, por exemplo, continua dedicando aos estudos cliis- sicos uma amplitude e um cuidado muito grandes, a Tchecoslovaquia também, ‘embora o grego no tenha mais lugar nos estudos de grau médio; 0 mesmo ocorre na Roménia, na Hungria, na Bulgéria onde, alids, existiu uma forte atividade em arqueologia. E 0 caso também na ex-Uniiio Soviética: niio s6 certas universidades fazem pesquisas sobre a hist6ria econdmica e social do mundo clissico, sobre a es- cravidio, como também os estudiosos dirigem seu trabalho para a filosofia grega, para a literatura ¢ até mesmo para a religitio. “Temos mantido relagGes estreitas com alguns desses paises. Nés, quer dizer 0 Centro de Pesquisas Comparadas sobre as Sociedades Antigas (Centre de Recher- ches Comparées sur les Sociétés Anciennes), que conta com excelentes especia- listas: Marcel Detienne, Frangois Hartog, Nicole Loraux, Claude Mossé, Pierre Vidal-Naquet, para limitar-me Aqueles que assumem sua direco comigo, e aos quais vieram se juntar os arquedlogos. Temos contatos regulares com os polone- ses, 0 estudiosos de Vars6via ¢ com os tchecos € os romenos, notadamente; com 45 ENTRE MITO E POLITICA 08 soviéticos também, embora as relagdes cientificas com eles sejam mais dificeis de concretizar devido aos problemas colocados para sua viagem a Franca. Na Europa, evidentemente, quer se considere a Inglaterra, a Alemanha, a Bélgica, a Holanda, a Itélia, a Espanha, Portugal, a Suiga, 0 desenvolvimento dos estudos cldssicos continua sendo importante. Parece-me que 0 que constitui um fato novo € 0 advento dos Estados Uni- dos da América. Os Estados Unidos nao possuiam uma tradigdo de estudos clas- sicos tio fortemente implantada quanto a Europa; talvez a chegada, na época do nazismo, de alguns estudiosos alemies de grande importancia tenha favorecido esse gosto € esse desenvolvimento. Atualmente, em todas as grandes universida- des norte-americanas, com orientagdes divergentes e de formas diversas, obser- va-se um desenvolvimento muito importante dos estudos clissicos. Creio que hoje , a pesquisa, nos Estados Unidos, mostra-se realmente inventiva. Nesse terreno so- bre o qual eles nao estavam muito avangados, os norte-americanos estao se colo- cando no grupo de ponta. Até mesmo na Africa, no Senegal, principalmente devido & personalidade de Léopold Sédar Senghor, os estudos clissicos ainda ocupam um lugar impor- tante, tanto no ensino de grau médio quanto na universidade. E 0 Japio também entrou no jogo: existem centros de pesquisa e cadeiras nas universidades, em Téquio e em Kyoto, onde so editados textos gregos. Lem- bro-me de ter assistido, quando fiz. uma série de conferéncias no Japio, & funda- iio de uma sociedade japonesa de estudos cléssicos antigos, fundagio esta d qual pediram que eu me associasse, coisa que fiz com muito prazer. 46 3. PESQUISADOR NO CNRS* Quando recebemos uma medalha, nos perguntamos: por que eu? Quando somos um pouco historiadores ¢ socidlogos, procuramos entender essa escolha situando-a dentro de um contexto explicativo mais amplo do que os méritos res- tritos, reais ou supostos, de uma obra pessoal. Uma medalha é um simbolo. Quais seriam, quando se examina a carreira cientifica, o estatuto universitario, a posi- Ao particular que um pesquisador ocupa no campo da pesquisa hoje, a que ele- mentos esses valores simb6licos remetem? Evocarei alguns, e certamente calarei sobre outros. Conheci, na Franga, 0 primeiro esbogo de instituigaio de pesquisa que 0 go- verno Blum desenvolveu: tratava-se da Caixa das Ciéneias. Na primavera de 1938, este foi o contexto de meu primeiro contrato de pesquisador. Eu era soldado na fronteira italiana; iria terminar meu servigo militar em abril. A comissdo que na época reunia, com a filosofia, 0 conjunto das ciéncias sociais, me havia outorga- do uma bolsa para preparar uma tese sobre a categoria do valor, Nunca recebi essa bolsa, nunca escrevi essa tese. Fui mantido no exército durante trés meses, ¢ de- pois mais trés meses; depois veio a guerra. E somente dez anos depois, em 1948, aps haver dado aulas de filosofia no grau médio e haver feito, na laicidade, coi- sas muito diferentes, entrei como pesquisador no Centro Nacional de Pesquisa Cientifica (CNRS). Meu mestre, Meyerson, logo avisou: “Sabe, Jean-Pierre, en- trar na pesquisa € como entrar em religidio. Nao esquega”. Creio ndo té-lo esque- = (CNRS — Centro Nacional de Pesquisa Cientifica). Discurso pronunciado em 18 de dezembro de 1984, durante a entrega da medalha de ouro do CNRS. ENTRE MITO E POLITICA cido demais, embora existam diversas formas de entrar na religidio e de nela per- manecer. Fui pesquisador por dez anos. Trabalhava sozinho em bibliotecas, lendo to- dos os textos gregos que podia para tentar me tornar um helenista. Durante todo esse perfodo, eu era como uma esponja que absorve para, quando chegasse a hora, dar um pouco de sua produg3o. Conheci o terror dos relat6rios anuais, do traba- tho que no anda numa velocidade suficiente, dos becos sem safda da pesquisa; conheci a felicidade das primeiras publicagdes. Em 1958, nomeado diretor de estudos na VI seco da Escola Pratica de Estudos Avangados (Ecole Pratique des Hautes Etudes), eu teria passado para o outro lado da barricada atuando nas co- missdes do CNRS se nao tivesse representado os pesquisadores. Pelo menos du- rante os oito anos em que participei da comissio de sociologia. Mais tarde, participei durante quatro anos da comissio de linguas e civilizagées clissicas. Um pé em cada comissio, a cavaleiro em dois campos: situagao paradoxal, anOmica, que j4 era a de meu outro mestre, Louis Gernet, helenista perfeito diretor da revista L’Année Sociologique. Mas, além disso, crescera em mim uma terceira perna que, por meio da revista Journal de Psychologie, da qual era se- cretério de redagio, enraizava-me nas pesquisas de psicologia hist6rica. Esse es- tatuto indeciso, polimorfo, essa fisionomia proteiforme comportavam, aos olhos dos especialistas nas diversas disciplinas clissicas, defeitos; possufam também algumas vantagens. Quando estamos em um cruzamento, temos uma perspectiva diferente daqueles que caminham por uma mesma rua. Os caminhos que tentei explorar, no territério da Grécia, levando em conta as diversas dimensées sociais e mentais daquela cultura, poderiam ser chamados, se fosse preciso atribuir-lhes rétulos, de antropologia hist6rica. E claro que, no plano das estruturas da pesqui- sa, esse tipo de trabalho questionava, na ordem das disciplinas tradicionais, uma divisio demasiado estrita das comissdes. Minha pesquisa veio entdio inscrever-se naturalmente na linha daquilo que foi recentemente realizado no CNRS: a uniéio em um todo das ciéncias sociais e das ciéncias humanas, 0 estabelecimento de passagens entre setores diferentes, a criag3o de estruturas horizontais que recor- tam todo 0 campo dos diferentes saberes para recentré-los em torno de um mes- mo tema. Essa é a primeira implicagao simbdlica dessa medalha, do meu ponto de vista. Uma parte de seu brilho traz um pouco mais de luz para esses espagos marginais, ainda pouco freqilentados, onde as fronteiras, em vez de serem obsté- culos, tornam-se pontos de cruzamento, passagens € encontros, postos de obser- vacdo privilegiados. Como pesquisador, eu ja disse, trabalhava s6. Depois dos anos sessenta, tudo mudou: nao havia mais um Vernant isolado; havia Vernant e seu grupo, a equipe 48 PESQUISADOR NO CNRS Vernant, que alguns, no exterior, chamaram de escola de Paris ou, retomando 0 titulo de um artigo, amistoso e caloroso, que o diretor do Center of Hellenic Stu- dies de Washington, Bernard Knox, dedicou a mim, “a Grécia a francesa”. Nao sou nacionalista, ao menos espero nao sé-lo em demasia. Mas fico feliz que essa voz, de elogio e de cumplicidade conosco, nos proclame franceses em nossa abor- dagem da Grécia, venha do exterior ¢ fale inglés. ‘A histéria do Centro de Pesquisas Comparadas sobre as Sociedades Anti- gas pode ser instrutiva. Direi apenas que no inicio nao comportava nenhum hele- nista; eu cumpria essa fungdo. Ele reunia uma pléiade de eruditos ~ especialistas em Roma como J.-P. Brisson; assiriologistas: Elena Cassin, Garelli, ¢ depois Bot- téro; um sindlogo: Jacques Gernet; orientalistas: Paul Lévy, e depois Madeleine Biardeau e Charles Malamoud; um egiptélogo: Yoyotte; antropélogos: Haudricourt, Condominas, e depois Godelier, aos quais logo se uniriam os africanistas. Aqui Jo que nos reunira espontaneamente era uma exigéncia de comparagio para me- Ihor entender nossos préprios campos. Examinavamos, a partir de cada sociedade que estudavamos, os diversos aspectos que 0 religioso, 0 poder, a realeza, a guerra, a vida agricola, o trabalho, a economia podiam revestir. Assim, cada um de nés era levado nao s6 a interrogar-se sobre 0 modo como esses diversos planos se ar- ticulavam uns aos outros no seio de uma mesma cultura, como também a ques- tionar a pertinéncia dessas categorias, que nos parecem Sbvias, mas que se tomam problematicas quando sio aplicadas a civilizagdes historicamente distantes da nossa. Quando o Centro foi institucionalizado ao ser incorporado pela Ecole des Hautes Etudes ¢ associado ao CNRS, como “equipe de pesquisa associada”, tor- nou-se essencialmente uma equipe A qual se juntaram alguns latinistas. Dirigi esse grupo durante vinte anos. No inicio nfo éramos muitos. A equipe reforgou-se, am- pliou-se — talvez demais. Hoje é um centro importante, com miltiplas faixas eté- rias. Seus membros publicaram muito, trabalhos individuais e coletivos. Uma equipe na qual, ao longo dos anos, a pesquisa € realizada em comum, na qual 0 trabalho de reflexdo, de criagio, de documentagao também € coletivo — esse fe- némeno, normal em tantas ciéncias, ainda € excepcional nos estudos classicos. A pedido dos sociélogos, o CNRS outorgou ao Centro, por sua obra coletiva, em 1977, uma medalha de prata. Esta que recebo hoje brilha para todos os membros do grupo, sem excegdo, sejam quais forem suas tarefas ¢ suas fungdes. Nao é tarefa minha fazer um balango dessa experiéncia, julgé-la. Posso ape- nas, como confidéncia, dizer o que sinto. Primeiro, aquilo de que tenho certeza. Nem minha propria obra, nem minha vida, nem minha pessoa podem ser separa- dos da equipe. Fui continuamente levado pelo trabalho e pelas pesquisas de to- ” ENTRE MITO E POLITICA dos aqueles que, talvez eu também, no mesmo movimento, carregava. Depois, aquilo em que acredito. A vantagem de um grupo desse tipo € que, reunindo ho- mens ¢ mulheres de formagiio diversa, cujos hibitos mentais, procedimentos de pesquisa e mentalidades sio diferentes: fildlogos, historiadores, arquedlogos, ico- nélogos. socidlogos e psicélogos, permitem, ao mesmo tempo, buscar informa- Ges num campo mais amplo e explorar o terreno segundo Angulos de abordagem variados. Mas a necesséria coestio de um grupo ndo deixa de representar um pe- rigo duplo. De um lado, € preciso que cada um permanega ou se torne ele mes- mo, que faga 0 que s6 ele pode fazer, sem que, contudo, a afirmagio das originalidades, a singularidade dos pontos de vista acarretem separagdes € con- flitos. De outro, para toda coletividade cientifica que nilo se encontra exatamente dentro das normas universitétias, existe 0 risco ou a tentago de funcionar isola- damente, de olhar para seu préprio umbigo, de se transformar em uma seita vol- tada sobre si mesma, esquecendo de se abrir para tudo o que as disciplinas clissicas tradicionais trazem, em sua propria linha, nao s6 em conhecimentos indispens4- veis como também em novas perspectivas. Por fim, meus desejos: que o Centro continue. Uma equipe de pesquisa viva € uma instituigio e uma espécie de familia. Toda instituigao envelhece; toda fa- milia tem suas tensdes, bem como seus bloqueios e seus preconceitos. Eu gosta ria que os jovens pesquisadores, que vém a nés em grande ntimero, renovassem © Centro ¢ 0 conservassem, que o tornassem diferente e a0 mesmo tempo seme- Ihante aquele que conheci e que me proporcionou momentos de muita alegria e uma certa felicidade. Que o Centro tenha uma vida longa. Mas deixemos de lado os estados de espitito pessoais. Meu voto apéia-se em duas razdes de fundo que nao so estranhas & medalha de hoje. Primeiro, se 0 Centro é uma espécie de familia, trata-se de uma familia internacional. Nao s6 pelas aliangas que conclufmos com universidades e equipes estrangeiras como também pelos casamentos dos quais nasceram muitos livros. Isso porque niio hd um més, uma semana, talvez, sem que nossas portas sejam abertas a colegas de quase todos os paises do mundo, que desejam expor suas pesquisas ¢ discuti-las em comum. Eles vém ¢ voltam ao Centro porque se sentem em casa. Assim, em troca, quando nés vamos trabalhar em seus pafses, também no nos sentimos em terra estrangeira. Em seguida porque permanecemos fi tas, & nossa vocagio de antrop6logos comparatistas. Se tomarem nossas publica- goes coletivas, Problémes de la guerre (Problemas da Guerra), Divination et Rationalité (Adivinhagdo e Racionalidade), La cuisine du sacrifice en Gréce (A Cozinha do Sacrificio na Grécia), La mort, les morts dans les sociétés antiques mesmo reunidos como classicis- 50 PESQUISADOR NO CNRS (A Morte, os Mortos nas Sociedades Antigas), encontrarao sempre uma dimen- so comparativa e um lugar, freqtientemente muito grandes, atribufdos aos espe- cialistas de civilizagées diferentes da grega. Retomando a formulagao de Louis Gernet, os estudos cléssicos niio constituem, de nosso ponto de vista, um campo auténomo ou uma espécie de império dentro do império. A Grécia € uma expe- riéncia humana singular marcada por uma mutagdo que se produziu em alguns séculos em toda uma série de planos ao mesmo tempo. S6 podemos perceber as condigdes que tornaram esse advento possfvel, as conseqiiéncias que acarretou e cujos efeitos sentimos ainda hoje, confrontando o mundo grego as grandes civi- lizages nas quais os homens fizeram escolhas diferentes. Desejamos que a Grécia permanega presente em nosso ensino, viva em nossa cultura, no para que retorne a uma elite de especialistas, como um espelho, 0 reflexo do que eles imaginam que sao ou do que gostariam de ser, mas para que, situada em seu lugar em uma histéria humana que comporta muitos caminhos, ela nos leve a refletir mais lucidamente sobre as implicages e as questOes de nossa civilizagdo, que nos esclarega sobre 0 que somos, comparados e confrontados aos outros. Nosso helenismo € comparativo porque deseja ser uma contribuigo para © conhecimento do homem, na variedade de seus universos de cultura. Para essa tarefa ambiciosa ¢ que poderia parecer um pouco gratuita ou ina- tual, vocés nos forneceram meios nossa altura; acima de tudo, confiaram em 1n6s; sustentaram nossa equipe deixando-lhe essa plena liberdade sem a qual nio existe pesquisa. E, nesse sentido, minha medalha é também um testemunho para todos aqueles que, no CNRS, na Ecole des Hautes Etudes, no Collége de France, na secretaria da pesquisa souberam, quando foi preciso, estender a mio para aju- dar-nos a passar por um caminho dificil. André-Georges Haudricourt opés outrora a mentalidade dos povos pasto- res, como os gregos, 3 dos povos jardineiros, como os antigos chineses. A do- mesticago dos animais teria levado os pastores a conceber a dominagio do rei sobre seus stiditos, a autoridade do superior sobre seus subordinados, a partir do modelo das relagdes do pastor com seu rebanho, que ele conduz com uma vara. cetro real € uma vara. Ao contririo, os povos jardineiros adotariam como mo- delo do exercicio do poder a forma de ago “indireta e negativa’, propria do hor- ticultor, preocupado em inserir-se na ordem natural e cuja intervengao nfo visa submeter ou constranger e, sim, de acordo com a energia interna de cada planta, deixé-la crescer melhor. Quando nos concedeu o privilégio de nos tomar sob sua tutela, o CNRS niio quis nos dominar: limpou e irrigou o terreno & nossa volta, afastando os obsticu- los, amassando os torres de terra demasiado grossos, trazendo-nos a 4gua de que 37 ENTRE MITO E POLITICA precisivamos. Espero que amanhi seja como ontem ¢ hoje. A pesquisa € um jar- dim, Para que floresga, aqueles que sio responsdveis por ela devem ser mais jar- dineiros do que pastores. 52 4. A GRECIA, ONTEM E HOJE A tradugio de meu livro Mito e Pensamento entre os Gregos (1965) em lin- gua grega demética e isso no momento em que o povo grego libertou-se da dita- dura militar so duas ordens de fatos que me tocam profundamente e que niio me parecem independentes entre si. Por certo, em todo caso, eu s6 poderia me alegrar ao ver meu trabalho pos- to 4 disposigdo daqueles a quem concerne mais diretamente, posto que trata de seu passado nacional, que esclarece uma tradigdo & qual eles nunca deixam de se ligar. Mas tem mais. A pesquisa que realizo hé muitos anos sobre a Grécia antiga niio me desviou dos acontecimentos contemporaneos. Ao refletir sobre a Antigtii- dade, estava me interrogando sobre nés mesmos, questionava nosso mundo. Se a Grécia constitui © ponto de partida de nossa ciéncia, de nossa filosofia, de nossa forma de pensar, se inventou a razo, a politica, a democracia, no sentido em que as entendemos, em suma, se deu & cultura ocidental alguns de seus tragos mais marcantes; procurar, como eu fiz, explicar historicamente que € chamado de “milagre grego”, descobrir 0 porqué e o como, é tentar situar nossa prépria ori- gem no lugar que Ihe cabe no curso da histéria humana, em vez de fazer dela um absoluto, uma revelagzio a0 mesmo tempo universal e misteriosa. Essa tarefa cien- tffica nos forga a tomar distancia frente a nés mesmos, a nos olharmos com 0 mesmo distanciamento, 2 mesma objetividade que terfamos para com outro e, assim, a entender melhor 0 que somos, em nossas particularidades relativamen- te 2 outras civilizagdes com, é claro, nossos sucessos, nossas grandezas, mas tam- bém nossos fracassos e nossos limites. Nao era assim que os coronéis se referiam ENTRE MITO E POLITICA & Grécia antiga. Ela Ihes servia de Alibi para justificar seu regime de opressio € para fechar a Grécia sobre si mesma em vez de abri-la para os outros povos. O fato de meu livro s6 poder ser publicado em sua terra apés a partida deles nao me parece ser, assim, um acaso. Procurei entender o que era o homem grego antigo, como ele se transformou € construiu, em seus modos de pensar, suas formas de sentimento, seus modos de agir, por meio das mudangas que se produziram na vida social e politica, entre os séculos VIII ¢ IV antes da nossa era. Minha pesquisa inscreve-se na linha de uma psicologia histérica cujos fundamentos foram estabelecidos na Franga por Meyer- son € que se coloca sob o signo de Marx, escrevendo que toda a hist6ria nao passa de uma transformagiio continua da natureza humana. Penso, com efeito, que nio podemos falar dos homens fora dos grupos nos quais esses homens esto inseri- dos, fora de seu contexto social preciso; mas, inversamente, niio existe contexto social que no possua uma dimensio “humana”, ou seja, mental, nao existe insti- tuigdo que nio implique, enquanto esti ativa, crengas, valores, emogies € paixdes, todo um conjunto de representagées e de sentimentos. Nao encontramos, de um lado, individuos humanos isolados que poderiam ser submetidos a um estudo psi- coldgico e, de outro, realidades sociais que seriam coisas inertes, submetidas em sua evolugdo a uma espécie de determinismo exterior, e que poderfamos estudar como objetos. Uma sociedade é um sistema de relagdes entre os homens, ativida- des priticas que se organizam no plano da produgio, da troca, do consumo, em primeiro lugar, e depois em todos os outros nfveis e em todos 0s outros setores da vida coletiva. E, na concretude de sua existéncia, os homens definem-se também pela rede das priticas que os ligam uns aos outros e da qual eles aparecem, em cada momento da hist6ria, ao mesmo tempo como autores € como produtos. Estudei entdo 0 homem antigo a partir de tudo 0 que ele criou e produziu nos diversos setores da vida coletiva, desde suas ferramentas, suas técnicas, até seus mitos ¢ deuses, passando pelas instituigdes da cidade, pelo direito, pelas gran- des criagGes literdrias e plasticas, pelas obras cientfficas. A psicologia animal re- pousa sobre a andlise dos comportamentos préprios as diferentes espécies. O verdadeiro comportamento do homem € 0 que ele faz € 0 que fez como ser social em sua relag3o com os outros € para os outros. O homem esté nas obras que er- gue para que durem, para que sejam comunicadas, transmitidas de geragao a ge- ragio. O conjunto dessas obras constitui aquilo que chamamos de feitos de civilizagao, que dependem de um estudo hist6rico. Nesse sentido, o psic6logo que Pesquisa sobre 0 homem deve, necessariamente, tornar-se também historiador. 34 A GRECIA, ONTEM E HOLE No espago de poucos séculos, a Grécia antiga conheceu, em sua vida social € intelectual, mutagdes tio profundas que foi possivel ver nelas 0 nascimento do homem moderno, 0 advento do espirito como poder de reflexao critica, ou, em outras palavras, foi naquele momento que se teria produzido a passagem do mito A razio. Assim, perguntei-me como, por que e até que ponto de fato se despren- deram da mentalidade religiosa modos de pensar e de agir que, antes de se apre- sentarem como fungdes bem diferenciadas, adaptadas a objetivos precisos, parecem todos mais ou menos inclufdos no universo simbélico da religidio. E, nesse processo de mutagio que levou a fazer surgir, como outros tantos setores distin- tos, os planos do econdmico, do politico, do juridico, da arte, da ciéncia, da éti- ca, da filosofia, quais mudangas afetaram, de um lado, os instrumentos mentais — instrumental conceitual, modos de raciocinio, quadros légicos do pensamento ~e, de outro, as grandes fungdes psicol6gicas: tempo, espago, meméria, imagi- nagio, vontade, persona. Tratava-se de medir a distancia que separa o heréi ho- mérico ou 0 camponés de Hesfodo daquele homem racional definido como “animal politico”, do qual fala Arist6teles. Medir a distincia, mas também avaliar 0 ca- minho que levou de um a outro. Esse € 0 programa ao qual respondem os livros Les origines de la pensée grecque (As Origens do Pensamento Grego), Mythe et pensée chez les Grecs (Mito e Pensamento entre os Gregos), Mythe et Tragédie (Mito e Tragédia). Mas, ja nesses dois tiltimos volumes, 0 acento foi deslocado e uma nova orientagio se delineia com alguma clareza. Em Les Origines de la pensée grecque, o mito era considerado apenas como ponto de partida; tratava-se menos de estudé-lo em si € por si mesmo do que de examinar 0 modo como ele havia sido descartado, de entender por que e como a Grécia das cidades, ao instituir como politica o debate pblico, contradit6rio, argumentado, rejeitara o mito para inventar formas dife- rentes de racionalidade. O problema era definir 0 que, do mito & razio, transfor- mara-se na lingua € no vocabulirio, nos processos de abstrag&o, nos grandes quadros do pensamento. Mas, ja durante minha pesquisa, minha perspectiva modificou-se e, como se pode ver na maior parte dos capitulos de Mito e Pensamento..., a anilise do mito passa para primeiro plano. Com efeito, para comparar de forma valida os documentos religiosos, as narrativas lendérias e as grandes teogonias a outros ti- pos de obras: escritos literdrios, hist6ricos, cientificos, documentos politicos ou juridicos, era preciso empreender uma pesquisa sistemética sobre a religitio gre- ga tratando-a, em seu conjunto, como um universo mental que possui sua finali- dade, seu instrumental simbdlico e sua légica préprios. Assim, abordei 0 estudo geral dos fatos religiosos gregos, tanto no que diz respeito a andlise dos mitos 3s ENTRE MITO E POLITICA quanto ao deciframento das estruturas do pantedio. Nesse sentido, esforcei-me, associando sistematicamente andlise estrutural e pesquisa hist6rica, para trazer & so. Os homens luz as relagdes recfprocas e as implicagdes do social e do reli criam seus deuses, as sociedades produzem as religiGes. Mas nenhuma religido é 0 reflexo simples e direto de uma sociedade. Ao lado das crengas € dos ritos que visam consagrar um Estado de fato, justificar normas usuais, integrar os indivi- duos no grupo tal como ele é, existem tendéncias inversas, praticas desviantes, movimentos sectirios, atitudes marginais, condutas aberrantes que questionam, junto com a ortodoxia religiosa, toda a pritica social de uma comunidade. E 0 caso, por exemplo, na Grécia, dos pitagéricos e dos Srficos que, ao recusarem 0 sacrificio sangrento, procuraram escapar dos quadros religiosos e sociais tradi- cionais. Assim, uma religiio também pode expressar 0 contrério do que € uma sociedade, a recusa do real em proveito de alguma outra coisa, que chamamos de sonho ou utopia. Como diz Marx, a religitio € 0 suspiro da criatura exaurida, “o espirito de um mundo sem espirito”. Fui profundamente marcado pelo marxismo, no qual mergulhei desde mi- nha adolescéncia, ha quase meio século. Falo do marxismo de Marx, nao desse catecismo revisto e corrigido, as vezes até censurado, ao qual foi reduzido, pri- meiro para justificar determinada pratica politica, em seguida para justificar um sistema de Estado burocratizado e de governo autoritario. O primeiro me parece uma metodologia critica indispensavel para colocar corretamente questes de his- t6ria; 0 segundo aparece como um substituto da religiao trazendo a seus fiéis cer- tezas e respostas prontas, 0 que evita que eles pensem em perguntas embaracosas. Entre os dois, a diferenga talvez seja da mesma ordem que entre mito e razio Quanto ao estruturalismo, 0 termo nio me parece menos ambiguo. Se 0 en- tendermos no sentido da moda que assolou por algum tempo o meio intelectual parisiense ¢ que levou a expulsar a hist6ria do campo das ciéncias sociais, em proveito de modelos formais, de esquemas abstratos, niio me sinto estruturalista. Mas, se levarmos em conta 0 que os estudos lingiisticos trouxeram de novo nos cingiienta tltimos anos com as nogdes de sistema e de sincronia, e 0 partido que 0s mit6logos tiraram deles para perceber os sistemas de oposigdes e de homolo- gias que constituem a armadura das narrativas miticas, direi apenas que niio se pode mais fazer histéria das religides sem ser, nesse sentido, estruturalista. O importante nao é escolher um rétulo, mas perceber que o problema, hoje, € entender como um sistema nasce (por exemplo, uma sociedade, no sentido em que Marx fala de um sistema de produgio, com os subsistemas que sio a Iingua, a religido, as instituigdes, os diversos tipos de arte e de ciéncia — todos ligados e 56 A GRECIA, ONTEM E HOJE solidérios, mas relativamente auténomos porque obedecem a sua prépria légica), como se desenvolve, se organiza, vive, definha, se desfaz e desaparece para dar seu lugar a outro. Essa problemftica, que procurei aplicar 4 Grécia antiga, situa- se precisamente na jungao do marxismo e do estruturalismo. Como estudioso da Antigiiidade que sou, deveria acrescentar que, de todos os pontos de vista, essa problemdtica Ihe parece plenamente atual? 5. DO OUTRO AO MESMO. Em La mort dans les yeux (A Morte nos Olhos), parto de uma interrogagaio acerca da figura dos deuses; acerca da forma como os deuses se tornaram presen- tes na forma do que chamamos de imagens e que, talvez, seria melhor chamar de {dolos. Nao estou tentando, por meio dos mitos gregos, situar estruturas quase que aprioristicas do imagindrio ou do pensamento, ¢ sim perceber como uma cultura particular, entre tal data e tal outra, contou hist6rias. Hist6rias que ilustram © modo ‘como aquelas pessoas pensavam o mundo e as questdes que colocavam, sem for- mulé-las explicitamente. Com essas narrativas e os documentos culturais que pos- suimos, desvenda-se 0 que as vezes chamei de dimensio metafisica; por exemplo, no caso de Artemis, encontramos a questo do Mesmo e do Outro — que Platao abordou no plano propriamente filos6fico — na medida em que se trata de uma deusa dos confins: isso porque ela cuida para que se articulem corretamente as margens e 0 centro, a juventude e a idade adulta. Artemis assume um papel mais do jovem ou do estrangeiro: amplo do que a simples fungao de integrago soci ela representa a possibilidade da passagem do Outro a0 Mesmo. Para os gregos, 0 Mesmo é a identidade social, o que aparece para eles como um modelo. © grego pensa a humanidade sob a forma do que nio € animal, do que é vivo e mortal, do que € adulto, ou seja, do que passou por ritos de iniciagaio € entrou nos quadros da vida civica. Trata-se, entio, de um cidadio e de um ci- dado do sexo masculino. O Mesmo 6, assim, essa imagem do homem que serve de ponto de referéncia para pensar os outros seres vivos, sejam eles os animais (que se devoram entre si e que comem cru), sejam eles os barbaros definidos pela ENTRE MITO E POLITICA série de diferengas que os langam para fora desse modelo. E igualmente verda- deiro para o jovem que, em Esparta, afasta-se, por seu aspecto fisico (vestuério, cabelos raspados, sujeira), do modelo que chamo de 0 Mesmo. Tudo o que nao tiver acesso a essa identidade é excéntrico. Ora, os gregos tiveram ao mesmo tempo um sentimento muito contundente de que era o fato de ser grego e a cidadania que definiam a humanidade, mas eles também foram levados, com divindades er religiosamente a questo do Outro e a atribuir- como Artemis e Dioniso, a Ihe um lugar. Por isso, uma figura como a de Artemis, ao mesmo tempo deusa das mar- gens ¢ poder de integragdo, tem tanta importancia a meus olhos. Enquanto 0 jo- vem grego nio se tornou um hoplita, um soldado, um cidadao, enquanto a jovem no se tornou esposa e mile, eles pertencem ao mundo da alteridade juvenil, no qual justamente as coisas ainda nio estio em seu lugar, pois nao esto radical- mente separados da vida animal. Um dos papéis de Artemis — ela mesma uma deusa das regides fronteirigas, selvagens ~ € de fazer passar desse mundo, situa- do nas fronteiras da cultura, para o da identidade social ¢ permitir precisamente que os papéis sociais sejam claramente definidos. Ora, hoje, esses papéis torna- ram-se muito mais imprecisos. Outrora, as fronteiras entre a adolescéncia e a idade adulta eram claramente tragadas, enquanto hoje, a adolescéncia nunca termina... Essa é a contrapartida da extrema importancia que hoje atribuimos a juventude, Na medida em que a fronteira nao é definida, 0 adulto continua a viver na nostal- gia daquela idade em que nada estava ainda definitivamente fixado. Do mesmo modo, as diferengas entre os sexos so menos definidas hoje do que o eram outro- ra. Nesse sentido, nossa sociedade se parece mais com 0 mundo pré-adulto presi- dido por Artemis. Dizer a partir daf que nossa pretensa modernidade é uma regressiio com relagdo a civilizagio grega é ir longe demais. Como nao acredito que existe um progresso da histéria, nem uma finalidade, nao sei o que veio antes nem 0 que veio depois. O que sei é que se traga esse quadro sem atribuir a Dioniso o lugar que Ihe cabe, pois ele é justamente aquele que embaralha todas as categorias que a religiio e as instituiges sociais e politicas estabelecem rigorosamente. Como se uma sociedade nao pudesse deixar de estabelecer uma “ordem” e embaralhé- la ao mesmo tempo. Dioniso instaura na religido grega uma dimenso que a ul- trapassa, que Ihe escapa e a nega. ‘Toda civilizagio procura resolver problemas contraditérios, conciliar a vida cam a morte, as sociedades masculinas com a existéncia das mulheres, 0 estado adulto com os jovens que tomarao seu lugar. E necessério existir uma ordem so- cial bastante estrita, mas a0 mesmo tempo ela nunca satisfaz. Toda sociedade joga, 60 DO OUTRO AO MESMO ento, com esses dados: procura compor algo possivel, mantendo a Gérgona no horizonte, pois, como dizia Stalin a De Gaulle: “A morte sempre vence”. Por serem an6micas, atipicas, as figuras da Gérgona, de Artemis e de Dio- niso interessaram-me particularmente. Os deuses gregos sio geralmente represen- tados de forma antropomérfica, enquanto a Gérgona e muitas vezes Dioniso sio figurados unicamente por uma cabega. A primeira possui uma cabega monstruo- sa € a0 mesmo tempo humana, bestial, masculina, feminina, horrivel e engraga- da, enquanto, no caso de Dioniso, trata-se de um rosto que nos observa fixamente, hipnotizando-nos. Dioniso é um deus que nos olha diretamente nos olhos e que nos possui; é 10 olho que nos fixa, como Gorgé, af esté toda a questiio! Como ela, é representa- do de frente, com seus dois olhos imensos, € nos cativa. Dioniso é um deus com- pletamente extravagante, € 0 tinico deus magico: € 0 deus do teatro, da mascarada, do disfarce, da embriaguez, e a0 mesmo tempo é 0 deus do transe e da posses- sdo: as mulheres largam seus filhos, seus teares e fogem para as montanhas; pos- suidas por Dioniso, transformam-se em Ménades. Assim, perguntei-me por que essas trés divindades eram figuradas de uma forma que, do ponto de vista grego, nao era a regra, procurando entender 0 que traduzem de “particular” suas relagées privilegiadas com a mascara. Na minha opinido, trata-se de um esforgo para expressar a experiéncia da “alteridade”, de algo que est justamente fora da norma, pois Gérgona traduzia essa preocupa- io, esse horror que a dimensao sobrenatural representa para os homens; ela é 0 Terror em estado puro. Ea Morte, ou seja, o fato de que o que é mével, flexivel, quente, luminoso, vai se transformar de repente em um ser vestido de noite, imé6- vel, congelado, uma estitua de pedra. 0 otho que mata Em minha pesquisa sobre Gorg6, parti daquelas cabegas monstruosas, sempre de frente nos vasos enquanto os outros personagens sio representados de perfi Em grego, miscara e cabega se assemelham e Gorgé é apenas um rosto que nos olha nos olhos. £ 0 olho que mata: este é meu ponto de partida. Constatei que a Grécia arcaica e classica exibia sua mascara em todos os lugares, nos escudos, nas oficinas dos artesiios € nas residéncias. Procurei, entdo, perceber 0 que signi- ficava esse olho, mas um estudo puramente iconografico era insuficiente. Para entender 0 funcionamento dessas imagens, eu precisava situd-las em seu contex- to: as narrativas, 08 mitos e, eventualmente, os vestigios de cultos. Tratava-se real- 6 ENTRE MITO E POLITICA mente de um inquérito policial: bastava que eu puxasse os fios; a Iliada com seus elementos guerreiros, Hesfodo e por fim a Odisséia, na qual ela 6 associada ao mundo dos mortos. A cabega de Gorgé na guerra levou-me ao guerreiro indo-eu- ropeu possuido pelo furor e que faz caretas assustadoras. Pensa-se evidentemen- te no cinema japonés: Os Sete Samurais, isto €, Gorg6, 0 controle de uma certa mimica que di um dominio sobre 0 adversério, dominio este que é sentido como um poder sobrenatural. Depois havia também 0 aspecto funerdrio e ctdnico. Ou- {to fio condutor: as sonoridades, 0 rictos sonoro de Gorgé e a flauta. Percebi en- tHo que a flauta, Gorg6 e o delirio, a Issa, a raiva, caminhavam juntos. Trata-se de um frenesi que sobe do mundo dos mortos € que possui certos individuos, tor- nando-os semelhantes a espectros furiosos que vaio semear 0 pavor por todo lu- gar. Assim, eu ia seguindo esses fios, monstruosidade, facialidade, pavor, mundo dos mortos, frenesi... € os cultos? Nao, no existe culto de Gorg6, mas encontrei aquelas deusas-cabegas, as Praxidikai ligadas 4 vinganga e ao juramento, como 0 Estige (rio do Inferno), para os deuses, e assim reuni toda uma série de elementos conhecidos. Uma paisagem do pavor, como dimensio do sobrenatural aos olhos dos gregos, comegava a se povoar e a se delinear. Foi esse frenesi do mundo dos mortos, Gorg6, que Perseu enfrentou antes de conseguir cortar sua cabega. O que é fundamental nessa histéria é a forma como © grego entendeu a troca de olhares. Na verdade, trata-se de toda a teoria do amor tal como Plato a explica. © amor é o fluxo que parte de quem ama e que se re- flete no olho daquele que é amado, de forma que vemos a nés mesmos no olho do outro; mas, para Plato, o outro que me ama vé em mim A Beleza, com letras maitisculas, aquela que est muito além de mim. E a mesma coisa para Gorg6. Quando otho para ela, estou vendo a mim mesmo, ou, melhor, aquilo que, em mim, ja € 0 Outro. O que em mim esta além de mim, nao para o alto mas para baixo. Vejo que em todo ser humano ja existe a promessa de um caos irremedit. vel. E isso que nao € facil de contemplar no olho de Gorg6, a morte de frente! 62 6. A FABRICAGAO DE SI Talvez no escolhamos nossa familia intelectual assim como niio escolhemos nossa verdadeira familia. A tinica coisa que podemos fazer € romper com ela. Para mim, as coisas estavam claras: cresci em uma familia de intelectuais: meu pai mea av6 eram diretores do jornal Le Briard em Provins, onde nasci. Era um jornal de esquerda, um jornal republicano. Meu pai estava estudando para um cargo uni- vesitério em filosofia quando meu avé faleceu; precisou assumir seu lugar porque era filho mais velho. Nao o conheci, pois foi morto na guerra, em 1915. Nao possuo outra lembranga dele além desta imagem que me deram: uma pessoa que era mais do que um homem de esquerda, um socialista que se alistou voluntaria- ‘mente na infantaria como soldado de segunda classe assim que a guerra foi decla- rada. Isso pesou para mim. Sempre digo, brincando, que nio sei bem o que € 0 complexo de Edipo, porque néo tive pai. Na verdade, eu tinha um pai imaginario qu: desempenhou seu papel e cresci em um ambiente anticlerical, anti-religioso — quando dirigia o jornal, meu avé engajara-se decididamente na questio Dreyfus. Quando eu tinha quinze, dezesseis anos, lia Marx ¢ toda aquela parte da inteligentsia que se havia voltado para 0 marxismo, mas um marxismo ligado a toda a tradigio de livre-pensamento e de espirito critico. E nao acredito que te- nha entrado nisso como alguns cat6licos que, de alguma forma, a ele se “conver- tera”. Tratava-se de outra coisa: encontrei no marxismo um prolongamento do que cram as atitudes intelectuais de minha familia. A primeira organizagio & qual aderi era internacional e sediada em Mos- cou; era a Associagao Internacional dos Ateus Revoluciondrios... Evidentemen- ENTRE MITO E POLITICA te, para uma pessoa que ocupou uma cadeira de Histéria das Religiées, isso é de- veras paradoxal, mas nao estou certo de que esse paradoxo seja to surpreenden- te quanto possa parecer & primeira vista. Apés ter passado no exame de filosofia, entrei no exército em 1937 e nele permaneci até a derrota. Depois, entrei na Resisténcia. Praticamente, s6 comecei minha carreira em pesquisa em 1948, como assistente, depois de ter dado aulas no grau médio, em Toulouse ¢ em Patis. Na época, estava com 34 anos, niio era mais um jovem... Como minha famflia j4 estava longe naquela época, entrei em ‘outra familia que, em muitos sentidos, no plano da moral civica e da concepgao da vida e do trabalho cientifico, prolongava a minha: estou falando de Ignace Meyerson ¢ de Louis Genet, que eram, ambos, absolutamente agnésticos. Fo- ram as duas pessoas que me formaram intelectualmente. Encontrei primeiro Meyerson, cujas aulas acompanhava na Sorbonne antes da guerra. Mas foi em Toulouse, para onde ele também foi, em 1940, que real- mente 0 conheci. Vivi todos os anos da guerra e da Ocupagio em estreita relagio com ele. Ele também havia entrado na Resisténcia na qual tinha um cargo de res- ponsabilidade. Acima de tudo, conversei indefinidamente com ele e, durante to- dos aqueles anos, ele de certa forma despejou sobre mim tudo 0 que ele podia saber © 0 modo como concebia 0 que havia criado: a psicologia histérica. Meu ponto de partida foi, grosso modo, o seguinte: 0 que caracteriza 0 comportamento do ho- mem, contrariamente ao do animal, € que ele constréi obras que vao constituir 0 conjunto de uma civilizagio: técnicas, ciéncias, instituigdes sociais, obras plisti- cas, obras literérias, direito € religitio. A espécie Homo sapiens aparece a partir do momento em que existem as ferramentas, a linguagem e também os ritos funerd- ios. Por conseguinte, ja nascem preocupagdes com relagio ao que podemos cha- mar de além. O que caracteriza 0 homem € 0 pensamento simbélico. No homem, tudo é simbélico, tudo é significativo. Ora, a religidio, se me permitem dizé-lo, é 0 que hé de mais simb6lico no homem. A religido consiste em afirmar que, por tis de tudo 0 que se vé, de tudo o que se faz, de tudo o que se diz, existe outro plano, um além. E 0 simbolo em agio. Daf, para o psicélogo que deseja entender o ho- mem, a importincia central do estudo do funcionamento das instituigdes religio- sas. Ora, como 0 homem €¢ hist6rico de parte a parte, porque ele é dentro de si o sujeito de uma hist6ria, é preciso reconstituir essa hist6ria. Foi o que Meyerson me ensinou. Por que escolher a Antigitidade? Porque 0 acaso ¢ 0s acasos sempre desempe- nham um papel. Primeiro, eu estava um pouco fascinado pelo que conhecia da Antigiiidade, principalmente por Platio; tinha a intengdio de escrever uma tese sobre a idéia de trabalho no filésofo. Depois, conheci Louis Gernet, em 1948, gragas a 54 A FABRICAGAO DE St Meyerson. Ele acabava de entrar na Ecole Pratique. Acompanhei regularmente seus semindrios e tornei-me mais do que seu discipulo, acredito que fui seu amigo. O conhecimento ¢ a extraordinaria inteligéncia de Gernet revelaram-me uma realida- de da Grécia antiga que eu nao conhecia. A originalidade de Gernet foi ter-se inte~ ressado pela passagem, em todos os planos, de uma pré-hist6ria da Grécia para uma civilizagaio da cidade. Como entender a transig%io que leva de um universo intelec- tual, grosso modo mitico-religioso, para outro, que Gernet chama de razdio? Nesse sentido, havia convergéncia entre os ensinamentos de Meyerson e os de Gernet, Come, naquela época, eu era militante comunista, engajado na agao, o fato de escolher um perfodo muito distante do mundo contemporaneo e que tinha, com relagio a atualidade, um cardter de completa gratuidade, dava-me certamente uma liberdade muito maior. Embora fosse comunista, eu era absolutamente categéri- co sobre uma questo sobre a qual Meyerson, aliés, nunca deixava de insistir: no que tange & pesquisa cientifica, os partidos nada tém a dizer, nao devem intervir, nfo se deve mudar uma Gnica virgula a pretexto de que a revista oficial de um partido © pede. Alids, esse problema nunca se colocou, visto que eles jamais dese- jaram publicar minha prosa, exceto uma ou duas resenhas para a revista La Pen- sée. Obvio que eu nao servia para eles nesse sentido! Embora tenha comegado com a idéia de escrever uma tese sobre a nogio de trabalho em Plato, logo entendi que havia por tras dessa andlise uma questio de psicologia histérica. Eu estava abordando 0 trabalho como uma categoria psicolégica perfeita- mente delimitada e constante: por exemplo, como os gregos conheceram, julga- ram 0 trabalho? A verdadeira questo, na verdade, era: existia o que nés chamamos de trabalho, ou seja, um comportamento, uma atitude geral oposta ao lazer, que possui um valor econdmico, que implica a idéia de que o homem é produtor e que, nessa atividade produtiva, ele estabelece relagdes sociais com os outros? Nada disso: a propria categoria era problemitica... Daf a série de andlises que fiz sobre a nogiio de trabalho procurando mostrar que 0 mesmo termo recobre uma hist6- ria das formas técnicas do trabalho como também uma histéria da ideologia do trabalho, ou seja, uma histéria do trabalho como categoria interna do homem. Em que momento 0 homem passou a sentir que trabalha e que sentido deu a isso? Fui levado a concluir 0 seguinte: certamente o homem trabalha, mas nio existe o trabalho, existem diversos tipos de trabalho muito diferentes, dependen- do se so agricolas, artesanais; € 0 homem esté longe de ter sempre vivido suas atividades de trabalho da mesma forma que nés. Por qué? Em qué? Pronto, era isto que precisava ser escrito; foi o que tentei fazer. Em meu primeiro livro, As Origens do Pensamento Grego (1962), um en- 65 ENTRE MITO E POLITICA saio filosGfico curto e sintético, procurei localizar as diferentes condigdes que per- mitiram o surgimento daquilo que chamamos de pensamento racional. A epopéia a poesia sapiencial de Hesfodo ndo obedecem aos mesmos modos de escrita de reflexio. Tentei ver como, nessa passagem, existe a0, mesmo tempo, mudan- ae continuidade. Era meu primeiro livro. Centrava-se numa mutacio intelec- tual: 0 surgimento de técnicas mentais, de formas de raciocinio, de tipos de discurso e de escritos que sio novos com relagio a uma cultura anterior. De uma certa forma, trata-se de psicologia hist6rica, nao € hist6ria! Nao sou historiador, ndo faco um trabalho de historiador, por exemplo, sobre © mundo micénico ou sobre a época arcaica, trabalho esse que pertence aos arquedlogos ou a historia dores profissionais. Eu quis fazer uma espécie de mapeamento do campo. Acabei assim, em Mito e Pensamento entre os Gregos (1965), por estudar algumas atividades mentais € psicolégicas, a comegar pelo espago com “Heéstia- Hermes: Sobre a Expressio Religiosa do Espago e do Movimento entre os Gre- gos”. A partir desse texto, refleti sobre a forma como o espago podia ser traduzido deuses: uma divindade feminina, Héstia, e uma religiosamente no par dos d divindade masculina, Hermes. Mostrei como essa dade, essa estrutura teol6gi- ca, 86 pode ser entendida no plano religioso se a relacionarmos com a problemé- tica do espago e do movimento. Ao mesmo tempo, esse par divino no se reduz ‘um modo de responder a um problema intelectual: como posso pensar 0 espago e, também, como posso vivé-lo, organizé-lo, seja 0 espaco da casa ou 0 espago externo? Nao se trata apenas de uma idéia pura, visto que essa mesma diade, que possui um valor intelectual, tem também um valor institucional e social: ela per- mite entender determinados aspectos da oposicao entre os sexos, do casamento, da filiagdo, da vida econdmica, na medida em que domina também a oposigio entre os bens guardados na casa e aqueles que “correm” pelos campos, aqueles que circulam e que ndo mais esto sob o poder de Héstia e sim de Hermes. Tra- tava-se entdo de uma questo ampla que eu levantara. E ela se prolongava: o que acontece quando o espago é pensado de outra forma, quer se trate da organizagio do espago urbano ou do que podemos chamar de espaco politico? Com a cidade, a nogiio de espago se transforma. Depois, abordei a questo do tempo, da meméria, fazendo uma pergunta se- melhante: os gregos fizeram da Meméria, Mnemésine, mie das Musas, uma di- vindade: a que corresponde, do ponto de vista das préticas mentais e do lugar de certos personagens na sociedade, essa divinizagdo da meméria? E quais seriam essas técnicas de meméria, onde chegariam, qual seria seu objeto, seu fim? Fui levado, assim, a falar dos aspectos miticos da meméria na Grécia. Uma meméria que nio visa constituir a nés mesmos como sujeitos possuidores de uma biogra- 66 A FABRICAGAO DE St fia e de uma massa de recordagies pessoais, nem mesmo, alias, organizar uma ordem do tempo, como o fard o calendirio cfvico, e sim uma mem@ria que pro- cura escapar ao tempo e a seu caminhar inexordvel. ‘A Morte nos Olos (1985) &, de certa forma, uma retomada, com uma mo- dificagdio de abordagem, da questo do espago. Em meus estudos dos anos de 1960 sobre 0 espago, eu nio levara em consideragiio todos os elementos da questio. Mostrava que, para viver, para pensar 0 espago, era preciso que existisse um centro fechado sobre si — € 0 dominio de Héstia — e , 20 mesmo tempo, que esse espago pudesse ser percorrido. Era preciso poder passar de um ponto a outro — essa é a fungo assumida por Hermes. Logo: centralidade ¢ movimento. Mas eu nao havia contado com © seguinte fato: naio existe centro sem mar- extensas, desde as fronteiras da cidade gens ou zonas periféricas cada vez mais grega até as margens barbaras e até as fronteiras do mundo. Entio, qual € 0 esta- tuto desses espagos completamente excéntricos ¢ como sio pensados, qual é seu valor religioso? Foi essa questiio que estudei quando me debrucei sobre Artemis. Na medida em que ela é, nao a divindade das margens absolutas, dos confins do mundo, e sim a fronteira da cidade grega, entre um espago cultivad € um espa- 0 é, um Estado e os Estados do lado, a cultura e a selvageria. Qual é 2 De certo modo, ela esté ao mesmo tempo proxima de Héstia e de Hermes. De Héstia porque tende a conservar as fronteiras; de Hermes porque permite ultrapassii-las. Nesse caso, eu me encontrava frente a uma espécie de “campo” a ser explorado: de que forma as grandes categorias psicolégicas se constituiram e que relagdes elas mantém umas com as outras? A essas perguntas, procurei responder utilizando 0 tinico método que conhe- 0: reler indefinidamente os textos, verificando os termos, a organizagdio da narra- tiva, seu lugar, 0s ecos internos. Quando se volta varias vezes para um texto, as questdes que nos colocamos se deslocam, ou entiio tormam-se pertinentes: de re- pente, podemos ler o texto justamente em fungaio dessas questées. Temos, entiio, a impressio de entender melhor, de ver coisas que outros, ao vé-las, nao haviam colocado no mesmo lugar, coisas as quais outros nao haviam atribuido a mesma importincia no sistema de conjunto do pensamento de Hesfodo, por exemplo. E por isso que, quando escrevo, tento passar em meu texto essa experiéncia da vida do outro que todo texto comunica em parte. Assim, realizo ao mesmo tem- po um esforco de distanciamento e de participag’o com relagiio ao texto que estu- do. Uma vez desbravado 0 terreno por meio de uma andlise do texto e de seu contexto social, procuro participar dele ¢ encontrar um modo de expressiio para fazer passar essa experiéncia. Os psic6logos insistiram muito sobre este ponto: ‘como conhecemos 0 outro? O outro é sempre incompreensfvel, ele conta coisas, 67 ENTRE MITO E POLITICA faz gestos, tem um aspecto fisico; por tras de tudo, construo minha interpretagao do outro: 0 Paulo de Pedro nao é 0 Paulo de Jtlio, e o Paulo de Pedro ou de Jilio. nao € o Paulo de Paulo, € 6bvio. Como nio acredito que exista um Deus, niio creio que exista uma transparéneia das consciéncias umas em relagio as outras. Talvez Deus veja 0 segredo dos coragées, mas 0 homem permanece sempre no nivel do simbGlico. Como, a partir de um texto, percebo signos na forma como se mani- festa a individualidade de alguém e, por meio desses signos, construo um outro que € seu suporte e que faz com que eles adquiram uma coeréncia relativa. Co- nhecer 0 outro é, em um dado momento, fazer uma espécie de aposta, simpatizar repentinamente com ele, procurar capti-lo por meio de todas as suas manifesta- g0es, seus signos, suas condutas, suas confidéncias... Essa € a condigiio humana, € nao € muito diferente quando procuramos entender um texto. Agora que estou mais velho, sinto-me mais livre com relagiio A forma tradicional dos escritos cien- tificos, dou mais de mim mesmo e procuro passar o que acreditei sentir em mim. Assim, no caso das Bacantes, tenho “meu” Dioniso que talvez niio seja exatamente © dos outros, de forma que, em certo sentido, estou presente no que escrevo. As tragédias representam um objeto privilegiado para alguém que, como eu, faz psicologia histérica. Sao obras literdrias de uma forga extraordindria, que ti- veram uma influéncia considerdvel. Para aquele que se interessa pelo que pode- mos chamar de formas psicolégicas do sujeito humano na Grécia do século V a. C., trata-se de um documento excepcional. Além disso, tratava-se de uma verda- deira instituigdo social: existe uma relagio estreita entre a vida politica, a organi- zagio civica e a organizagio da tragédia. A tragédia € 0 melhor exemplo que podemos usar para estudar © impacto do fato literdrio sobre a vida cfvica, a im- bricagiio da criagdo literéria ¢ da instituigdo politica. Os trés ancestrais, os trés patronos — ¢ isso ja era verdade para os préprios gregos — sio Esquilo, Séfocles e Euripides. Assim, a tragédia € 20 mesmo tempo uma inovagio artistica inacreditivel, uma instituigao social e o meio de colocar, no plano psicoldgico, a questo do homem ¢ de seus atos, problemas que o direito abordara no nivel dos tribunais ¢ do desenvolvimento dos processos, mas jamais expondo-os aos olhos de todos. A tragédia no coloca a questo: quem sou? e sim: 0 que vou fazer? Assim sio colocadas as questées da responsabilidade (0 agente é senhor de seus atos?), da ambigilidade do homem e de seus valores. A tragédia nio € uma resposta te6rica @ esas questées, mas uma interrogactio, um questionamento. E um questionamen- to espetacular. Daf a importincia da representagdo teatral, da cena trégica no uni- verso mental dos gregos. De fato, a tragédia marca uma mudanga considerdvel no plano das formas literdrias. Nao hd mais um poeta que canta suas historias, e 68 A FABRICAGAO DE St sim um espetéculo. Por conseguinte, a atitude do piblico, do receptor, naio é mais a mesma: 0s atores estiio no palco, pode-se ver Edipo ou Agamémnon. Coloca- se a questo da imitacao, do estilo direto. Essa mudanga operada pela tragédia caminha junto com outras mudangas — a representagiio plastica, as imagens, a estatudria —e desemboca também na reflexo filoséfica em Plato: qual é 0 esta- tuto do ficticio, 0 que € uma imagem? Assim, a tragédia é uma espécie de ponto focal no qual toda uma série de dimensdes encontram-se ligadas, € 0 exemplo pri- vilegiado do que Marcel Mauss chamava de “fenémeno social total”, um fend- meno em que todas as dimensdes da vida coletiva encontram-se condensadas: 0 social, 0 politico, o estético, 0 imagindrio. Procurei revelar em todos os meus trabalhos a psicologia histérica do mundo antigo. No se trata exatamente de uma inovacao: Fraenkel e Snell comegaram an- tes de mim. Mas separo-me deles; em meu estudo, trago questdes de sociologia — procuro ligar tal ou qual fenémeno as condigGes sociais: o que € 0 transe, o que é um thiasos, © que € 0 dionisismo na Atenas do século V? © questdes de psicologia — interrogo-me sobre o estatuto da meméria, das imagens, do desejo, do individuo. Foi assim que abordei a tragédia grega: com essa dupla série de interrogagdes prévias. Outra questo que se encontra no cere de muitos de meus estudos € 0 pro- blema da pessoa, do sujeito, do individuo, do eu. Trata-se de uma questo muito complexa que eu havia abordado no plano religioso com os “Aspectos da Pessoa na Religidio Grega”!, lembrando que o que chamamos de “pessoa” nao é central na religido grega. O problema nao € o da relag’o do individuo com um deus que € ele mesmo pessoal, a religidio esté centrada de outra forma. Mas é verdade tam- bém que existe um individuo desde a época arcaica: Aquiles, por exemplo, é um individuo. Assim sendo, a nogio de individuo se destaca nitidamente das insti- tuigdes da cidade, do direito, da tragédia. Em toda uma série de planos, percebe- mos que as instituigdes sociais atribuem ao individuo um lugar cada vez maior. Ao individuo, mas talvez no ao eu ou a pessoa. E preciso distinguir essas dife- rentes nogdes €, com uma anélise, mostrar 0 que é relativo ao individuo — que serd expresso pela biografia — ¢ o que € relativo ao que chamo de sujeito — quan- do 0 individuo enuncia a si mesmo na primeira pessoa, quando diz “eu” para, em um discurso, comunicar ao outro determinados aspectos de sua propria individua- lidade, que podem ser muito diversos. O sujeito nao é uma categoria Gnica. Nao € a mesma coisa quando o “eu” encontra-se em um epitafio ou quando Homero ou Hesfodo dizem “eu”. E diferente também quando Deméstenes ou Isécrates, mum discurso para defender uma causa, colocam a si mesmos em cena ou quando 1. Em Mythe et Pensée che: les Grees, Paris, 1965 (reed. 1994). 69 ENTRE MITO E POLITICA historiadores, como Herédoto ou Tucfdides, intervém para dar sua opiniio ou manifestar suas dividas. Mas existe o “eu” da lirica grega que me parece ter um caréter particular- mente interessante, na medida em que expressa o surgimento de uma forma de sensibilidade que o sujeito atribui a si mesmo (Alceu, Safo e tantos outros) e na qual ele comunica a um circulo estreito de amigos suas emogGes, suas saudades, seus desejos, seus prazeres, ou seja, uma parte que, nele, pela comunicagiio poé- tica, aparece como essencial e sobre a qual ele nao tem controle, diante da qual est desarmado. A organizagao mental e psiquica do grego é tal que ele desconhece total- mente a introspecgao, ele esti inteiramente orientado para o exterior. Em nenhum momento 0 grego da época clissica pratica 0 que Foucault chama de um trabalho de si sobre si mesmo, ou entio trata-se de um trabalho de tipo platénico, pura- mente noético, que consiste em se tornar puro pensamento. Trata-se da idéia, que Platéo toma emprestado das tradigGes pitagéricas ou drficas, segundo a qual 0 verdadeiro Sécrates, 0 verdadeiro Plato, nao é seu corpo, e sim sua alma — a psykhé: a psykhé de Sécrates é 0 verdadeiro Sécrates. Essa idéia tera conseqiién- cias decisivas do ponto de vista da descoberta das forgas psicolégicas, do traba- Iho de si sobre si mesmo. Mas, se a alma é Sécrates, ela certamente nao é a alma de Sécrates. Nao pode sé-lo. Prova disso € que o némero de almas é fixo, segun- do Plato; por conseguinte, cada individuo nio possui a sua, encontra uma que jé serviu € que servira a outro. Existe exatamente 0 mesmo nimero de almas quan- to 0 de astros no céu, ¢ 0 problema ¢ ir reunir-se a seu astro e ndio fazer a desco- berta e a “fabricagio” de si. Assim, para libertar esse dation que € a alma, sera preciso entrar em con- flito com as outras camadas do sujeito que nao si Sécrates aos olhos de Sécra- tes, ou seja, que esto ligadas a seu corpo ~ sua coragem, seus apetites. Entio, no didilogo da psykhé verdadeira, da alma noética com essas outras partes, o indi- viduo vai comegar a trabalhar sobre si mesmo: a fazer da introspecgaio um exame de consciéneia, a praticar o dominio de si, a fazer um esforgo de rememoragio. Todo esse trabalho, como Foucault mostrou muito bem, nao € um trabalho de fuga para fora do mundo, ele s6 é compreensfvel no contexto da cidade grega. Trata- se de aplicar a si mesmo as mesmas normas e as mesmas concepgdes que aplica~ mos aos outros. E porque quero ser um homem livre, porque 0 ideal do cidadaio € nao ser escravo de alguém, que procuro nio ser escravo de mim mesmo. Como diz Foucault, 0 trabalho sobre si é a mesma coisa que a paidefa para tornar-se um bom cidadao. Hé nisso toda uma hist6ria da interioridade e da unicidade do eu que ainda esta por se fazer. 20 7. 4 MORTE NOS OLHOS* Didlogo com Pierre Kahn A ligdo dos gregos P. KAHN: — O senhor apresenta seu estudo sobre Gorg6, a Gérgona Medu- sa, na perspectiva de uma “grande lig%io” que os gregos nos dio sobre a forma como sua cultura, da qual somos tributérios, organizava a tolerancia. A toleran- cia, ou seja, levar em conta o que se apresenta como o heterogéneo, ou mesmo a extrema alteridade para os participantes daquela cultura. senhor indica também que a tentagio de se inspirar no modelo grego pode ser grande, mas que essa nostalgia € va: o politefsmo grego nao pode ser trans- posto para os dias de hoje. Entio qual seria a licio que os gregos oferecem para nossa necessidade de tradigdo e de reflexdio? O senhor poderia explicitar seu pensamento como antro- p6logo e historiador das religides? Seu trabalho efetuou-se durante a segunda metade de um século que revelou a fragilidade muito grande de uma tolerancia essencialmente fundada em posiges racionalistas. A ligdo dos gregos no seria apenas dar uma forma 2quilo que o ser humano encontra dentro de sie fora de si assim como 0 absolutamente outro s6 pode existir em uma experiéncia religiosa ou, pelo menos, em uma experiéncia que apela para uma intervengio da organi- zagio do sagrado? J.P. VERNANT: ~ Em que os gregos poderiam nos dar uma grande ligio? Quando falo do modelo grego, niio quero dizer ~ e o senhor entendeu mui- * ‘Titulo do livro de J-P. Vernant publicado em Paris em 1985 ENTRE MITO E POLITICA to bem — que os antigos constituem para mim o modelo, o ideal de sociedade, de homem, de cultura que deverfamos, para a salvagiio do Ocidente, nos esforgar em imitar. Entendo modelo no sentido em que construtores de automéveis falam de um modelo de carro, ou entdo quando os cientistas falam de um modelo sobre 0 qual trabalhar para testar uma hipétese. O mundo grego esté bastante longe de nés para que possamos encaré-lo, se me permite dizer, com distanciamento, nos tragos fundamentais que dio aquele conjunto, com suas tensdes, seus equilibrios mais ou menos frdgeis ou durdveis, das realidades técnicas as crengas religiosas, uma relativa coeréncia, que fazem dele para nés uma civilizagiio bem definida com um estilo de vida préprio. E esse modelo, construfdo e continuamente modificado pelos historiadores a partir dos documentos de que dispdem, que interrogo para colocar-Ihe uma questiio cujo alcance geral do ponto de vista da antropologia, mas cuja urgén- cia impds-se a mim de forma muito evidente devido aos acontecimentos que marcaram minha geragdo € das agitagdes que ainda hoje se fazem sentir na so- ciedade francesa. Como um grupo humano, preocupado com sua permanéncia € com sua identidade, aborda a questio do Outro, em suas diversas formas, desde © homem outro, diferente de si, até o outro do homem, o absolutamente outro, sobre o qual somos impotentes para dizer e pensar, que chamamos de morte, de nada ou de caos? Ora, pareceu-me, olhando para os gregos, que no mesmo lugar onde, como entre eles, a humanidade do homem encontra-se definida pelo per- tencimento a uma vida politica que é 0 privilégio exclusivo dos helenos e a mar- ca de sua superioridade, no lugar onde, por conseguinte, birbaros, estrangeiros, escravos, mulheres € jovens se véem jogados para as margens da humanidade, as priticas institucionais ¢ as crengas sempre encontram um meio de reintegrar de alguma forma aqueles que elas pareciam ter de excluir radicalmente. O afasta- mento do outro nao possui esse cardter de negagaio apaixonada, de 6dio fanatico, que proibiria qualquer contato ou comércio com ele, e mesmo, por meio de pro- cedimentos regulares, sua recepgiio e sua presenga dentro do grupo. Falei de to- lerdncia nesse sentido, Trata-se de uma atitude que me parece comportar entre os gregos uma dimensao propriamente racional, uma distincia de si, uma abertura critica. Na forma como Herédoto pesquisa sobre os povos birbaros, hi curiosi- dade intelectual e, com relagzo a muitos deles, como os egipcios ou os eti6pios, admiragdo por alguns de seus costumes comparados aos dos gregos. Mas dois pontos devem ser sublinhados, pois marcam, quanto a tolerancia, a diferenga entre 0 mundo antigo e o nosso. Primeiro, a cidade grega nao é da mesma ordem que a nacio contemporinea. Depois, a religiio grega constitui um fendmeno muito diferente das grandes religides de hoje. O politefsmo grego nio a A MORTE NOS OLHOS 6 uma religido do livro: nao comporta nem Igreja, nem clero, nem revelagao, nem texto sagrado que define 0 credo ao qual todo fiel deve aderir se quiser obter a salvagdo. A crenga nao tem caréter dogmético nem pretensio universalista. Nes- se sentido, uma certa forma de tolerdncia esta inscrita no cerne de uma religiio que reveste essencialmente a forma de um culto civico e politico. Todas as prati- cas sociais na familia e no Estado, todos os gestos tanto na vida cotidiana de cada um quanto na solenidade das grandes festas comuns tém uma dimensio religiosa. Pode-se dizer que a religiio esti presente em todos 0s momentos € em todos os atos da vida coletiva, que a existéncia social reveste também a forma da experiéncia religiosa. Quando analiso o estatuto e as fungdes de Artemis, de Dioniso, de Gor- 26, estou fazendo uma pesquisa sobre a cidade grega, seus modos de funciona- mento, seus quadros mentais. O caso de Gorg6, como expresso do absolutamente outro, nao constitui uma excegdo segundo esse ponto de vista. Os gregos estabe- leceram diversas politicas com relagiio & morte para civilizé-la, integré-la na vida social: ritual dos funerais, sobrevivéncia como gléria na meméria coletiva por meio da poesia oral, culto herdico. Eles construfram para os defuntos um modo parti- cular de continuar a existir, tendo a0 mesmo tempo desaparecido, uma espécie de presenga-auséncia, dotando-os do que podemos chamar de estatuto social dos mor- tos que, no caso de alguns, confere-lhes uma importancia de primeiro plano em toda a duragdo da existéncia comum do grupo. Mas, a0 mesmo tempo em que recuperavam assim os mortos como coletividade, os gregos expressavam pela m cara de Gorgé 0 que a morte comporta de estranho com relagiio a0 que pode ser feito ou dito sobre ela, 0 “resto” frente ao qual sé podemos permanecer calados € paralisados: fascinados, transformados em pedra. Musdo sagrada, ilusdo profana P. KAHN: - O senhor relaciona Gorgé a Artemis e Dioniso como deuses de mascara ou que usam méscara, A mascara é diferente de uma imagem antro- pomérfica. A miscara evoca ou convoca tal ou qual modalidade da alteridade que a representagiio domestica ou permite usar. A partir daf, o senhor diferencia as fungdes desses deuses de mascara. Para fazé-lo, 0 senhor retoma uma distingzio que propds hé vinte e cinco anos. O se- nhor distingue, de um lado, uma alteridade horizontal que os jovens gregos ex- ploravam sob os auspicios de Artemis: visto que sua fungio era articular diferentes estigios da animalidade a civilizagio. E, de outro lado, 0 senhor diferencia alteri- dades verticais que puxam o individuo para baixo, para o terrivel, 0 caos (neste 73 ENTRE MITO E POLITICA caso, encontro de Gorg6), ou para 0 alto, para a fusio extitica com o divino (nes- te caso, encontro de Dioniso). Mas o senhor nao retoma o que indicava em Mito e Pensamento entre os Gregos, no qual 0 hierés, 0 sagrado da religiao civica, parecia opor-se a hésios, a santidade das praticas dionisfacas, assim como a sophrosyné opunha-se 4 ma- ‘nia como o controle de si na ordem sociorreligiosa a possessio pelo deus que abole as barreiras do mundo organizado. O senhor escrevia que, na experiéncia dioni- sfaca, a ordem politico-religiosa se revela “como uma simples ilusio, sem valor religioso”. E que “a libertacdo do hierés pode ser feita, de alguma forma, indo para baixo, para o lado do profano, ou para 0 alto, no sentido de uma identifica ao com 0 divino”. Por que motivos o senhor nio manteve essa orientagio de sua pesquisa, que teria localizado as experiéncias feitas sob os auspicios de Gorgé em uma pers- Pectiva profana? Seri por causa da ambigiidade inerente a uma nogio de profa- no, que € profano em relagao a uma sagracao cfvica, mas permanece totalmente enredada em um horizonte religioso? © senhor estima hoje que nao houve deci- didamente lugar na Grécia arcaica ou antiga para uma nio-crenga ou para uma outra crenga, que teria considerado as crengas oficiais sociais e religiosas como provenientes da phantasia da ilusio? JP. VERNANT: — Quando situei Dioniso e Gorgé sobre um mesmo eixo vertical para op6-los como 0 alto e 0 baixo, a fustio com 0 divino e a confusiio do Caos, ndo pensava conforme o que havia escrito vinte anos antes sobre o duplo valor de hdsios segundo traduz, com relagio ao sagrado, uma libertago em dire- $40 a0 profano ou, ao contrério, em diregio ao totalmente santo, na identificago do homem ao divino. Mas, pensando bem nisso, nao creio que os dois esquemas, apesar de seu paralclismo, possam ser superpostos. No caso de hdsios, tratava-se de mostrar que, na Grécia, mais do que uma oposig%io marcada entre © profano € © sagrado — dois setores entre os quais 0 corte € nitido hoje -, encontramos graus € formas maltiplas de sagrado. Ao sagrado definido por seu pertencimento pleno a esfera divina: os templos, os objetos de culto, as estétuas dos deuses, os bens € 0s lugares que Ihes so reservados, opde-se 0 que é diretamente utilizivel pelos homens, de que eles podem livremente dispor, néio tanto porque se trata de rea- Jidades em si mesmas profanas, e sim porque os humanos puseram-se, com rela- $40 a elas, em dia com os deuses € que as usam conforme as normas religiosas estabelecidas. Os /hierd opdem-se aos hésia, como o que os deuses possuem ex- clusivamente quilo que deixam para os mortais para tornar possivel uma vida Justa ¢ piedosa. Assim, 0 hésion € 0 que escapa as restrigdes que preservam 0 74 ‘A MORTE NOS OLHOS carter separado do hierén, colocando-o fora da experiéncia humana cotidiana. Nesse sentido, 0 hésion define muito bem o que se encontra livre de uma “con- sagragio” propria dos deuses. Mas hésios tem ainda outro sentido. Ele pode, nos meios de seita ¢ na religido dionisfaca, designar 0 estado excepcional de santida- de que certas priticas de ascese individual ou de éxtase coletivo permitem atin- gir, dando aqueles que a ele esti submetidos o privilégio, momentineo ou duradouro, de se tornarem homens divinos, Puros, hagnof. Quando se apaga assim, entre homens e deuses, a fronteira que 0 termo hi rés expressa, todo 0 sistema cultual de uma religiio civiea que visa manter estrita- mente a distincia entre mortais e imortais e fazer respeitar sua separagio radical, aparece, para aquele que viveu a experiéncia de uma fusio com 0 divino, como carente de verdadeiro valor religioso. Para 0 homem divino, santo € puro, a liber- taco do sagrado, no sentido usual, opera-se ultrapassando-o pelo allo, niio esca- pando-Ihe por baixo, pelo lado da livre disposi¢ao daquilo que os deuses deixam aos homens como sendo sua parte. Gorg6 nao tem lugar nesse esquema. Sua correlagio com Dioniso nfo é da ordem do “inteiramente profano” correspondente ao “totalmente santo”, porque ambos, juntos, escapam dos limites do “sagrado” comum. Em sua ligagdo com o deus Dioniso, que € a0 mesmo tempo o mais terrivel e o mais doce, que ora nos macula e nos destréi, ora nos salva e purifica, Gorg6 traduz outro aspecto do sa- grado: 0 sagrado absolutamente “proibido”, em sua ambivaléncia — que a dupla agés-hdgos exprime —, um sagrado tio perfeitamente puro, to afastado da vida humana que pode surgir como horrivel e assustador: qualquer contato com ele nos entrega A macula irremedivel ou nos arranca a condigio humana. A morte é um sagrado desse tipo. Perséfone € uma divindade hagné, pura; mas ndo se pode entrar em contato com ela, nao se pode abordé-la como rainha do mundo infer- nal sem, a0 mesmo tempo, ser arrancado ao estado de ser vivo. Gorg6 permane- ce, entio, presa em um horizonte religioso e, de forma mais geral, nao creio que 08 antigos tenham pensado a morte em uma perspectiva profana, mesmo se a opinido comum sobre essa questio nao fazia referéncia 4 sobrevivéncia de uma alma imortal. Isso significaria que nao havia lugar para uma ndo-crenga? Para responder a esta pergunta, precisamos primeiro concordar com 0 que entendemos como cren- a. O estatuto do “crer” no € 0 mesmo em uma religio dogmitica em que se pode definir heréticos, incrédulos, agnésticos, ateus, € em cultos nos quais, no sendo a nogio de divino objeto de nenhum credo obrigat6rio, a margem de interpretagio deixada & iniciativa de cada um, frente a uma tradigdo lendéria, ela mesmo variada e flutuante, € muito ampla. A impiedade nao se refere a um afastamento no que se 75 ENTRE MITO E POLITICA cré, e sim a uma recusa ou a uma anomalia no que se faz, na forma de cumprir os ritos. Ora, a pritica cultual esté a tal ponto integrada a vida cfvica que rejeité-la, para um grego, seria deixar de ser o que 6, assim como nfo falar mais sua Iingua ou nilo viver mais como cidadio livre. Mas, nesse contexto, muitos rejeitavam como fabulas muitas das narrativas contadas pelos mitos. Os mais criticos podiam afir- mar, sem ser contudo ateus, como Protdgoras, que nao se pode nada dizer nem co- nhecer sobre os deuses. A néio-crenga, atefsmo constituem a outra face das religides que, ao repousarem sobre um dogma, atribuem ao contetido intelectual da crenga o estatuto de verdade absoluta que nao podia ser criticada ou discutida. Gorgé-Baubé, ou Gorgé e a sexualidade P. KAHN: ~ Sua anilise sobre a dimensio sexual de Gorgé forga uma atengiio profunda. Isso porque 0 senhor faz aparecer essa dimensio no interior de uma rede de equivaléncias ¢ de contrastes por um lado explicitos € por outro sim- plesmente sugeridos. senhor cita primeiro 0 acordo secreto, as “conivéncias” entre a Gérgona € 08 Silenos ou Sétiros, e as semelhangas, as “afinidades” entre esses persona- gens, respectivamente, com 0 sexo feminino e com o sexo masculino. Nesse mo- mento, 0 senhor faz. surgir 0 personagem de Baub6, 0 modo obsceno como ela pOs um fim, segundo os textos, ao luto de Deméter, as estranhas estatuetas que a representa. Uma dimensio de Gorg6 seria entio, como Baubé, a de ser “o sexo transformado em mascara”. Assim, Gorgé ocuparia do lado feminino uma fun- so simétrica A dos Sétiros do lado masculino: representar 0 que € assustador e grotesco no sexual, 0 que em todo caso é inquietante. Essa simetria entre Gorgé e 0s Sitiros & a coisa mais dificil de entender. Apa- rentemente, trata-se de uma simetria de funciio: representar 0 sexual no que tem de risivel, de horrivel e de fascinante nos dois pélos opostos do feminino e do masculino. Mas por que, entre os textos que falam de Baubé, o senhor privilegia os Mimos, em que Herondas designa pelo nome masculino baubén um simulacro félico de couro? Deste modo, sua argumentago niio comportaria a idéia de uma interferéncia entre Gorg6 e os Sitiros por sua referéncia comum, via Baubé e 0 baubén, a0 falo do qual seriam respectivamente a representagio da falta angus- tiante e da permanéncia ilus6ria ¢ risivel? Isso me leva a perguntar-Ihe 0 que o senhor pensa das interpretagdes que fa- zem de Baubé um personagem falico. Além disso, 0 senhor poderia explicitar 0 que os gregos consideravam e sentiam como libertador na existéncia de Baubs? 76 A MORTE NOS OLHOS Seria, de uma mulher (Baub6) para outra (Deméter), apenas o desvendamento obs- ceno de seu sexo? J.-P. VERNANT: - Seja qual for a relago entre Baubé e o baubén — rela- Ho esta que aceito mas que outros rejeitam -, nao creio que essa figura evoque por sua mimica, quando descobre seu sexo para fazer Deméter rir, a “falta an- gustiante” do falo. Por qué? Porque nada nos textos me parece ir nesse sentido ou justificar a interpretagio de Baubé como personagem fiélico. Maurice Olen- der publicou sobre 0 conjunto da questo Baubé um estudo exaustivo! que, se nos limitarmos aos documentos gregos e latinos, justifica essa hipstese. Falo ou nao, 0 que hé de “libertador” na exibigdo do sexo e, no caso de Baubé, do sexo ferninino? Coloca-se aqui toda a questio do rito ritual. A exibi- glo do que normalmente deve permanecer escondido jé possui um valor de vio- lagdio do interdito. Mas a violagio se produz em tais condigées que, em vez de provocar terriveis consequéncias, ela desarma o perigo e faz cessar a angdstia: ico no Momento exato em que evoca, como o bu- ela “minimiza” de fato 0 and fao ritual, com suas inconveniéncias escandalosas, suas injirias langadas ao rei; em vez de solapar a ordem, a majestade, o poder, ela os reforga. E porque 0 bu- fio € um personagem marginal, fora da sociedade. Quando ele diz uma verdade que no deve ser dita, ganha-se de todo os lados: a verdade é formulada mas ela no pesa socialmente, néio conta. Talvez. seja a mesma coisa com Baubé. A tradi- do a apresenta como uma velha, uma ama que conversa a torto ea direito. Ela fala de tudo e sobre tudo, mas de forma va. Sua boca nao diz nada que tenha valor, ela esté gagd. Como observou Elena Cassin, as partes sexuais que essa velha exibe, em vez de escondé-las, nao servem mais para nada, nem para dar & luz, nem para fazer amor: uma derrisio, uma palhagada de sexo. Essa € uma das leituras que podemos fazer. Admito que possam existir outras. Nao so incompativeis. Esse tipo de hist6ria comporta diversos sentidos, diver- sos estratos de interpretagio. O traseiro de Baubs € polissémico. Os efeitos de cabeleira P. KAHN: — Um dos méritos de seu livro, e nfio dos menores, € incitar os psicanalistas a reconsiderar a perspectiva segundo a qual costumam encarar Me- 1. Revue de UHistoire des Religions, 985, pp. 3-55; vejam também o livro deste autor sobre Baubs que seri publicado em breve: 7 ENTRE MITO E POLITICA dusa. Quando Freud fala sobre ela, em 1922, ele o faz simplesmente sob 0 angu- Jo do horror inerente a0 complexo de castraco. Isso o leva a centrar sua aborda- gem no degolamento de Medusa, que € menor em seu livro, porque o senhor parece remeté-la mais ao mito de Perseu. Além disso, Freud ressalta as serpentes da cabeleira da Gérgona que, a multiplicar os simbolos do pénis, atenuam o horror de sua auséncia, mas mostram bem, na opiniio do psicanalista, por sua multipli- cidade, a inscrigdo do mito no universo do complexe de castragio, O tema da castragdo nao € tratado como tal em seu trabalho. Mas nao me Parece que seja forgar demais seu texto dizer que ele tem seu lugar, lateralmente, quando o senhor fala das relagdes entre Gorgé ¢ a “extirpagio”. E interessante localizar dois tempos bem distintos em seu desenvolvimento. Primeiro, 0 senhor evoca 0 contexto guerreiro em que a figura de Gorgé en- Contra um de seus campos de aplicagio: o furor guerreiro do combatente ¢ o ter- ror que ele inspira passam, entre outros, pelo que 0 senhor chama de “efeitos de cabeleira”. Pela cabeleira, 0 guerreiro aproxima-se da animalidade, das serpen- tes ou dos cavalos, cujas mordidas sio terriveis, pois podem fazer suas vitimas Passar para a regidio dos mortos. A cabeleira de réptil ou de cavalo € entio um atributo da Gérgona por ser pavoroso, ou seja, significative de uma viagem para a terra do Pavor. Em outro momento de seu livro, 0 senhor atribui ao destino da cabeleira uma significagdo que pode fazer pensar na castracio. O senhor lembra que era um cos- tume em Esparta raspar a cabega da jovem noiva. Fazendo-o, segundo o senhor, “extirpa-se dela o que pode haver de masculo e de guerreiro em sua feminilidade [...]. Evita-se introduzir na casa, sob a mascara da noiva, 0 rosto de Gorgs”. No entanto, Freud, para sustentar sua interpretagao, remete a forte homos- sexualidade da cultura grega. Isso torna Iégico, segundo ele, que a figurago por exceléncia do pavor tenha sido, entre os gregos, uma figura da castragdo femini- na. E notdvel que, em seu estudo, o senhor nao indique nada que faga pensar que exista, em sua opinidio, alguma relagio entre Gorg6 e a homossexualidade. senhor poderia explicitar 0 que pensa da interpretagio freudiana do mito, Go diferente da sua? No final de seu texto, Freud formula uma restrigo: sua in- terpretagéio s6 poderd ser sustentada seriamente, escreve, a partir de uma historia do simbolo que € a Medusa na mitologia grega, histéria que ele nio faz. A partir desse exemplo, no qual, segundo 0 senhor, 0 historiador e 0 antropélogo sepa- ram-se do psicanalista, em que podem eventualmente encontrar-se? J.-P. VERNANT: ~ Para dizer a verdade, 0 tema da castracio jamais im- pés-se a mim durante minha pesquisa. Gorgé € uma cabeca, um rosto, um 78 A MORTE NOS OLHOS présopon. A lenda de Perseu serve para explicar por que esse Poder consiste in- teiramente, como os Praxidékai, em uma simples cabeca. O heréi, apés haver decapitado Medusa, roubou sua cabega, usou-a para petrificar seus inimigos e finalmente entregou-a a Atena que a transformou em um instrumento de morte, a Ggide. Mas nao me parece que o degolamento seja igual 4 castragiio. A cabega no é um falo. Bem sei que essa cabeca est arrepiada de serpentes. Mas os va- lores simbélicos da serpente ~ infernais ¢ ctdnicas — no podem se reduzir ao péni Em geral, quando os gregos, em seu conjunto de imagens, querem evocar um falo, eles o fazem de forma mais aberta, aumentando-o e, quando usam metifo- ras, recorrem nao a serpente, mas ao passaro-falo. Terei contudo reintroduzido essa castragio de forma lateral (inconsciente- mente) em dois momentos? Primeiro, marcando © lugar dos “efeitos de cabelei- ra” na mimica que, no rosto do guerreiro homem, provoca 6 terror entre os inimigos durante 0 combate; depois, indicando que, ao raspar a eabega da jovem noiva, no dia de suas ndpcias, privando-a da longa cabeleira flutuante das virgens, procu- ra-se “extrair” dela © que ela ainda pode ter, em sua feminilidade, de masculo e de guerreiro. Nao seria uma forma, para mim, de reconhecer, sem sabé-lo ou desejé-lo, os quatro pontos seguintes? 1. Longa cabeleira flutuante = virilidade intensa = falo. 2. Cortar os cabelos = feminilizar pela extragao do viril = castrar. 3. Abundancia serpentina e assustadora dos cabelos de Medusa = agressivi- dade falica. 4. Decapitagiio de Medusa = castragiio do monstro feminino. Se me colocarem a pergunta dessa forma simples ¢ brutal, minha resposta seré do mesmo porte: niio. E os motivos que posso dar para explicar minha ex- trema reserva quanto a essa série de identificagbes em cadeia talvez respondam a questo mais geral que o senhor levantou sobre © que separa o antropélogo his- toriador do psicanalista, em sua abordagem dos fatos da cultura. O psicanalista tem um modelo em mente, que vem de sua formagio e de sua pritica profissio- nais. O antropélogo também tem um, mas desconfia dele por profissio, porque adquitiu em seu proprio trabalho a convicgao de que existe uma relatividade dos fendmenos culturais € que cada civilizagio, local e temporalmente situada, com- porta especificidades que no permitem sua assimilagio pura e simples aquela na qual vivemos ¢ que nos parece natural. E por isso que ele desconfia de toda for- ma de interpretagio simbélica imediata e universal. Em vez de aplicar modelos simbélicos que teriam valor de arquétipos, ele constréi a cada vez seu modelo 79 ENTRE MITO E POLITICA interpretativo reunindo as diversas caracteristicas de seu material documental de forma a situé-las umas em relago com as outras segundo uma configuragio em que cada uma encontra seu lugar articulando-se a um conjunto significativo. Vamos retomar os quatro pontos mencionados acima: 1. O efeito de cabeleira s6 faz sentido situado em seu contexto: durante 0 combate, associado a careta, 2 gesticulacdo, ao brilho das armas, aos gritos. Toda essa mimica guerreira € expresso da ssa, a raiva furiosa de que um certo tipo de guerreiro é possufdo e cuja visto congela de painico aqueles que devem com- baté-lo. O que € “encenado” niio € a virilidade, 0 sexo masculino em geral, mas essa forma muito particular de comportamento masculino propria do combatente quando ele é invadido por um poder de morte que 0 assimila a um lobo ou a. um cio “raivoso”. Nessa raiva demente e assassina do guerreiro, o falo nio esta em primeiro plano; néo é ele que dé a chave que permite entender o lugar € 0 sen- tido daquele rosto desfigurado pelo furor no campo de batalha (mesmo se acon- tecer de, em algum texto ou imagem, aparecer uma pontinha do falo; como eu mesmo observei marcando, em outro estudo, os cruzamentos que as vezes apare- cem entre luta amorosa e combate guerreiro). Essa dimensiio € menor com rela- cdo aos temas fundamentais do Pavor, do Horror, da Morte, que tém um alcance maior ¢ dos quais 0 sexo constitui apenas um componente entre tantos outros. Assim, nao posso identificar efeitos de cabeleira, virilidade e falo sem desnatu- rar ou empobrecer os fatos. 2. Quando se raspam os cabelos da jovem esposa, no seria uma forma de castracdo? Primeiro, trata-se de uma prética particular de Esparta. Assim, é pre- ciso, para entendé-a, situé-la no contexto das instituigées lacedem@nias. Até que tenham passado a fronteira da adolescéncia, os jovens rapazes, reunidos por fai- xa etdria € submetidos as provas inicidticas do agogé, usam a cabega raspada, assim como ficam sujos, malvestidos, descalgos. Nesse sentido, permanecem, em Sua vestimenta, na aparéncia externa que manifesta seu estatuto de jovens, pré- ximos dos hilotas. Estes, de fato, sio forcados, para distinguir-se dos “Iguais”, dos verdadeiros espartanos, a usar uma roupa servil, nao tecida (uma pele de animal), e a cobrir a cabega com uma boina caracterfstica, que os designa pelo que sao: inferiores, exteriores & cidade grega. Os cidadios adultos usam cabelos longos — ao contrario da cabega raspada dos jovens — sem chapéu, a diferenca da boina obrigatéria dos hilotas. No entanto, os cidadiios de Esparta que se deson- raram fugindo do combate sio excluidos dos direitos civicos e formam a catego- ria desprezivel dos “tremedores”. Como os jovens ¢ os hilotas, os tremedores devem exibir uma vestimenta indigna e suja, roupas escuras e remendadas; além so A MORTE NOS OLHOS disso, forcados a raspar somente a metade da barba, apresentam um rosto meio imberbe, meio barbudo, que os mantém igualmente a distancia dos cidadiios adultos, barbeados, e dos velhos, completamente barbudos, ao mesmo tempo em que ressaltam pelo ridiculo dessa assimetria tudo 0 que sua condigio de “cida- dios sem sé-lo” comporta de desequilibrado, de manco. £ evidentemente com relagio a esse conjunto coerente de marcas sociais, poliss€micas por certo, mas centradas na categoria dos timaé, das honrarias reservadas apenas aos Iguais (ho- mens, adultos, cidadios), que se deve interrogar a pritica de raspar os cabelos da jovem esposa. Em sua primeira infincia, meninas € meninos ainda nao sio completamente distintos; a fronteira dos sexos entre eles permanece flutuante. O treinamento visa fazer os pequenos crescerem direito até 0 momento em que cada sexo assumird, conforme os modelos sociais, as fungées que lhe sao pré- prias e que o diferenciam sem ambiglidade do outro. Os jovens rapazes, duran- te 0 agagé, tem a cabeca raspada; as mogas, durante © mesmo perfodo, usam uma cabeleira solta e flutuante. Isso nao significa, para os rapazes, em contraste com ‘as mogas, uma castrac&io simbélica, assim como a barba dos tremedores meio cortada n&o tem um valor de semicastragao. A cabeca raspada para os adoles- centes é a marca de seu estatuto ainda marginal, a meio caminho entre os hilo- tas servis e os lacedemOnios de pleno direito. A cabeleira flutuante para as adolescentes significa que aquelas “potrinhas” continuam selvagens, que ainda niio se despojaram da alteridade que a moga guarda dentro de si enquanto a impo- sigdo do jugo conjugal ainda nao Ihe conferiu, domesticando-a, sua identidade social de matrona. Ao se raspar a cabega da esposa, no dia das ntipcias: a) Ela é demarcada de seu estado anterior de parthénos, de virgem selva- gem de cabeleira flutuante. b) Ela é demareada a0 mesmo tempo de seu esposo, no menos cabeludo em sua condigao de adulto do que o era a moga antes de seu casamento. c) Talvez também, vestindo-Ihe sapatos de homem no momento em que se raspa sua cabega, confundam-se simbolicamente as fronteiras entre os dois sexos que vio ser, pelo casamento, ao mesmo tempo bem separados e aproximados: nem confundidos como na infiincia, nem dedicados & separago sem mistura, como no caso da virgem-parthénos, nem entregues ao caos sexual da violencia, do rapto, das unides confusas no acaso dos encontros. Doravante, os dois sexos vio se fi- xar 8 boa distancia um do outro. 3. A propria forma como conduzo minha anélise, como 0 conjunto dos fa- tos que reno em um mesmo campo interpretativo para tentar entender os diver- sos aspectos da face de Gorg6, leva-me a afastar, por causa de sua ndio-pertinéncia no contexto, o valor féilico dos cabelos serpentinos de Medusa. 81 ENTRE MITO E POLITICA 4. Por todos esses motivos, afasto também, como jé indiquei, a assimilagaio da decapitagdio de Medusa a uma castragio disfargada. Sera preciso, nessas condigdes, explicar-me sobre o fato de nao deixar su- por nenhuma relagio direta entre a homossexualidade e a personagem de Gorg6? Nao vejo nada que me obrigue a isso nos elementos levantados pelo meu traba- Iho. E acima de tudo, como antropslogo, nao creio que exista uma categoria ge- ral da homossexualidade. A sociedade grega € uma sociedade “masculina”, mas ela o € de forma diferente da nossa. A pederastia reveste tragos especificos que diversos livros recentes esclareceram muito bem (em particular os de K. J. Do- ver e de B. Sergent) ¢ cujas condigdes, caracteristicas essenciais ¢ orientagdes, Foucault analisou muito bem, mostrando como ela se articula & concepgio grega do erético, que ela permite problematizar. Remeto 0 leitor ao capitulo IV de L'usage des plaisirs. Nao tenho nada a acrescentar. Ao fim deste longo comentario, talvez se entenda mais claramente que en- tre o antropélogo ¢ o psicanalista a diferenga esté no fato de que, em sua aborda- gem dos fatos de cultura, o primeiro se preocupa com 0 contexto social e com a dimensiio histérica. A inguietante estranheza P. KAHN: - 0 senhor caracteriza como inquietante estranheza diversas ve- zes 08 efeitos produzidos pela mascara de Gorg6. Ao fazé-lo, ¢ esses so 0s tre- chos mais impressionantes de seu livro, 0 senhor faz pensar no que poderia ser uma inquietante estranheza nessa cultura grega em que 0 terror que os mortos ins- piram nao era recalcado ou sublimado como tende a sé-lo para nés hoje. Mas 0 senhor vai muito mais longe quando explicita o que estava em jogo para os gregos com Gorgé no fenémeno do olhar, ¢ quando o senhor desenvolve que no é apenas a relagio com os mortos, mas a relagio com a morte que era dramatizada nesse confronto. Gorgé € uma encarnagio, uma figuragio da alteri- dade radical 4 qual os humanos sio confrontados ¢ uma formulago que o senhor prope, alias, explica exatamente o que entende quando afirma: “A morte apre- senta-se como 0 outro de tudo 0 que pode ser dito sobre ela”. E nessa perspectiva que soa mais forte 0 objetivo que o senhor props para A Morte nos Olhos: “En- tender estes outros que so os gregos antigos, nds mesmos também”. O senhor afirma que Gorgé € Poder de morte do qual o homem se desvia, mas que nao pode deixar de encontrar. O encontro com Gorgé se faz por meio de uma méscara que néo se usa, mas que nos olha de alguma forma com nossos 82 A MORTE NOS OLHOS préprios olhos. Porque é com o olhar da mascara que a defrontamos. Uma dimensio desse confronto € fazer aparecer a dialética do eu e do duplo desse eu, mortifero, no qual se objetiva o poder de morte que o homem traz dentro de si. Isso requer alguns esclarecimentos com relagio ao olhar e & sua relagdo com a morte. olhar, que passa pela percepgio visual mas que pode excedé-la; 0 olhar como a instincia na qual se manifesta de forma privilegiada a espécie de equilibrio que, em cada individuo, seria posto em funcionamento entre a vida ¢ a morte. J.-P. VERNANT: ~ As questdes que 0 senhor coloca em relago ao confronto, a troca de olhares, A morte, ao individuo e seu duplo, ocupam, em minha refle- xo, uma posigao central que nao Ihe escapou. Fora 0 estudo ao qual o senhor alude (“Figuragées da Mascara na Grécia Antiga”), abordei esses problemas du- rante minhas aulas no College de France (Annuaire, 1979-1980) e em um artigo publicado com o titulo: “O Individuo na Cidade Grega”®. Eu no poderia discor- rer de forma satisfat6ria sobre esses assuntos nos quadros desta pergunta. Indica- rei apenas dois grandes eixos. O primeiro conceme & concepgiio grega da visio, do olho, do olhar. Plato escreve no Alcibfades (132 e ~ 133 a): “Quando olha- mos para o olho de alguém que esté a nossa frente, nosso rosto se reflete no que chamamos de pupila [kéré, a menina] como em um espelho: aquele que se olha vé sua imagem [efdalon, simulacro, duplo}. ~ Esté certo. — Assim, quando 0 olho considera outro olho, quando fixa seu olhar na parte deste olho que € a melhor, aquela que vé, ele vé a si mesmo”, Quando de meu olho, como de um sol, emana um raio que, refletindo-se no centro do olho do outro, volta para a fonte da qual partiu, sou eu mesmo, em minha atividade de ver (de saber, de conhecer), que meu olhar transporta até a pupila do outro, um “eu mesmo” (que vé e que sabe) que nao posso atingir dentro de mim mesmo como 0 olho niio pode ver a si mes- mo. Vejo em ago de vidéncia, objetividade no olho de outro, projetado e refleti- do nesse olho, como em um espelho refletindo-me a meus préprios olhos. Essa teoria da visio organiza 0 campo dentro do qual vao atuar, em posi- gio simétrica, 0 erético platénico e o fascinio de Gorgé. O fluxo erético, que circula do amante para o amado para refletir-se em sentido inverso do amado para o amante, segue como ida e volta 0 caminho cruzado dos olhares, no qual cada um dos dois parceiros serve para 0 outro de espelho em que, no olho da pessoa que esté A sua frente, ele percebe seu préprio reflexo duplicado. No Fe- dro (255 d), Plato escreve: “Em seu amante, como em um espelho, € ele mes- mo que ama [...] tendo assim um contra-amor que € uma imagem refletida de 2. Llindividu, la mort, amour, Paris, 1989, pp. 211-232. 83 ENTRE MITO E POLITICA amor”. Mas, para Plato, 0 que vejo de mim mesmo no olho do amado é 0 que ele ama em mim: nao minha figura singular, mas 0 que a ultrapassa e que ela pode apenas evocar de forma imperfeita, a Beleza, a forma do Belo em si; este € 0 objeto préprio do amor, ao que ela sempre visa, como 0 olho, na troca de o- Ihares, procura a luz ¢ 0 sol com os quais se assemelha. Da mesma forma, quan- do olho Gorgé dentro dos olhos, sou eu quem vejo, ou melhor, o que em mim ja € outro: o que esti além de mim, no mais em diregdo ao alto, em direcio a0 sol da beleza, mas para baixo, para a cegante noite do caos: a morte de frente. O segundo eixo concerne ao sujeito, o eu, 2 pessoa na Grécia antiga. Para dizer as coisas de forma ripida e grosseira, a experiéncia de si néio € orientada para dentro, mas para fora. O individuo busca a si mesmo e se encontra no outro, nesses espelhos que so para ele todos aqueles que constituem a seus olhos seu alter ego: parentes, filhos, amigos. O individuo situa também a si mesmo nas operagdes que o realizam, que o efetuam “em ato”, enérgeia, e que nunca esto em sua consciéncia. Nao existe introspecgaio. O sujeito € extrovertido. Ele se olha de fora. Sua consciéncia de si nao € reflexiva, ela ndo € uma volta sobre si mes- mo, um trabalho sobre si mesmo, a elaboragiio de um mundo interior, intimo, complexo e secreto, o mundo do Eu. E existencial. Como diz Bernard Groethuy- sen, a consciéncia do eu é, para 0 grego, a apreenso de um Ele, nao de um Eu. A guisa de conclusdo: a feminizagéo da morte P. KAHN: ~ Em uma perspectiva de psicologia hist6rica, poderfamos dizer — como seu livro sugere ~ que essa concepgiio das relagdes da vida e da morte estava presente entre os gregos ¢ figurada em sua relagiio com Gorg6? Por que, entre os gregos, essa feminizagio de “a morte”? Essa pergunta se torna insistente quando se sabe que uma variante de Gorg6 “apresenta a face de Gorgé ocupando no fundo de cada olho a posigo da pupila — que os gregos cha- mavam de kéré, a menina”. que nos interessa (no sentido etimolégico do termo) na cultura grega tal como ela nos chega por meio da figura de Gorg6? O senhor nao pensa que seria 0 lugar atribuido por essa cultura 20 Poder da morte inerente em cada um? Levar isso em conta e organizé-lo em formas culturais que outra cultura poderia apreen- der como ilus6rias nao seria um dos segredos do que uma cultura pode trazer como limite para a barbérie? J.-P. VERNANT: - Em vez de falar de feminizagio da morte, eu diria que, 84 A MORTE NOS OLHOS em Gorg6, os gregos feminizaram um aspecto particular da morte: o horror que ela provoca devido a sua alteridade radical. Mas, para dizer a morte, os gregos usam uma palavra masculina: Thanatos. Esta personagem, cuja figura nada tem de horrivel, traduz 0 que a morte comporta de institucionalizado, de civilizado; esté préximo do que os gregos chamam de “bela morte”, kalds thdnatos, aquela que o heréi enfrenta no campo de batalha e que lhe garante, na meméria social, uma eterna sobrevivéncia em gléria. Existem ainda outras figuras femininas da morte: & angdstia e ao pavor, elas acrescentam o encanto da sedugiio, a atragio pelo diferente, a tentag’o do desconhecido. “Para discernir esses pontos de apro- ximagio entre Thdnatos e Eros, entre a morte € o desejo, escrevi, para localizar entre as figuragdes da morte grega aquelas que tomam emprestado ao rosto da mulher, da jovem em particular, seu poder de estranho fascinio, 0 encanto inquie- tante de sua beleza, precisamos seguir diversas pistas.” Procurei segui-las em um estudo sobre “As Figuragdes Femininas da Morte na Grécia”. Reconhego de bom grado que nao teria me embrenhado na exploragio das paisagens gregas que associam Eros a Thinatos se eu nao pertencesse a uma época ea uma cultura marcadas pela psicandlise. E claro que aconteceu que eu fosse buscar elementos nesse fundo comum e no deve ser dificil localizar em alguns de meus textos © rastro desses empréstimos. Mas nao creio que a psicandlise possa propor um modelo de interpretaco de valor geral e que bastaria apenas aplicé-lo aqui ou ali. Eu chamaria essa forma de viver e de pensar a psicandlise de “ilu- sio”, como existe um modo ilusGrio de viver e de pensar o marxismo. 3. Idem.,p. 134. 85

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