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Albert Camus por Jean-Paul Sartre

(Escrito um dia após a morte de camus)

Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas


fases e cujo termo final tratávamos de compreender. Representava neste
século e contra a história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas
cujas obras constituem talvez o que há de mais original nas letras
francesas. Seu humanismo obstinado, estreito e puro, austero e sensual,
travava um combate duvidoso contra os acontecimentos em massa e
disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de suas
repulsas, reafirmava, no coração de nossa época, contra os
maquiavélicos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato
moral. Era, por assim dizer, esta inquebrantável afirmação. Por pouco
que se o lesse ou refletisse a respeito, chocávamos com os valores
humanos que ele sustentava em seu punho fechado, pondo em
julgamento o ato político.

Inclusive seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo:


este cartesiano do absurdo se negava a abandonar o terreno seguro da
moralidade e entrar nos incertos caminhos da prática. Nós o
adivinhávamos e adivinhávamos também os conflitos que calava, pois a
moral, se se a considera, exige e condena juntamente a rebelião.
Qualquer coisa que fosse o que Camus tivesse podido fazer ou decidir a
sua frente, nunca teria deixado de ser uma das forças principais de nosso
campo cultural, nem de representar a sua maneira a história da França e
de seu século.

A ordem humana segue sendo só uma desordem; é injusta e precária;


nela se mata e se morre de fome; mas pelo menos a fundam, a mantêm
e a combatem, os homens. Nessa ordem Camus devia viver: este
homem em marcha nos punha entre interrogações, ele mesmo era uma
interrogação que procurava sua resposta; vivia no meio de uma longa
vida; para nós, para ele, para os homens que fazem com que a ordem
reine como para os que a recusam, era importante que Camus saísse do
silêncio, que decidisse, que concluísse. Raramente os caracteres de uma
obra e as condições do momento histórico exigiram com tanta clareza
que um escritor viva.

Para todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável.


Mas, teremos que aprender a ver esta obra truncada como uma obra
total. Na medida mesmo em que o humanismo de Camus contém uma
atitude humana frente à morte que havia de surpreendê-lo, na medida
em que sua busca orgulhosa e pura da felicidade implicava e reclamava a
necessidade desumana de morrer, reconheceremos nesta obra e nesta
vida, inseparáveis uma de outra, a tentativa pura e vitoriosa de um
homem reconquistando cada instante de sua existência frente à sua
morte futura.

JEAN-PAUL SARTRE

Tradução: Jorge Luis Gutiérrez


Revisão: Terezinha Arco e Flexa

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