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Quando se aprende numa escola, dentro de uma sala de aula com mais cerca de
trinta colegas, com a ajuda de um manual e de um professor, profissional na
«transmissão de um saber» oficioso ou oficial, considerado pelos poderes públicos
como «indispensável para a formação dos jovens e do cidadão» e para as «exigências
da sociedade e do mercado», então a aprendizagem é heterónoma. Este tipo de
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aprendizagem, não é dispensável mas não pode tornar-se de tal modo dominante que
destrua o modo autónomo de aprender. Pode pensar-se que o trabalho de casa do
estudante é autónomo porque, na sua solução, ele está entregue a si próprio. Todavia
ele sente esse trabalho como uma obrigação heterónoma, que lhe é imposta, e não
como uma necessidade de procurar respostas para as suas inquietações ou de
satisfazer suas motivações intelectuais. O modo heterónomo de aprender é sobretudo
importante na aprendizagem dos mecanismos básicos da própria aprendizagem
autónoma, quer dizer, a aprendizagem heterónoma do abc da leitura e da matemática
e até do meio físico e social é fundamental para que a criança, pelos seus próprios
meios, construa o seu próprio saber pela leitura, pelo uso do computador, CD e DVD
pedagógicos e interactivos e Internet.
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“Cette contreproductivité est celle du système éducatif qui détruit la curiosité, la volonté et la
capacité d’apprendre par soi-même”... Jean-Pierre Dupuy, La trahison de l’opulence, Paris,
PUF, 1976, p. 63.
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máquina burocrática montada para o ensino heterónomo, portanto, mais nos meios, do
que nos fins, ou seja, na própria função de ajudar os alunos a aprender de forma
autónoma e responsável. Quer dizer, tal como na produção económica, o ensino
heterónomo torna os meios no seu próprio fim, perdendo-se de vista o objectivo que
seria suposto servir – a aprendizagem, o saber, autonomia, a liberdade e
responsabilidade das crianças e adolescentes. Pior ainda, com a preocupação
burocrática da ocupação dos professores em trabalho heterónomo e contraprodutivo
(improdutivo mesmo) desperdiçam-se recursos humanos valiosos assim atolados em
burocracia cujo resultado não é senão dar a impressão perante a opinião pública que
agora, sim, os professores trabalham e logo (subentenda-se) os alunos aprendem!
Nada mais ilusório. O lodaçal burocrático e heterónomo em que caiu o ensino fez
deste um faz-de-conta tal como sucede em toda a economia cujo modo de produção
se torna, exclusivamente, ou quase, heterónomo.
3º - A frustração dos professores por terem investido tanto esforço e tempo e terem
colhido tão magros resultados.
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O aluno encara a própria avaliação escolar como algo externo que lhe é imposto de forma
heterónoma; a verdadeira avaliação é uma auto-avaliação, ou melhor, uma aprendizagem
autónoma que resulta, como dizia Descartes no seu Discurso…, do sucesso ou fracasso que
cada um experimenta quando põe à prova, nas diferentes situações ou desafios da vida (que
pode ser uma prova na escola ou de candidatura ao ensino superior feita pelas e nas próprias
universidades, ou uma prova de selecção para um determinado trabalho), as suas ideias,
saberes, competências e conhecimentos.
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… “Aqueles que são chamados discípulos consideram consigo mesmos se se disseram
coisas verdadeiras, e fazem-no contemplando, na medida das próprias forças, aquela Verdade
interior de que falámos. É então que aprendem.” Stº Agostinho, O Mestre, Trad. António Soares
Pinheiro, Porto Editora, 1995, pp. 97/8.
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Quando o saber não é imposto, cada um procura-o de acordo com as suas motivações e
paixões. Se é imposto, se o aluno não tem liberdade de escolha, de investigar o que mais lhe
interessa, ele desmotiva-se e o ensino heterónomo torna-se uma maçada.
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Donde resulta que, não havendo trabalho para todos na administração pública, nos
departamentos administrativos do Estado ou das empresas públicas, no ensino, etc.,
vai crescer enormemente o desemprego de diplomados em conhecimentos
inutilizáveis ou inúteis, transformando-os em revoltados prontos a aderir, em qualquer
altura, a qualquer movimento demagógico que apresente uma “solução do problema”,
como uma varinha de condão, porque, sem iniciativa e capacidade empreendedora, na
sua passividade, estão sempre à espera que alguém, o Estado, a política, resolva o
problema por eles! Com efeito, adormecidos na passividade do ensino heterónomo,
nunca se habituaram a pôr questões/problema e a desenvolver a capacidade criativa,
imaginativa e empreendedora.
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Le Bon, Psychologie des Foules, Éd. Librairie Félix Alcan, Paris, 1912, pp. 75 e 76.
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que têm é a de que aquilo que supostamente aprendem não lhes serve de nada por
quatro razões:
4ª - Finalmente, porque o saber lhes aparece como algo heterónomo, algo que não
lhes diz respeito ou que não entendem, agarram-se à memorização, quando se
sentem forçados a prestar provas, mas cujos resultados atestam, precisamente, a não
assimilação e a não assumpção pessoal do conhecimento.
Não vamos cair no exagero das pedagogias libertárias e utópicas que propunham
uma sociedade sem escola6, mas também será errado pensarmos que a
aprendizagem só se pode fazer de modo formal, burocrático, super-regulamentado e
em massa, eliminando todos os espaços, dentro da escola, para a aprendizagem
autónoma, sem professor, sem controlo do professor, apenas com a sua ajuda a
pedido do estudante. Os alunos, sobretudo aqueles que em família não tiveram a
experiência da aprendizagem autónoma, deverão ter espaço e tempo na escola para
investigarem pelos seus próprios meios o seu próprio saber depois, obviamente, de
uma boa motivação para as delícias e vantagens que esse saber lhes confere. O
professor, em vez de um mero transmissor de saberes que segue a cartilha universal e
centralizada, deve ficar remetido a um papel de orientador que, de forma
personalizada e individualizada, vai dando pistas, sugestões, tirando dúvidas,
alertando para os erros e, ao mesmo tempo, fornecendo os meios para que o aluno
possa resolvê-los. Se e quando o aluno é bem sucedido, cabe ao professor assinalar o
seu progresso, elogiá-lo e mostrar que ele pode ir bem longe porque está no bom
caminho. É absolutamente necessário este reforço afectivo na medida em que
aumenta a confiança no aluno e lhe faz crescer a auto-estima e a motivação para o
saber.
Por sua vez, o Ministério da Educação não deve ter a preocupação e a tentação
napoleónica de tudo regulamentar, centralizar, supervisionar e dirigir: reuniões
intercalares, de avaliação ou disciplinares, conselhos de turma, preenchimento de
formulários, fichas, mapas, grelhas, etc., e ainda inspecções disto e daquilo para
verificar se os meios e instrumentos do ensino heterónomo e contraprodutivo foram
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A sociedade sem escola (que defende Ivan Illich numa das suas obras precisamente com este
título) já existiu e ainda existe. Nas sociedades tribais e rurais tradicionais, os rapazes e
raparigas aprendem tudo quanto precisam de saber para viver em sociedade e no seu meio
apenas observando e imitando os mais velhos. As novas ferramentas como o computador e
programas informáticos especialmente concebidos para a aprendizagem, assim como a
Internet, permitirão criar, num futuro próximo, as condições para uma aprendizagem autónoma,
no domicílio, sem escola, sem “aulas de 45 ou de 90 minutos” e com a possibilidade da auto-
avaliação!
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Quanto aos fins – já que toda a orientação da política educativa se centra nos
meios – isso não é tão importante: não importa se aluno desenvolveu competências e
adquiriu saberes; o que está em causa é que a máquina burocrática tenha funcionado
consoante as normas e regulamentos que empanturram o funcionamento da escola,
derivando daí contraprodutividade e insucesso que se atesta pelo fraco desempenho
dos alunos quer nos exames, quer nas provas internacionais.
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…“Esta palavra «ensinar» parece que foi banida do vocabulário [do novo estatuto da carreira
docente]”. Cf. Nuno Crato, em entrevista à Revista Pública – Jornal Público de 18 de Junho de
2006 – p. 10.
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(em total liberdade quanto aos métodos pedagógicos ou caminhos seguidos e quanto
aos meios, considerados mais adequados às circunstâncias) – vai ficando cada vez
mais reduzido a nada8.
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“E as funções do professor deixaram de ser ensinar.” Ibidem, p. 8.
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Ibidem, p. 10.