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 Interação em Psicologia, 2003, 7(2), p. 73-80
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Psicologia e Neurociência cognitivas:Alguns avanços recentes e implicações para a educação
Paulo Estevão Andrade
Colégio Criativo
Paulo Sérgio T. do Prado
Universidade Estadual Paulista
Resumo
Partindo da contribuição de autores como Piaget e Vygotsky para a compreensão do desenvolvimentopsicológico, o texto comenta alguns importantes avanços recentes na pesquisa em psicologia infantil econfronta seus resultados com posturas anteriores. Um ponto de destaque relaciona-se com odesenvolvimento de certas habilidades perceptivas e cognitivas as quais, de acordo com algumasevidências, têm sua gênese em idades inferiores às que se acreditava há algum tempo.Adicionalmente, comentam-se importantes achados das neurociências, e mais particularmente daneuropsicologia cognitiva, identificando áreas cerebrais responsáveis por determinadas tarefascognitivas e também algumas de suas associações. A conclusão aponta para a necessidade de osprofissionais da educação e os currículos escolares levarem em consideração esses avanços científicospara que se produzam melhorias na eficácia do processo pedagógico.
Palavras-chave
: Psicologia cognitiva; neurociências; educação.
Abstract
Cognitive psychology and neuroscience: recent advances and implications for education
Starting with the contribution from psychologists like Piaget and Vygotsky to understandingpsychological development the authors comment on some important recent advances in infantpsychology research and confront its results with previous postures. In particular, certain perceptualand cognitive skills’ development are stressed, since there are evidences that their genesis is earlierthan previously believed. Additionally, important findings of neuroscience and cognitiveneuropsychology are commented upon, as well as brain areas responsible for certain specific cognitivetasks, and some of its associations are identified. The conclusion points out to the need that educationprofessionals and the curriculum take these scientific advances into account in order to ameliorate theeffectiveness of the pedagogical process.
Keywords
: Cognitive Psychology; brain sciences; education.
Dois autores mundialmente muito influentes napsicologia do desenvolvimento são o suíço JeanPiaget (1896-1980) e o bielorusso Lev SemenovitchVygotsky (1896-1934). As idéias de ambos têmimportantes implicações educacionais e exercem umainfluência marcante na educação brasileira. Menosconhecidas entre nossos educadores, no entanto são aspesquisas que, há mais de duas décadas, vêm sendodesenvolvidas por diversos autores no campo dapsicologia e no da neurociência cognitiva, as quaistêm enriquecido sobremaneira o debate sobre acognição humana. Confrontar alguns resultados econclusões dessas pesquisas com as proposições dePiaget e Vygotsky e iniciar uma discussão sobrealgumas possíveis implicações educacionais são osobjetivos do artigo. Considerando a popularidadedaqueles dois autores, apresentaremos de modocondensado algumas de suas colocações, detendo-nosum pouco mais na apresentação de pesquisas maisrecentes. Contudo, chamamos a atenção para o fato deque não será uma apresentação exaustiva, pois dado ogrande volume dessas pesquisas teremos,necessariamente, de ser seletivos.
Contribuições de Piaget e de Vygotsky
Piaget via o desenvolvimento intelectual oucognitivo como a aquisição de conhecimento pelacriança. Ele não admitia que o conhecimento sereduzisse a impressões do meio sobre a folha embranco da mente (empirismo), nem que as estruturascognitivas desabrocham automaticamente a seu tempopor determinação genética (inatismo). Segundo ele, oconhecimento é construído pela criança nas suasinterações com o meio; por isso se dizia construtivista.Nas suas interações com o meio a criança vai seadaptando a ele. A adaptação consiste de doisprocessos complementares: assimilação eacomodação. Considerando que, de acordo com oautor, conhecer é interpretar, atribuir significados, acriança faz isso assimilando elementos do meio aosseus esquemas e estruturas cognitivas e acomodando-os às novas exigências que o meio vai lhe impondo.Piaget interpretou suas observações como umreflexo de diferenças qualitativas na capacidade derepresentações mentais e do raciocínio das crianças, aqual evoluiria ao longo de estágios sucessivos de de-senvolvimento através dos quais a criança passa deestados de menos conhecimento para estados de maisconhecimento. Os estágios são universais, isto é,comuns a todo ser humano. Eles se sucedem numa
 
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seqüência fixa e ocorrem em determinadas faixas deidade. Finalmente, os estágios são de complexidadecrescente e são em número de quatro, resumidos aseguir.No estágio sensório-motor (do nascimento a umano e meio, aproximadamente), a criança vê osobjetos, agarra-os, balança-os para vê-los movendo-seou ouvir sons que eventualmente produzam, leva-os àboca para sugar etc. É assim que ela interage com oselementos de seu ambiente: através de seus esquemassensorial e motor, e atribui-lhes significado – “isso épara sugar, aquilo é para chacoalhar” e assim pordiante. A ausência da linguagem impossibilita àcriança representar mentalmente a realidade. Umobjeto que tenha sido removido de seu campo visual écomo se simplesmente tivesse deixado de existir, porisso ela não o procurará.No início do estágio pré-operacional (de dois a seisanos, mais ou menos), a criança já se locomove por simesma e em pouco tempo seu vocabulário amplia-severtiginosamente. Isso altera significativamente suasinterações com o meio físico e também com o social.Ela fará perguntas e criará “teorias” sobre fatos quepresencia: “por que a lua segue a gente?”. Atribuiráqualidades materiais a coisas imateriais: “o sonhoentrou no meu quarto”; e subjetividade a coisasinanimadas: “a bola não quer parar”. Embora acriança já tenha o conceito de objeto permanente, elaainda não desenvolveu a noção de conservação. Seupensamento ainda não é dotado de reversibilidade. Naprova de conservação de número, por exemplo, elanão coordena simultaneamente as dimensõescomprimento e densidade das fileiras (de fichas ouquaisquer outros elementos). Dirá que tem mais itensa fileira mais longa, mesmo que inicialmente seuselementos se apresentassem em correspondência um-a-um com os de outra fileira. Isto é, a criança desseestágio não concebe um retorno da fileira alongada aoseu estado inicial. E ignora que o aumento docomprimento é compensado pela diminuição dadensidade (veja Piaget & Szeminska, 1981).O pensamento torna-se progressivamente maisreversível, no estágio operacional concreto (de seis ousete a 12 anos), mas a criança só é capaz derepresentar e operar mentalmente situações quevivencia concretamente. Continuando com o exemploda prova de conservação de número, ela conceberá apossibilidade de retorno da fileira mais longa ao seuestado inicial. Também coordenará as dimensõescomprimento e densidade, sabendo que o aumento emuma delas é compensado pela diminuição na outra eafirmará que ambas as fileiras têm o mesmo númerode itens. Ademais, terá consciência de que oacréscimo de um item a uma coleção a tornará maior,assim como a subtração de um item a tornará menor.O estágio operacional formal, que se inicia aos11/12 anos, caracteriza-se pelo pleno desenvolvimentodo raciocínio lógico-matemático, capacitando acriança a representar e operar mentalmente sobre arealidade num nível inteiramente abstrato.Vygotsky ambicionava edificar uma ciênciapsicológica mais totalizadora do que as teoriasexistentes à sua época. O fundamento dessa ciência seconstituiria de três elementos: o entendimento de queo cérebro é a base biológica das funções psicológicas;a noção de que tais funções fundam-se nas relaçõessociais, necessariamente históricas e culturais; e ainterpretação de que as funções psicológicassuperiores são mediadas simbolicamente (Oliveira,1993).Infelizmente, a morte prematura de Vygotskysubtraiu-lhe a possibilidade de desenvolver as relaçõesentre o cérebro e o funcionamento psicológico. Um deseus principais colaboradores e continuador de suaobra, no entanto veio a se tornar conhecido como opai da neuropsicologia: A. R. Luria (1902-1977), quedeu um grande impulso ao desenvolvimento dasneurociências. No que diz respeito às relações sociais,sua importância fica clara ao afirmar Vygostky quetoda função psicológica surge inicialmente no nívelsocial, interpsicológico; para depois ser internalizada,passando para o nível individual, intrapsicológico. Umdos melhores exemplos seria a linguagem. Ela surgeem razão da necessidade de comunicação da criançacom os demais membros de seu grupo, passandoposteriormente a mediar suas representações mentaisuma vez que é um sistema simbólico; e também aexercer um importante papel no autocontrole docomportamento, por exemplo, planejando ações para aresolução de problemas. Ademais, funções comopercepção, atenção e memória, que em outras espéciessão imediatas; isto é, diretas, não mediadas; no serhumano adquirem
status
 de funções psicológicassuperiores justamente em razão do papel mediador dalinguagem. Tais funções possuem possibilidades elimites biologicamente determinados. Tomando comoexemplo a percepção visual, um macaco tem umsistema ótico semelhante ao do homem. Ambos vêemcores, luzes e formas. Mas se para o macaco, emalgumas situações isso é apenas um amontado de“informações” sem sentido, o homem é capaz deatribuir significado ao que vê e o faz graças àlinguagem.
A pesquisa com bebês
O trabalho de Piaget e Vygotsky significou umgrande impulso na atual busca pela compreensão dacognição humana, a qual tem se dado através decritérios e procedimentos cada vez maiscientificamente rigorosos. Quanto à abordagemvygotskyana da importância da mediação social nodesenvolvimento cognitivo, ela é consistente comevidências experimentais de que muitas regiõesneocorticais e subcorticais exibem mudançasmoleculares, neuronais e estruturais em resposta aexperiências como aprendizado, lesões e até terapiascomportamentais (Buonomano & Merzenich, 1998;Temple & cols., 2003).Piaget, por sua vez, estava aproximadamentecorreto ao correlacionar padrões de desempenho afaixas etárias em que ocorrem (mas para umadiscussão sobre pesquisa correlacional em psicologiado desenvolvimento, veja Schlinger Jr., 1995;especialmente o Capítulo 2). Contudo ele pode tersubestimado a capacidade das crianças. Váriosestudos apontam nessa direção, entre eles o de
 
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Gelman (1972), cujos resultados sugerem que criançasem idades correspondentes ao nível pré-operacionalexibem a noção de conservação. Detalhes sãodescritos a seguir.A autora conduziu um experimento cujoprocedimento baseou-se em técnicas de
shows
 demagia. Seus sujeitos foram 96 crianças (46 meninos e50 meninas) de classe média, com idade variando detrês a seis anos e meio. Seguindo uma fase inicial defamiliarização dos sujeitos com a situaçãoexperimental, a segunda fase tinha a finalidade decriar no sujeito uma expectativa numérica sobre duasfileiras de ratinhos de brinquedo. Estes eramcolocados em dois pratos com velcro e cobertos porlatas. A pesquisadora, então levantava as latas demaneira que a criança pudesse ver os pratos com osfalsos animais – um com três e outro com dois. Alémda diferença numérica, as fileiras também diferiamentre si em comprimento e densidade. Aexperimentadora dizia que o prato com os trêsbichinhos era o “vencedor” e o outro, o “perdedor”. Acriança era instruída no sentido de que após os pratosserem novamente cobertos com as latas emovimentados, ela receberia um prêmio seencontrasse o prato vencedor (terceira fase). Se acriança retirasse a lata que cobria o prato perdedor e oidentificasse corretamente, a experimentadora o cobriaoutra vez e, sem tocar nas latas, pedia à criança paramostrar onde estava o prato vencedor.Os sujeitos foram subdivididos em dois grupos.Um deles foi exposto a uma situação na qual, aomover as latas a experimentadora sub-repticiamentesubtraía um elemento do prato vencedor (gruposubtração). Para o outro grupo, a alteração era operadaapenas no comprimento ou na densidade da fileira(grupo deslocamento). Do total de tentativas, trêseram selecionadas aleatoriamente para que a criançaexplicasse porque o prato descoberto era o vencedor(ou o perdedor).Em sua grande maioria os sujeitos não cometeramerros. O restante fez erros sem qualquer significânciaestatística. Ademais, as crianças mostravam-sesurpresas ao constatarem a alteração numérica,contrariamente à sua expectativa. A autora concluique elas possuíam a regra de invariância de número oque, segundo ela é reforçado por quatro evidências:
a)
reação de surpresa no grupo subtração e não reação nogrupo deslocamento, independente da idade;
b)
probabilidade relativa de os sujeitos notarem asalterações e serem capazes de descrevê-las;
c)
manifestação de comportamento de busca do elementosubtraído pelos sujeitos do grupo subtração, sem queos sujeitos do grupo deslocamento apresentassemsemelhante comportamento; e
d)
 as considerações dossujeitos sobre a natureza da operação, as quais foramadequadas na maioria, segundo critérios estabelecidospela autora.Um segundo experimento foi feito para se verificaros efeitos da adição. Este foi idêntico ao primeiro,exceto por duas diferenças fundamentais: em primeirolugar, era identificado como vencedor o prato comdois ratos; segundo, a condição subtração foisubstituída pela condição adição – um elemento eraadicionado ao conjunto com dois ratos. As 32 criançasde ambos os sexos apresentaram resultados muitosemelhantes às do primeiro experimento.Estudos como o que acabamos de descrevermotivaram os pesquisadores a investigarem mais emais as capacidades dos bebês. Resultados depesquisas sugerem que diversas capacidades surgemmuito mais precocemente do que se imaginava há nãomuito tempo. Desde o nascimento, bebês não sópodem discriminar entre vozes masculinas efemininas, mas também a voz materna entre outrasvozes femininas (para uma breve revisão de algunsdesses estudos, ver Bee, 1996). Bergamasco (1997)propõe o uso de movimentos expressivos comoindicadores de estados subjetivos no neonato. Aanálise de reações como choro e expressões faciais deagrado e desagrado em resposta a estímulosnociceptivos, olfativos e gustativos evidenciaconsciência (no sentido sinônimo de “
awareness
”).Recém nascidos também imitam expressões faciais, oque é tomado por alguns autores como indício derepresentações mentais.Os resultados vão muito além e indicam umsurpreendente nível de percepção mesmo em tenraidade. Recém nascidos são capazes de distinguir entremuitas figuras arquetípicas como círculos e cruzes eapresentam constância dos objetos em relação à suaforma (Slater, Morison & Rose, 1982). Bebês de trêsmeses e meio a quatro meses e meio já podemperceber algumas propriedades físicas de um corposólido, tal como sua impermeabilidade e sua oclusãoem relação a outros corpos sólidos; e com sete mesese meio sobre a oclusão pela retenção (Aguiar &Baillargeon, 2002).
 
Bebês de apenas 12 mesesmostraram habilidade em perceber a consistência dosobjetos, diferenciando objetos rígidos e elásticos etransferindo essas informações para a modalidadevisual (Slater & Morison, 1985; Slater, Morison &Rose, 1982). Crianças de zero a dois anos apresentamindicativos da noção de permanência do objeto etambém de reversibilidade.Resultados como os apontados acima têm sidoencontrados graças ao desenvolvimento de novosmétodos e procedimentos científicos. Um deles é oprocedimento de habituação. Basicamente, esteconsiste da apresentação repetida de um estímulo aobebê, medindo-se o tempo de fixação visual sobre ele.Normalmente, esse tempo decresce ao longo dasapresentações, estabilizando-se nas últimas tentativas.Quando isso ocorre, diz-se que houve habituação.Numa fase seguinte, de teste, o estímulo familiar eoutros estímulos novos são apresentadossucessivamente. Continua-se medindo o tempo defixação visual. Se ele for maior em relação aoestímulo novo (desabituação), então infere-se quehouve recordação do estímulo familiar e/oudiscriminação entre este e o novo.Tal procedimento foi usado em algumas daspesquisas com bebês mencionadas anteriormente. Masmuito mais impressionantes e intrigantes são osachados sobre habilidades numéricas e até aritméticasem bebês. Xu e Spelke (2000) encontraram que bebêsde seis meses discriminam entre conjuntos de

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