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[Setúbal na Rede] - Senhores & Servos 1 de 3

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• 13-03-2008 •
Estar presente
por António Manuel Ribeiro
(Músico e Autor)

Senhores & Servos

O telefonema chega regular da redacção deste “Setúbal na Rede” e eu agradeço a data


proposta para um novo texto, preparo-me mentalmente e depois, nas vésperas de parir as
palavras, o tempo faz-me a partida de encolher, todos os dias de uma forma diferente e cada
vez mais urgente. Gostaria de ter a sabedoria de o parar, inverter o toque do despertador da
ansiedade que toca até nos sonhos que trespassam o sono, gostava de descobrir o recato do
ócio que fazia disciplina e enformou correntes filosóficas da Grécia remota, mas não sei deixar
de estar atarefado.

O primeiro título escolhido era e ficou este que encima a prosa. Mas podia ser outro, burlesco até ao
pechisbeque – “Erecção, Cartier e o resto”.

A motivação provocatória chega de manhã, todas as manhãs, quando abro o Outlook e uma torrente
de mensagens vem em inglês de sítio nenhum até mim: produtos para manter e fortificar a erecção;
Viagra para não perder o momento; pílulas para prolongar o prazer do acto como nunca visto; cremes
que aumentam o tamanho do pénis até ao dobro; mais pílulas para demorar a ejaculação; relógios
Cartier; réplicas de relógios Cartier; relógios Rolex e réplicas de relógios Rolex, mensagens enviadas
de todo o lado conforme o Sol vai acordando o mundo. Estes empreendedores sem rosto sabem de
que males padecemos: sexo masculino fraco, que só vai lá com aditivos; relógios caros ou as suas
réplicas, para agarrarmos o tempo que se escoa.

Optei pelo título Senhores & Servos, um mote que burilava há um tempo, embaciado por este país de
tiques medievais onde o pudor se encolhe e a esperteza vinga e certifica homens que submetem
outros homens, e com a sua desmedida ganância e avidez engordam faustosamente, convencidos
que merecem as banhas da riqueza apenas porque merecem, foram os primeiros, são os mais
espertos.

A máquina partidária, talvez como nunca, está na barriga do Estado em lenta deglutição e engorda. O
Presidente da República, embaraçado com os vencimentos e mordomias de alguns gestores, oh
gestores, lançou o anátema da equidade dos mesmos, o que deixou muitos a sorrir e o resto a
assobiar.

Jorge Coelho, que chegou ao cargo de Senador por necessidade de um diário onde assina uma
coluna, toma chá semanalmente na Quadratura do Círculo da SIC-N, explicando o que o governo e o
PS engulham. Ele que se cuide, agora que se transferiu para a Mota Engil, pode vir a ser incluído na
mediática indignação do novo bastonário da Ordem dos Advogados António Marinho, quando referiu a
escandalosa promiscuidade entre ex-governantes e as empresas que os contratam no desemprego.

Há poucos dias observei a imagem do PM José Sócrates a plantar um eucalipto: vi, com esse gesto, o
efeito da árvore que seca tudo em redor e empobrece os solos, como alguns homens o fazem. Ufano,
o presidente do CA da Portucel falava dos milhões de investimento que poderiam ter ido para o leste
da Europa ou a América do Sul. Devemos estar gratos a este português?

A tragédia das bolsas prenuncia o pior, apesar de alguns bancos centrais andarem a escorar a
derrocada – também por cá, a exemplo do que os americanos fizeram, já se põe a hipótese de baixar
os impostos para permitir o consumo, e com isto engenhar uma solução que confirme as previsões do
governo no crescimento para este ano, ou seja, crescer à conta do consumo para equilibrar a anemia
da produção/exportação. O subprime vai desabar sobre as apostas de risco, os bancos e os seus
investimentos enfurecidos. Apesar de tudo, pela Charneca da Caparica, há cada vez mais imobiliárias:
nada se vende mas a oferta continua para o capítulo seguinte.

A história do BCP, cujo escândalo anda a morrer como todos os outros escândalos que envolvem
milhões, começou por ser uma zanga de comadres confinadas à virtude da Obra de Deus (Deus?).
Vem-me da memória o escândalo do Banco Ambrosiano e o manto de mortes e silêncios que os
homens de uma certa fé geriram até ao esquecimento, a borracha aplicada à história sempre em nome
de uma causa que designam de maior, de inspiração divina privada afiançam. E o espectáculo kitsch
interno de um certo comendador a quem esconderam durante demasiado tempo a panela das
lentilhas. Calou-se, porque neste tipo de negócios há sempre uma fórmula para o silêncio acautelar a
contagem de novos benefícios. E também porque ninguém pode estar durante tanto tempo a dizer
disparates aos soluços, com sotaque, para os microfones.

Além do indecoroso cenário que o insuspeito senhor Jardim Gonçalves revelou, na forma como se
empresta dinheiro aos filhos e amigos, fica a ideia de que, por cá, os gigantes continuam a ter pés de

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argila velha, disfarçada por uma patine dourada que não convence nem sustenta o equilíbrio e a
solidez – o marquetingue não dissolve, felizmente, todas as mentiras.

Somos pequeninos, são pequeninos, entretidos a contar moedas num vão de escada. Ao domingo
batem no peito e chamam pelo Senhor, também privado na sua lógica milenar; depois de confessados
os pecados, segue-se uma nova partida de monopólio dura e crua.

Preparem-se, o meu banco, provavelmente como os vossos, já me avisou que em Abril as taxas vão
ser actualizadas (o léxico evita a dor do verbo aumentar). Porque será? É a estratégia perigosa de
quem privilegia o lucro dos accionistas sobre os clientes. Perigosa, digo eu, na perspectiva de uma
economia que nascerá diferente do esgotamento desta fórmula que leva os do costume (muitos) a
pagar o que poucos usufruem. Se o mercado está errado, repetir os erros não vai ajudar. Mas a ilusão
mantém-se, reformista e autista. O poço só pode secar.

Nesta história do BCP, tão infame que o cidadão vulgar se agacha, olho a fiada de zeros da
indemnização obscena que Paulo Teixeira Pinto recebeu por ter sido corrido da presidência do banco.
E o senhor vale o quê exactamente? A ciência de gestor que permitiu que, sob as sua barbas, o BCP
violasse as regras do jogo impostas a todas as instituições bancárias, confundindo a imagem do maior
banco privado português com uma chafarica qualquer? Não somos nós todos os provincianos que
tudo aceitam e tudo calam, basbaques a olhar para a maior (claro) árvore de Natal da Europa que o
mesmo BCP financiava enquanto os sem-abrigo dormiam ali à beira nas lajes da rotina? É isto a Obra
de Deus?

O governador do Banco de Portugal Vítor Constâncio, o senhor que nos governa há mais tempo sem
necessidade de ir a votos, sabia e seguia os passos das fantasias do maior banco privado português
(Público de 18/01/08). Mas o silêncio e o segredo, no receio que a casa venha abaixo, primou. É a
fórmula dos nossos responsáveis tratarem dos interesses da nação. Já dizia o senhor de Santa
Comba Dão que os portugueses não estavam preparados para votar e viver em democracia. Esse
atestado de menoridade pública mantém-se e dá jeito aos democratas.

Por ter lido há um tempo atrás As Origens da Opus Dei, recordei a imagem oposta e transparente de
Jesus a deitar pelo ar as bancas, as moedas e os vendilhões que atulhavam o Templo, um quadro
romântico que nos ensinaram, talvez pertença do Jesus histórico, o judeu político, homem entre os
homens que serve para todos se servirem do seu exemplo. Qualquer semelhança com a actualidade é
pura repetição no Tempo e revela que em termos de lucro e exploração os homens não melhoraram,
dois mil anos depois. Os do costume, de posse das moedas, abrem-nos pelas oito e trinta da manhã
as portas do céu, que encerram pelas quinze horas, de segunda a sexta. Um cartão de plástico e
quatro dígitos permitem-nos o acesso aos vales à caixa do Banco Central Europeu.

Seráfico e com receio de se exceder no passeio suave que deve (?) ser o primeiro mandato, o
Presidente Cavaco Silva teve toda a razão no que disse na mensagem de Ano Novo. Entretanto,
andamos entretidos a saber se morrem mais pessoas assassinadas na região do Porto ou em Lisboa,
e qual será a marca do próximo carro a explodir – isto, enquanto a PJ entra em autofagia, o
Procurador-geral fala sem nada dizer e o ministro da tutela nos afirma que não há um crescendo
concertado de criminalidade. Afinal em que país vivo eu tão longe deste outro que se esforçam por
promover?

O ilusionismo é a rotina da nação. E claro, esta conversa é para um ET que consiga tradução para o
texto.

Primeiro foi a voz pragmática de Garcia Leandro, general e director do Observatório de Segurança,
avisar, numa extensa entrevista ao Correio da Manhã (10/02/08), que o partidarismo português que
partilha o poder está esgotado, desacreditado (apesar de cada vez mais rico) e a turba que enforma a
nação poder um dia destes avançar para uma espécie de revolução necessária e inevitável,
empurrada pela miséria e submissão em que vive, cavando-se o fosso e a fossa entre uns poucos
(muito ricos) e os outros todos (cada vez mais pobres).

Cresci, como muitos de vós, com um tio no Brasil e primas que só via em fotografias. E lembro-me das
histórias contadas sobre o dia de pagar o salário por lá: a desvalorização da moeda obrigava o meu tio
a levar uma malinha para trazer os quilos de notas, papel colorido e baço.

Nesses tempos o bife tinha um preço de manhã e outro à tarde. O desnível entre os muito ricos e os
imensamente pobres era do tamanho do disparate do TGV, e a história de um país sem classe média,
violento e à beira da ruptura deixava-nos felizes por vivermos deste lado do oceano. Claro que não
havia a moeda única onde hoje flutuamos, que cresce em relação à referência dólar em vez de se
afundar, como aconteceu amiúde ao velho escudo português. Mas as diferenças e a falta de pudor de
que falei lá atrás, chocam e desacreditam a mais velha nação europeia – temos no bolso cada vez
menos Euros a meio do mês.

A seguir veio a SEDES, que reúne vários pensadores, empresários e técnicos de quase todos os
quadrantes do espectro político, abordar o mesmo assunto da pobreza escondida, das dificuldades
crescentes que conduzem à degradação social do país – os cortes em remédios de sustentação da
vida; o encerramento de certos serviços de atendimento médico sem alternativas; escolas e estações
de correio; IRS sobre reformas magras e outros mimos que sustentam a alucinada redução do défice.

Que não, afiançam pelo governo o ministro Pedro Silva Pereira e pelo PS Vitalino Canas, naquele
soletrar pastoso de lugares comuns onde nunca se esquecem de referir que o país sabe e os
portugueses entendem. Tão verdade que, há umas horas atrás, 100 mil professores invadiram Lisboa
e marcharam contra as decisões de uma ministra caída em desgraça.

Logo a seguir ao estudo da SEDES foi a vez do economista Miguel Cadilhe afirmar o que aqui já

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escrevi há muito tempo (fazendo-me parecer um tipo entendido na matéria): o país vive em recessão
técnica há cinco anos.

Caiu o Carmo e a Trindade em Bruxelas, pela expressão de poucos amigos do ministro Teixeira dos
Santos, logo corroborado pela eloquência de um coro muito afinado de economistas disponíveis. Vou
pela palavra avisada do homem do norte e pelo vazio nocturno na auto-estrada A2 quando há dias,
vindo de Faro, contei três camiões de mercadorias em duzentos e noventa e cinco quilómetros de
condução. E se me disserem que preferem a estrada nacional por causa das portagens, eu respondo:
a miséria a que isto chegou.

Fecho este vale de lágrimas que o porta-voz rosa costuma meter no bolso, com as palavras do Dr.
Silva Lopes ao Clube dos Jornalistas da TV2 (5/03/08), citando: o rendimento per capita dos
portugueses não cresce há oito anos. E mesmo assim, endividados até ao tutano.

Em rodapé relembro mais uma trapalhada que o passado do PM José Sócrates guardava, as
“assinaturas de favor” que o Público descobriu e ele considerou um ataque pessoal, acumulando o
subsídio de exclusividade de deputado com funções privadas, violando assim o disposto na lei.

Como li numa mensagem de correio electrónico bem-disposta, é grato saber que José Sócrates
(engenheiro) assinou os projectos de casas tipo maison com janelas estilo fenêtre, num atentado à
paisagem e ao bom gosto que dói a qualquer modesto desenhador. Hirto e exaltado, propagandeando
como um vendedor de felicidade em cada inauguração, Sócrates, de achaque em achaque, continua a
baixar nas sondagens.

Há um espectro de paróquia medieval em tudo isto que vos relato, este amontoado de disfunções que
é a nossa coesão social, as notas que releio semanas depois dos acontecimentos, graves num país
civilizado, mas que por aqui enxotam os autores e os cúmplices para o nevoeiro sistemático que nos
envolve, Portugal no século XXI, que se repete e deixa a mossa do sempre foi, é e será assim, a
imagem de uma sociedade como em Dickens, fúnebre, triste e enfadonha a um tempo, de onde
apetece fugir para reencontrar a dignidade que nos una, a ética por que se vive, a alegria e o objectivo
que nos façam erguer e confiar (e eles a dizerem que andam a fazer o seu melhor há trinta e quatro
(34) anos! e nunca mais apreendem que a democracia não é a liberdade de repetir o erro sem
responsabilidades). Ao invés, andamos de remendo em remendo, a fingir que somos europeus e
iguais.

Sou um homem das palavras, preciso de as sentir colar, dançar, significar a emoção que os humanos
guardam enquanto espécie, mas nos últimos tempos quase só oiço jazz para esvaziar o ruído sem
novidades. O filme passa nos telejornais e, como o gado que se aproxima do matadouro, os olhos
esmorecem, os músculos derretem, a indiferença e o egoísmo ganham raízes: a violência é uma
consequência do abandono.

Nos tempos da gloriosa URSS o tom deste texto seria visto como um perigoso manifesto que valoriza
o negativo, escamoteia os sucessos e instila o desânimo – daria uns largos tempos num campo de
reeducação. Por cá, o diagnóstico dos homens da maratona que seguem o maratonista José
Sócrates, não será diferente, contentes como andam com a distribuição de 500 mil computadores a
desempregados, suportada por uma dispendiosa campanha de outdoors que sublinha um mero acto
de gestão, mais a entrega de 50 mil certificados do programa “Novas Oportunidades”, um jargão que o
tempo há-de tragar.

Se calhar merecemos os governantes que elegemos, os poucos que votam e os muitos que encolhem
os ombros e papagueiam sobre a desgraça, depois. É uma democracia sem qualidade, assim, entre
governados ausentes e governantes manufacturados na mediocridade partidária, com imensos
diplomas de relações internacionais extraídos das privadas.

A verdadeira oposição faz-se nas ruas; o PM exalta-se e vê comunistas em cada esquina; Carvalho da
Silva continua vertical, sabendo que o tempo corre a desfavor da sua razão; Filipe Menezes, de
disparate em disparate, garante que o PSD não está pronto para ser alternativa e é sincero na sua
fraqueza; vem aí um novo ciclo de eleições e os bolos serão lançados aos tolos; Pacheco Pereira
afirma que há uma onda fascizante que tudo persegue – como em Orwell, pelos costumes, o que se
pensa e o que se diz, as amizades –, o bufo está de volta à coutada Portugal.

Chegou segunda-feira e um tecto cinzento de nuvens cobre o Sol da manhã; vento seco como
lâminas, sem chuva. Como é do conhecimento de todos, a notícia do dia, que perdurará com
prognósticos avulsos, é a saída do treinador Camacho do comando do futebol do meu clube e o
senhor que se seguirá. E essa sim é uma notícia que agrada às empresas de comunicação social:
como as nuvens cinzentas tapa o Sol do resto da vida e permite ao país especular, esquecer e aliviar
como gente grande.

António Manuel Ribeiro - 13-03-2008 10:28

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