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A DIFERENCIAÇÃO SEXUAL, A LEI E O DESEJO.

Dr. Wagner Paulon


1972 - 2008

Um dos melhores processos de abordar a sexualidade humana tem


lugar a partir de comparações que são possibilitadas pela história, pela
etnologia, pela sociologia.

Na vida social quotidiana, o ser-homem e ser-mulher revelam a sua


relatividade, ao mesmo tempo em que a profundidade do seu
enraizamento pessoal.

Mas acontece que a uma reflexão erguida sobre tais premissas se


criticará o fato de não haver procurado fundamentos suficientemente
profundos nos húmus carnal, de não haver mergulhado no "mistério da
origem".

Mistério: a palavra é um refúgio cômodo para a ignorância e para a


preguiça e, sobretudo, para o receio de todos aqueles, que vêem na
sexualidade, antes de mais, um monstro interior que não devemos
despertar. Origem: termo de um retrocesso ilusório, unidade sonhada
e perdida derepente num ponto de partida imaginário. A origem não é
uma floresta mística e povoada de arquétipos? É a criação, no
passado, de uma solução para os conflitos de hoje. Como num eco, a
mesma unidade pode ser encontrada num termo também fictício. E o
Psicanalista, ao investigar a sombra através das malhas de uma rede
lógica, desconfiará dessa estagnação ilusória das linhas do tempo e
não procurará senão o homem de hoje.

Não existe outro ponto de partida que não seja o aqui e agora. Más
existem fundamentos para o aqui e agora. Procurar esses
fundamentos não é tentar uma explicação do presente a partir do
passado, mas compreender o presente a partir das raízes ainda-
visíveis que mergulham na história do homem e da vida.

A Sexualidade, modo de reprodução.

O termo sexualidade é, decididamente, demasiado lato. O que é e o


que não é sexual? A partir de Empédocles, e duma forma inexata, e,
possível falar de amor e de ódio a propósito da atração e repulsas das
partículas elementares; será talvez uma extrapolação frívola, mas a

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imerícia tem uma intenção profunda: erguer, enfim, do átomo até o
homem, uma energética unificada.

A palavra deveria estar reservada até ao momento em que com a


evolução das espécies, vai adquirir um sentido preciso. A sexualidade
manifesta-se a um nível já elevado de organização, com a
inauguração de um mecanismo inverso da divisão celular. A
sexualidade é um modo de reprodução por meio de uma união que
diferencia.

Enquanto a reprodução por cissiparidade - e a enxertia que lhe sucede


- se efetua pela divisão de um indivíduo em dois indivíduos
semelhantes ao primeiro, a sexualidade, pelo contrário, visa à união
de dois gametas diferentes, duas células haplóides, num só indivíduo.
A acumulação, a transmissão e a troca de genes aumentam a
mobilidade volutiva. Não é a divisão, mas a união, que permite a maior
gama de diferenciações da espécie; e essa união supõe a aquisição
de diferenças individuais: os gametas são individualizados.

Nesta perspectiva, a sexualidade parece, a primeira vista, orientada


para a reprodução; alargando as possibilidades duma evolução cada
vez mais complexa. A partir daí, muitos moralistas falam do sentido
"natural" da sexualidade, esquecendo que, na evolução animal, a lei
mais natural de todas, a que vai regular o progresso dessa ascensão
cada vez mais complexa, é a luta ate a morte.

Cometeríamos o mesmo erro se extrapolássemos para o domínio


humano a diferenciação na união. O caminho é inverso: só depois de
havermos demonstrado, a nível muito diferentes, que a união
diferencia, é que podemos aceitá-la como lei e ordem geral.

O aparecimento das estruturas de parentesco

No grupo humano, as necessidades de reprodução continuam a ser


primordial, mas a organização de linhagens, em que os indivíduos
surgem com a consciência de uma pretensa ancestral, vem fornecer-
nos novos dados. O problema que, desde muito cedo, parece levantar-
se à espécie humana é o da filiação, primeira criação de uma ordem
social. Daí, uma analogia também demasiada fácil: o ser-homem e o
ser-mulher não seriam mais que a transposição do ser-macho e do
ser-fêmea ao nível superior da espécie, humana.

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A filiação assenta na realidade fisiológica da sexualidade.
Mas a etnologia cedo veio demonstrar que a determinação dos
genitores macho e fêmea é insuficiente para definir a filiação. Em toda
a parte é necessária uma norma, uma estrutura da sociedade como lei
do grupo, realidade, portanto, de ordem cultural, para transformar os
vínculos de sangue em filiação. É uma norma, aceita como tal e
interiorizada, que define a família. A consangüinidade física é condição
necessária, mas não suficiente, para a existência do parentesco. Entre
os sangüíneos, opera-se uma escolha; um costume elevado à regra
que acaba ser encarado como lei proveniente de uma espécie de
natureza social, estabelece os casos em que a consangüinidade
define o parentesco e determina ainda o rigor variável dos vínculos. A
mesma regra introduz no parentesco membros que lhe trazem sangue
novo. Por si só, o vínculo do sangue é incapaz de constituir um grupo
familiar humano,

Mas o grupo animal organiza-se em verdadeira sociedade.

Criam-se vínculos, estabelece-se uma hierarquia, vigorosa e estável


as fêmeas agrupam-se à volta do macho segundo o seu lugar na
hierarquia, social, surgem em alguns casos casais que podem
permanecer fieis. Mas haverá linhagens no sentido que acabamos de
referir? O vínculo que une o filho aos seus progenitores passará a ser
de filiação? De fato, não existe nenhuma regra que permita uma
ordem na confusão das consangüinidades, isto é, uma ordem que seja
suficiente para se fazer à tradição, para valer como norma. Não existe
permanência permanentemente particularizada para se poder falar de
vínculo parental. E a regulação pode ter lugar mediante
comportamentos extraordinariamente complexos, sem que as
tradições se desenvolvam, antes, mesmo de desabrocharem em
estruturas sociais. A tradição é flexível, ao passo que nós assistimos a
radicação de condutas fixas e estereotipadas. Por vezes, o homem
consegue traçar genealogias no grupo animal; mas essas genealogias
não são, de forma alguma, "estruturas elementares do parentesco".
Falar de auto-regulação do instinto animal, substituída, no caso do
homem, por um domínio voluntário, é extrapolar indevidamente a partir
de verificações muitas limitadas. A evolução da sexualidade levanta os
mesmos problemas que a evolução das espécies, onde tem o seu
lugar e níveis próprios, neles surgindo para desempenhar um papel
fundamental. No jogo dos grandes números, verificam-se
coincidências felizes e estabelece-se um equilíbrio que equivale a uma
regulação, mas ao nível da espécie. Longe de ocupar a posição de um
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equilíbrio específico, o domínio voluntário surge como resultado de
uma descontinuidade radical, uma vez que, subindo na escala das
espécies, caminhamos para o que nos sentimos tentados a designar
como uma completa libertação sexual ao nível dos primatas. Depois
das observações a que se dedicou Carpenter em 1942 sobre uma
colônia de (observações a que se dedicou Carpenter) quatrocentos e
nove macacos rhesus deixados em liberdade na ilha de Santiago, o
largo de porto rico, numerosas pesquisas vieram por em relevo a
versatilidade do comportamento sexual dos antropóides.

Tudo se passa como, se as regras da filiação só tivessem surgido com


o homem, a partir dum grupo animal que, pelo contrário, desembocava
na promiscuidade. As regras humanizantes da filiação situam-se
efetivamente, na linha de uma espécie de libertação biológica, que,
porém, é de tal ordem que conduz um período pré-social, pré-cultural,
pré-humano de promiscuidade, a uma atividade sexual sem regra no
grupo do pré-hominianos.

É certo que podemos facilmente constatar o enfraquecimento do


vínculo parental na família das sociedades industrializadas e
urbanizadas. Mas essa evolução não permite qualquer comparação
precisa com a "monogamia", tal como essa se manifesta em certas
sociedades animais. A família "nuclear" está, nos nossos dias,
reduzida ao casal e filhos menores e é o resultado de uma lenta
evolução dos vínculos de parentesco. O casal animal, pelo contrário,
precede este processo, é anterior ao desenrolar do movimento. Situa-
se antes de qualquer regra que permita a filiação. Assim, a,
perpetuidade animal e assegurada fora de qualquer linhagem, a não
ser que o homem imponha de fora essa linhagem através de uma
seleção artificial.

Mas onde descobrir os fundamentos do grupo humano?

Será o grupo que a si próprio fornece uma regra para se


estruturar?

Será a norma que constitui o grupo como humano? A interação


desenrola-se em perfeita reciprocidade, de acordo com o jogo
recíproco do individual e do social.

Para empregar a linguagem de Claude Lévi-Strauss, diremos que um


universo de regras (o da cultura) sucede o universo das leis (o da
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natureza). Não temos necessidade de reproduzir, a gênese da regra,
mas devemos reconhecer que ela não se impõe por si, que não pode
ser deduzida de uma "lei natural", "o mundo cultural constitui-se, não
fora ou acima, mas no seio da natureza, e o homem é um agente
natural. Nessa qualidade, mais não faz que reorganizar os
condicionamentos naturais, mas essa reorganização não é, por sua
vez, condicionada, e, nesse sentido, mais não pode ser que uma
organização, ou seja, um sistema de regras, no sentido,
nomeadamente de o homem não poder iludir esse poder cultural. O
sistema é vivido como necessário, a regra é sentida como Lei e origem
do etnocentrismo -- a cultura é suportada como natureza".

A relação social deixa de ser uma relação biológica, ainda que


permaneça condicionada por esta última. É preciso avaliar o alcance
de tal ruptura. Existe a relação biológica entre o filho, humano ou não,
e os seus progenitores; a união que originou o seu nascimento é uma
relação biológica entre os progenitores. Mas a relação social de
filiação em outra e esse fundamento não, lhe basta. Aqui, tudo decorre
de uma norma. E os costumes, erigidos em regras invioláveis,
eriçados de tabus protetores, desenvolvera-se em modos diversos de
filiação. Os condicionamentos biológicos apenas nos permitem prever,
a primeira vista, dois tipos gerais consoante a importância a um ou a
outro dos progenitores: patrilinear e matrilinear.

As regras das descendências são condicionadas pelos biológicos, mas


não nascem espontaneamente do biológico nem são os deuses
desenvolvimentos humanos. O social tem outra origem e manifesta-se
com o aparecimento de uma estrutura de parentesco. E a gama de
estruturas de parentesco que vemos desenvolver-se a partir dos
mesmos condicionamentos sexuais e extremamente amplas. Se o
biológico não explica as estruturas sociais que condiciona, os vínculos
sociais, por sua vez, não explicam os sentimentos pessoais que
condicionam, quando os esquadrão, desenvolvem ou recalcam.

Assin, a ternura espalhará a sua bruma protetora sobre os impulsos


eróticos, sem se dobrar às regras do clã; o amor poderá nascer dentro
da instituição familiar, nas não a partir dela, e muitas, vezes nascerá
contra ela. Pode-se até dizer que a instituição começa por proteger a
sociedade da erupção irracional da paixão,

A curiosa espécie humana institui um jogo de interdependências que


amplia a abertura das variações e das mobilidades.
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Podemos já concluir que ser homem ou ser mulher são modos
humanos de existir numa sociedade que não é regulada pela simples
consangüinidade biológica, impondo, pelo contrario, as suas próprias
regras a essa consangüinidade que a precede e se protege dos
sentimentos que a acompanham. Ser macho ou fêmea constitui
condicionamento da condição de homem ou mulher, nas não a define.

A proibição do incesto

Eis-nos, pois, remetidos para a descoberta lê uma norma fundamental:


o mínimo de regras que permite a filiação.

Esta regra mínima, condicionadora da própria existência de uma


sociedade, transforma-se em lei inabalável a que todo o ser humano,
animal social, vai submeter-se. Eis-nos, fundamentalmente, remetido
para a oposição entre o desejo e a lei; aparição de um limite no âmago
do desejo, que, por isso mesmo é universal. O limite só aparece
através de superação que universaliza o desejo; tudo é desejável na
própria medida em que qualquer coisa é impossível ou interdita. No
domínio sexual, a oposição tomará a forma heterossexual, porque a
regra visa a filiação: nem toda a mulher desejável é acessível. A
proibição fundamental pode, na sua forma mais simples, exprimir-se
assim: não nos é permitida a união com uma, pessoa qualquer.
Algumas fêmeas estão interditas ao macho ou alguns machos à
fêmea, não porque aquele receie enfrentar um possuidor mais forte
nem, como é evidente, porque o homem conhece uma
regulamentação biológica do desejo, mas porque de outra, forma a
sociedade deixaria de ter bases, não existiria mais e o humano
desapareceria com ela. As proibições respeitam, em primeiro lugar, a
união do macho com a mãe ou da jovem com o pai (porque é ela a
primeira a opor-se ao estabelecimento de uma filiação, de um laço
parental, com uma importância que se acentuara mais ou menos, num
sentido ou noutro, consoante as modalidades de descendência forem
patrilineares ou matrilineares).

É neste sentido, o mais geral possível, que se pode ver na proibição


do incesto o sinal da passagem ao humano. Esta interdição serve de
fundamento ao vínculo parental, marca a passagem, do grupo animal
ao grupo humano ou, se preferir, a passagem da natureza a cultura.

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A partir do momento que existe o humano, o desejo é refreado. E esta
limitação resulta duma interdição que, por sua vez, deriva, não de uma
impotência concreta, mas duma regra do grupo que é interiorizada a
ponto de se fazer dela uma lei. Este poder social que refreia o desejo
leva ao recalcamento. E a ordem, não pode ser invertida: sendo
condição do recalcamento, a proibição não pode ser resultado dele.

Dai, há que tirar algumas conseqüências psico-sociológicas. Se a


união com a mãe é proibida, isso não e conseqüência de uma lei
biológica que, nesse caso, suspenderia o desejo sexual. Também não
resulta de uma sublimação psicológica: essa sublimação pressupõe o
recalcamento, que por sua vez pressupõe a limitação de desejo. O
papel essencial é desempenhado pela proibição, uma proibição que,
no grupo humano, vale como lei porque faz valer esse grupo como
humano. Também no vínculo irmão-irmã a sexualidade é
obrigatoriamente superada, não porque a vida em comum, embotando
o desejo sexual, basta para o explicar, mas em função da existência
da regra, elevada à categoria de lei. A norma que estrutura o grupo
familiar obriga à sublimação do desejo, ao mesmo tempo em que dá
origem ao recalcamento.

Estas observações encaminham-nos para una conseqüência capital


no que respeita às relações do ser-homem e do ser-mulher com o ser-
macho e o ser-fêmea.

A passagem da animalidade à humanidade não pode ser


individualizada, não pode haver passagem de um animal a um
homem; a passagem efetua-se da esfera animal para a esfera
humana, da humanidade à animalidade, ou, como diz Hegel, da vida
ao espírito.

Como lei, do grupo, a proibição vai também, obrigar; os grupos a


unirem-se. A proibição do incesto não tem sentido apenas dentro de
uma linhagem; individualizando (individualizada), a linha de
parentesco extingue-se. É preciso que a mesma proibição sé imponha
a outro grupo onde surjam, também, vínculos de parentesco. É então
que a interdição desvenda o seu sentido: não se trata de uma
limitação de permuta sexual; é, pelo contrário, a lei que vai obrigar a
alargar o campo da permuta, à escolha da esposa fora do grupo
familiar. Ao elevar-se à categoria de lei, a regra muda de sinal, passa
a ser lei de reciprocidade na permuta. A repressão do desejo vai
permitir aos indivíduos que lentamente descubram, ao longo da
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história, que a limitação não passa de aparência e conduz, afinal, ao
desabrochar da dádiva.

Porque fundamental esta oposição entre a lei e o desejo excede o


campo sexual, no qual a vimos aplicada, e repercute-se nas zonas
mais nítidas da consciência; os seus ecos ressoam a to dos os níveis
do grande concerto humano. "É tão necessário que o pensamento se
baseie num impulso vital e numa espécie de avidez-espiritual, quão
indispensável é em nós que esse movimento de expressão seja, pelo
menos parcialmente, detido, avaliado, forçado-a desdobrar-se em
reações múltiplas e ativas". Desejo, refreado!

O desejo é humanizado pela lei que o limita. É graças, a essa


limitação que a relação entre o homem e a natureza deixa de ser
imediata. A relação homem-natureza resultará de uma ação, será
mediatizada pelo trabalho. O desejo animal destrói o seu objeto, o
desejo humano é desejo refreado. No homem, a satisfação da
necessidade e evanescencia do objeto são assim retardadas. O
desejo animal é destruidor, mas o animal continua prisioneiro da
relação desejo-objeto, da coisicidade. Retardamento e limitação são
de natureza formativa e o homem nega realmente o objeto sem o de ir;
a sua negação consiste em transformar o objeto para a si o submeter.

Uma análise mais geral do desejo conduz-no ao mundo humano do


trabalho. O desejo sexual não é regulado de maneira diferente; e a
sexualidade é assim introduzida no mundo humano, não diretamente
através da sublimação, mas, mais uma vez, pela passagem dileta de
toda a animalidade a toda humanidade.

O fundamento assim reconhecido não é de forma alguma transponível


em gênese, o que nos arrastaria indefinidamente para o passado, em
busca de uma origem inatingível. Mais que de origem, trata-se de um
fundamento perpetuamente presente. Tal como a transição, a
oposição do desejo à lei manifesta a diferença entre a vida e o
espírito, entre duas esferas diferentes, entre natureza e a cultura, a
sua inserção -num mundo de comunicações é sempre referida a um
desejo refreado.

Mas, mais do que a interdição sexual, o exemplo dado por Maurice


Blondel recorda o trabalho alienado do escravo, trabalho executado, já
não satisfação dos seus desejos ou necessidades, mas em obediência
à lei do mais forte, à lei do senhor. Na dialética complexa que está na
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origem deste ser-relacional que define o humano, a sexualidade
desempenha em absoluto o papel de catalisador, antes de ela própria,
se tornar sinal e linguagem. Ê em virtude de o homem ser um animal
político que a sexualidade se torna sinal de austeridade radical, mas a
relação não é, em si mesma, a origem da relação interpessoal. E se a
sexualidade de hoje a mais elevada manifestação da
interpersonalidade na intimidade conjugal, não o é como origem, mas
como linguagem, foi lentamente que, no decorrer da lenta história das
culturas, a sexualidade pôde-se tornar humana. A tentativa de
descrever uma gênese, harmoniosa e contínua da sexualidade animal
até à sexualidade humana acha-se voltada ao fracasso, dada a
parcialidade do seu ponto de vista; igualmente falacioso será o
moralismo biológico que pretenda encontrar para a regra social ou
para a regra moral uma base definitivamente celular ou genética. O
espírito não é um osso, nem a organização celular que lhe
acondiciona o aparecimento. Resta que é bem a oposição entre o
desejo e a lei que faz passar a sexualidade do seu papel na
reprodução animal para a esfera humana, onde o homem e a mulher
já não podem descobrir-se como macho ou fêmea senão através de
uma cultura e de estruturas sociais, a partir de uma organização
particular.

Relatividade apaziguadora na qual é preciso insistir, de tal maneira é


grande a tentação que leva certos espíritos a procurarem a explicação
do presente numa re-criação do passado, ou numa ilusória
representação das origens. A imagem do andrógino é um bom
exemplo desta forma de solucionar os conflitos de hoje pela sua
repressão pura e simples num passado mítico. E da mesma maneira
que a oposição dos sexos aparece imaginariamente resultar de uma
divisão, o ideal será a fusão e não a comunhão um só e não dois
numa só carne. A ciência e a filosofia comprovam a existência dos
mitos, mas o mito não contém mais que uma necessidade de
ordenação, e de unificação. Enquanto revelador de uma sabedoria já
totalitária à nascença, o mito deixa de ser portador de sentido; a
história permite compreender os mitos, mas a recíproca não é
verdadeira.

Não pensemos, porém, que, no final de contas, acabamos com os


ecos que se repercutem no nosso presente, de descrever uma
gênese, embora parcial, e que, descrevendo-a, lhe descobrimos uma
explicação.

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Passamos de uma esfera animal onde não existia a interdição, que,
para simplificar, chamamos proibição do incesto (ainda que o incesto
nem seja sempre forçosamente interditada), para uma esfera humana
onde o desejo, de por si universal, é limitado pela lei. Mas a oposição
do desejo e da lei não explica, de forma alguma, uma transição de que
é resultado. Uma fenomenologia mais completa deveria ainda indagar
como é que o desejo se tornou universal e como é que esse desejo
universalizado se vê impor um limite interior, ainda que intransponível
ou pelo menos, de tal ordem que a sua transgressão implica
necessariamente uma ruptura da ordem total do mundo. Mas como
nasceu a lei? O que se nos apresenta é uma descontinuidade, cuja
importância mais uma vez é preciso acentuar, pois há ainda muitos
biólogos que se julgam autorizados a vulgarizar a idéia de que o
homem provém, do macho e a mulher da fêmea, como a galinha do
ovo chegando a ponto de procurar descobrir fundamentos biológicos
para as leis morais, nesta harmonia imaginária.

Os indivíduos que não eram senão machos ou fêmeas descobrem-se


homem e mulher, numa sociedade cuja regulamentação cultural se
transforma em lei social. A luta até à morte, lei “natural” das espécies,
é limitada pela obrigação de trocas, racionalização dessa, luta até a
morte. Hegel mostrou que esta transição supõe um vínculo relacionai,
conhecimento e reconhecimento, uma dialética senhor-escravo tão
fundamental como o dialético homem-mulher. A relação do senhor
com o escravo é, em si mesma, uma limitação da luta até a morte e
também do desejo, na medida em que este é, no fundo, negação:
limite interior a agressividade do desejo. Sem descrever de novo as
etapas lógicas de tal transição, basta constatar que na dialética
senhor-escravo, assim como no dialético homem-mulher, não se é
homem enquanto, indivíduo, mas enquanto relação. O homem não é
homem senão enquanto conhecido e reconhecido, tanto na oposição
como na conjunção.

Escrevendo noutras perspectivas, Lévi-Stauss demonstrou que o


humano só se revela a um triplo nível de permuta: permuta de bens,
mas como um desafio na dádiva, "prestação total de caráter
agnóstico", para usar a expressão de Marcel Mauss; permuta de
mulheres, com as suas normas particulares, tanto dentre como fora do
clã; permutas de experiências, finalmente, por meio de linguagem. Em
caso algum encontramos a oposição artificial do indivíduo a
sociedade; o grupo interioriza as suas normas, as suas regras
transformam-se em “substancias ética” e a eficácia de uma lei é muita
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mais terrível quando a sua transgressão abala o microcosmo
constituído por todo o horizonte do coração e do pensamento. É com
estas leis que a sociedade se defende, não só contra a liberdade de
permuta sexual, que ameaçaria a vida e coesão do grupo, mas
também contra uma econômica não encerrada no sistema de
prestações totais. Nem a própria permuta verbal deixou de ser limitada
por rígidas leis de segregação sexual, ao momento em que a
sociedade inventou estruturas sólidas capazes de assegurar, por vias
diferentes dos vínculos de parentesco, uma coerência igualmente
sólida.

Ser-homem e ser-mulher

Ser-homem ou ser-mulher não consiste apenas em ser macho ou


fêmea da espécie humana; consiste também em se descobrir como
pessoa numa cultura, uma vez que a sexualidade lá não se revela ao
homem e à mulher senão através da oposição (social) entre a lei e o
desejo. A “natureza” biológica, por mais presente que esteja com toda
a sua força, surge como um passado, passado por que a esfera
biológica não é mais que um condicionamento da esfera humana,
passado porque o humano não é uma rosa que desabrocha
lentamente na extremidade do caule animal, mas um mundo que
surge dum outro mundo. As gerações evolutivas do mundo animal não
são mais que imagens e só um pattern estatístico nos dão um seu
equivalente. A continuidade é, sem duvida, total na medida em que é
possível encontrar um parâmetro no embrenhado da evolução, mas
também a ruptura dá-se ao nível de duas totalidades específicas e, na
esfera humana, a natureza, física e biológica, não é mais que um
dado, uma obra a se realizar, a fim de a conhecer, dominar, organizar
e transformar.

É tempo de tirarmos daqui algumas conseqüências.

O macho e a fêmea definem-se por características biológicas


individualizadas, por um lado, e por outro, comportamentos
específicos. Para lá dos condicionamentos da geração, masculinidade
e feminilidade devem definir-se por vínculos sociais? Alguns afirmam
que devem definir-se também por meios de vínculos sociais, como se
esses vínculos sociais fossem exteriores ao biológico e a ele
acrescessem, quando o sistema de parentesco é uma reorganização
dos condicionamentos naturais e o sistema de reorganização não é

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imposto por esses condicionamentos; a única necessidade é a própria
existência de uma reorganização.

Há interpretação e interação de duas esferas, sem que uma possa


determinar a outra de uma vez para sempre, o vinculo não é casual; é
para se achar uma permanência na diferenciação sexual ao nível do
homem e da mulher, é preciso recuar até à proibição do incesto, a
menos que confundamos o humano com os condicionamentos
biológicos. O homem é um macho, mas o fato de se macho não tem
um sentido já constituído, que se manifeste na masculinidade; a
mulher é una fêmea, mas ser fêmea não é um sentido definitivo,
transposto em feminidade. Na base da sexualidade de humana,
encontramos a oposição desejo-lei. Mudamos de esfera quando as
semelhanças entre as condutas complexas dos homens e as dos
animais continuam a ser evidente. A descontinuidade prossegue na
esfera, humana, como discordância entre os vínculos de sangue, os
vínculos de parentesco e os vínculos afetivos, cuja trama se mistura
sem se confundir. No entanto, o problema fundamental é o da
descendência, tal como para a espécie animal era o da reprodução, e
não o do amor e nem o da diretamente o da união do macho com a
fêmea.

Numa perspectiva de pura continuidade passaríamos de um instinto


auto-regulado da espécie, no animal, para, um instinto dominado pela
vontade, no homem. No animal, a regra basear-se-ia num
comportamento instintivo harmonioso que visasse o bem da espécie,
ao passo que à vontade do homem visaria o bem comum da pessoa e
da sociedade - isto sem mesmo indagarmos se existe
verdadeiramente um instinto exterior aos comportamentos.

Ê a linhagem que, desde logo, importa. Mas toda e qualquer


transposição do indivíduo animal para o indivíduo humano é muito
pouco significativa. Não existe instinto maternal na fêmea animal; há,
sim, um comportamento complexo integrado num vasto sistema social
que visa o bem da espécie e nela a fêmea tem o seu papel a
desempenhar. Mas, quando o observador intervem para confundir os
dados fundamentais do sistema, o comportamento é alterado. O
sistema de parentesco humano é semelhante, mas assenta num dado
específico: a oposição desejo-lei e as suas repercussões a todos os
níveis da organização social. Se considerarmos o exemplo da
maternidade, ficamos surpreendidos quando a vemos ainda
apresentada como um instinto, que se manifesta em vocação
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individual. O erro está quer em considerar a fêmea animal abstraído
da sociedade animal, quer em encarar a mulher fora do contexto da
sociedade humana.

Mas acabaríamos por cair no mesmo simplismo se comparássemos as


sociedades animal e humana para extrairmos da comparação diretivas
ou normais.

A sexualidade não visa, imediatamente, o encontro interpessoal do


homem e da mulher, mas o grupo e a sua, permanência. A tomada de
consciência, de outro como o homem desabrochará sem dúvida,
plenamente no amor recíproco do homem e da mulher, mas as
relações inter-humanas não se situam imediatamente ao nível duma
sublimação da sexualidade. O homem não se faz homem ao tomar
consciência da alteridade radical que a sexualidade implica; pelo
contrário, é a lenta historia das relações humanas, e a complexidade
crescente dos vínculos respectivos que o fazem tomar consciência do
novo sentido que a sexualidade pode adquirir. Só tardiamente a
sexualidade se transformará num tranqüilo encontro interpessoal, não
sem ter de triunfar de inexoráveis tabus e de superar instituições que
faziam fundamentalmente do casamento um encontro de famílias.

Só então o erotismo, em lugar de ser um acesso do desejo


exasperado pelos limites impostos pela lei, pode também tornar-se
linguagem de amor

É a este nível de investigação que é preciso chegar para se saber


como é que a sexualidade se fez lentamente linguagem É certo que,
nas civilizações primitivas, a mulher era encarada como produtora de
sinais e objetos de troca, antes de ser encarada como produtora de
sinais e objetos de desejo. É preciso que o amor exceda as fronteiras
da permuta sexual e se situe também no domínio da permuta
econômica e verbal. Mas serão necessários milênios para que o
erotismo concebido como significação simbólica dada ao ato
fisiológico para o transpor para um nível daquele em que se realiza----
se transforme em linguagem de amor. Dizer que o erotismo
desemboca hoje na linguagem não é romantismo, sonho ou tagarelice
amorosa, nem esquecimento das pulsões sexuais que estão na
origem do encontro das pessoas na sua qualidade de homem e de
mulher; sendo o homem um animal político, corresponde a afirmar que
a sexualidade é uma dimensão da sociedade humana e em toda a sua
evolução, dimensão de uma totalidade por forma tal que em nenhum
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domínio é possível esquecer o sexual. A união realiza-se numa
sociedade determinada e, realizando-se, obedece ou viola as leis, mas
o amor não é um epifenômeno dessa união, nem uma aura que o
prepare ou prolongue. Como toda a linguagem, o amor aprende-se,
forma-se e aperfeiçoa, criando uma historia e uma cultura. Mas a
passagem da sexualidade à linguagem e tão recente que não
ultrapassamos ainda a fase do seu balbuciar. A sexualidade só se
pode expandir como linguagem numa sociedade que tenha inventado
estruturas bastante fortes para lhe permitir defender-se da paixão e
até da família; isso supõe uma igualdade efetiva os níveis de
educação. 0 amor conjugal, tal como ele hoje pode surgir ao nível da
permuta verbal e da permuta econômica, desponta sobre séculos de
história e de evolução cultural.

O amor enraíza numa vida social em que o homem se torna mais


homem e que não resultou da relação sexual.

Mas esta afirmação é muitas vezes mal compreendida como se


fizéssemos do amor uma relação transcendente à relação sexual--
quando o que pretendemos dizer é que a relação sexual não basta
para explicá-lo. Os esquemas explicativos à maneira causal são
insuficientes a menos que se faça do homem uma coisa, viva e
sensível embora.

Não é a relação sexual que explica o amor nem, inversamente, o amor


que explica a relação sexual e o sentido assim conferido,
verdadeiramente novo, não têm antecedentes, mas apenas
condicionamentos múltiplos, aproximações sexuais, no sentido
biológico do termo.

Masculinidade e feminilidade são pseudoconceitos que só podem


encontrar definições movediças numa sociedade determinada.
Enquanto as sociedades se afiguravam fixas, enquanto os legisladores
julgavam legislar para a eternidade (e os convencionais ainda
persuadidos disso), foi possível encarar a masculinidade e a
feminidade como categoria definível com um conteúdo sólido e
permanente, sob uma superfície movediça folclórica. Hoje a sociedade
evolui de forma demasiadamente rápida e a relatividade do passado é
demasiado conhecido para podermos ceder as essas tranqüilizantes
ilusões de estabilidade.

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Masculinidade e feminidade não são características individuais,
de ordem biológica ou psicológica. O papel que desempenham é
variável.

É em vão que o receio da história procura um refúgio no positivismo


psicológico ou num biologismo que não faria mais do que renovar a
simplicidade do vitalismo. A formação de estruturas de parentesco
impede-nos de confundir os condicionamentos com os fundamentos
do humano,

Mas não estamos por isso autorizados, como julgava Simone de


Beauvoir, a ver na categoria do feminino---a única em questão, em
virtude da tradicional inferioridade feminina---uma pura criação da
história social. Isso levar-nos-ia a uma pura neutralidade sexual ao
nível da pessoa, onde o valor do corpo sexuado proviria apenas das
forças das imagens sociais. Mas o fato de não serem fundamento da
esfera humana não impede os condicionamentos biológicos de lhe
imporem limitações. O que acontece é que essas limitações não
podem ser fixadas de uma vez para sempre ao nível do indivíduo.

Somos levados a tornar como objeto de análise a própria relação, a


pessoa enquanto relação. A relação sexual aparece, a partir daí, como
fundamental e constitui ligação com uma porção de outras relações
que fazem do homem um animal social, o sexo interfere em tudo, na
medida em que não existe uma malha da vasta rede social em que o
não encontremos implicados. A sexualidade humana não é origem
simples nem única atmosfera; é uma dialética fundamental, que
interfere com outras dialéticas fundamentais.

Ligada à história, a sexualidade passa a ser, para nós,


simultaneamente, linguagem e obra a realizar. A história, uma vez
descoberta e entregue ao homem, não mais será abandonada. Muitos
pensam que, uma vez passada a crise, surgirão outras normas, outros
papeis a desempenhar, outras imagens em que será possível objetivar
de novo o masculino e o feminino; uma vez reencontrada, por algum,
tempo, a estabilidade, a comparação, torna-se-á de novo possível e
poderemos efetuar então a decantação do que resta do passado e
daquilo que foi rejeitado, modificado, acrescentado. Trata-se, porém,
duma esperança vã, pois isso seria abandonar a história. Durante
muito tempo, o próprio domínio político pareceu fundado em leis
naturais, e a sociedade pode ser encarada como uma grande família
tradicional, vivida ainda como “natural”. Só muito recentemente nos
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desembaraçamos das leis naturais da economia e começamos a
considerar normal a intervenção do homem no mercado. Política e
economia passaram a ser obras humanas. Por sua vez, e em último
lugar, a sexualidade passa também a ser linguagem e obra humana,
obra a realizar, delicada, difícil e apaixonante. Cabe-nos a nós, a nós
apenas, dar-lhe um sentido. Mas não ao acaso. A sexualidade não
está mais sujeita a qualquer dos caprichos da nossa fantasia do que a
economia ou a política, mas está entregue nas nossas mãos. A
masculinidade e a feminidade serão, de hoje em diante, aquilo que o
homem e a mulher fizerem delas. Não sem limites (uma vez mais) ou
condicionamentos; a supressão da oposição entre o desejo e a lei
seria, o fim do humano.

Já não por adaptação do modo feminino de existir ao modo masculino,


tido por mais eficaz ou mais capaz de expansão, o que seria una
forma de acabar, de vez, com o problema e com a oposição. Trata-se-
á, pelo contrário, de uma mútua diferenciação totalmente sujeita a
desenvolver-se, mas de uma diferenciação ativa ao nível da relação
interpessoal.

“Se a dualidade dos sexos não podem ser reduzida a um fenômeno da


natureza, e também não resulta apenas da historia das civilizações.
Uma verdadeira antropologia só pode desvendar a natureza no âmbito
duma sociedade concreta, onde a cultura só se torna hunana
suscitando novos riscos de desnaturar o homem e a mulher”. Seria
ingênuo pretender congelar a relação homem-mulher, tal como a
relação natureza-cultura. Tão ingênuo seria também pretender
restringir a diferenciação sexual como pretender reduzir a uma só
natureza e cultura.

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