Você está na página 1de 30

Revista enfRentamento

o
Ano 03, n 05, Jul./Dez. de 2008 ISSN 1983-1684
Revista Enfrentamento
ÍNDICE EXPEDIENTE
P
Á A Revista Enfrentamento é uma publicação do
Movimento Autogestionário. A revista não se
G responsabiliza pelo conteúdo dos artigos
I assinados, que são de inteira responsabilidade dos
seus autores. Os interessados em enviar
N colaborações devem fazê-lo via e-mail e
seguindo as normas de publicação da revista. O
A e-mail para envio é:
03 A Unidade entre Revista enfrentamento@yahoo.com.br. As normas são:
Luta Cultural e Enfrentamento texto digitados em Word for Windows, com no
máximo 10 páginas, espaço 1,5, margens padrão
Luta Política
do Word, fonte Time New Roman, 12. A revista
se preserva o direito de publicar os artigos de
04 Breve História do Nildo Viana acordo com seus critérios políticos e de
Neoliberalismo qualidade. Qualquer caso omisso será resolvido
por seu conselho editorial.

11 Estado e Revolução Rafael Saddi Conselho Editorial:


Cubana: Lucas Maia dos Santos
Estatização dos Nildo Viana
Meios de Produção Veralúcia Pinheiro
e Exploração dos
Revista Enfrentamento, ano 03 no 05 Jul/Dez. de
Trabalhadores 2008.
(1959-1962) http://movaut.ning.com/page/revista-
enfrentamento
19 Comunismo de Lucas Maia enfrentamento@yahoo.com.br
Conselhos e Crítica
ao Bolchevismo

28 O Grupo Anton
Comunista Pannekoek
Internacionalista
da Holanda
A unidAde entre lutA culturAl e lutA política
Revista Enfrentamento

Este editorial tem um único objetivo: Comuna de Paris. Ou seja, uma coisa é
demonstrar que a luta cultural é uma defender concepções revolucionárias num
unidade com a luta política. A luta de momento revolucionário, outra muito
classes opera cotidianamente na esfera da diferente, é colocar a inteligência e a ação
produção, vez ou outra no desenvolvimento para funcionar de um ponto de vista radical
das lutas operárias, esta vai além da mera em momentos de recuo da luta operária.
resistência espontânea e isolada e passa a se Este enfrentamento que agora o leitor
expressar um conteúdo revolucionário. tem em mãos é uma tentativa de expressar o
Quando isto ocorre, as bases da sociedade mais claramente possível a perspectiva do
inteira como está organizada é ameaçada. proletariado num momento no qual este
Num momento destes, a efervescência de encontra-se completamente subordinado à
idéias, a produção de novas concepções lógica do capital. Estes textos que agora o
sobre a vida, sobre o mundo, sobre as artes, leitor tem em mãos não é expressão da
sobre cultura de um modo geral se consciência empírica do proletariado, mas
modificam. Como diria Pannekoek, na sua sim, do ser de classe do proletariado. A
grande obra “Os Conselhos Operários”, a “Breve História do Neoliberalismo” de
revolução proletária é sobretudo uma Nildo Viana, O “Estado e a Revolução
revolução do espírito. A produção de novas Cubana” de Rafael Saddi, “O Comunismo
relações sociais é simultaneamente a de Conselhos e a Crítica ao Bolchevismo”
produção de novas concepções sobre a de Lucas Maia e “O Grupo Comunista
realidade. Internacionalista da Holanda” de Anton
Em momentos de estabilidade da Pannekoek, publicado originalmente em
produção capitalista, a produção cultural 1947 e traduzido por Nildo Viana visam dar
tende a se tornar cada vez mais uma contribuição neste sentido.
conservadora, reproduzir com muito mais A luta cultural é portanto um
freqüência as ideologia, valores e instrumento político fundamental do
mentalidades inerentes à sociedade proletariado. Como já afirmava Marx,
existente. São poucos, muito poucos os devido ao seu ser de classe, às condições
grupos e indivíduos que conseguem materiais de sua existência e à sua situação
compreender o momento de geral no interior da sociedade burguesa, o
recrudescimento da luta concreta da classe proletariado só tem compromisso com a
trabalhadora e expressar, neste contexto, verdade. A luta cultural pode se expressar
ainda uma concepção revolucionária. Como nos mais variados âmbitos: produção
Pierre Fougeyrollas alguma vez: não é artística em geral (música, poesia, prosa,
impressionante que Marx tenha se tornado escultura, pintura etc.) e na produção teórica
um revolucionário na década de 1840, em particular. Este número da
culminando com o Manifesto Comunista de Enfrentamento é uma contribuição teórica
1848, período no qual o proletariado logrou no sentido de apresentar a perspectiva
grandes batalhas, mas sim que ele tenha se proletária. Nosso único compromisso é com
mantido revolucionário durante as décadas a luta revolucionária do proletariado, com
de 1850 e 1860, período de grande recuo da mais ninguém.
luta revolucionária do proletariado, que só
veio a ressurgir novamente em 1871 com a

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 3


BREVE HISTÓRIA DO NEOLIBERALISMO

Nildo Viana
nildoviana@terra.com.br
A história da humanidade é marcada é a fonte explicativa para as transformações
por mudanças, evoluções, rupturas. A estatais e ideológicas e não o contrário. A
sucessão de modos de produção é expressão idéia de totalidade, exigência metodológica
deste processo. Em cada modo de produção fundamental, é abandonada por concepções
também há mudanças, evoluções, rupturas. que enxergam o Estado capitalista numa
Isto ocorre com todos os modos de produção suposta evolução imanente, assim como os
e também com o capitalismo. A sucessão de idealistas fazem com a história das idéias.
regimes de acumulação demonstra o A necessidade da acumulação
processo de transformação no modo de capitalista e suas dificuldades (tendência
produção capitalista. Porém, um regime de declinante da taxa de lucro, luta operária)
acumulação também não é estático, é são fundamentais para explicar a
histórico e caracterizado por alterações e emergência do neoliberalismo. O toyotismo
isto vale para os seus elementos contribuiu com a recuperação do Japão e
componentes. O neoliberalismo, assim como proporcionou um novo modelo de
qualquer outra formação estatal capitalista, organização do trabalho que foi copiado,
não é algo estático e a-histórico. O posteriormente, no contexto das novas
neoliberalismo também sofre alterações com necessidades do capital a partir da década de
o desenvolvimento histórico. Sendo assim, 1980, pelos países capitalistas imperialistas.
adquire importância tentar observar as O modelo Toyota, forma específica
mudanças ocorridas no Estado neoliberal, instaurada no processo de valorização
desde suas origens até os dias atuais. (relações de trabalho), proporcionou a base
As Origens do Neoliberalismo da chamada reestruturação produtiva e sua
Para alguns, o neoliberalismo teria sua generalização mundial que se inicia nos
origem na década de 1940. Seria nesta época países de capitalismo imperialista e atinge,
que surgiria as ideologias produzidas por de forma diferenciada, os países de
Hayek e Rawls, entre outros. No entanto, capitalismo subordinado. Um novo regime
esta época era a do Estado integracionista, de acumulação se instaura e este exige uma
vulgo do “bem estar social”, um antípoda do nova formação estatal, o neoliberalismo. A
Estado neoliberal. Nesse contexto, o crise do regime de acumulação anterior,
neoliberalismo era apenas uma ideologia. fundado no fordismo, estado integracionista
Assim, o que se pode dizer é que nesta e imperialismo oligopolista transnacional,
época surgiu a ideologia neoliberal, mas não expressa na queda da taxa de lucro médio
o Estado neoliberal. Pensar que o Estado (Harvey, 1992) e nas lutas sociais em todo
neoliberal foi a mera aplicação desta mundo (Viana, 1993; Viana, 2008), com
ideologia é outro equívoco a ser evitado. destaque para as lutas operárias e estudantis
Trata-se de uma concepção idealista e nada na Itália e França, produziu a necessidade de
dialética. A ideologia neoliberal produzida transformação do regime de acumulação.
nos anos 1940 é retomada, assim como A emergência do neoliberalismo é a
outras são produzidas, para atender às novas resposta a este processo de cries do regime
necessidades do capital. de acumulação anterior, sendo manifestação
As origens do neoliberalismo estão do novo regime. O capitalismo busca
muito mais nas transformações do alternativas no sentido de superar as crises e
capitalismo do que no reino nebuloso das dificuldades encontradas e estas não
ideologias. O modo de produção capitalista terminaram com a derrota de maio de 1968
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 4
em Paris, pois as lutas continuavam alguns itens, quer momentaneamente
existindo, enfraquecidas em alguns países, acalmar o Terceiro Mundo e evitar um
mais ainda influentes em outros, tal como no afrontamento que venha fazer naufragar o
caso de Portugal e a Revolução dos Cravos ‘livre comércio’ e a ‘livre empresa’, que até
até chegar ao da Polônia de 1980. Porém, a agora tem gerado dividendos tão suculentos
crise do petróleo e outros tropeços do para os países ricos (Siste e Iriarte, 1979, p.
capitalismo também dificultavam a situação. 173).
O trilateralismo era a tentativa que já O processo de intensificação da
anunciava o futuro, o regime de acumulação exploração mundial é o objetivo, mas não no
integral, mas ainda não o expressava discurso. Este é um dos problemas dos
integralmente. A década de 1970 foi um analistas da Comissão Trilateral, pois ficam
tempo de transição, no qual o antigo regime presos ao discurso sem perceber o que está
de acumulação (intensivo-extensivo) ainda por detrás dele. A preocupação com o
era hegemônico, mas embriões do novo chamado “Terceiro Mundo” é mais do que
regime de acumulação já existiam. O uma precaução. Trata-se de realizar uma
principal embrião do novo regime de política preventiva aos possíveis efeitos de
acumulação que já estava presente no uma política de espoliação ainda maior. Este
trilateralismo é a ênfase repressiva no papel processo, aliado com o neofordismo, o
do Estado e na exploração internacional processo inflacionário galopante e a pressão
(fora do âmbito do regime de acumulação, das dívidas externas, marcam esta etapa
no plano cultural, se desenvolvia o pós- transitória e fracassada do regime de
estruturalismo, por exemplo). acumulação anterior, mas que deixou
A chamada Comissão Trilateral elementos que seriam desenvolvidos pelo
(Assmann, 1979) foi uma tentativa de evitar regime de acumulação integral,
o aprofundamento da crise ainda no interior fundamentalmente a intensificação da
do regime de acumulação intensivo- exploração e da repressão. Porém, no novo
extensivo e seu fracasso provocou a regime, a repressão e a exploração deixam
instauração do regime de acumulação de atingir apenas os países de capitalismo
integral, cujo objetivo é aumentar a subordinado e passam a atingir os países de
exploração, nacional e internacional. O capitalismo imperialista e passa a ser
trilateralismo é o último suspiro do regime efetivado a nível internacional e nacional.
de acumulação intensivo-extensivo e, ao É neste contexto que nos anos 1980
mesmo tempo, o anunciador do novo regime emerge o neoliberalismo e a chamada
de acumulação. O que o trilateralismo “reestruturação produtiva”, sendo que são
anuncia do novo regime de acumulação? Ele processos complementares, aliado ainda
anuncia a necessidade de aumento da com o neo-imperialismo. Estes elementos
exploração internacional e da repressão para são sendo implantados paulatinamente a
conseguir concretizar este objetivo: partir dos anos 1980. A eleição do governo
O mundo industrializado começa a se Thatcher em 1979 ao lado da vitória
amedrontar e a tomar precauções diante de eleitoral de Ronald Reagan em 1980 e,
uma união mais efetiva dos países pobres. O posteriormente de Helmuth Kohl em 1982
‘trilateralismo’ elabora uma resposta marca o avanço sucessivo de governos
histórica. O ‘trilateralismo’ não quer neoliberais, que, assim, assumem o poder na
transformações demasiados radicais, porém Inglaterra, EUA e Alemanha,
tampouco permanece imóvel. Chegou à respectivamente. Esta é a primeira fase do
conclusão de que é necessário mudar capitalismo neoliberal (regime de
algumas coisas importantes. No entanto, não acumulação integral), marcado pela eleição
se deverá alimentar muitas ilusões; pretende de governos neoliberais e de outros que,
reformar o sistema para salvá-lo. Com a paulatinamente, passam a adotar políticas
oportuna concessão no que se refere a neoliberais.

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 5


Emergência e Consolidação do ideológico e político do chamado
Neoliberalismo “marxismo”-leninismo, o que traz mudanças
Este período vai de 1980 até o início na oposição – que tem uma parte que
dos anos 1990. É a época de expansão do capitula, outra que se mantém na oposição
neoliberalismo e de suas primeiras com o mesmo credo e uma outra que busca
manifestações, tal como as privatizações, a nova inspiração política e teórica. A vitória
desregulamentação das relações de trabalho, do neoliberalismo é anunciada por
o ajuste fiscal e monetário, a ideologias grandiloqüentes com a do “Fim
desregulamentação dos mercados. O da História” e emerge o pensamento único.
neoliberalismo – expressão do regime de O mundo se torna neoliberal.
acumulação integral ao lado do neo-
imperialismo e da reestruturação produtiva – O Neoliberalismo Hegemônico e a
busca, para utilizar expressão de Bourdieu, Retomada da Acumulação Capitalista
“uma exploração sem limites” (Bourdieu, A partir dos anos 1990 o
1998). O endurecimento do capitalismo a neoliberalismo entra em sua segunda fase, a
partir desta época vai se desenvolvendo e fase hegemônica. Já praticamente livre do
expandindo pelo mundo. bloco capitalista estatal e das forças políticas
Neste contexto, há uma precarização que lhe apoiava, com governos neoliberais
do trabalho e um aumento do desemprego, assumindo o controle de países como Brasil
produzidos pelas alterações no processo de e Argentina, entre vários outros, a nova fase
produção e reprodução do capital a nível é de uma ofensiva poderosa buscando
mundial. As condições de vida aumentar ainda mais a exploração capitalista
desfavoráveis e o crescimento da miséria e mundial. A acumulação capitalista nos anos
da pobreza se generalizam, inclusive nos 1980 conseguiu evitar uma queda e iniciou
países imperialistas. O Estado neoliberal um processo de recuperação e
corrói as políticas de assistência social e intensificação. Isto, no entanto, não foi
reforça mais ainda as condições suficiente para garantir o processo de
desfavoráveis para a maioria da população. retomada da acumulação capitalista.
No caso do capitalismo subordinado, que Desenvolveu-se em todo o mundo um
reproduz sua subordinação implantando um ‘consenso político’ sobre política
processo de exploração ainda mais intenso macroeconômica; os governos têm adotado
do que já existia. O neoliberalismo inequivocadamente uma agenda política
subordinado faz com que a situação já neoliberal. Desde o início da década de
desfavorável se torne ainda mais grave. 1990, as reformas macroeconômicas
O ciclo se encerra no final dos anos adotadas nos países da Organização para a
1980. O neoliberalismo emergente é Cooperação e o Desenvolvimento
substituído pelo neoliberalismo hegemônico. Econômico (OCDE) têm apresentado muitos
A crise do capitalismo estatal (queda do dos ingredientes essenciais dos programas
muro de Berlim) e o fim da Guerra Fria, de ajuste estrutural (PAEs) aplicados no
aliado à expansão neoliberal no capitalismo Terceiro Mundo e no Leste Europeu
subordinado, promovem uma consolidação (Chossudovsky, 1999, p. 13).
ideológica e política do neoliberalismo. O Assim, a privatização, aumento do
regime de acumulação integral se torna desemprego, diminuição das políticas de
hegemônico mundialmente e fecha o ciclo. assistência social, são generalizadas e até
Uma vez consolidado o neoliberalismo, nos países imperialistas as medidas
temos um aumento geral da exploração e da neoliberais se tornam mais fortes. A pressão
pobreza que vai se desenvolvendo em torno da dívida externa se torna maior e
paulatinamente na década de 1980. A uma estratégia para aumentar a exploração
hegemonia neoliberal é reforçada pela crise internacional (Chossudovsky, 1999). Para se
do capitalismo estatal e pelo desgaste manter este processo de “exploração sem

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 6


limites” até nos países imperialistas, se cria estruturalismo e seus derivados (tal como a
as ideologias necessárias para a aceitação ideologia do gênero).
das mudanças. É neste contexto que surgem A diminuição dos gastos estatais
ideologias fatalistas como a da globalização provocou uma redução do número de
e outras produções ideológicas que visam funcionários públicos e burocratas e as
descrever o fenômeno, tal como a ideologia instituições da sociedade civil,
da exclusão social que vai ser cunhada na especialmente as ONGs e o que se
França a partir de 1992 (Viana, 2008). convencionou chamar “terceiro setor”,
Pode-se agora compreender porque, a acaba sendo não somente um processo para
despeito de sua inconsistência teórica, a que a sociedade civil organizada execute um
noção de exclusão abrange um grande papel que era da alçada do Estado como
consenso. As medidas tomadas para lutar também absorva parte da burocracia estatal
contra a exclusão tomam o lugar das dispensada. As políticas de assistência social
políticas sociais mais gerais, com paliativas e setoriais são reforçadas pela
finalidades preventivas e não somente ideologia pós-estruturalista e por novas
reparadoras, que teriam por objetivo ideologias derivadas e emergentes que se
controlar sobretudo os fatores de fundamentam no localismo, no
dissociação social (Castel, 2004, p. 32). microreformismo, etc.
A emergência da ideologia da exclusão Outra conseqüência do
social é produto do processo de empobrecimento da população se revela no
lumpemproletarização, que ocorre na época aumento da fome, do desemprego, da
do regime de acumulação integral (Viana, migração internacional, da criminalidade, da
2008), e está ligada também ao processo de violência e até mesmo o retorno de
constituição de políticas de assistência moléstias contagiosas (Chossudovsky,
social paliativas e setoriais em substituição 1999). Porém, há duas conseqüências dentre
as políticas de assistência social de caráter estas que destacaremos: o aumento da
estrutural que existia na época do estado criminalidade e da violência, por um lado; e
integracionista. A ideologia da exclusão o barateamento do preço da força de
social também serve para ofuscar a luta de trabalho, por outro. A violência se torna um
classes e realizar a defesa da inclusão dos dos temas acadêmicos mais debatidos e, na
excluídos, sem questionar as relações de maioria dos casos, sob a perspectiva
classes, o que torna a inclusão algo benéfico conservadora, no qual não faltam cientistas
e a exclusão maléfica, sem questionar em sociais para culpabilizar o indivíduo ou
que se propõe a inclusão (no trabalho reclamar mais moralização e mais repressão
alienado e explorado). (Viana, 2002). A origem disso, no entanto,
O empobrecimento da população se encontra na chamada “doutrina da
(lumpemproletarização) se torna cada vez tolerância zero”, produzida em Nova York e
maior na Europa e Estados Unidos e as exportada para o resto do mundo:
políticas de “ação afirmativa”, de “cotas”, De Nova York, a doutrina da
voltadas para setores específicos da ‘tolerância zero’, instrumento de
sociedade (negros, mulheres, jovens, legitimação da gestão policial e judiciária da
homossexuais, etc.) é acompanhado pela pobreza que incomoda – a que se vê, a que
responsabilização da sociedade civil, causa incidentes e desordens no espaço
criando instituições (ONGs, por exemplo) e público, alimentando, por conseguinte, uma
ideologias (voluntariado) visando difusa sensação de insegurança, ou
compensar a poupança de recursos por parte simplesmente de incômodo tenaz e de
do aparato estatal. Aliado a isso, novos inconveniência –, propagou-se através do
nichos de mercado são produzidos, também globo a uma velocidade alucinante. E com
seguindo a lógica setorial e isto se reproduz ela a retórica militar da ‘guerra’ ao crime e
nas ideologias da moda, tal como o pós- da ‘reconquista’ do espaço público, que

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 7


assimila os delinqüentes (reais ou e grupos, mas também em mobilização da
imaginários), sem teto, mendigos e outros população e radicalização de suas lutas, tal
marginais a invasores estrangeiros – o que como ocorreu no México e Argentina. As
facilita o amálgama com a imigração, lutas sociais no México e Argentina
sempre rendoso eleitoralmente (Wacquant, mostraram uma grande radicalização e
2001, p. 30). colocaram o neoliberalismo em perigo. O
O estado neoliberal assim se manifesta atentado de 11 de setembro de 2001 foi mais
como Estado mínimo (em políticas de uma manifestação das contradições sociais e
assistência social, em intervenção no abriu a possibilidade para uma ofensiva do
mercado e no aparato produtivo) e forte (nas capitalismo neoliberal, tal como veremos a
políticas repressivas). O processo repressivo seguir.
é complementado pela política de dispersão O Neoliberalismo Protofascista
da classe operária. O deslocamento de A partir dos anos 2000 inicia-se a
indústrias capitalistas para países e regiões terceira fase do neoliberalismo. Esta fase
pouco industrializadas e/ou com grande expressa uma resposta repressiva do estado
população tem o duplo papel de enfraquecer neoliberal para as crescentes mobilizações
politicamente o proletariado (dispersão sociais, principalmente a partir de Seattle,
espacial, recrutamento de novo proletariado Chiapas, lutas sociais na Argentina e o
sem tradição de luta, pouca concentração atentado de 11 de setembro de 2001. A
dos trabalhadores em cidades e regiões) e invasão do Iraque pelos EUA é apenas a
aumentar a exploração devido ao uso de face mais visível deste processo. O Plano
força de trabalho em locais com grande Colômbia e outras estratégias são adotadas
reserva da mesma. pelo Estado Neoliberal, que passa de Estado
Este processo todo também faz penal – expressão de Wacquant – para
aumentar a resistência. A partir da segunda Estado Penal Contra-Insurgente.
metade da década de 1990, há um O crescimento da pobreza e da miséria
ressurgimento de uma negação do ocorre como uma bola de neve e isto produz
capitalismo, ainda incipiente, mas que vai vários processos sociais, tal como a
crescendo paulatinamente (anarquismo, favelização (Davis, 2006) e a concentração
movimentos sociais, etc.). Este processo de da pobreza urbana. O crescimento das
fortalecimento do movimento de favelas e a organização do espaço urbano
contestação vai ser realizado com feito pela população contrariam a lógica
contradições, mas expressando justamente estatal e por isso o Estado neoliberal passa a
uma resposta ao processo de aumento geral pensar estratégias de contra-insurgência em
da exploração e tudo que é derivado daí. O relação aos movimentos sociais, grupos
processo de precarização e o de políticos e população favelada, devido ao
lumpemproletarização proporcionam a descontrole sobre eles. Assim, o Estado
organização de novos movimentos sociais, neoliberal se torna um estado contra-
tal como o dos desempregados e dos sem- revolucionário preventivo e passa a usar
teto. Devido suas condições sociais e falta estratégias militares para controlar a
de ligação orgânica, os movimento dos população, inspiradas seja no Iraque
desempregados pode ser considerado um invadido pelos EUA, seja na intervenção
“milagre social” (Bourdieu, 1998) e reflete brasileira no Haiti (Zibechi, 2008). A
este processo social de “exploração sem política de contra-insurgência não é apenas
limites”. militar, mas também voltada para ações
A emergência do chamado Movimento sociais junto a estas populações, e utiliza a
Antiglobalização, principalmente a partir de mediação de ONGs, militantes de esquerda,
1999, marca uma nova fase de ascensão das intelectuais, entre outros, para realizar um
lutas sociais, que vai estar presente não só feedback e realizar atividades (educação
nas manifestações e ativismo de indivíduos popular, profissionalização), e produzir

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 8


lideranças e organização democrática, além que em grande parte já ocorre na prática
de expandir revitalizar a produção e (Freire, 2006). O sistema de informação e
distribuição mercantil no local. vigilância se torna mais amplo e com os
Este processo já vinha sendo aplicado mais variados pretextos (contra
sob a forma de assistencialismo (bolsa criminalidade, terrorismo, pedofilia, etc.).
família, renda cidadã) que aliado às políticas Por detrás disso há mais do que o que
paliativas, realizava políticas setoriais e aparenta ser, pois se a criminalidade,
cooptação de parte da população, e terrorismo e pedofilia podem ser alvos reais,
responsabilização da sociedade civil, como o que grande alvo é as revoltas populares,
ONGs, economia solidária e outras formas interesses nacionais, etc. Isto está ligado à
de criar estratégias de sobrevivência política de contra-insurgência da nova fase
transformadas em virtude e engajamento do neoliberalismo.
popular de matriz neo-reformista. Porém, Porém, além disso, o Estado neoliberal
agora isto é realizado de forma mais deve criar as condições para uma nova
controlada pelo aparato estatal e em pontos ofensiva não apenas repressiva, mas também
estratégicos de lugares potencialmente mais no aspecto financeiro e no processo de
explosivos e menos controlados. exploração. A partir dos anos 2000 houve
A “sociedade nua” de Vance Packard uma nova queda da taxa de lucro (veja
(1966) se transformou em sociedade da gráfico abaixo). Porém, há um ziguezague e
vigilância integral. Várias empresas a relativa recuperação a partir de 2003 logo
(fábricas, escolas, etc.) usam a vídeo- recrudesce. A instabilidade financeira e a
vigilância para controlar o que ocorre e o ameaça inflacionária são determinações
processo de trabalho; o sistema de vídeos conjunturais que aumentam a necessidade
também se espalha por elevadores, lojas, de exploração e ao mesmo tempo o dificulta,
etc. O mundo virtual também é já que as condições de vida de grande parte
crescentemente vigiado e controlado, e os da população já são mais que precárias.
governos tentam legalizar uma vigilância

Evolução da Taxa de Lucro nos EUA – 1959/2001


Ta xa d e Lu cro n o s EUA (1 959 -2 001)

14,00%

12,00%

10,00%
Percentagem

8,00%

6,00%

4,00%

2,00%

0,00%
1959

1962

1965

1968

1971

1974

1977

1980

1983

1986

1989

1992

1995

1998

2001

Ano

Fonte: Economic Report of The President (2001) e Economic Indicators 2001 (september).
Os dados de 2001 se referem ao primeiro semestre.

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 9


Isto também ocorre na esfera cultural, principais características que se consolida
na qual surgem ideólogos protofascistas que atualmente. O empobrecimento da
não medem esforços em atacar as idéias população e a desorganização do espaço
contestatórias e o marxismo, em especial. O urbano com a favelização e outros
que é novo nos intelectuais protofacistas é a fenômenos, aliado com as dificuldades
virulência unida a uma tentativa de fazer as financeiras do capitalismo contemporâneo,
tendências de esquerda aparecerem como marcam a possibilidade de passagem do
um inimigo imaginário, visando desarticular neoliberalismo protofascista para o fascismo
qualquer oposição intelectual e facilitar ou a guerra. Porém, existem outras
assim a hegemonia burguesa e o aumento da possibilidades e é a luta de classes que
superexploração. definirá qual delas será vitoriosa: autogestão
As lutas sociais a partir do final dos social ou barbárie.
anos 1990 fez emergir a fase protofacista do
neoliberalismo. A contra-revolução
preventiva se torna mais intensa e a política
de contra-insurgência se torna uma das

Referências

ASMANN, Hugo. A Trilateral – Nova Fase do Capitalismo Mundial. Petrópolis, Vozes, 1979.
BOURDIEU, P. Contrafogos. Táticas para Enfrentar a Invasão Neoliberal. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1998.
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo, Boitempo, 2006.
CASTEL, R. As Armadilhas da Exclusão. In: CASTEL, R. et al. Desigualdade e a Questão
Social. 2ª edição, São Paulo, Educ, 2004.
CHOSSUDOVSKY, Michel. A Globalização da Pobreza. Impactos das Reformas do FMI e do
Banco Mundial. São Paulo, Moderna, 1999.
FREIRE, Alexandre. Inevitável Mundo Novo. O Fim da Privacidade. São Paulo, Axis Mundi,
2006.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo, Edições Loyola, 1992.
PACKARD, Vance. A Sociedade Nua. São Paulo, Ibrasa, 1966.
SISTE, A. e IRIARTE, G. Da Segurança Nacional ao Trilateralismo. In: ASMANN, Hugo. A
Trilateral – Nova Fase do Capitalismo Mundial. Petrópolis, Vozes, 1979.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no
Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras,
2009.
VIANA, Nildo. Violência e Escola. In: VIEIRA, R. & VIANA, N. (orgs.). Educação, Cultura e
Sociedade. Abordagens Críticas da Escola. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
ZIBECHI, Raul. A Militarização das Periferias Urbanas. Revista O Comuneiro, n. 9, Março de
2008.

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 10


Estado E Revolução Cubana:
A EstAtizAção Dos MEios DE ProDução E A Exploração
Dos TrabalhaDores (1959-1962)

Rafael Saddi Teixeira


saddirafael@yahoo.com.br

Pretendemos neste texto analisar a Também nos centraremos no processo


estatização dos meios de produção a partir de estatização do açúcar porque, nestes
da transformação agrária no período de 1959 cinco primeiros anos após a tomada do
a 1962 em Cuba. Nossa hipótese é que o poder de Estado, a expropriação dos
processo de estatização, longe de eliminar a latifundiários gerou dois tipos de
divisão de classes e criar condições para a organização da produção, que foram
destruição do Estado, criou a divisão entre marchando paralelamente: de um lado, nas
burocratas e proletários e fortaleceu o terras de gado e terras virgens, se formaram
Estado como uma superestrutura burocrática granjas del pueblo (fazendas estatais) e, de
que se organiza a partir da exploração e da outro, nas terras açucareiras, se formaram
submissão da classe trabalhadora. Neste cooperativas cañeras. Neste primeiro
sentido, queremos superar o discurso oficial momento, segundo Fidel, “De los
que aponta que, com a estatização dos meios latifundios cañeros se organizaron más de
de produção em 1960, Cuba teria se tornado 600 cooperativas cañeras; del latifundio
uma sociedade socialista em transição ao ganadero y de las tierras vírgenes, más de
comunismo. 300 granjas del pueblo.” (CASTRO, 1962).
Nos centraremos, aqui, na análise das Assim, como afirmou Sweezy e
transformações agrárias e, em especial, nas Huberman (1960), uma das especificidades
transformações da indústria açucareira. da Revolução Cubana foi que; ao contrário
Primeiro, porque o açúcar constituía em de outros países, que dividiu a terra, criando
Cuba a principal indústria. Uma frase que inúmeros pequenos proprietários; ela
marcaria a ilha é a do representante da “adotou como seu objetivo a transição direta
Associação dos Fazendeiros de Cuba nos e imediata para um regime em que
anos 40: “Sin azúcar no hay país.”. predomina a cooperativa agrícola.”.
(PÉREZ-STABLE, 1993, p. 39). Cuba vivia (SWEEZY e HUBERMAN, 1960, p. 145).
das divisas geradas pela exportação do Esta forma com que a indústria do
produto que tinha como principal comprador açúcar se organizou, não raro foi idealizada
os EUA. Este modelo de dependência do por diferentes observadores como uma
monocultivo do açúcar aprisionava o forma de organização capaz de gerar a longo
desenvolvimento econômico da ilha. Como prazo o poder proletário. Não foram poucos
analisou Pérez-Stable (1993): a imaginar que as cooperativas cañeras, por
Al no impulsionar la diversificación, não estarem completamente presas ao
no se creaban puestos de trabajo ni se podía Estado, poderiam ser o embrião da
mejorar el nivel de vida, mientras que los constituição do comunismo, passando a
ciclos de la zafra generaban altos niveles de gerir questões econômicas e políticas.
desempleo y subempleo en el tiempo Sweezy e Huberman (1960), por exemplo,
muerto. (idem, ibidem). quando em 1960 visitaram as cooperativas
A reorganização da indústria do açúcar que haviam visitado, acreditavam que era
era, portanto, fundamental para o provável que os camponeses fizessem das
estabelecimento da nova estrutura cooperativas “algo inteiramente diferente da
econômica do país.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 11
versão soviética da fazenda estatal.” (idem, O INRA criará cooperativas agrícolas
p. 154). que serão colocadas sob a sua direção,
A cooperativa cubana poderá vir a ser apontará os administradores [...] [e] verá se
como a comuna, combinando os assuntos eles aceitam e respeitam a ... e a orientação
econômicos e governamentais, bem como pode técnica que o INRA ditará.
orientar-se no mesmo sentido de autonomia que As terras e os instrumentos de trabalho
os iuguslavos deram às suas empresas. (idem, p.
utilizados pelas cooperativas não eram
155).
propriedades da cooperativa, mas do Estado.
Pretendemos analisar este modelo de
(SWEEZY e HUBERMAN, 1960, p. 152).
cooperativa e compreender até que ponto ela
A forma básica de remuneração continuava
serviu para a constituição de uma
sendo o salário. (idem, p. 154). Se os meios
perspectiva de autonomia da organização da
de produção eram propriedades do Estado e
classe trabalhadora.
a administração era feita pelo Estado, qual é
Segundo Sweezy e Huberman (1960),
a diferença entre as cooperativas cubanas e
as cooperativas se formaram tendo como
as fazendas estatais da União Soviética?
base os trabalhadores que serviam de mão
Para Sweezy e Huberman (1960) eram
de obra para a fazenda expropriada. A
duas as diferenças. Primeiro que na
maioria das fazendas
cooperativa cubana, em tese, o lucro líquido,
... tinha um grupo de trabalhadores
quando havia, era repartido no final do ano
mais ou menos permanentes, ligados a elas,
entre os cooperados. (p. 154). Segundo,
e admitia trabalhadores extras na época de
porque os membros das cooperativas “se
colheita [...]. Quando uma propriedade é
sentiam parte da organização que lhes
confiscada, naturalmente os que moram nela
pertencia, de forma direta, e não como
ou nela trabalham habitualmente, formam a
empregados de uma entidade distante e
nova cooperativa, que continua a
abstrata como o Estado.” (idem, ibidem).
proporcionar trabalho, quando possível, a
Sweezy e Huberman(1960)
trabalhadores migratórios e esporádicos. (p.
conheceram as cooperativas em Cuba a
152).
partir de uma rápida visita em 1960, quando
O termo cooperativa remonta uma
elas estavam ainda em formação. Como eles
noção de uma sociedade privada não estatal.
mesmos apontam, a afirmação sobre o
Os proprietários são os próprios cooperados
sentimento dos agricultores deveria ser
que entram cada qual com sua cota-parte
tomada com cautela, pois “... [é] difícil para
para formar o capital social da cooperativa.
estrangeiros que não falam a língua do país
Pressupõe também que os cooperados
formar um julgamento fidedigno sobre tal
possuam suas instâncias autônomas de
assunto.” (idem, ibidem).
decisão e sua própria organização
Muitos outros estrangeiros que
administrativa. Em Cuba, todavia, a
acompanharam este processo de formação
cooperativa era posta sob a direção do
das cooperativas cubanas, alguns por muito
Estado através do seu órgão INRA –
mais tempo que Sweezy e Huberman, se
Instituto Nacional de Reforma Agrária e
distanciaram profundamente destas
administrada não pelos trabalhadores rurais
suposições.
que as compunham, mas, por funcionários
René Dumont, por exemplo, que
do Estado. A lei de Reforma Agrária de
acompanhou de forma profunda e intensa o
maio de 1959 afirmava:
estabelecimento da nova estrutura agrária
the INRA will create agricultural
em Cuba, afirma que os agricultores
cooperatives to be placed under its direction,
cubanos não se sentiam parte do processo de
will appoint their administrators ... [and] wil
organização da produção.
see to it that they accept and respect the aid
Em agosto de 1960, o governo cubano
and the technical orientation wich the INRA
havia elaborado os estatutos de
will dictate...” (DUMONT, 1970, p. 47).
funcionamentos das cooperativas. Antes de

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 12


imporem os estatutos sobre as cooperativas, Nós fomos acompanhados até a cabana do
Dumont recebeu uma cópia e, com ela nos camponês Nicola’s Pacheo. Sua cortês esposa,
bolsos, visitou uma cooperativa na província com uma hospitalidade cubana típica, nos serviu
de Las Villas. Sobre esta visita, ele nos café... O modesto “guajero” (camponês) não
pôde explanar muito sobre a organização da
conta que.
cooperativa, e os outros camponeses, menos
... os trabalhadores me questionaram ainda.
sobre eles (os estatutos) mais ou menos We were escorted to the "Bohio" (hut) of
nestes termos. “Todos nós aqui somos the peasant Nicola's Pacheo. His courteous wife,
completamente devotados à Revolução, with typical Cuban hospitality, served coffee. .
prontos para seguir Fidel aonde ele nos .The modest "guajero" (peasant) could not give
disser para ir, prontos para aceitar todas as much of an explanation about the organization
suas propostas. Mas, quando você vê-lo, lhe of the cooperative, and the other peasants, even
diga que nós gostaríamos de saber onde nós less so. (SOUCHY, 1960).
estamos indo, e que nós gostaríamos de ser Para Souchy (1960), “The peasants
avisado como nossas cooperativas vão ser knew only about their work. For more
organizadas.” Eu estava mais embaraçado information we had to wait for the arrival of
por eu tinha em meu bolso o esboço das the sergeant who represented the INRA1.
regras administrativas das cooperativas, mas (SOUCHY, 1960). Carlos Franqui, um
tinha sido proibido de passá-las à frente, revolucionário cubano que opunha a
quando um verdadeiro centralismo estatização dos meios de produção à
democrático teria requerido que a base – os socialização da produção, afirmava que na
trabalhadores e seus representantes – fossem nova estrutura social cubana, criada pela
consultados sobre estas regras propostas. estatização dos meios de produção, “... o
... the workers questioned me about papel do povo era o de trabalhar e de
them (os estatutos), in more or less these obedecer inquestionavelmente.” (p. 88).
terms: “All of us here are completely Do ponto de vista dos trabalhadores,
devoted to the Revolution, ready to follow por mais eufóricos e confiantes que
Fidel wherever he tells uw we should go, to estivessem com o momento revolucionário,
accept all his proposals. But when you see o trabalho continuava como algo que lhes
him, tell him that we`d like to know where era exterior. A relação entre administrador
we`re going, and that we`d like to be told (Estado) e trabalhadores, longe de serem
how our cooperatives are going to be amistosas, costumavam ser de conflitos.
organized.”. I was all the more embarrassed Dumont afirma que alguns trabalhadores
in that I had in my pocket the draft of the tentaram organizar sindicatos para se
rules governing cooperatives, but had been defenderem contra a cooperativa em que
forbidden to pass them on, wheres a true trabalhavam.
democratic centralism would have required Alguns dos trabalhadores, que haviam
that the base – the workers and their sido promovidos a “membros de
representantives – be consulted about these cooperativas”, tentaram organizar um
proposed rules. (DUMONT, 1970, p. 48). sindicato defensivo apontado contra a sua
Agostín Souchy (1960), que também própria cooperativa: uma clara prova que
visitou diversas cooperativas e participou de eles não sentiam a cooperativa como sendo
algumas reuniões entre cooperados, deles, que eles não se sentiam em casa ali.
administradores e militares, percebeu Mas, a tendência cubana é tomar decisões
também esta distância do trabalhador rural do topo.
em relação à organização do trabalho. Em
uma das cooperativas da Sierra Maestra, ele
conversou com os trabalhadores rurais 1
“Os camponeses sabiam somente sobre seu
cooperados. trabalho. Para mais informações nós tínhamos que
esperar pela chegada do sargento que representava o
INRA”.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 13
Some of the workers, who had thus deveriam ter sim o senso de
been promoted to “members of responsabilidade com a revolução. E, neste
cooperatives”, tried to organize a defensive sentido, inevitavelmente teriam que acatar
union clearly aimed against their own as posições vindas de cima. Trabalhar e
cooperative: a clear proof that they did not obedecer.
feel it to be “theirs”, that they did not fee “at Talvez alguns poderiam pensar que a
home” in it. But the Cuban tendency is to resistência de Che ao sentimento de “serem
make decisions at the top. (DUMONT, donos” fosse em relação ao risco de
1970, p. 48). surgirem um conjunto de pequenas
Em uma conversa com Che Guevara, empresas organizadas cada uma delas por
Dumont (1970) falou sobre o fato dos um patrão coletivo: os cooperados de cada
membros de cooperativas “not appear to be cooperativa. Mas, mais do que isso, os
a part of an enterprise that really belonged dirigentes revolucionários comunistas
do them.”2 (idem, p. 51). Falou que os temiam a organização autônoma dos meios
trabalhadores sentiam que haviam se de produção, tanto quanto temiam a
tornado “...salaried employees of the organização autônoma dos trabalhadores em
government, quasi-functionaries, and for sindicatos, escolas, universidades e locais de
this reason some of them were already not moradia. Todos os espaços possíveis de
putting forth their best efforts”3. (idem, organização autônoma foram centralizados
ibidem). Che, entretanto, reagiu pelo Estado e controlados de cima para
violentamente: baixo por uma superestrutura burocrática.
Você tem colocado muito ênfase no Para isto interferia tanto um medo de
senso de “posse” que deve ser dado aos criação de um poder popular que
membros das cooperativas. Em 1959, havia confrontaria os poderes do Estado, posto
uma tendência aqui em favor do que nestes espaços de organização social
“Youguslavismo” e dos conselhos de atuavam tanto liberais quanto anarquistas,
trabalhadores. Não é um senso de posse que trotskistas e socialistas humanistas4; como
eles devem ter, mas um senso de também um desprezo em relação à
responsabilidade. Deste modo, as mudanças capacidade da classe trabalhadora de dirigir
necessárias na política serão mais fáceis. a sua própria emancipação. Como disse
You have put too much emphasis on Franqui, “Fidel possuía uma desconfiança
the sense of ownership that is to be given to inata do povo; preferia militarização à
members of cooperatives. In 1959, there was organização.” (FRANQUI, 1981, p. 88).
a marked tendency here toward Mas, além disto tudo, os dirigentes
“Yougoslavism” and workers’ councils. It is comunistas acreditavam de fato no novo
not a sense of ownership that they should be Estado cubano como uma forma de governo
given, but rather a sense of responsability. dos trabalhadores. Neste sentido, trabalhar
In this way, the necessary changes in policy para o Estado, era trabalhar para si mesmo.
will be easier. (idem, p. 52). Souchy (1960) demonstrou como as
Para os mais fortes dirigentes cooperativas eram criadas de cima para
revolucionários, portanto, os trabalhadores baixo. Em uma das reuniões que participou
não deveriam sentir-se donos dos meios de entre trabalhadores rurais, INRA e Exército,
produção. Condenavam a tendência às ele relata sobre a forma como era criada
formas de propriedade socializadas a partir uma cooperativa.
do conselho operário. Os trabalhadores
4
Em Cuba, socialistas humanistas foram aqueles que
2
“... não aparentam ser uma parte de uma empresa não tinham uma bandeira ideológica definida, mas
que realmente pertence a eles.” que opunham a socialização ao modelo soviético de
3
“... empregados assalariados do governo, quase- estatização. Queriam uma revolução criada pelo povo
funcionários, e por esta razão, alguns deles não cubano sem dependências nem dos EUA, nem da
colocam os seus melhores esforços.” URSS.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 14
Os planos para a organização de uma lado, o Estado, como dono do meio de
cooperativa industrial a ser controlada pelo produção, se fortalecia. Segundo Carlos
INCRA foram apresentados à reunião. Quando Franqui (1981), “... a estatização nada faz
os trabalhadores perguntaram sobre os salários, além de criar e apoiar um gigantesco,
o gerente respondeu que salários eram de
improdutivo e repressor superestado
importância secundária e que para acelerar a
industrialização de Cuba, certos sacrifícios burocrático, um partido que é o Estado, que
teriam que ser feitos. Os trabalhadores é o pai, que é o dono.” (p. 86).
mostraram claramente que não gostaram do Longe de gerarem um processo de
projeto. Finalmente, o administrador exasperado apropriação da classe trabalhadora sobre os
baixou a lei: com o consentimento dos meios de produção, as cooperativas
trabalhadores, o projeto “cooperativo” será caminharam para outro lado. Se é que
organizado como previsto. Os advogados poderiam ter algum elemento de autonomia,
fizeram os documentos legais necessários e a em agosto de 1962, as cooperativas foram
cooperativa foi oficialmente estabelecida. finalizadas e se transformaram em fazendas
The plans for the organization of an estatais ao estilo soviético.
industrial cooperative to be managed by the
No Manifesto Comunista, Marx
INRA were presented to the meeting. When the
workers asked about wages, the manager replied
apontava que o ponto de partida da
that wages were of secondary importance and revolução proletária era a destruição da
that to speed up the industrialization of Cuba, propriedade burguesa com a centralização
certain sacrifices will have to be made for the de todas as propriedades nas mãos do
sake of the revolution. The workers plainly Estado.
showed that they did not like the project. O proletariado utilizará sua
Finally, the exasperated administrator laid down supremacia política para arrancar pouco a
the law: with or without the consent of the pouco todo capital à burguesia, para
workers, the "cooperative" project will be centralizar todos os instrumentos de
organized as planned. The lawyers drew up the produção nas mãos do Estado, isto é, do
necessary legal documents and the cooperative
proletariado organizado em classe
was officially established. (SOUCHY, 1960)
dominante, e para aumentar, o mais
A nova organização dos meios de
rapidamente possível, o total das forças
produção era algo imposta aos
produtivas. (MARX, s/d).
trabalhadores. Simplesmente paravam de
Na medida em que a burguesia fosse
trabalhar para os seus antigos patrões para
sendo destruída e, portanto, os antagonismos
trabalharem para o Estado, ainda tendo o
de classe fossem eliminados, Marx afirmava
trabalho como algo exterior, e em troca de
que o Estado perderia a sua razão de ser,
salários. Como afirmou Souchy (1960):
posto que não passa de um poder organizado
“The economic situation of the workers will
de uma classe para a opressão da outra.
be more or less the same as in privately Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no
owned enterprises.”5 (SOUCHY, 1960). curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção
propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder
Segundo Franqui (1981), a estatização público perderá seu caráter político. O poder político é o poder
somente substituiu “o antigo chefe por um organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o
proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui
novo administrador, o velho proprietário por forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em
um novo proprietário estatal.” (p. 88). classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente
as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas
Assim, se por um lado, os relações de produção, as condições dos antagonismos entre as
trabalhadores estavam separados dos meios classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação
como classe. (idem, ibidem).
de produção, obrigados simplesmente a
Mas, o que vemos em Cuba é o
trabalhar e a obedecer, sem controlarem
oposto. O processo de eliminação da
diretamente as terras e as fábricas, por outro
burguesia privada e de concentração dos
meios de produção nas mãos do Estado,
5
“A situação econômica dos trabalhadores será mais longe de gerar um processo de definhamento
ou menos a mesma que nas empresas de propriedade do Estado, fez torná-lo cada vez mais forte e
privada”
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 15
poderoso. Franqui apontava esse processo que eram obrigados a vender a sua força de
de expansão total da estrutura do Estado na trabalho em troca de um salário, e os
sociedade cubana. gestores/burocratas, que exerciam o controle
Marx achava que o Estado sobre a força de trabalho, os maquinários, as
desapareceria eventualmente, mas como terras e as fábricas. Seria comum
pode isso acontecer, quando fica mais e imaginarmos que as riquezas produzidas
mais forte a cada dia? O Estado torna-se um pelos trabalhadores sob o regime de
monopólio colossal que devora tudo, que se propriedade estatal fossem de uso comum,
torna totalitário em sua inabilidade de isto é, que retornassem aos trabalhadores
tolerar desvios de qualquer espécie. através da distribuição do Estado.
(FRANQUI, 1981, p. 167). Entretanto, a realidade não foi bem assim.
Em Cuba, o Estado tendia não a se Quando os rebeldes tomaram o poder
definhar, mas a se fortalecer, a recriar em 1959; advindos de uma guerra de
condições de exploração e privilégios e a guerrilhas no campo e nas cidades, firmados
disciplinar a força de trabalho. O próprio no sacrifício da vida pessoal e dos prazeres
sindicato, que tinha nos trabalhadores da do mundo; se recusaram a ceder às pressões
indústria açucareira uma forte tradição, da nova vida burocrática.
deveria perder o seu sentido de luta Foram vários os que negaram cargos
classista. A posição dos dirigentes cubanos no governo, recusando-se a sentar nas
se baseava na concepção que Raúl Castro mesmas mesas que os antigos funcionários
expressou como ninguém: "the best union is de Batista. 7 Os membros do Exército
the State -- the workers don't need unions Rebelde não cobraram soldo algum no mês
when they have a friendly government, de Janeiro, tendo se disposto a trabalhar de
THEIR government, to protect them."6 graça pela causa revolucionária 8. Muitos
(IGLESIAS, 1961). novos dirigentes do governo estipularam o
Os sindicatos passaram a ser não seu salário em números extremamente
mais o espaço contruído desde baixo, mas, baixos9. A maioria recusou morar nas
desde os anseios dos novos dirigentes
7
estatais. Seu papel era o de receber a Carlos Franqui, por exemplo, recusou ser Ministro
proposta do governo e massificá-la junto aos do Trabalho e preferiu ser jornalista à frente do
trabalhadores. O sindicato deveria Revolución, jornal do Movimento 26 de Julho.
(FRANQUI, 1981, p. 28). Célia Sanchez e Haydée
... captar la idea general de Santamaría recusaram a proposta de assumirem o
organización y de las metas del gobierno, Ministério da Educação. Raúl Chibás rejeitou o cargo
discutirla a nível de la empresa o fábrica de de Ministro das Finanças. (idem, ibidem). Como
que se trate y llevarla al seno de la masa afirmou Fidel Castro: “(…) en los primeros días era
trabajadora para que se haga carne en ella el difícil encontrar a alguien que quisiera ser ministro”
(CASTRO, 1959).
espirito de lo que se pretende hacer y se 8
Em seu primeiro discurso após descer da Sierra
empuje hacia adelante con el mayor ímpetu. vitiorioso, Fidel tratou dos soldos do Exército
(GUEVARA, 1961). Rebelde: “Los rebeldes no cobraremos sueldo por los
Além do caráter de ideologização da años que hemos estado luchando y nos sentimos
classe trabalhadora, o sindicato deveria ter orgullosos de no cobrar sueldos por los servicios que
les hemos prestado a la Revolución, en cambio, es
como função essencial o aumento da posible que sigamos cumpliendo nuestras
produtividade e a disciplina da classe obligaciones sin cobrar sueldos, porque si no hay
trabalhadora no trabalho. (idem, ibidem). dinero, no importa, lo que hay es voluntad, y
Todo este processo de estatização hacemos lo que sea necesario”. (APLAUSOS).
dos meios de produção em Cuba criava uma (CASTRO, 1959a).
9
Segundo Carlos Franqui (1981), foram os próprios
diferenciação profunda entre os proletários, revolucionários que definiram quanto iriam ganhar.
“Também estipulamos nossos próprios salários: o de
6
“o melhor sindicato é o Estado – os trabalhadores Che era o mais austero, 250 pesos por mês. Um
não precisam de sindicatos quando eles têm um ministro ganhava 750 e alguns outros, 1000.” (p. 39).
governo amigável, seu governo, para protegê-lo.” Padrões extremamente baixos para a época. Quando
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 16
mansões dos antigos batistianos que fugiram de produção, o controle sobre o excedente
do país, pois tinha isto como um insulto à produzido pelo proletário.
humildade do povo cubano10. A diferença entre os salários
Os rebeldes tentaram manter um começou a se alargar. “K.S. Karol afirmou
espírito de sacrifício e de abnegação para ter se encontrado em uma fábrica com um
não se tornarem burocratas de espírito. engenheiro que ganhava 17 vezes o salário
Entretanto, pouco a pouco, o sacrifício de operário.” Os burocratas, segundo ele,
revolucionário foi cedendo espaço para os tinham o privilégio de desfrutar de
interesses da nova posição, e o guerrilheiro “restaurantes de ‘alta categoria’, a exemplo
foi se transformando em burocrata. Menos dos ‘Monseños’, o ‘Torre’, o ‘1839’, o
de dois meses depois da tomada do poder ‘Floridita’ e outros que cobram preços
Fidel afirmava que em Cuba já havia astronômicos por suas contas.” (TAAFE,
iniciado um 2009).
...despertar de las apetências Como afirmou Franqui (1981), em
burocráticas. Y que si bien es cierto que en todos os aspectos havia diferenças: no
los primeros días era difícil encontrar a trabalho, os burocratas se apropriavam de
alguien que quisiera ser ministro, hoy hay muito mais dinheiro do que os
mucha gente que quiere ser cualquier cosa trabalhadores; na educação, seus filhos
en el Estado. (CASTRO, 1959). tinham tratamento diferenciado; em relação
Na medida em que a propriedade foi às residências, passaram pouco a pouco a
se concentrado nas mãos do Estado, mais morar em mansões dos antigos batistianos;
rápido se formava uma burocracia que vivia não partilhavam de um mesmo tratamento
com privilégios. O burocrata não tinha sob o médico; possuíam carros do Estado que
seu controle somente o monopólio da força utilizavam para fins próprios e não tinham
física, mas também o monopólio dos meios que reduzir sua alimentação à escassez da
libreta.
Não há igualdade na educação, porque
Fidel assumiu o cargo de Primeiro Ministro sua a nova elite dá atenção especial aos filhos
primeira ação foi propor a diminuição dos salários de dos membros do Partido e oficiais do
ministros. “… que ganemos lo que necesitemos para Estado. O mesmo se aplica ao trabalho. Não
las cosas más elementales, porque al fin y al cabo, há desemprego, pois as pessoas trabalham
cuando estábamos clandestinos vivíamos con
cualquier cosa.” (CASTRO, 1959). Em Julho de em regime forçado, em campos de
1959, o Gabinete de Ministros aprovou um Projeto de reeducação e no serviço militar. Os salários
Lei que reduzia em quase 50% os gastos destinados não são iguais e são insuficientes. Isto
ao Palácio Presidencial. Os gastos passariam de também vale para as residências, tratamento
2.433.659.95 pesos a 1.233659.95 pesos. O médico, transporte e comida. Os que estão
presidente Dorticós, quando assumiu o governo no
lugar de Urrutia, decidiu reduzir o seu salário de no topo desfrutam de privilégios. Então não
Presidente da República de 10.000.00 pesos a 2.500 existe mais a velha burguesia, e daí?
pesos. (BUCH & SUÁREZ, 2002, p. 76). A Existem burocratas que administram,
convicção da maioria dos revolucionários era que o controlam e estão ricos. No topo, tudo é
cargo do governo fosse não uma fonte de riqueza e diferente, enquanto que embaixo é a mesma
poder, mas um sacrifício.
10
A maioria dos revolucionários voltaram “a viver coisa. Em Cuba, chamamos este sistema de
nos mesmos apartamentos de antes da revolução.” sociolismo.” (FRANQUI, 1981, p. 170).
(FRANQUI,). Quando Che foi morar em uma Assim, podemos dizer que o
mansão em Itarará, justificou que estava ali por processo de estatização dos meios de
motivos de doença e que, logo, a abandonaria. “El produção em Cuba, longe de produzir uma
hecho de ser una casa de antiguo batistiano hace que
sea lujosa; elegí la más sencilla, pero de todas sociedade socialista de transição ao
maneras es un insulto a la sensi- bilidad popular. comunismo, manteve os trabalhadores
Prometo al señor Llano Montes y sobre todo al afastados dos meios de produção, reforçou o
pueblo de Cuba que la abandonaré cuando esté poder do Estado e criou uma burocracia
repuesto”. (GUEVARA).
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 17
privilegiada. Talvez, devamos retomar chegar à emancipação total do povo: a anarquia
Bakunin quando criticava a noção de ou a liberdade sendo o objetivo, o Estado ou a
ditadura do proletariado: ditadura, o meio. Assim, para liberar as massas
De acordo com eles, este jugo estatal, esta populares, dever-se-ia começar por escravizá-
ditadura é uma fase de transição necessária para las. (BAKUNIN, 1999, p. 158).

Referências

PÉREZ-STABLE, Mariféli. The Cuban Revolution. Oxford University Press: New York,
1993.
CASTRO, Fidel. Discurso Pronunciado en la Clausura del Congreso Nacional de
Cooperativas Cañeras. Havana, 1962.
______, Discurso Pronunciado en el Acto de su Toma de Posesión como Primer Ministro.
Havana, 1959.
______, Discurso Pronunciado en el Parque de Céspedes. Santiago de Cuba, 1959a.
SWEEZY, Paul & HUBERMAN, Leo. Anatomia de uma Revolução. Zahar Ed.: RJ, 1960.
DUMONT, René. Cuba: socialism and development. Grove Press: New York, 1970.
SOUCHY, Augostin. Testimonial Sobre la Revolucion Cubana. Buenos Aires, 1960.
FRANQUI, Carlos. Retrato de Família com Fidel. Ed. Record: RJ, 1981.
IGLESIAS, Abelardo. Revolution and Counter-Revolution in Cuba. Buenos Aires, 1963.
GUEVARA, Che. Discusión Colectiva, decisión y responsabilidad únicas. Havana, 1961.
TAAFE, Peter. Análise da Revolução Cubana. Disponível em: http://www.sr-
cio.org/index.php?option=com_content&view=article&id=206:analise-da-revolucao-
cubana&catid=45:historia&Itemid=62. Acessado em fevereiro de 2009.
BUCH, Luis & SUÁREZ, Reynaldo. Otros Pasos del Gobierno Revolucionario. Editorial de
Ciencias Sociales, La Habana, 2002.
BAKUNIN, Mikhael. Textos Anarquistas. L&PM: Porto Alegre, 1999.
MARX, O Manifesto do Partido Comunista. LCC Publicações Eletrônicas, s/d. Disponível
em: http://www.culturabrasil.pro.br/manifestocomunista.htm. Acessado em fevereiro de
2009.

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 18


O COMUNISMO DE CONSELHOS E A CRÍTICA AO BOLCHEVISMO
Lucas Maia
maiaslucas@yahoo.com.br

Este texto objetiva demonstrar algumas cidades, como São Petersburgo,


como a perspectiva conselhista que depois passou a ser chamada de
considerou historicamente o Petrogrado, Kharkov, Moscovo etc., com
bolchevismo. A maneira como este se uma estrutura fundiária e uma
apresentou ou como apareceu nos anos organização estatal tipicamente feudais.
de 1920, momento em que se fortaleceu e Os governos czaristas eram conhecidos
adquiriu amplitude internacional, era por sua violência e repressão. Deste
ainda identificado com socialismo ou modo, o partido social democrata russo
comunismo. Em que pese alguns já vivia ora na clandestinidade, ora na
começassem a duvidar dos rumos que legalidade.
tomava a revolução russa, principalmente O debate interno no partido girava
após o décimo congresso do partido em torno de uma questão central que a
comunista russo, que se realizou sob os realidade russa naquele momento
escombros de Kronstadt. colocava. O partido deve incentivar e
Na Rússia, a situação já havia se lutar por uma revolução socialista ou por
aclarado sobremaneira, no restante da uma revolução burguesa para que esta
Europa, as imagens ainda apareciam crie as condições do socialismo? No
meio nebulosas. Se a social democracia congresso de 1903 do partido social
já havia sido derrotada teórica e democrata russo, houve a cisão completa.
praticamente nos anos 1920 e 1930, o De um lato ficaram os que defendiam a
bolchevismo conheceu nestas décadas segunda proposta, os mencheviques, que
seu apogeu enquanto prática de estado na em russo quer dizer minoritário e
Rússia e de partidos comunistas no defendendo a primeira, ficaram os
mundo inteiro. Entretanto, do ponto de bolcheviques, que quer dizer majoritário.
vista teórico, já no início dos anos 20, a Dois elementos estruturam a
perspectiva bolchevique já havia recebido ideologia e a política bolcheviques:
sérias críticas. E o panfleto de Lênin, “O Primeiro – A classe operária só
Esquerdismo, Doença Infantil do consegue adquirir uma consciência
Comunismo” publicado em 1920, é uma sindical, portanto nunca é revolucionária.
resposta bolchevique a estas críticas. É necessário que a consciência
O bolchevismo é um fenômeno revolucionária venha de fora, que seja
historicamente determinado. Surge num produzida pelos intelectuais pequeno-
contexto específico e num período muito burgueses, que tiveram acesso à ciência,
bem determinado da sociedade russa. A e às doutrinas econômicas e socialistas.
social democracia que aparece na Lênin assim o diz:
Alemanha no último quartel do século Os operários, já dissemos, não
19, durante o século 20 estende-se para podiam ter ainda a consciência social-
vários países. Assim o foi com a Rússia. democrata. Esta só podia chegar até eles
Entretanto, dadas as condições históricas a partir de fora. A história de todos os
específicas deste país, logo de início duas países atesta que, pelas próprias forças, a
tendências começam a se separar dentro classe operária não pode chegar senão à
do partido. consciência sindical, isto é, à convicção
A Rússia tinha ainda no século 20 de que é preciso unir-se em sindicatos,
uma estrutura social singular. Mesclava conduzir a luta contra os patrões, exigir
uma produção tipicamente capitalista em do governo essas ou aquelas leis
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 19
necessárias aos operários etc. Quanto à dificuldades presentes na vida dos
doutrina socialista, nasceu das teorias trabalhadores, consigam conhecer e
filosóficas, históricas, econômicas debater tais teorias. Mas em larga
elaboradas pelos representantes medida, a ascensão da consciência se dá
instruídos das classes proprietárias, pelos na luta cotidiana dos trabalhadores, não é
intelectuais (Lênin, 1988, p. 25) obtida somente através de um ensino
Este texto, publicado em 1902, ou racional, feito pelo partido, escola ou
seja, antes da cisão dentro do partido, qualquer outra instituição burguesa, mas
mas que permanece como centro da fundamentalmente pelo processo de auto-
perspectiva bolchevique, demonstra educação no qual a classe trabalhadora
claramente a total incompreensão que adquire a consciência de sua condição e
Lênin possui com relação aos processos das suas potencialidades. Num tal
sociais e principalmente no que se refere momento, temos a emergência de um
à transformação revolucionária da movimento revolucionário, que é
sociedade. Confunde consciência de espontâneo, descentralizado, sem
classe do proletariado com “doutrina dirigentes etc. Num tal movimento, os
socialista”, a própria idéia de doutrina já grupos políticos, mais do que dirigir e dar
é em si problemática pois remete a algo a linha do que deve ou não ser feito, vão
definido, acabado de uma vez por todas, a reboque. Mais do que determinar o
restando somente apreender o que já movimento, são determinados por este.
existe. Algo religioso. De fato, não se Com relação ao desenvolvimento da luta
trata de uma “doutrina socialista”, mas operária, Marx assim se expressa:
sim de teoria revolucionária, ou seja, Assim, a coalizão tem sempre um
aquela que expressa, do ponto de vista duplo objetivo, o de fazer cessar a
teórico, o movimento revolucionário do concorrência entre os operários, para
proletariado. Deste modo, não está poderem fazer uma concorrência geral ao
encerrada, mas sempre aberta e buscando capitalista. Se o primeiro objetivo de
compreender e auxiliar o proletariado resistência não foi senão a manutenção
quando em luta para realização de seus dos salários, à medida que os capitalistas
interesses de classe. por sua vez se reúnem num mesmo
Esta idéia, que, aliás, é tomada de pensamento de repressão, as coalizões, a
empréstimo de Kautsky, segundo a qual a princípio isoladas, formam-se em grupos,
consciência revolucionária é sinônimo de e diante do capital sempre unido, a
conhecimento da ciência e das “doutrinas manutenção da associação torna-se mais
socialistas” expressa o quanto Lênin não necessária para os operários do que o
entendeu o processo de ascensão da salário. Isto é de tal modo verdadeiro,
consciência revolucionária. Se tivesse que os economistas ingleses se mostram
tido o cuidado de ler Marx mais muito espantados de ver os operários
atentamente, verificaria que alguns sacrificarem uma boa parte do salário em
elementos teóricos profundos já estão favor das associações que, aos olhos
presentes ali e nos ajudam a compreender destes economistas, não foram criadas
como este processo se dá. senão para defesa do salário. Nesta luta –
A consciência revolucionária não é verdadeira guerra civil – reúnem-se e
separada no proletariado de uma prática desenvolvem-se todos os elementos
revolucionária. Na verdade, a consciência necessários para uma batalha futura. Uma
de classe não se desenvolve no vez chegada a esse ponto, a associação
proletariado, tendo este acesso à literatura adquire um caráter político (Marx, s/d, p.
socialista. Em que pese alguns 148).
indivíduos, mesmo com todas as
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 20
Deste modo, não há consciência seja, de cabeça para baixo. Lênin e os
revolucionária que não seja produto de leninistas não conseguiram ou não
uma prática revolucionária. Entretanto, quiseram entender os fundamentos
esta não se desenvolve como caída dos elementares do marxismo. A idéia de que
céus ou vinda de fora. É um processo que a consciência vem de fora, é a aceitação
se desenrola com avanços, retrocessos, de que o proletariado só existe enquanto
inicia-se muitas vezes com classe da sociedade burguesa. A
reivindicações ainda limitadas (como concepção segundo a qual o proletariado
melhores salários, melhores condições de é também o coveiro desta sociedade é
trabalho etc.), evoluindo às vezes para rejeitada, pois ele consegue no máximo
condições nas quais a realidade burguesa chegar a uma consciência sindical. Na
é negada, suprimindo os capitalistas, o verdade, nesta assertiva, o bolchevismo
estado, as burocracias, o salário etc. só consegue afirmar a tese marxista dos
Deste modo, a condição para o limites intransponíveis da consciência
comunismo ou autogestão social, não é o burguesa. Em outras palavras, a
conhecimento por parte dos trabalhadores perspectiva bolchevique só conseguiu
de toda uma “doutrina socialista”, mas analisar o movimento operário de um
sim o desenvolvimento de sua luta e ponto de vista capitalista.
portanto de sua autoconsciência no Segundo – o outro elemento
sentido de afirmar sua autonomia. estruturante do bolchevismo é a ideologia
Portanto, a consciência não pode vir de da vanguarda. Este é o complemento
fora, pois deve ser produto do necessário à ideologia da consciência
desenvolvimento das próprias lutas dos vinda de fora. Se os trabalhadores não
trabalhadores. são capazes por si só de desenvolver uma
E não é isto que Marx ainda nos consciência revolucionária, muito menos
diz? são aptos a tomarem eles próprios os
São os homens que produzem suas rumos de seu movimento. Os únicos
representações, suas idéias etc. mas os competentes para tal tarefa são
homens reais, atuantes, tais como são justamente e curiosamente os mesmos
condicionados por um determinado intelectuais pequeno burgueses
desenvolvimento de suas forças organizados no partido. Deste modo, os
produtivas e das relações que a elas intelectuais produzem a “consciência
correspondem, inclusive as mais amplas revolucionária” e o partido dirige a classe
formas que estas podem tomar. A operária em direção à revolução.
consciência nunca pode ser mais que o De novo não é demais citarmos
ser consciente; e o ser dos homens é o Marx para esclarecer algumas idéias
seu processo de vida real. E, se, em toda prementes do bolchevismo. Na Seção II –
a ideologia, os homens e suas relações Proletários e Comunistas, do “Manifesto
nos aparecem de cabeça para baixo como do Partido Comunista”, Marx e Engels
em uma câmera escura, esse fenômeno são claros quando afirmam:
decorre de seu processo de vida histórico, Qual a posição dos comunistas
exatamente como a inversão dos objetos diante dos proletários em geral?
na retina decorre de seu processo de vida Os comunistas não formam um
diretamente físico (Marx & Engels, 2002, partido à parte, oposto aos outros partidos
p. 19) (grifos nosso). operários.
Vemos na ideologia leninista nada Não têm interesses que os separem
mais nada menos do que o processo de do proletariado em geral.
transformação revolucionária da Não formulam quaisquer princípios
sociedade dentro da câmera escura, ou particulares a fim de modelar o
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 21
movimento proletário (Marx & Engels, esmagamento político dos grupos de
1987, p. 116). oposição e a aniquilação física dos
E linhas depois acrescentam: operários e revolucionários críticos do
Praticamente, os comunistas partido e da burocratização inevitável do
constituem, pois, a fração mais resoluta “estado comunista”.
dos partidos operários de cada país, a Vários revolucionários da Europa
fração que impulsiona as demais, Ocidental começaram a suspeitar dos
teoricamente, têm sobre a grande massa rumos que tomava aquele movimento que
do proletariado a vantagem de uma se desenrolava na Rússia. As críticas
compreensão nítida das condições, da começam a ser endereçadas a Lênin e
marcha e dos fins gerais do movimento seus partidários. Como já dissemos a
proletário (Marx & Engels, 1987, p. 117). resposta de Lênin ao que ele chamou de
Esta comparação entre Marx e “esquerdistas” foi seu panfleto “O
Lênin tem uma razão. Os comunistas esquerdismo, doença infantil do
conselhistas ou que se tornaram comunismo”. Em tal obra ele critica os
conselhistas vão enfatizar uma elementos revolucionários que apoiavam
característica do bolchevismo. Este foi o e teorizavam os conselhos, de maneira
elemento central na revolução russa, que mais ou menos radical, como os
levou a cabo uma revolução burguesa espartaquistas, Gorter, Rhüle e
sem burguesia. Isto pode ser evidenciado Pannekoek na Alemanha e Holanda etc.
sob vários aspectos: no campo da Também na Itália as frações do partido
produção filosófica, da prática política, social democrata que apoiavam o
do papel histórico desempenhado, tanto movimento dos conselhos e/ou
na revolução russa quanto na influência defendiam o abstencionismo foram
dos partidos comunistas em vários países criticados por Lênin nesta dita obra
etc. comunista. Na Inglaterra, Sylvia
Se no processo da revolução russa, Pankhurst é fustigada pelo panfleto, pois
o bolchevismo foi fustigado por várias também ia na esteira da revolução,
tendências de oposição dentro mesmo do buscando compreendê-la de um ponto de
partido, como os grupos Decemistas – vista teórico. Na verdade, este panfleto é
Centralistas Democráticos, Oposição uma tentativa de desacreditar
Operária e Comunistas de Esquerda; internacionalmente os revolucionários
fora, as críticas vieram dos grupos que expressavam em sua teoria e em sua
Verdade Operária, o Grupo Operário, de prática os interesses mais genuínos dos
Miasnikov, que se aproximou trabalhadores enquanto classe para si, ou
posteriormente do KAPD e do seja, enquanto classe revolucionária.
conselhismo. Ainda, fora do partido Evidentemente não tardam as
recebeu duras críticas, principalmente respostas. Ainda em 1920, Herman
críticas práticas, como o Movimento Gorter escreve sua “Carta aberta ao
Macknovista na Ucrânia em 1920 e a companheiro Lênin” (Gorter, 1981), na
rebelião de Kronstadt em 1921 entre qual refuta ponto por ponto as objeções
várias greves, manifestações que se que Lênin faz aos autores que buscavam
desenvolveram até principalmente 1921. compreender os operários em luta.
Após o décimo congresso do partido, Entretanto, ainda por esta época não
realizado neste ano, com o havia se consolidado um “Comunismo de
estabelecimento da ditadura do partido Conselhos”, tal qual se formulou
único, toda forma de oposição era perfeitamente em meados dos anos 20 e
violentamente reprimida. A vitória da na década de 1930. A centralidade do
“revolução” Bolchevique representou o texto de Gorter ao criticar Lênin está na
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 22
idéia de tática. Lênin, no seu panfleto época, juntamente com o proudhonismo,
toma como modelo de revolução mundial o marxismo etc. A idéia básica do
a revolução russa e julga que tal modelo blanquismo é a tomada do poder de
deve ser aplicado às outras nações, por estado por uma minoria “revolucionária”.
isto a sua tese segundo a qual “a Rússia É precisamente isto que Pannekoek vai
sintetiza a revolução em escala mundial”. criticar, pois de fato qualquer revolução
Gorter adverte que as condições proletária não pode ser feita por uma
históricas da Europa Ocidental são minoria seja de que partido for, mas sim
radicalmente distintas da Rússia. Na pelo conjunto da classe operária.
Rússia não havia um partido Social No que se refere à atuação do
Democrata como na Alemanha, que já partido comunista na revolução russa,
tinha membros de suas fileiras nos afirma: “O que se representa aqui é a
parlamentos, que, portanto, a prática ditadura do partido, a ditadura neo-
parlamentar deveria ser negada como blanquista da minoria resoluta”2. Mais a
tática revolucionária. Os sindicatos da frente diz: “E, em conseqüência de sua
Europa Ocidental estavam de tal modo doutrina, não é o Partido Comunista em
integrados à reprodução capitalista, que conjunto, mas o comitê central que
também não eram mais instrumento de exerce a ditadura”3. Conclui da seguinte
luta revolucionária do proletariado, tal maneira:
como poderia ocorrer na Rússia. O Não somos fanáticos pela
proletariado da Europa Ocidental não democracia, nem temos qualquer respeito
podia fazer aliança com nenhuma outra supersticioso pelas decisões majoritárias.
classe, pois estavam sozinhos nesta Tampouco pagamos tributo à crença de
empreitada, não podiam fazer como na que tudo que acontece está bem. A ação é
Rússia, onde os operários e os crucial, a atividade é poderosa. Onde o
camponeses efetivaram a revolução. poder é um fator, queremos usá-lo. Se,
Assim, na Europa Ocidental, por causa apesar disso, rejeitamos decididamente a
das condições históricas distintas da doutrina da minoria revolucionária, é
Rússia, o sindicalismo, o porque ela conduz a um poder aparente, a
parlamentarismo e o compromisso de vitórias aparentes e, portanto, a graves
classe deveriam ser rejeitados pelo derrotas. Será aplicável num país onde a
proletariado. massa é apática, dependendo de sua
Um outro texto, também publicado classe, como, por exemplo, uma massa
em 1920 demonstra esta crítica ao camponesa, que não vê nada que não seja
bolchevismo, mas destacando as questões a sua vila e a face passiva da política
táticas. O “Novo Blanquismo”1, redigido nacional; lá, uma minoria proletária ativa
por Anton Pannekoek alerta para os da população poderia conquistar o poder
perigos de não se considerar a realidade estatal. Mas, se esta tática não foi
da Europa Ocidental e importar o modelo ensaiada ou recomendada na Rússia, é
da revolução russa. Dirige suas críticas surpreendente vê-la recomendada para
ao que denomina de caráter blanquista do os países europeus ocidentais, onde
bolchevismo. O blanquismo é fundado vigoram circunstâncias muito diferentes4
nas idéias de August Blanqui, que na (grifos meus).
década de 1870 teve certa influência De novo aparece aqui a idéia de que
sobre os grupos revolucionários da há divergências táticas exigidas pelas

1
PANNEKOEK, Anton. O novo blanquismo. 2
Disponível em: Idem.
3
http://www.geocities.com/autonomiabvr/, acesso Idem.
4
em 13/11/2007 Idem.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 23
condições históricas distintas. Entretanto, premissa que ele conclui que o marxismo
já começam a ser apontados os limites e é a expressão teórica do movimento
os reais interesses do bolchevismo. Aqui revolucionário do proletariado. Quando
ele já é denominado de blanquismo, ou este avança no sentido de se autonomizar,
seja, o que importa é a conquista do no sentido de constituir suas próprias
poder estatal e por mais que se diga que a formas de organização, no sentido de
conquista do poder estatal é a revolução, realizar seus interesses, também o
apresenta-se uma contradição nos termos. marxismo se atualiza e se radicaliza.
E isto Pannekoek expressa de maneira Quando o movimento operário se retrai,
completamente exata: “O verdadeiro também o marxismo recua. A social
exemplo russo terá de ser buscado nos democracia e o bolchevismo são a
dias anteriores a novembro de 1917: o comprovação desta tese. No final do
partido bolchevique ainda não tinha dito século 19 e início do século 20, o
e nem mesmo acreditava que devia tomar movimento operário experimentou
o poder ou que sua ditadura era a décadas de ostracismo. A social
ditadura das massas operárias”5. Ou seja, democracia e o bolchevismo foram seu
a verdadeira experiência operária deve produto direto. De 1917 a 1923, o
ser procurada antes do golpe blanquista movimento operário se reavivou em toda
dos bolcheviques, antes de sua chegada a Europa: o comunismo de conselhos foi
ao poder. seu resultado.
Também do ponto de visa teórico, Entretanto, à medida que a década
as premissas do bolchevismo são de 20 avança e os anos 30 vão chegando,
duramente criticadas no início dos anos as posições vão se depurando. Nos anos
20. Um trabalho de extrema importância, 30, a social democracia está
publicado em 1923 intitulado “Marxismo completamente morta, o bolchevismo
e Filosofia”, escrito por Karl Korsch, chegou às últimas conseqüências com sua
representa uma séria crítica aos política blanquista, ou melhor, capitalista
fundamentos ideológicos tanto do estatal. Diante deste quadro, grande parte
kautskysmo, quanto do leninismo. Para daqueles indivíduos e grupos políticos
ele, estas “(...) formas ideológicas do que se opuseram de início ao
marxismo ortodoxo, nascidas da velha bolchevismo têm diante de si uma
ortodoxia marxista russa e internacional, situação que permite delimitar com
já só representam hoje formas históricas clareza as condições e as posições de
em desaparecimento que pertencem a um cada grupo. A partir daí temos a
período passado do movimento operário consolidação da perspectiva conselhista.
moderno (Korsch, 1977, p. 57) (grifos Em setembro de 1939, Otho Rhüle
nossos). publica um texto intitulado: “A Luta
A grande contribuição desta obra é Contra o Fascismo Começa pela Luta
a tese segundo a qual para se Contra o Bolchevismo”. Para ele o:
compreender o marxismo, deve-se aplicar (...) estado soviético serve de
o marxismo a ele próprio. Se o modelo ao fascismo, deve conter
materialismo histórico-dialético é um características estruturais e funcionais
método e uma teoria da sociedade comuns. Para determinar quais, é-nos
adequado para compreender todos os preciso regressar à analise do "sistema
fenômenos sociais, por que não utilizá-lo soviético", tal como foi inspirado pelo
para compreender seu próprio leninismo, que é a aplicação dos
desenvolvimento? É partindo desta

5
Idem.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 24
princípios bolcheviques às condições bolchevique com qualquer força social
russas6. que se possa usar, ainda que só por um
Ou seja, a política stalinista é a instante e no setor menos importante...
conseqüência necessária da ideologia tudo isso é espírito jacobino. Finalizando,
leninista de fetichização das organizações a concepção essencial da organização
burocráticas, o partido, o estado, os bolchevique é jacobina, pois consiste na
sindicatos. Dadas as semelhanças entre o criação duma organização estrita de
fascismo italiano, alemão e a prática revolucionários profissionais que é, e
bolchevique no estado soviético, ele continuará sendo, a ferramenta dócil e
conclui seu texto da seguinte maneira: militarmente disciplinada duma direção
Estes nove pontos demonstram uma onipotente8.
oposição irreconciliável entre o bolchevismo Veja que tal como Pannekoek, o
e o socialismo. Eles ilustram, com toda a caráter golpista do bolchevismo é
clareza necessária, o caráter burguês do criticado, posto que não contribui, mas
movimento bolchevique e o seu parentesco
pelo contrário, reflui o movimento do
próximo com o fascismo. Nacionalismo,
autoritarismo, centralismo, direção do chefe,
proletariado em direção à revolução.
política do poder, reino do terror, dinâmicas Entretanto, agora Wagner tem muito
mecanicistas, incapacidade de socializar - mais elementos, pois que a prática
todos esses traços fundamentais do fascismo bolchevique já se consolidou, por isto na
existiam e existem no bolchevismo. O sua tese 58 ele afirma:
fascismo não passa de uma simples cópia do A economia russa está determinada
bolchevismo. Por esta razão, a luta contra o essencialmente pelas seguintes
fascismo deve começar pela luta contra o características: apóia-se nas bases de uma
bolchevismo7. produção de mercadorias; é gerida
Se Pannekoek classificou o segundo as normas da rentabilidade;
bolchevismo como blanquismo em 1920, revela um sistema capitalista de
Helmut Wagner o classificou como remuneração, com salários e ritmos de
Jacobinismo em 1933 nas suas “Teses trabalho acelerados; e, por fim, leva os
Sobre o Bolchevismo”. Não vamos nos refinamentos da racionalização capitalista
estender sobre seu texto, mas na tese 21 ao extremo. A economia bolchevique é
ele afirma: produção estatal que utiliza métodos
O princípio básico da política capitalistas9 (grifos no original).
bolchevique – a conquista e o exercício Em outras palavras, o bolchevismo
do poder pela organização – é jacobino; a é jacobino em sua política
grandiosa perspectiva política e sua “revolucionária” e capitalista em sua
realização, através da tática da prática como poder constituído. No final
organização bolchevique de lutar pelo das contas, o bolchevismo é uma
poder, é jacobina; a mobilização de todos organização com objetivos e práticas
os meios e forças da sociedade aptos para burguesas utilizando um cabedal
o derrocamento do oponente absolutista, conceitual pseudo-“marxista”, mas que
combinada com a aplicação de todos os de fato jamais compreendeu o marxismo,
métodos que prometiam êxito, as pois este só pode estar de acordo com
manobras e os compromissos do partido uma prática revolucionária do
proletariado.
6
RUHLE, Otho. A Luta Contra o Fascismo 8
Começa pela Luta Contra o Bolchevismo. WAGNER, Helmut. Teses Sobre o
Disponível em: Bolchevismo. Disponível em:
http://www.marxists.org/portugues/ruhle/1939/09 http://www.geocities.com/jneves_2000/marxismo
/luta-contra-fascismo.htm, acesso em 24/11/2007. tarefas.htm, acesso em 13/11/2007.
7 9
idem. idem.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 25
Foi justamente este aspecto que origens burguesas do materialismo de
Pannekoek observou no seu livro “Lênin Lênin. A base social para a construção do
Filósofo: exame crítico dos fundamentos materialismo burguês foi a ascensão
filosóficos do leninismo”. Publicado pela revolucionária da burguesia. Quando esta
primeira vez em 1938, esta obra é a necessitava derrotar a feudalismo e o
palavra final no que diz respeito em absolutismo, desenvolveu uma
demonstrar que a prática burguesa do interpretação materialista do mundo.
bolchevismo, também aparece no Entretanto, tal materialismo é abstrato,
domínio da “filosofia leninista”. não conseguindo compreender a
Novamente, dadas as condições historicidade das relações sociais. No
históricas peculiares daquele país, no fundo, a origem do materialismo burguês
qual a burguesia não tinha poder está no desenvolvimento das ciências da
suficiente para levar a cabo sua natureza. Com relação à produção do
revolução, foi necessário que outras conhecimento, o materialismo burguês
classes o fizessem, o campesinato e o tem algumas premissas centrais. De
proletariado. Os bolcheviques foram a acordo com Pannekoek, são elas: a) o
fração da burocracia que conseguiram materialismo burguês se apóia nas
conduzir de tal maneira os rumos que a ciências da natureza; b) por isto os seres
revolução trilhou para que esta adquirisse humanos são os animais mais
um caráter burguês, sem que a burguesia desenvolvidos da escala zoológica, sendo
estivesse na direção. determinados deste modo pelas leis
O que Pannekoek demonstra é naturais; c) as idéias são produtos do
justamente os fundamentos burgueses do cérebro; d) a consciência ou espírito é um
pretenso materialismo histórico do reflexo do mundo exterior.
leninismo. Dada a influência que os Não é curioso que Pannekoek
populistas estavam tendo dentro do encontre estas características presentes no
partido social democrata russo, Lênin livro de Lênin, daí ele afirmar que o
escreve um texto filosófico materialismo leninista ser um
“Materialismo e Empiriocriticismo” para materialismo burguês e não histórico-
reafirmar a concepção materialista da dialético. O “Materialismo e
história, pois de acordo com ele Mach e Empiriocriticismo” de Lênin é na
os populistas eram idealistas. verdade uma obra política, na qual ele
Pannekoek observa que a crítica busca desacreditar um conjunto de idéias
que Lênin dirige a Mach, Dietzgen, que vinham repercutindo dentro do
Avenarius não procede, pois eles não são partido e ele não podia perder a
o que Lênin julga que são. Não hegemonia que possuía em tal
analisaremos aqui os equívocos de Lênin, organização. Pois o que é a teoria do
para tanto, basta consultar o texto de reflexo presente nesta obra, senão a idéia
Pannekoek. Pannekoek afirma, para de que a consciência reflete o mundo
desacreditar Mach, Lênin “intenta exterior? O que significa o uso por parte
imputar a Mach concepciones que éste de Lênin das teorias das ciências naturais
jamás há tenido” (Pannekoek, 2004, p. para provar seus princípios materialistas,
331)10. O mesmo se dá com Avenarius e senão que seu pensamento funda-se nas
Dietzgen. ciências naturais?
Entretanto, o que é central é a Não falamos aqui de outros
demonstração que Pannekoek faz das bolcheviques, pois consideramos que em
linhas gerais seguem a cartilha de Lênin.
Tal como demonstra Paul Mattick em
10
Esta obra pode ser encontrada em: artigo intitulado “Stalinismo e
http://www.geocities.com/cica_web.
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 26
Trotskismo”, publicado em 1947, há uma bolchevismo é pré-marxista, portanto,
direta continuidade entre estes três burguês. Korsch nos dá a explicação
membros “ilustres” da burocracia marxista para os fundamentos capitalistas
capitalista soviética. do bolchevismo. Se Rühle afirma que a
Para concluir, o que buscamos “Luta Contra o Fascismo Começa Pela
demonstrar é que o bolchevismo não é Luta Contra o Bolchevismo”, podemos
uma continuação ou aprofundamento do ampliar e dizer que a luta contra o
marxismo, mas pelo contrário, está em capitalismo começa pela luta contra o
total oposição com este. Tanto do ponto bolchevismo, posto que este é a última
de vista político, quanto teórico, o trincheira da burguesia.

.
Referências

GORTER, Herman. Carta Aberta ao Companheiro Lênin. In: Tragtenberg, Maurício


(org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
LENIN, Vladmir Ilich. Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento. São
Paulo: HUCITEC, 1988.
MARX, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo: Expressão do Livro, s/d.
______. & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. & ______. Cartas filosóficas & Manifesto Comunista de 1848. São Paulo:
Editora Moraes, 1987.
PANNEKOEK, Anton. O novo blanquismo. Disponível em:
http://www.geocities.com/autonomiabvr/, acesso em 13/11/2007.
______. Lenin filosofo. In: La izquierda comunista germano-holandesa contra Lenin.
Disponível em: http://www.geocities.com/cica_web, acesso em 13/11/2007.
RUHLE, Otho. A Luta Contra o Fascismo Começa pela Luta Contra o Bolchevismo.
Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/ruhle/1939/09/luta-contra-
fascismo.htm, acesso em 24/11/2007.
WAGNER, Helmut. Teses Sobre o Bolchevismo. Disponível em:
http://www.geocities.com/jneves_2000/marxismotarefas.htm, acesso em 13/11/2007.

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 27


O GRUPO COMUNISTA INTERNACIONALISTA DA HOLANDA
Anton Pannekoek

A Primeira Guerra Mundial e as buscaram descobrir que outras formas de


posteriores revoluções na Rússia e ação poderiam levar a classe operária à
Alemanha colocaram novos problemas e liberdade.
promoveram profundas mudanças nas Os refugiados políticos na Holanda
idéias dos operários e dos socialistas. O que haviam tomado parte nas lutas dos
Partido Social-Democrata Alemão, uma operários alemães de 1920 a 1921, na
poderosa organização que aparentemente rebelião do Ruhr e nas fábricas da
tendia a conquistar a hegemonia política Saxônia, haviam experimentado a riqueza
e, portanto, estabelecer o socialismo, mal das iniciativas e capacidades que surgiam
alcançou o poder e se dedicou a restaurar das massas quando estas enfrentavam a
o capitalismo. Na Rússia, os operários tarefa de organizar-se a si mesmas, sua
venceram o czarismo e tomaram a posse vida e sua luta. Na Holanda, devido a sua
das fábricas e da terra; atualmente o situação no meio de influências inglesas,
capitalismo de Estado os levou a uma francesas e alemãs, havia penetrado um
escravidão ainda mais rigorosa sob uma entendimento teórico fundamental em
nova classe de senhores. E o culpado não amplos grupos de operários e
foi somente o reformismo; as mais intelectuais. Da colaboração entre estes
notáveis vozes do radicalismo inflexível, surgiu um grupo de militantes, chamado
conhecidos como marxistas, tais como “Grupo de Comunistas
Kautsky e Lênin, contribuíram com este Internacionalistas” (GIC), que se dedicou
resultado. Sem dúvida, algo ruim deve ao estudo da base econômica da nova
existir na doutrina dominante. sociedade. Sabiam muito bem que a
A doutrina dominante dizia que os revolução dos operários não traria
proletários instaurariam um governo imediatamente, como por um milagre,
socialista através de eleições um mundo de abundância no qual todos
parlamentares; então os políticos e poderiam consumir o que quiser. A nova
representantes teriam que levar adiante a ordem socialista tinha que ser construída
tarefa essencial de expropriar os através de uma dura luta e árduo trabalho
capitalistas, abolir a propriedade privada de deliberação, por meio de uma
dos meios de produção, e organizar a organização bem desenhada, segundo
produção. O sistema derivado desta regras de estrita igualdade proletária.
concepção é a propriedade pública, onde Cada forma de sociedade tem sua base
os operários são assalariados a serviço do material sólida em um sistema
Estado, o que é totalmente distinto da econômico, um modo de produção e
propriedade coletiva, na qual os operários distribuição, que determina sua estrutura
são os donos diretos das empresas e e caráter. Já anteriormente à guerra,
regulam o próprio trabalho. No último principalmente depois, muitos autores se
caso surge o problema de como estas ocuparam deste problema econômico
empresas podem ser combinadas em uma (Kautsky, Hilferding, Neurath, Leichter,
organização social corretamente Max Weber, Cole, etc.). Porém, todos
planificada. Depois de debates polêmicos assumiram como base a necessidade de
e intensa atividade cultural, distintos um poder central de direção, um governo
grupos esquerdistas se afastaram dos que imponha sua regulação sobre as
partidos socialistas e comunistas e distintas unidades de produção. Os

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 28


escritores anarquistas proclamaram a propostos conduzem à arbitrariedade na
autonomia das distintas oficinas; porém, distribuição por uma minoria dominante.
deixavam a conexão destas em uma O autogoverno dos produtores livres e
organização dependente da boa vontade. iguais, por outra parte, podia regular a
Quando o GIC estudou o problema produção e distribuição sem dificuldade,
principal do socialismo, de como sendo as regras e decisões impostas por
combinar a liberdade com a organização, realidades econômicas. As dificuldades
percebeu que somente tinham que dar surgem da interposição de um poder
continuidade às indicações do estatal entre a produção e o consumo.
pensamento exposto por Marx em Desta maneira, as aspirações de
pequenas notas ocasionais, em O Capital, autodeterminação que surgiam nos
e em suas observações ao Programa de operários, do mero sentimento e do
Gotha do Partido Social-Democrata programa político se converteram na
Alemão. Marx não falava ali de encarnação de uma necessidade
socialismo de estado, ao que ele se opôs econômica. Desta maneira se estabeleceu
radicalmente, mas da “associação dos um fundamento científico para a tarefa de
produtores livres e iguais”, dirigindo eles autolibertação da classe operária.
mesmos o seu trabalho; ele afirmou que É lamentável que este livro não
ao invés do valor e do dinheiro seria o esteja acessível para os operários ingleses
“tempo médio de produção”, medido em (a maior parte da edição na Alemanha foi
horas de trabalho, que formaria a base do destruída com a ascensão do nazismo),
novo sistema econômico. Estas idéias, porque sua base prática poderia ter
que os escritores “marxistas” apelado com intensidade à mentalidade
abandonaram por completo, foram objeto prática inglesa. Agora que o capitalismo
do trabalho pelos autores do GIC em um cresceu em um poder internacional, e as
importante livro: Princípios condições de luta tendem a ser mais
Fundamentais da Produção e uniformes no mundo, os operários em
Distribuição Comunistas, que apareceu todos os países deveriam investir mais
em 1930 em alemão e holandês. Ali se tempo em uma intercambio internacional
demonstra que através da contabilidade de experiências e idéias.
em cada empresa, completada pelo Naquele momento, este estudo deu
registro e pela contabilidade dos um forte impulso à propaganda do
processos de produção social, com base pequeno grupo. Em sua declaração de
nas horas gastas, os mesmos operários princípios o GIC recusou os partidos
eram capazes de supervisionar e dirigir a políticos e os sindicatos e proclamou os
produção e distribuição por si mesmos. conselhos operários como a forma de
Os corpos de delegados, os “conselhos organização do autogoverno. Conclamou
operários” são os instrumentos para os operários a encarar a luta pela
organização das empresas separadas em produção comunista, a tomar em suas
uma totalidade. Demonstrou-se que esta próprias mãos a direção e administração
não era simplesmente uma forma da produção e distribuição de acordo com
possível e melhor que o socialismo de uma planificação geral, e realizar, desta
Estado, mas que era a única forma forma, a associação de produtores livres e
possível. Não é possível para uma iguais.
burocracia central de funcionários e O GIC não se constituiu em novo
especialistas determinar todas as partido que buscava conseguir aderentes;
necessidades, prescrever todo o trabalho expôs o princípio de que em toda ação
e supervisionar todos os processos em prática de luta verdadeira os operários
seus detalhes; todos os sistemas têm que atuar – e atuarão – com uma
Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 29
unidade sólida, contra a qual as Depois da guerra, o GIC se articulou com
diferenças entre os grupos e os partidos e o grupo Spartacus que, em grande parte,
os sindicatos são fúteis. Além de vários seguiu na mesma direção; o qual tinha
panfletos, o GIC produziu regularmente um número de membros maior, porém na
“materiais de imprensa” postos à luta clandestina contra ao alemães havia
disposição de todos os grupos que perdido seus porta-vozes mais
quiseram publicá-los, nos quais se proeminentes. Agora publicam em
tratavam dos eventos contemporâneos a conjunto o semanário Spartacus, o único
partir deste novo ponto de vista. Assim, semanário que faz da luta de classe
em discussão amistosa com outros grupos inflexível da classe operária pela
esquerdistas, opondo-se intensa e liberdade e domínio da produção a base e
fundamentalmente aos socialistas no o conteúdo de toda a sua propaganda.
poder e aos partidos comunistas, o GIC Um livro sobre De Arbeudersraven (Os
difundiu suas idéias. No Raete- Conselhos Operários), expondo estas
Korrespondenz (Correspondência opiniões (que também existe em versão
Conselhista), de periodicidade irregular, inglesa em manuscrito), foi publicado por
abordavam questões teóricas. Em 1938, o eles no ano passado.
GIC publicou em alemão Lenin als Artigo publicado originalmente em
1947.
Philosoph (Lênin Filósofo), no qual se
demonstra que Lênin, em suas idéias
filosóficas básicas, se encontrava em uma Tradução: Nildo Viana.
posição oposta ao marxismo; pela
carência de meios financeiros só pode ser
publicada em um número limitado de
cópias.

Revista Enfrentamento – no 05, jul./dez. 2008 30

Você também pode gostar