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ALMA

MAGIA

SEDUÇÃO
2

A MALDIÇÃO

E A

VIRTUDE

RAYOM RA

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Esta é uma das muitas lendas contadas de Sertório: trovador, músico, e cantor,
herói e meio santo. Num lugar qualquer do passado Sertório viajava no dorso de
Firmamento, tinhoso e inteligente animal negro, salpicado de manchas brancas pelo
corpo, com um perfeito losango sobre a testa. Dizia-se que o cavalo só faltava falar;
sua presença era marcante em episódios vividos por Sertório, tendo-o salvo da morte
certa em várias oportunidades. Segundo ainda relatavam, além de magnífico de saúde
e aparência, era de alma sensível, trotando com graça em medidos compassos quando
seu dono, artista virtuoso, soltava-se ao sabor da arte. Sertório sabia quando
Firmamento pedia. Ele empacava de tal jeito que nada o tirava do lugar, somente a voz
poética e melodiosa do cantor. Então se tornava leve e dócil.

Terminado mais um retiro num mosteiro, cujo principal, monge e amigo, apreciava-
o e à sua arte, Sertório resolveu retomar os caminhos do mundo semeando o que
trazia e buscando o que não possuía. Eram frequentes suas passagens e períodos de
reclusão no citado mosteiro. Insinuavam que Sertório, se por um lado aprendia as
perfeitas regras do jejum e ascetismo, mortificando-se dias a fio a fim de se purificar e
matar as tentações que o mundo lhe produzia, por outro lado, ensinava aos eruditos as
artes da invocação e práticas da magia. Todavia, ninguém jamais conseguira ter provas
deste pacto. O silêncio entre os monges era sua lei e quando perguntados, eles, em
resposta, somente sorriam.

A viola, amiga inseparável do cantor, magnífica e assaz ambicionada, repousava


agora às suas costas. Contavam que uma princesa, quase morta de paixão pelo belo
poeta, houvera-o presenteado, que a viola, comprada de um mercador por muito ouro,
pertencera a um músico que a vendera momentos antes de sua morte. A ambição por
ela era tamanha que teria levado três ladrões à morte em ocasiões diferentes.
Afirmavam-na construída por um duende a mando de uma ninfa da música que a
encantara e a jogara ao mundo. De fato, sua beleza era incomparável, a vibração de
suas cordas, perfeitas. Ninguém jamais conseguira descrevê-la com precisão. Somente
sabiam-na construída de madeira leve e desconhecida, com braço da mesma cepa
terminado numa flor trilobada. Muitos juravam que sob os ágeis dedos de Sertório a
viola criava vida e cores, a flor se abria mais soltando poeira luminosa e prateada, e
muitas ninfas, em véus coloridos, vinham rodeá-lo a dançar extasiadas. Mas quanto a
isso jamais juravam, pois não podiam ter prova alguma, e Sertório, quando inquirido a
respeito não respondia, antes fazia uma trova e os deixava curiosos a pensar sobre
ela.

Sertório, como não tivesse uma definição de qual trilha seguir ou qual local atingir,
puxou Firmamento para a esquerda e penetrou pelo bosque. A tarde dentro em pouco
se apagaria e o moço queria encontrar um lugar onde dormir. Quanto ao frio da noite,
estaria protegido porque trazia um cobertor espesso de lã de carneiro dobrado sobre a
anca do animal. Mas quanto ao alimento, teria sorte se encontrasse alguma fruteira,
pois mesmo sem se abster da carne não matava para comer.
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Assim, mediante esta imediata preocupação, não tinha alento e nem inspiração
para o canto, embora apreciasse as graciosas formas das plantas, as flores silvestres,
os agradáveis zumbidos dos insetos e os estridentes cantos dos pássaros. E quanto
mais Firmamento se enfiava por arbustos e capins altos abrindo passagens e alas, ou
entre árvores galhadas dos arvoredos, o bosque se abria e se oferecia na sua virginal
singularidade, dando-lhe as boas vindas e acolhimento, talvez esperando por uma
recompensa musicada do cantor. Mas Sertório não cantava. Persistia de cerviz altiva e
olhar percuciente, denotando que de todas as formas procurava. Em seguidos
momentos a cerviz dobrava-se por que um galho mais alto obstava sua altivez. Porém,
ultrapassado o obstáculo, ei-lo de novo retomando o prumo da postura para, mais
adiante, submeter-se outra vez. Nesta estranha dança, às vezes interrompida por um
frear de Firmamento, uma reorientação do cavaleiro ou uma retomada de direção,
nosso personagem se interiorizava cada vez mais, embrenhando-se em gargantas
verdes e profundas, nada vendo de aproveitável nem satisfazendo a fome que o
apertava.

Quando o manto noturno começava a descer e já se estendia preguiçosamente


sobre todas as coisas, as árvores deixavam refletir em suas folhas uma coloração
insegura, as aves e bichos quase silenciavam se acolhendo mutuamente, produzindo
toadas melancólicas e já sonolentas, e trechos do céu que dali se podia descortinar
mostravam nuvens acinzentadas, Sertório viu algo por entre as ramagens, lá adiante:
um filete de fumaça. Esperançado, pressionou Firmamento com os calcanhares e se
encaminhou para o local, desvencilhando-se dos ramos e galhos com maior energia,
usando braços e mãos.

O filete de fumaça fez seu olhar escorregar para uma chaminé de tijolos; daí para
um telhado semi encoberto por folhas e galhos. Era, sem dúvida, uma casa, escondida
bem no interior do bosque - que sorte ele tivera! Aproximando-se, pôde constatar sua
aparência torta, velha e mal construída, de paredes em tijolos disformes, telhado em
palhas secas soltando pedaços, tendo ao fundo, não muito distante, um barranco
irregular. Uma cerca de paus enviesados, amarrados por cipós e fibras, e um portão
solto encostado numa das estacas da cerca, constituíam os limites frontais e laterais da
propriedade e respectiva entrada, naquela vastidão de lugares de ninguém.

Era nada acolhedor o seu aspecto; de causar certo calafrio e afastar as pretensões
dos passantes. Sertório, não obstante, sem carregar temores na alma, não tendo
alternativa e vendo-a como a melhor solução para os seus problemas imediatos, apeou
diante do portão e chamou:
- Ó de casa! Nenhuma resposta, o silêncio era absoluto, a imobilidade total;
somente a fumaça ao alto mexia-se, mesmo assim se esticando com lentidão.
Resolvido, ultrapassou o umbral e chegou ao limiar da porta fechada, a dois passos
dela.
- Ó de casa!
- Vai embora, estranho, leva contigo tua ousadia! Não queiras tornar-te também
amaldiçoado!
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Uma voz esganiçada e esquisita falou-lhe às costas. Ele se virou rapidamente


surpreso com o que ouvia e mais ainda com o que via. Era um anão, trazendo às mãos
um arco retesado e uma flecha apontada, tendo às costas em tamanho natural, porém
desproporcional à sua altura, que seria talvez de um metro e trinta, uma aldrava de
couro carregada de outras flechas. Sertório já ouvira falar dele. Descreviam-no como
lenda, mas via neste instante que ele realmente existia. Diziam teria ele sido bufão, que
havia tomado à poção mágica da longevidade, teria duzentos anos de idade e
resolvera se encerrar na solidão. Afirmavam que não escolhera tal isolamento, mas
fora forçado a fazê-lo, por que ao ingerir a poção mágica acometera-o uma maldição.
Essa maldição seria terrível e acometeria também a todos que dormissem debaixo do
mesmo teto onde ele dormia. Alguns confirmavam tê-lo encontrado pela floresta, ou à
sua casa, mas, temerosos, fugiam espavoridos. Outros, mais corajosos, chegavam a
conversar com ele, dando-lhe notícias do mundo e ouvindo trechos de sua vida, porém
jamais passavam a noite em sua companhia.

Era feio o homenzinho: magro, enrugado, de olhos grandes e caídos, nariz adunco
e queixo comprido, e além de tudo com ombros meio arcados. Sertório, passada a
surpresa, sorriu polidamente, levando a mão ao chapéu e o saudando reverentemente:
- Saudações, senhor bufão, tenho ouvido falar de ti, muito assustadoramente,
aliás, julgando-te uma lenda. Todavia, eis-te aqui diante de meus olhos, falando-me e
advertindo-me. Permitas que me apresente: sou Sertório, trovador, cantor, e músico, e
me encontro perdido neste bosque encantador, hoje desafortunado para mim, cansado
e faminto.
- Sertório, o trovador? – surpreendeu-se o bufão, piscando com cara atoleimada,
folgando e baixando o arco.
- Vejo que ouviste falar de minha humilde pessoa. Então não estás tão afastado do
mundo quanto dizem. És mesmo, Aldegundes, o bufão amaldiçoado?
- Sim, sou Aldegundes, o bufão amaldiçoado, - confirmou com acrimônia, - teus
feitos já chegaram aos meus ouvidos. Contam que além de amigo das artes és valente
e possuidor de grande nobreza de espírito, é verdade?
- Exageros, senhor bufão. Sou somente um homem de sensibilidade que busca
pela beleza e ama a verdade. Aldegundes olhou-o com maior admiração, da cabeça
aos pés, notando o seu belo e principesco porte, invejando-o.
- Vejo, quanto ao aspecto exterior, que não exageraram ao descrever-te e se fores
realmente tão nobre quanto dizem, poderás ajudar-me.
- Referes-te à maldição?
- Teme-a, trovador? - Sertório somente sorriu, mas tão intensamente que esse
encantador sorriso inundou ao feio bufão de certeza - Tens coragem de dormir sob o
meu teto? – insistiu Aldegundes. Sertório, ainda sorrindo, arcou-se em reverência,
apontando para a direção da porta. Ele, satisfeito, encaminhou-se e adentrou. Sertório
o seguiu.

`A mesa tosca, pisando o chão de terra batida, sentados sobre tocos de árvores,
eles jantaram. O guisado de coelho estava delicioso e as frutas ótimas. Nesta sala em
que permanecera desde que entrara, Sertório pode notar a simplicidade dela; que toda
a mobília e objetos eram velhíssimos e mal acabados, tortos como era a casa,
certamente feitos pelas mãos do próprio truão ou por ele remendados e que à luz da
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candeia as moventes sombras lembravam coisas fantasmagóricas a querer possuir


tentáculos e abraçar. Terminado o silencioso repasto, Sertório solicitou ao dono da
casa que lhe deixasse trazer Firmamento para os limites do quintal onde, sob a
proteção de uma parede, poderia passar melhor a noite. Aldegundes concordou,
mandando que o levasse para junto do forno de barro onde fazia assados, debaixo de
um alpendre lá no fundo. Lá, encontraria também um saco contendo pela metade grãos
de milho, que usava para dar de comer às galinhas e atrair outras aves e caçá-las,
além de um balde d’água que poderia a ambos utilizá-los. Sertório assim fez.
Firmamento quase nada comeu do milho, por que pastara o suficiente do lado de fora,
porém bebeu água com disposição.

Sertório surpreendia-se com esta solicitude inicial do bufão e se enchia de


curiosidade pelo que o aguardava, precisando, porém, ficar atento e de olhos bem
abertos. Tendo retornado e recolocado a candeia sobre a mesa, pôde notar com
surpresa pela bruxuleante e fraca luz da vela de cera, que a fisionomia do pequeno
homem se transformara. Ele estava agora carrancudo, de lábios apertados, olhando-o
fixamente. Sertório sentou-se e o experimentou:
- É verdade, senhor bufão, que tomaste uma poção mágica que te faz viver com o
mesmo aspecto há duzentos anos?
- Cento e cinqüenta, mas envelheci também.
- Ainda assim é muito tempo para um mortal comum. Dizem que a maldição te foi
trazida ao teres ingerido tal poção, é também verdade este fato?
- Senhor Sertório - disse com especial ênfase naquela desagradável voz - queres
certamente ouvir sobre toda a minha história, já que levantei a possibilidade de poderes
me ajudar?
- Se merecer de ti tamanha confidência, sim!
- E ajudar-me-ia de fato se te dissesse que necessito destruir a maldição e
correrias todos os riscos junto comigo?
- Somente poderei afirmar-te, após ter ouvido tua história, senhor bufão, antes não!
- Mas se a ouvisses e não te dispusesses a ajudar-me?
- Iria embora e calar-me-ia para sempre, jamais dizendo a alguém uma única
palavra sobre o assunto enquanto tu vivesses.
- Humm... - resmungou o bufão, levando a mão ao queixo, levantando uma
sobrancelha e pregando o olhar nervoso no plácido e claro rosto do belo mancebo - e
que provas me dás de seres de fato Sertório de quem tantos falam?

Sertório sorriu. Segurando a presilha em diagonal ao tórax, trazendo a viola


adiante e acariciando suas cordas, dedilhou-as ensaiando qualquer coisa e começou a
cantar. A voz perfeita e melodiosa do cantor encheu o ar, o lirismo dos seus versos se
derramou melifluamente, as notas maravilhosas da viola vibraram mágicas
transformando todo o ambiente. Ao término, Aldegundes já havia perdido algo da
carranca, mas não estava inebriado como tantos, após ouvirem-no. Havia nele tanta
rudeza de espírito quanto havia nos objetos e naquela casa inteira.
- Prometes, então, que me ajudando ou não nada revelarás de minha história?
- Prometo, enquanto tu viveres! – reafirmou Sertório.
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O bufão agitou-se no banco, jogou nervosamente as mãos à frente, unindo os


dedos e vincando a testa, concentrando-se no que ia contar. Sertório, como estava
permaneceu, calmo, porém atento, disposto a ouvir a verdade de todas as coisas que
lhe chegavam aos ouvidos através dos homens.
- É um alívio, senhor trovador, depois de tantos anos ter alguém digno de
confiança diante de mim, a escutar minha história. Há mais de um século estou
enterrado vivo nesta casa, neste lugar solitário, sem uma companhia humana, sem um
calor igual. Desde o maldito dia em que tomei a poção, julgando estar aprisionando a
fortuna, acabei prisioneiro de meu desventurado desejo. Saibas, senhor, que a
maldição de fato existe, sendo maligna unicamente a mim. Não te preocupes, portanto,
pois não te acompanharás quando daqui saíres. Todavia, somente alguém como tu,
creio eu, disposto a ajudar-me, poderia, em verdade, livrar-me dela. O começo de
tudo? Quase me esqueço. Teria trinta e sete anos de idade, talvez quarenta, era o
bufão preferido do rei, tendo me tornado tal depois de comprado de um circo onde era
saltimbanco. Meus pais, viajantes por índole, naturais de outro país, tendo observado
pelo meu físico e feiúra que outra coisa melhor eu não poderia ser, venderam-me ao
referido circo por um punhado de moedas quando eu atingia a idade de catorze anos.
O dono do circo adestrou-me por alguns anos, como se adestra a um animal doméstico
a fim de que faça tudo aquilo o que se queira.

O rei, homem inconstante, por vezes divertido, por vezes violento, principalmente
quando bêbado, exigia-me quase sempre ao seu lado e em todas as suas festas e
recepções. Nessas reuniões, enquanto os fantasmas do vinho não tinham ainda se
soltado, ele ria e gargalhava com minhas anedotas maliciosas e comicidade. Porém,
quando o vinho acordava as sombras de seu mundo infernal, ele me espancava e me
dava pontapés.

Sua filha única, a princesa, bela e também cruel, por motivos que desconhecia,
não perdia a menor oportunidade de me humilhar e maltratar, despertando com isso
sentimento recíproco de rancor em meu coração. Entretanto, que poderia eu, pobre e
escravizado bufão, fazer contra o rei e a princesa? Quanto à rainha, pouco ligava ao
que se passava em redor, estando mais preocupada com seus encontros amorosos,
não tomando conhecimento de minha insignificante vida. Aquela situação foi se
tornando verdadeiramente insuportável. Com o tempo, a princesa não se contentava
mais em humilhar-me, espancava-me também atirando-me coisas onde me visse,
dizendo odiar minha feiúra. Um ódio quase gritante, em contrapartida, crescia cada vez
mais em mim e a custo era abafado. Isto se agravou mais no dia em que o rei, numa de
suas escandalosas festas, obrigou-me a lamber do chão o vinho que derramara.
Naquele momento, jurei vingar-me dele, da princesa e de todos os que riam das
humilhações a que me submetiam.

Havia fora da cidade um bruxo, velho e solitário, que, segundo contavam, fazia
bruxarias sob encomenda. Aquele que fosse visto em sua companhia, ou acusado de
freqüentar sua casa, seria desprezado e apedrejado. Havia, em relação ao bruxo, um
temor maior do que escrúpulos. Se tanto o temiam era porque o homem seria
poderoso, pensei eu, e mergulhado numa torrente de revolta, sedento de vingança,
resolvi ir visitá-lo, saindo à noite, às escondidas, com grande risco, andando pela
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estrada e depois pelos caminhos escuros. Ruminava os planos de vingança, açulando


mais e mais um ódio que se agigantava.

Diziam que o bruxo encantava, fazia poções e enfeitiçava corações e eu desejava


encomendar algo forte, que os fizesse humilhar-se diante de mim. Pensava também
em envenená-los de uma só vez, mas assim não iria saborear o prazer de vê-los sofrer.
Ademais, tinha outra idéia em mente: a idéia da riqueza e opulência. Sendo rico e
poderoso, aqueles que zombavam de minha condição iriam respeitar-me e bajular-me.
Mas quanto ao rei e a princesa? Esses eram os meus donos e patrões. Se me tornasse
rico, nada em verdade me pertenceria senão a eles. Sim, era isso, antes de tudo a
alforria, a liberdade, depois a riqueza e a vingança. E após, matá-los-ia a ambos de
uma só vez? Tais eram meus pensamentos, meus desejos de assim realizá-los, sem
ao menos saber que tipo de bruxaria conseguiria encomendar.

Chegando a casa do bruxo, bati à porta. A noite estava fria, penetrada de espessa
névoa. Uma voz rouca e abafada ordenou-me que entrasse. Sob a fraca luz de vela, a
lúgubre e desarrumada casa, com objetos de cera e vasilhames espalhados por todos
os lados, exalando muitos cheiros, causava-me calafrios. O fogo da lareira extinguia-
se. A temperatura ali dentro era quase tão igual quanto de fora.

Não o vendo parei naquela sala, mas a mesma voz chamou-me do quarto,
mandando-me que lhe trouxesse a candeia de sobre a mesa. Assim fiz e fui encontrá-lo
deitado, tremendo de frio. Era um velho realmente, e pelo seu aspecto estaria doente.
Sem a menor formalidade perguntou-me o que eu queria. Estando ávido por uma
confidência, contei-lhe tudo sobre minha vida e sobre os meus planos. Afirmei-lhe,
convictamente, estar disposto a qualquer coisa conquanto obtivesse liberdade e poder.
Ao término, ele me olhava com grande curiosidade, estudando-me atentamente,
deixando-me embaraçado e temeroso. Finalmente falou, dizendo que me poderia dar o
que eu desejava, mas o preço seria alto: metade do ouro que eu ganharia. Intrigado,
perguntei-lhe por que precisaria de tanto ouro já que por toda a vida, ao que parecia,
vivera pobre. Ele revelou-me então que estando para morrer, desejava ser enterrado
no cemitério dos bruxos, longe dali, onde a fraternidade dos malignos se reúne em
conciliábulos e onde só os espíritos que adquiriram em vida o direito a uma sepultura
no lugar, podem freqüentar e fazer parte. E isso custaria muito ouro!

Como não tivesse escolha se desejasse levar adiante meus planos de vingança,
aceitei o trato. Ele, imediatamente, me pediu que o amparasse e o levasse para a sala.
Em lá chegando, apoiou-se na mesa e apontou para a lareira, mandando-me que a
empurrasse. Com surpresa, via-a escorregar e se abrir, dando lugar a uma passagem
secreta. De volta à mesa, amparei-o entrando com ele através da passagem. Era-me
difícil carregá-lo porque sendo franzino e de baixa estatura, não conseguia grandes
resultados neste tipo de auxílio.

Descendo alguns degraus, chegamos a um porão onde o bruxo guardava em


urnas e prateleiras todos os apetrechos e ingredientes secretos de magia negra e onde
existia um caldeirão. Fazendo-me de seu auxiliar, mandou-me colocar sob o caldeirão
rachas da madeira amontoada a um canto, ensinando-me como fazer o fogo. Em
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seguida, foi-me pedindo os objetos e os ingredientes de que necessitava. Sempre que


eu estendia-lhe alguma coisa ele fechava os olhos e recitava uma fórmula mágica,
soltando sons guturais, gritando e rindo, às vezes olhando para o alto da escada onde
a porta permanecia aberta. Isso me causava arrepios e grande medo, mas assim
mesmo eu continuava. Em certo momento ele parou tudo, ficando a pensar em silêncio.
Depois, com cara zangada, apontou para um grosso e enorme livro negro que
descansava junto à parede sobre uma base de madeira, fazendo-me sinal para que o
levasse até ali. Abrindo as largas e compridas laudas com cuidado e esforço, correndo
o enrugado dedo sobre figuras e textos de uma escrita ininteligível para mim,
certamente codificada, ele grunhiu de satisfação ao encontrar o que buscava. Após ler
tudo com atenção e memorizar o que precisava, mandou-me que o levasse de volta
junto ao caldeirão.

Quando o caldeirão fervia, ele jogou os ingredientes e invocou os espíritos do mal.


Depois, com uma concha, cujo cabo era um osso humano, retirou a quantidade julgada
necessária daquela poção depositando-a num recipiente que eu levaria. Enquanto fazia
isso, instrui-me como usá-la, explicando-me que bastariam três gotas numa taça de
vinho a fim de que tornasse qualquer pessoa submissa e escrava aos meus desejos.
Esse poder de submissão era total, porém temporário. Eu deveria aproveitar esses
momentos para exigir da vítima tudo o que quisesse por que ela estaria sob o
encantamento da poção. Porém, tendo a vítima dormido e depois que acordasse, ela
estaria consciente de todos os seus atos, embora não tivesse ainda forças para voltar
atrás, mesmo contrariada. Para novas e diferentes exigências seria aconselhável dar-
lhe novamente da poção, mas correria o risco dela recusar-se a bebê-la. A poção tinha
sido preparada com os únicos ingredientes nesse teor que ele agora possuía, por isso
era preciosa e insubstituível.

Antes de entregá-la, mandou-me encher duas taças de um vinho que ali havia a
fim de que selássemos o pacto. Tendo-o tomado, observado antes e inutilmente que
ele o tomasse primeiro, o bruxo riu estranhamente informando-me que bebêramos
veneno. O veneno, entretanto, levaria exatamente sete dias para fazer efeito, o prazo
máximo de que eu dispunha para realizar o plano e trazer-lhe o pagamento. Se
falhasse, ou o ouro fosse insuficiente para o seu intento, ele não me daria o antídoto e
eu morreria. Da mesma forma, morreria se tentasse enganá-lo na partilha por que ele
falava a linguagem dos corvos e um deles me vigiaria dia e noite. Inútil também seria
procurar outra forma de anular o efeito do veneno: somente ele conhecia sua natureza.
Após ter sido novamente obrigado a ajudá-lo a locomover-se de volta ao quarto, deixei-
o, voltando apavorado para o castelo, temendo que me visem, levando comigo a poção
do encantamento.

Naquela noite não consegui dormir e muito mal na outra; somente pensando no
que me acontecera. Na madrugada do terceiro dia, em meu pequeno quarto, - mais um
cubículo do que outra coisa qualquer numa das torres menores no fundo do castelo, -
subi num velho baú encostado à parede e me apoiei no frio peitoril de pedra da janela,
a fim de olhar a restrita paisagem. Apesar da escuridão e fraca luz da lua, conseguia
divisar entre sombras e contornos um pedaço da rua lá embaixo, úmida pelo sereno.
Mas não eram essas poucas coisas que eu discernia que me prendiam a atenção. Eu
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as olhava tão somente. Em meus pensamentos ainda perambulavam as sombras das


cenas passadas com o bruxo, e as revivia, admirando-me de minha coragem e
proposta. Acreditava agora que somente impelido por tal ardente ódio a queimar-me as
entranhas, pudera ir tão longe. Não que o ódio endereçado ao rei, à princesa e a toda a
corja de aduladores houvesse arrefecido. Existia ainda e intensamente. Todavia, se
naquele instante da visita ao bruxo, eu pensasse ou me sentisse como agora,
certamente não teria feito o pacto com o sinistro. Ante essa reflexão, meu corpo foi
tomado de um estremecimento e cheguei a perguntar-me se, apesar de tudo, das
humilhações e maus tratos porque passava, teria realmente coragem para levar
adiante o plano de vingança.

Neste exato instante, ouvi o crocitar de um corvo e olhei para cima, percebendo,
apesar da noite, que ali estava um voando em direção de minha janela. Chegando mais
próximo atacou-me com as garras, embaraçando-se aos meus cabelos, bicando
diversas vezes minha cabeça. Assustado, bati-lhe. Ele me largou voando novamente,
subindo e se preparando para nova investida. Rapidamente fechei a janela impedindo-
o de entrar, ouvindo-lhe, entretanto, o ruflar de asas ao pousar sobre o peitoril, ali a
permanecer a vigiar-me e a lembrar-me de que o pacto precisava ser cumprido. Aquilo
realmente surtiu efeito em mim. Relembrando que tomara o veneno, portanto, deveria
apressar-me ou morrer, decidi realizar o plano tão logo a oportunidade se me
oferecesse, sem delongas.

Dia seguinte, o rei mandou chamar-me a fim de que permanecesse ao seu lado
enquanto recebia uma comitiva de mercadores estrangeiros, que vinha para oferecer
presentes e obter permissão para negociar na cidade. Tendo enchido um recipiente
menor com a poção e tê-lo fechado bem, levei-o comigo na tentativa de usá-la na
primeira oportunidade.

Durante a recepção e na entrega dos presentes, fiquei atento, porém o rei não
pediu vinho. Ao invés, o miserável ordenou-me que contasse uma anedota para
aqueles estrangeiros repugnantes que, de apreciável tinham somente os presentes.
Eles riram e o rei também e tal como se dirigisse a um cão obediente, ao final, apontou-
me para o lado do trono, ordenando-me que ali eu ficasse. A princesa e a rainha
estavam deslumbradas com os tecidos de fina seda e cores vivas que lhes eram
ofertados bem como com os pequenos objetos e pedras preciosas.

Finalmente o rei se retirou, indo sozinho para os seus aposentos. Aproveitando-me


disso, fui até a cozinha e menti ao copeiro, dizendo que o rei pedira vinho e que eu
mesmo o levasse. Não seria a primeira vez disso acontecer, dessa maneira não
haveria estranheza ao fato e logo o copeiro trazia da adega a bandeja e a taça real
com o vinho, entregando-me. No caminho, desviando-me do corredor principal, entrei
numa pequena guarita abandonada que se lançava ao alto de um recuado canteiro de
jardim, e certificando-me de que não havia ninguém por perto, despejei três gotas da
poção na taça, retornando ao corredor, logo entrando nos aposentos reais.

Sentado à escrivaninha, o rei escrevia avidamente não prestando atenção a minha


pessoa. Coloquei a bandeja sobre a mesa, alertando-o sobre isto, e ele somente
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resmungou sem olhar-me, concentrado no que fazia. Saí rapidamente, excitado e


trêmulo, aguardando impacientemente do lado de fora. Ao cabo de certo tempo, resolvi
entrar novamente, encaminhando-me vacilante para a escrivaninha onde ele ainda se
encontrava. Meu coração quase pulou do peito quando notei que a taça estava pela
metade. Mas o rei aparentemente continuava o mesmo, pois ainda escrevia. Teria a
poção falhado? Ansioso, perguntei-lhe se desejava mais vinho. Para minha surpresa e
desconcerto ele largou a pena e disse que sim, somente porque eu lhe pedia. Ele
tomou mais dois goles e ficou a olhar-me com ar aparvalhado, e eu, estupefato, via que
a poção parecia ter funcionado. Não obstante, precisava testá-lo e pedi-lhe que me
desse um pergaminho de presente, ao que ele prontamente acedeu. Exultante, pedi-lhe
o cordão de ouro com o medalhão que trazia ao pescoço, e ele deu-mos. Depois outras
jóias e o rei a nada me negava. Tranquei a porta e deitei-me em sua cama, ordenando-
lhe que ficasse de joelhos ao meu lado enquanto pensava. Como um cãozinho, ele me
obedeceu. Então, ali deitado, pensei em como obter ouro sem que ninguém
suspeitasse, pois ambicionava muito, vindo-me, afinal, uma idéia. Levantando-me da
cama, ordenei-lhe que escrevesse uma carta de alforria, libertando-me da escravidão.
Ele assim fez. Depois, mandei-o formular uma ordem-de-trânsito, ao mesmo tempo um
salvo-conduto, a fim de que a carga que eu portasse não fosse interceptada por
ninguém no reino inteiro, nem violada, por tratar-se de assunto de interesse real a
meus cuidados, sendo transportada para destino somente conhecido por mim. Sem
titubear o rei a formulou. Novamente, a meu mando, elaborou um terceiro documento,
segundo o qual me doava um baú imenso, lotado de ouro, descrevendo suas
características e insígnias para que, se necessário, eu pudesse provar que não o
roubara. Finalmente, por um último documento de seu próprio punho, cedia-me
centenas de acres de terra numa província e um pequeno castelo ali existente de sua
propriedade, que nele se instalava quando viajava para a região.

Havia ainda um empecilho: o tesoureiro. Ele era responsável pelas apropriações


de todo o reino e contabilidade geral e o rei o fazia seu conselheiro para assuntos de
compra e venda e do tesouro. Sendo funcionário ladino, não se convenceria de que
sua majestade, a quem conhecia muito bem, estaria doando toda aquela fortuna e
propriedade a um simples bufão, principalmente eu, Aldegundes, seu capacho e lixeira
prediletos.

Pensando numa solução, mandei-o pedir mais duas taças de vinho. Ele foi e
voltou. Tendo, após, o vinho chegado, fiz com que o rei ficasse de costas, derramando
outras três gotas da poção na taça que se destinaria ao tesoureiro, ordenando-lhe que
o mandasse chamar imediatamente aos seus aposentos. Quando o tesoureiro chegou,
homem forte e hirsuto, eu estava a um canto, em posição de bufão, com cara de tolo. O
rei, sorrindo, em obediência ao que eu o havia instruído, apontou-lhe a cadeira onde,
adiante, sobre a mesa, estava a taça de vinho a ele reservada. O tesoureiro franziu a
testa e por um instinto pareceu desconfiar, olhando-me interrogativamente, cravando-
me aqueles olhos argutos. Eu estremeci e quase pus tudo a perder, controlando-me
com enorme esforço, sentindo, não obstante, apesar do frio, o suor a escorrer-me pelo
corpo. Mas ele foi e sentou-se. O rei segurou sua taça e aproximou-a para uma
comemoração. Ele, desconfiado ainda, levantou a sua e brindou. O rei bebeu e o
tesoureiro, sendo um súdito, foi obrigado também a beber.
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Tendo recolocado a taça sobre a mesa, nada aconteceu de anormal e ele


perguntou ao rei porque o chamara e qual o motivo daquela comemoração. O rei,
sempre rindo, apontou-me, dizendo que o motivo era eu. O tesoureiro virou-se e olhou-
me surpreso enquanto o rei gargalhava. Súbito, ele também começou a rir, abraçando-
se ao rei. Aproveitei-me então e fiz com ele o mesmo teste que fizera com o rei,
pedindo-lhe seu cordão, e ele deu-mo. Em seguida, mostrei-lhe o documento feito por
sua majestade, ordenando-lhe que providenciasse imediatamente o ouro bem como um
meio de transporte adequado que disfarçasse a carga, pois partiria naquela mesma
noite, em sigilo, saindo por um dos túneis secretos que só o rei e seus asseclas
conheciam, e ele de bom humor a tudo assentiu.

Estando de novo a sós com o rei, saboreei a última vingança naquele dia,
imaginando ser somente mais uma de tantas que planejava. Segurando uma daquelas
taças, derramei vinho no chão, ordenando-lhe que o lambesse, e ele o fez exatamente
como me obrigava fazer. Depois, pisei-o e golpeei-o várias vezes, com voluptuosa
satisfação, tendo o cuidado de não lhe deixar marcas pelo rosto a fim de que nada
desconfiassem, saindo após.

Perto da meia noite, procurei ao tesoureiro. Levava um saco às costas com roupas
e objetos de uso pessoal. Ele se encontrava em seu gabinete, no palácio, e recebeu-
me de mau humor, com cara sonolenta. Era evidente que dormira e pela rudeza de
suas palavras e gestos, cheguei a temer que o plano fracassasse. Mas lembrei-me do
alerta do bruxo, e sem qualquer gesto de resistência o tesoureiro real conduziu-me
ante um túnel secreto, cuja entrada era disfarçada por uma estante fixa de parede
móvel numa saleta contígua ao seu gabinete. Logo ele acendeu um archote e
enveredamos pelo úmido túnel no subterrâneo do castelo, até um pátio fechado, para
mim desconhecido, onde pequena carroça atrelada a um cavalo ali estava. Ainda
bastante contrariado, meu acompanhante e guia levantou uma braçada do feno jogado
sobre a carroça, mostrando-me o largo baú envolto num pano púrpura. Pedi-lhe então
que o abrisse, e ele, obedecendo-me, subiu imediatamente na carroça puxando o
pano.

Minha cupidez cresceu mil vezes ao ver todas aquelas reluzentes moedas. Eram
milhares, mais do que jamais vira em toda a minha vida e quase mergulhei sobre elas,
tamanha a satisfação! Finalmente, dando-me por satisfeito, ele de novo fechou o baú e
o lacrou com o lacre do tesouro real. Inútil e desnecessária providência, assim tomada
por que eu exigira no momento em que ditara a missiva ao rei. Como última atenção,
abriu-me o portão para que eu saísse e ao passar junto a ele cumprimentei-o do alto da
carroça com gesto de cabeça, enviando-lhe sorriso de escárnio, ao que evidentemente
ele não respondeu. Aquela partida era-me triunfal e já me via retornando dentro em
pouco com pompa, cumulado de honras, seguido de um séqüito de bajuladores a
entrar pela porta principal do salão real, a convite de sua majestade.

Mas a vingança não terminaria ali, pensava com satisfação e acalanto, pois mal
começava. Depois seria a vez da princesa. Ela me serviria e se prosternaria diante de
mim, e todos iriam se admirar respeitando-me. Talvez não a envenenasse e nem ao
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rei, contentando-me em vê-los eternamente humilhados e ruminantes de ódio, sem


forças para se libertarem de meu jugo. Ah, o demônio não era tão feio assim como o
descreviam, ele sabia ser generoso com aqueles com quem se pactuava!

Ao pensar sobre isto, lembrei-me do bruxo e de meu compromisso em dar-lhe


metade do ouro. Em movimento instintivo e repentino, puxei as rédeas do animal e freei
a carroça, não me conformando em ter de dar-lhe tanto ouro, meu ouro! O prazer de
possuir, de sentir-me rico, causava-me uma sensação estranha. Pulando para dentro
da carroça, abracei ao baú como se abraça a uma coisa viva e apaixonante e
febrilmente abri-o, rompendo o lacre, enterrando as mãos nas moedas, querendo senti-
las mais intimamente, desejando que fizessem parte de meu corpo - e elas agora de
fato faziam! Não, não dividiria o ouro com ninguém, nem uma moeda, quanto mais à
metade delas! Aquilo representava minha felicidade, a riqueza e a vingança com que
eu sonhara. Porém, precisava tomar o antídoto senão morreria e de nada me valeria o
ouro!

Retomando a viagem, fui em direção da casa do bruxo. Mil pensamentos ainda


faziam fervilhar minha cabeça, mas não encontrava a maneira de enganá-lo. Tendo
penetrado o caminho que levava diretamente a sua casa, algo sobre a copa de uma
pequena árvore assustou-me, levantando vôo ruidosamente: era o corvo, que crocitou
furioso - maldito espião - e temi ser novamente atacado! Mas não me atacou, antes me
acompanhou durante o restante do trajeto, pousando de árvore em árvore, anunciando-
se a cada vez que eu o alcançava!

Finalmente cheguei. O bruxo já me aguardava à porta daquela casa lúgubre, de


candeia à mão, sorrindo ironicamente, estando já o corvo pousado sobre o seu ombro.
Fazendo-me sinal, mandou-me que o ajudasse a retornar para a sala. Tendo feito o
que me ordenara contei-lhe que conseguira tudo, mas estando de partida para minhas
terras, necessitava tomar logo o antídoto. Assim que o tomasse, realizaria a prometida
partilha. Ouvindo isso, o bruxo gargalhou sinistramente e senti calafrios a percorrerem
minha espinha. Ainda rindo, ele me disse que não me daria agora o antídoto, mas
somente depois de eu levá-lo à confraria dos bruxos. Estava velho demais para partir
sozinho e não agüentaria chegar lá sem ter alguém para ajudá-lo. Protestei de várias
maneiras, argumentando do perigo em viajar para mais longe com tanto ouro, havia
muitos assaltantes pelas estradas e não pretendia desviar-me de minha rota. Ademais,
isto não fazia parte de nosso pacto. Mas ele não quis saber de nada e proferiu sua
sentença: se eu não o obedecesse, morreria envenenado. Trepidando de ódio tive de
aceitar aquela traição, mas jurei em silêncio que se tivesse oportunidade me vingaria
dele também. Se antes não desejara partilhar meu ouro, neste momento desejava
muito menos.

A viagem até a confraria dos bruxos seria longa, levando semanas. Como ele não
soubesse quanto tempo de vida dispunha, desejava se pôr a caminho imediatamente.
Tendo tomado conhecimento deste fato, perguntei-lhe, ansioso, acerca do antídoto,
pois o veneno faria efeito dentro de pouco mais de quatro dias. Em resposta, ele
informou-me que estaria levando suficiente poção a fim de prorrogar o efeito letal de
sete em sete dias, até chegarmos ao destino, onde me faria beber a dose definitiva.
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Soltando outra horrível gargalhada, o execrável aconselhou-me cuidar de que nada lhe
acontecesse porquanto se tornava agora para mim carga mais preciosa do que o
próprio ouro que eu carregava.

Partimos naquela mesma madrugada levando alguma bagagem, alimentos e um


burro de cargas amarrado à carroça, de propriedade do bruxo. O corvo ia também ora
voando para as copas do arvoredo, observando e trazendo informações para o seu
dono, ora descansando sobre o seu ombro. Era realmente estranho como ambos se
entendiam. O corvo falava-lhe ao ouvido e o bruxo assentia com a cabeça, soltando
sons guturais. Isso me causava mal e temia a ambos. Por quatro dias viajamos sem
novidade. Durante o dia nos escondíamos pelos matos ou bosques, à noite
retomávamos a jornada, pois o luar era suficiente para clarear os caminhos. O bruxo
era pessoa extremamente desagradável, ora a maldizer as mínimas coisas ora a
gargalhar de forma assustadora. Antes de dormir, dava ordens ao corvo para que
vigiasse o seu sono e invocava espíritos. Eu me afastava dele para tentar dormir
melhor, porém o meu sono era interrompido e cheio de terríveis pesadelos. Na quarta
manhã da viagem, perto do meio dia, acordei sobressaltado, estando o corvo a bicar-
me e a puxar meus cabelos. O bruxo, encostado a uma árvore, gargalhava de
lacrimejar, dizendo, afinal, passado o acesso de riso, que o mandara acordar-me a fim
de que lhe preparasse a refeição. Isso me irritou ao extremo e senti-me novamente
escravizado, tendo de servir a um dono mais insano e perigoso do que o primeiro. Que
destino o meu!

Durante a refeição, ele me estendeu uma caneca contendo um líquido grosso e


escuro, mandando-me que o bebesse, pois se tratava da primeira dose do antídoto. O
líquido era amargo e engoli-o com repugnância sob o seu sorriso sarcástico e grasnos
nervosos da negra ave. Naquele mesmo dia, comecei a suspeitar de que o bruxo não
pretendia me libertar. Se alcançássemos à confraria me faria lá seu escravo. Uma vez
ouvira dizer que todo aquele que descobrisse o esconderijo dos bruxos, seria
aprisionado e os serviria até a morte, ou então, se escapasse, morreria amaldiçoado
poucas horas depois. Mas com todo o ódio que lhe endereçava não poderia fugir e nem
matá-lo, sob pena de morrer também!

Dois dias depois, tendo saído de um caminho secundário e meio abandonado,


ouvimos ao longe o rumor de vozes e cantos. Seria uma taberna localizada na estrada,
falou o bruxo, e isto lhe despertou o desejo de tomar vinho. Como também
necessitássemos de alimentos ele me ordenou que montasse o burro e fosse lá
adquirir essas coisas. Lá chegando, fui alvo de piadas e troças. Adquiri pão, toucinho e
vinho. Ao enfiar a mão na algibeira para retirar as moedas e pagar ao taberneiro meus
dedos tocaram em qualquer coisa estranha e vi tratar-se do pequeno recipiente,
contendo um resto da poção. Esquecera-me dele, tendo deixado o recipiente maior na
carroça junto aos meus pertences, e uma rodopiante idéia agitou os meus
pensamentos. Após pagar ao taberneiro saí pelos fundos, indo à estrebaria onde,
escondido de todos e certificando-me de que ali o corvo não conseguiria vigiar-me,
derramei toda a poção no vinho. Meu coração batia descompassadamente e mal
conseguia conter a excitação.
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O bruxo, ao ver o vinho e o alimento que eu trouxera, sorriu e estendeu-me as


mãos. Passei-lhes as coisas e ele as cheirou ruidosamente, qual um bicho faminto e
sedento. Neste instante, o corvo mergulhou e pousou sobre sua mão, grasnando
agitadamente, chamando-lhe a atenção. Meu corpo todo tremeu e temi que a maldita
ave o alertasse de algo. Ela gritou mais, bateu as asas e pulou em seu braço. Ele riu e
abriu o pano que envolvia o alimento, cortando um pedaço do toucinho, enfiando-o em
seu bico. A ave, então, satisfeita, foi-se dentre as sombras, deixando-me aliviado.

Virando-se sobre o banco da carroça, o nauseabundo retirou de dentro da sacola


uma pequena caneca e a estendeu-me para que a enchesse. Minhas mãos tremiam,
eu fazia esforço hercúleo para dominar-me enquanto o vinho escorregava. Quase se
babando, abriu as mandíbulas e derramou o vinho goela adentro, pedindo mais. Repeti
a dose, ele tomou mais dois goles, estalando a língua, elogiando. Tenso, quase sem
respirar, estudava-o naquela escuridão, a qual era aliviada pela luminosidade da lua
crescente. Se a poção iria fazer efeito em seu próprio criador, dentro em pouco eu
saberia.

Em movimento brusco, ele novamente se virou e remexeu na sacola, retirando


outra caneca de metal, ordenando-me que bebesse. Pensei recusar, mas temi que ele
desconfiasse de algo e resolvi enganá-lo, enchendo-a lentamente, tentando ganhar
tempo. Depositei a bilha no chão e noutra série de movimentos lentos encarei-o. Ele
me olhava com atenção e silenciosamente. Mas eu não podia beber, assim, fingindo
acidente, larguei a caneca derramando o vinho no chão, e esperei por uma explosão de
imprecações. A explosão não aconteceu, ele somente gargalhou. Seria esta a maneira
dele mostrar-se submisso? Resolvido a experimentá-lo pedi-lhe outra caneca. Ele
imediatamente atendeu-me. Depois solicitei-lhe que descesse para bebermos no chão
e se arrastando feito um réptil o bruxo desceu, apoiando-se na carroça. Sem dúvida a
poção voltava a funcionar, desta feita sobre o seu criador. Era o feitiço se voltando
contra o feiticeiro, conforme reza o adágio.

Sem perda de tempo, ordenei-lhe que me desse o antídoto definitivo. Ele me


informou que precisaria antes prepará-lo. Mandei-o, pois, que o fizesse e sob a luz do
lampião ele remexeu em sua arca, retirando recipientes e ingredientes, passando a
misturá-los e a invocar espíritos. Tendo-o preparado, estendeu-me. Entretanto, no
exato instante em que levava a mão para segurá-lo, o maldito corvo, desconfiando da
trama, atacou-me furiosamente, quase me vazando os olhos com as garras. Caí ao
chão, sangrando e estonteado, procurando defender-me do feroz atacante. Ele pulava
sobre mim causando-me outros ferimentos, rasgando-me a roupa. Gritei para o bruxo a
fim de que o mandasse parar, porém por um sortilégio muito forte que o ligava à ave,
ele não me obedecia, permanecendo imóvel. Consegui levantar-me e corri para as
árvores, tendo-o sobre minha cabeça a bicar-me e a ferir-me impiedosamente. Ali
chegando, tropecei e caí; por sorte, sobre um galho seco que de imediato segurei-o,
desferindo-o sobre o agressor, acertando-o em cheio no primeiro golpe apesar da
escuridão. A ave caiu e se debateu estonteada; aproveitando-me disto lancei-me sobre
ela, golpeando-a outras vezes, com raiva, até sentir que seu sangue espirrava por
todos os lados. No momento em que isso acontecia, como se a alma da negra ave
fosse a alma negra do bruxo, ele gritou e rolou por terra. Corri para lá e sequer lancei-
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lhe um olhar, preocupando-me tão somente em salvar o antídoto. Ele havia se


derramado, não obstante restara ainda o suficiente e bebi-o com mão trêmula e peito
arfante, nada sentindo de diferente, como, aliás, nada havia sentido ao ingerir o
veneno.

Sacudindo o horrendo homem, fi-lo beber mais vinho, antes que se tornasse
totalmente consciente de tudo, e mansamente ele permaneceu aguardando as minhas
ordens. Tinha-o agora sob domínio e fiquei a pensar o que poderia obter usando sua
feitiçaria. Tinha ouro, terras e liberdade e queria agora todos os prazeres que estas
coisas poderiam me proporcionar, mas por quanto tempo? A vida é tão curta, pensava
ainda, logo a gente se transforma num farrapo como esse andrajoso ser. Bom seria eu
viver muitos anos, com juventude e disposição, eternamente, se possível, ainda mais
agora que me tornara rico e senhor!

Tendo pensado bastante, acorreu-me uma idéia. Perguntei-lhe se poderia


prolongar-me a vida eternamente e ele assentiu com a cabeça. Ordenei-lhe então que
me explicasse como faria isto. Ele me informou conhecer o segredo de uma poção que
aumentava indefinidamente os anos de vida de uma pessoa. Entretanto, nunca a tinha
preparado por que ela não surtiria efeito nele mesmo, e se a preparasse para alguém
aconteceria uma troca. Cada vez mais curioso, quis saber que troca seria essa. Ele me
explicou que a partir do momento em que uma pessoa a bebesse, cada dia vivido por
ela representaria dois dias a menos da existência do bruxo, abreviando, portanto, o seu
tempo na Terra. Por isso, obviamente, nunca a preparara.

De novo pus-me a refletir. O bruxo, ao que tudo indicava, não teria mesmo muito
tempo de vida, logo não faria a menor diferença se morresse alguns dias antes. Se
morresse antes de chegar à confraria, azar dele, pois de todos os modos não lhe daria
o ouro, sobretudo porque novamente o recuperara todo e à liberdade. Tendo isto em
mente, ordenei-lhe que fizesse a poção da longevidade, mas ainda que sob os efeitos
da poção, seu instinto de sobrevivência gritou mais alto e recusou-se. Ameacei bater-
lhe, obrigando-o também a tomar mais vinho e não sei bem se somente pela ameaça,
pelo reforço da poção ou pelos espíritos inebriantes do vinho, ele acabou concordando.

Explicou-me então haver uma dificuldade e um problema: primeiro, a poção teria


de ser preparada sob os primeiros raios noturnos da lua cheia e exposta sete noites à
mesma lua; segundo, precisaria sacrificar uma serpente e utilizar o seu veneno.
Faltavam dois dias para o surgimento da lua cheia, pensei eu. Isto eu podia esperar,
agüentando ainda os sete dias restantes, mas quanto à serpente? Cada vez mais
interessado no assunto, perguntei-lhe se encontraria uma e a aprisionaria, porém não
me respondeu. Foi preciso que usasse de mais energia para fazê-lo falar e ele
confirmou, dizendo saber preparar um óleo que tinha o poder de impregnar com seu
odor tudo aquilo em que fosse derramado, atraindo serpes. Satisfeito, ordenei-lhe que
o fizesse imediatamente. Ele se arrastou até a arca começando a misturar líquidos, a
invocar demônios e almas de serpentes. Tendo terminado, informou-me que
deveríamos procurar local adequado onde usá-lo. Montamos na carroça e partimos
dali. Embora ele estivesse sob o efeito da poção, era um bruxo, e não confiava
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inteiramente em sua submissão, haja vista em certos momentos demonstrar


resistência, por isso dei-lhe mais dois goles do vinho.

Num determinado local, junto a uma pedreira, paramos e descemos. Apoiado em


mim, ele se aproximou da pedreira, derramando nela o óleo, mandando-me que
voltasse para a carroça e lá permanecesse. Sobre a carroça pude vê-lo, ainda que
imperfeitamente, acocorado feito ave de rapina, banhado pela luz pálida da lua que
imprimia à cena um efeito sinistro e assustador, como se colorisse a própria morte. Isso
produziu em mim uma espécie de terror surdo e grande repulsa. Mas eu tinha ido longe
demais para recuar e resolvi superar aquela reação, mormente quando todas as
venturas do mundo aguardavam-me. Valeria a pena tamanho sacrifício! De repente, o
bruxo se pôs a soltar sons que invocavam serpentes. Logo pude ver duas delas se
arrastando e se enrodilhando diante dele. Elas assim permaneceram e ele continuou a
chamar, até aproximar-se uma grande, maior do que as duas anteriores. Ela parou e
ele fez um movimento de mão, agora falando, segurando-a pela cabeça e a
levantando. Em seguida, forçou-a destilar gotas de veneno numa caneca de metal. Ao
vê-lo caminhar de volta em passos arrastados, trazendo o repulsivo réptil, fiquei
horrorizado, preparando-me para pular e correr, temendo que ele o fosse jogar sobre
mim. Chegando à carroça ele arfava muito e apoiou-se nela, levantando a mão,
mostrando-me a serpente que se enroscava e se remexia em seu braço. O bruxo era,
verdadeiramente, grande conhecedor de magia negra e artes de encantamento e
aquilo vinha reforçar aos meus olhos a fama que tinha adquirido.

Tendo recuperado o fôlego, disse-me que precisaria estrangulá-la, mas não teria
forças para tal, pedindo-me ajuda. Já fora da carroça, neguei-me veementemente a
isso, ordenando-lhe que fizesse tudo sozinho, reunindo todas as suas forças. A
serpente, parecendo ter entendido que seria sacrificada, levantou a cauda e
arremessou-a sobre o rosto do bruxo, assustando-o. Tomado de pavor, gritei-lhe para
que a matasse. Ele, então, segurou-a com ambas as mãos e começou a apertá-la. Ela
se enrodilhava e lutava e ele gemia e se arcava. Foi uma luta titânica que me
consumiu, também, grande dose de energia, tal o terror que de mim se apossara.
Finalmente o bruxo caiu sobre o réptil, opresso, gritando com voz rouca, implorando
ajuda. Hesitei, mas ante os seguidos apelos aproximei-me, verificando que a serpente
de fato houvera sido estrangulada e ajudei-o a se levantar.

Dia seguinte, ele estava mal humorado. Pouco comeu e surpreendi-o em várias
oportunidades a olhar-me estranhamente, expressando ódio na fisionomia. Nervoso,
dei-lhe um pouco de vinho e ele o tomou. Depois, começou a tirar o couro da serpente,
cantando e invocando espíritos. Feito isso o enrolou num pano, tendo o cuidado de
excluir as presas.

À meia noite do outro dia, ele começou a preparar a poção, tendo feito fogo e
fervido ingredientes; em certo instante mandou-me que me aproximasse e estendesse-
lhe a mão esquerda. Obedeci e ele me espetou um espinho num dos dedos, fazendo-o
sangrar. A seguir, tomou a caneca de metal onde havia coletado o veneno da serpente
e me espremeu o dedo, derramando uma gota de sangue. Mal o sangue se misturou
ao veneno ele gritou e esbravejou, como se amaldiçoasse, virando-se para os quatro
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cantos, falando e gesticulando. Quase desmaiei de medo. Senti as pernas tremerem e


fraquejarem, não sabendo ao certo se ele estaria me enganando ou de fato produzindo
a poção que o obrigava produzir. Náuseas e tonturas sobrevieram-me, pois além do
medo daquele ritual macabro, o cheiro forte daquelas coisas na fervura causava-me
repulsa. Sempre invocando, ele derramou o conteúdo da caneca no caldeirão,
terminando o ritual por aquela noite, apagando o fogo e indo dormir.

Como eu determinasse que não partíssemos até que a poção estivesse pronta, na
noite seguinte ele realizou o segundo ritual no mesmo local, acendendo o fogo,
invocando conforme fizera anteriormente, tirando-me outra gota de sangue e a
lançando diretamente no caldeirão. Assim foi feito durante todo o período de
manifestação da lua cheia. Na última noite, após tirar-me a gota de sangue, ele deitou
o couro da serpente diante do caldeirão, untou-o com o óleo antes utilizado para atraí-
la, gritou e falou palavras estranhas. Deixou-o ali, afastando-se um passo. Logo a
forma do espírito da serpente sacrificada viria aninhar-se no couro. Ele a tomou com
ambas as mãos e invocando demônios derramou a forma espiritual da serpente no
caldeirão fervente. A seguir, mergulhou pela primeira vez a caneca na fervura,
mexendo-a como se a lavasse, retirando-a com a poção e a estendendo a mim para
que eu bebesse. Tenso por ter presenciado todas aquelas coisas e não confiante ainda
na sua total submissão aos meus desejos, ordenei-lhe que jurasse em nome de todos
os demônios que a poção era verdadeira e caso estivesse mentindo, sua alma seria
eternamente prisioneira deles, e ele jurou.

A poção não faria efeito se tomada uma única vez, necessitando tomá-la sete dias
consecutivos à meia noite, entrando este ritual pelos dias da lua minguante. Dessa
maneira, aquela seria somente a primeira dose. Num inexplicável e súbito impulso
quase arranquei a caneca das mãos do bruxo, mirando o líquido, sobrevindo-me
novamente náuseas que quase me fizeram perder a coragem. Porém, trazendo à
mente o quadro acalentado por todos aqueles dias, vi-me senhor e próspero, vivendo
na abundância e eternamente, gozando prazeres e humilhando inimigos, e bebi a
largos goles, quase vomitando ao final. Recuperando-me, contudo, decidi partir
imediatamente abandonando ao bruxo. A fim de que não me visse partir, obriguei-o a
tomar todo o vinho restante, embebedando-o. Utilizando a mesma bilha, guardei nela a
poção e em seguida amarrei o burro numa árvore, descendo a arca do velho asqueroso
juntamente com os outros objetos de seu uso pessoal. Num ato incomum de
solidariedade, dividi com ele partes de um coelho apanhado em armadilha; afinal,
aquilo poderia ser seu último alimento. Dali em diante assumia o meu próprio destino,
ele que se danasse sozinho! Montei na carroça, e com nojo e desprezo lancei-lhe
derradeiro olhar, vendo-o dormir a sono solto, deixando-o definitivamente.

Os dias que se seguiram, gastei-os quase todos retornando por onde houvéramos
percorrido, conquanto o bruxo forçara-me viajar em direção oposta ao que eu
pretendia. Por dois dias e duas noites permanecera abrigado em pequena e rasa
caverna, a fim de proteger-me das seguidas pancadas de chuvas que me impediam
viajar. Nesses dois dias, quando a lua se espremia dentre nuvens - exatamente à meia
noite - sob as frias e úmidas paredes da gruta, eu tomava da poção, sendo invadido de
arrepios e calafrios. Finalmente, na sétima noite, longe do lugar onde abandonara o
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bruxo à própria sorte, tomei a última dose, lançando fora o que restara da poção,
quebrando a bilha de encontro a uma árvore. Afora aquelas rápidas e já conhecidas
reações, nada mais sentira, exceto ao crescer da certeza de que a poção redundaria
em sucesso e viveria eternamente rico e senhor!

Mas o pior estava por acontecer. Dois dias depois da última dose, enquanto
viajava cautelosamente por caminhos secundários sob a palidez da argêntea lua,
procurando desviar-me de vilas e lugarejos, senti-me mal. Uma sensação de desmaio
abraçou-me e parei a carroça, deitando-me na relva. Um suor surpreendente veio
lavar-me a testa. Senti que enfraquecia, começando a ver nuvens e sombras diante de
meu rosto. Súbito, as sombras criaram vida e forma e a cara horrível do bruxo surgiu
enorme, rindo pavorosamente, acompanhada de um séqüito de seres ígneos que se
revolviam numa dança macabra. Impossibilitado de mover-me, via a tudo paralisado,
escutando de novo aquela voz que tão bem conhecia, agora mil vezes mais
abominável:

“Mortal idiota! Queres viver eternamente? Não sabes que este poder somente tem
Lúcifer, por seu próprio e indissolúvel selo com o mal - ele, o senhor indiscutível da
ciência maligna e execranda, da qual sou somente um discípulo? Não, não sabes por
que nada és além de um verme. Como pudeste crer que somente ingerindo uma
poção, viverias para sempre e sem pagares um tributo? Ao fazeres isto e roubares
alguns dias de minha existência, deixando-me morrer de inanição, levando o meu ouro,
atraíste uma horrível maldição. Um vínculo muito forte foi criado entre tua insignificante
alma, a minha e os poderes das trevas. Agora não poderás mais recuar. O ouro te será
maldito, porque mais ainda ele atrairá tua cobiça. Porém, ao mesmo tempo, não
poderás passar um único dia longe dele, ou o perderás. Por tê-lo roubado de mim e me
tirado a oportunidade de ser aceito na confraria dos bruxos, fazendo parte da grande
mesa, não poderás ficar longe do ouro e não gastarás uma única moeda que não
venha redundar-te em prejuízo ou desgosto. Viverás muitos anos, não eternamente
como supuseste, porém muitos e tantos que desejarás morrer, tal o tédio de tua
existência. Todavia, ao morreres, não estarás livre dessa maldição. Aqui estaremos
para nos apossarmos de tua alma, ó infeliz e ignorante mortal!”

Se feio sou, não sei como estaria a expressão de meu rosto naquele momento.
Deveria estar horrível, porque sentia os cabelos arrepiarem e os olhos quase saltarem
das órbitas. Mesmo assim, consegui balbuciar algumas palavras, dizendo-me
arrependido e disposto a pagar pelo meu erro para livrar-me da maldição. O bruxo riu
estrepitosamente, quase estourando os meus ouvidos e respondeu:

“Tarde demais. És tão repelente que não possuías uma virtude sequer antes de
ingerires a poção, muito menos agora a possuís. Desista, homenzinho, estás
irremediavelmente perdido. Somente uma virtude desperta em teu coração poderia
dissolver os fortes grilhões a que te aprisionastes, e teu coração é duro como a pedra,
ah... ah...ah! Toma, eis o novo selo de nossa aliança!”

Ele levantou a mão e lançou sobre mim a alma da serpente que não se dissolvera
no caldeirão como eu supusera. Ela picou-me o braço e queimou-me por dentro
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fazendo-me desmaiar tamanha a dor. Ao acordar, o sol já se levantava. Estava tonto e


com sede. Trôpego, andei até a carroça puxada mais adiante pelo animal que
calmamente pastava, e bebi água. Meu braço ardia. Ao levantar a manga da camisa, vi
com espanto a dupla marca das presas da serpente, marcas estas que carrego até
hoje, e o sangue ressecado, escorrido dos ferimentos. Apavorado, pulei para dentro da
carroça e abri o baú, verificando com alívio o ouro intacto, lembrando-me das palavras
do bruxo.

Sem alternativa me pus a caminho, ainda enfraquecido, buscando um local mais


escondido para passar o dia, pois onde me encontrava poderia ser surpreendido, e
entrei no bosque. Entretanto, as imagens mentais não me abandonavam, mantendo-se
perfeitamente nítidas em minha memória acompanhadas do persistente eco das
palavras do bruxo em minha consciência.

Encontrando um local apropriado ali fiquei a meditar sobre tudo, concluindo, afinal,
que se a maldição havia recaído sobre mim de nada adiantaria ir tomar posse das
terras e do castelo, pois me arriscava a perder tudo e ao ouro. Sendo senhor, como
evitar passar um dia longe do ouro, tendo de tudo administrar e viajar a negócios?
Além do mais, por supina infelicidade, não poderia dispor de uma única moeda daquele
tesouro enquanto a maldição existisse. Desalentado, resolvi me esconder e buscar
uma solução para anular a maldição do bruxo, dispondo novamente do ouro. Assim,
enfiei-me cada vez mais no interior deste bosque até chegar a esse lugar, achando
esta casa abandonada, escondendo o ouro e aqui permanecendo.

Todavia, os dias iam se sucedendo, os meses, os anos e nada acontecia. Por


vezes chegava a pensar que tal maldição em verdade não existiria ou se existisse já
teria perdido a sua força. Porém, ante este pensamento, logo ouvia no ar a gargalhada
do bruxo, sentindo meu braço a doer horrivelmente no exato lugar onde eu fora picado
pela serpente. Assustado, corria para o esconderijo onde deixara o baú e abria-o,
certificando-me com alívio que o ouro ali estava, intacto e todo meu!

Mais anos se passaram, dezenas. O tédio veio possuir-me, fazendo-me sofrer


indescritivelmente, crendo-me um morto vivo, semi sepultado, o que de fato sou. Em
várias oportunidades pensei em dar cabo de mim, pôr um final ao que me parecia
inexistência, mas ao lembrar-me que minha alma seria aprisionada pelos malignos,
recuava temeroso. Ademais, a idéia de apartar-me do ouro violentava-me, não
desejando isso de forma alguma. Somente viajantes extraviados em suas rotas
costumam ainda passar por aqui, encontrando-me em casa ou pelas redondezas.
Aproveitando esses momentos, converso um pouco tentando saber notícias do mundo,
qual época estamos atravessando, qual rei nos dirige, se há guerras e outras coisas
mais. Para afastá-los de mim conto-lhes que sou um amaldiçoado, confirmando a lenda
que inventei de um mal contagioso. Dessa maneira, aqui escondido, venho mantendo o
ouro a salvo de especuladores, não obstante ter-me tornado conhecido no reino inteiro.

Mas os incríveis acontecimentos de minha vida não terminam por aqui, caro
trovador. Há outro fato somado à maldição que passo a relatar-te: certa noite,
deprimido pela solidão, tendo unicamente a companhia dos grilos e corujas a emitirem
21

sons, senti-me sufocado, verdadeiramente desesperado. Não agüentava mais essa


existência. Tentei chorar, mas não pude. Aliás, em toda a minha secular vida, jamais
consegui derramar uma única lágrima. Dizem que o choro, por vezes, faz extravasar
dores, acalmar e até consolar, mas nunca pude provar dessa forma de desabafo.
Impossibilitado desse recurso, cada vez mais estrangulado pelas sensações, atingia ao
auge de um desespero nunca antes experimentado. Uma onda de raiva veio em
seguida possuir-me e comecei a quebrar coisas, a golpear a mesa e socar paredes,
somente parando ao sentir-me esgotado e com o corpo dolorido. Então, caído ao chão,
opresso e imóvel, comecei novamente a relembrar as palavras do bruxo, tentando
encontrar nelas uma pista que me possibilitasse fazer uma tentativa de libertação, mas
nada encontrei. Como estava, permaneci, e dormi profundamente, tendo um sonho
estranho e marcante. No sonho vi outra serpente em chamas com olhos a arderem de
maneira indescritível. Tremi e temi-a, pois já havia provado a malignidade da outra.
Produzindo movimentos inconstantes, em pé, dançando em círculos, ela começou a
falar-me:

“Infeliz mortal. O peso da maldição que contraíste torna-te desesperado, não?


Queres a liberdade, mas não a podes ter. Temes a morte porque tua alma é prisioneira
das trevas. Apesar de tudo, não te arrependeste ainda de teus atos passados; teu
coração permanece endurecido e congelado. És duplamente infeliz: prisioneiro de tua
imensa ambição e presa fácil e indefesa dos poderes das trevas. Não obstante, ainda
que sejas uma ovelha negra e desgarrada, resta para ti uma esperança. Somente uma
chama ardente poderá aquecer teu gélido coração, fazendo timbrar uma nota que
desconhecesses e se anela a uma virtude humana que não a possuís. Porém, tu não
tens como atear no coração tal chama benigna. És vazio e inútil e, por consequência,
jazes inerte como a própria morte. Por isso vou auxiliar-te, cumprindo ordens dos
poderes superiores que a tudo velam. Deixar-te-ei algo, que um dia, não sei quando, te
será valioso e útil, saiba guardá-la!”

Dizendo isso, a serpente lançou-se sobre o meu braço e picou-me no exato local
onde eu trazia a marca dupla produzida pela outra serpente. Foi de novo uma dor
horrível que me queimou e me fez acordar aos gritos. Ao levantar a manga da camisa
vi com incredulidade, saindo de dentro dos ferimentos, emaranhando-se numa só
forma, uma mecha de cabelos vermelhos, que de tão viva quase reluzia sob a fraca luz
da vela ao chão, salva por milagre de minha fúria destrutiva. Repugnado, puxei-a e a
atirei longe, afastando-me. Pouco depois, mais recuperado, aproximei-me pegando-a e
a lançando fora através da janela. Dia seguinte, via-a ali. Essa visão causou-me a
tempestuosa lembrança da aparição. Na verdade, eu não a esquecera completamente,
porque mal dormira de tanto me doer os ferimentos. Enraivecido e descrente de tudo,
peguei-a novamente, saindo para dentro do bosque, enterrando-a em lugar distante,
disposto a não dar ouvidos a mais nada, julgando que estivera fora da razão.

Aquele dia se passou sem outras surpresas. Porém, na manhã seguinte, ao abrir a
janela quase caí para trás, tamanho o espanto: a mecha vermelha ali estava sobre o
peitoril. Inconformado, segurei-a e parti para o lugar onde a enterrara, encontrando o
buraco fechado exatamente como o havia deixado. Escavei-o, e para outra de minhas
surpresas, nada ali encontrei! Decidido fui mais longe e cavei outro buraco mais
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profundo, jogando a mecha em seu interior, tapando-o. Mas ela novamente voltou,
dessa feita no bico de um pássaro vermelho que a jogou sobre mim, à mesa.
Acreditando, então, que teria algo de mágico, aliado ao fato de que surgira de meu
próprio sangue, resolvi guardá-la.

Daquele dia para cá, nada de novidade apareceu-me, exceto tua presença aqui,
senhor Sertório, dentro dessa casa, à minha mesa, coisa jamais acontecida com outra
pessoa em mais de um século. Aliás, ultimamente tenho encontrado pessoas com
maior constância. Não obstante temerem-me quase todas e algumas sair a correr
tresloucadamente, Isso me faz concluir duas coisas: primeira, meu esconderijo não
mais se encontra tão afastado assim das trilhas e estradas que levam às vilas e
cidades; segunda, minha fama de amaldiçoado já é grande demais para que eu
permaneça perfeitamente seguro por aqui, pois temo a investida de algum aventureiro
mais ousado que suspeite eu esconder alguma coisa valiosa. É natural te perguntares
como consigo ter roupas, panos e cobertores, utensílios, ou mesmo boas ferramentas
após tantos anos de reclusão. Acontece que a despeito de minha fama e do terror que
a maldição desperta, existe ainda pessoas apiedadas de minha condição. Assim, um
ou outro viajante, a quem exijo o mais absoluto sigilo sobre a localização exata de meu
esconderijo, deixando ao acaso sua descoberta pelos passantes, trazem-me essas
coisas em troca de agradecimento, julgando-me miserável. É uma ironia, não, senhor
Sertório, eu, possuidor de uma fortuna em ouro, não poder pagar por uma camisa, uma
calça ou qualquer outro objeto, ficando a receber doações?

Outra questão deve também ter perambulado em teus pensamentos no decorrer


de minha narrativa: como consigo viver nesse fim de mundo? Instinto de sobrevivência,
talvez; adaptabilidade às regras da vida natural; sorte ou sortilégio, não sei bem. Ao
aqui chegar e apossar-me dessa casa, quase nada em verdade nela existia. Mas ao
correr em redor encontrei algumas coisas que me serviriam. Além de frutas, constatei
existir abundância de pássaros e coelhos para caçar. Por quase um mês alimentei-me
disso, trazendo água de um regato correndo ao largo, pouco distante daqui, mas me
enjoando de tudo, sonhando com pão, bolinhos e outras variedades. Ademais, a casa
necessitava de reparos e eu não possuía uma única ferramenta.

Decidido, resolvi um dia sair em busca dessas coisas, nem que precisasse viajar
muito, não me importando com esse sacrifício, visto ter de permanecer por muitos anos
nesse lugar. Carregando o baú com o ouro, coisa sumamente trabalhosa por que
precisava primeiro descarregá-lo para torná-lo leve, parti à noite, fazendo marcas e
sinais aonde ia passando a fim de que, no retorno, encontrasse o caminho sem
dificuldade. Na terceira noite de ininterrupta viagem, vi ao longe uma vila. Tendo
cavado um buraco e enterrado o baú, trabalho este que me fez despender quase o dia
inteiro e grande dose de energia, visto precisar utilizar paus como escavadeiras, parti
para a vila. Lá chegando, pude comprar tudo o que precisava na oportunidade,
trazendo, pois, sementes diversas, farinha de trigo, milho, galinhas, reprodutores,
toucinho, pão, fermento, vinho, ferramentas, cobertores, lençóis, pratos, canecas,
talheres, etc. Como o ouro que possuísse não bastasse e temeroso de usar do outro,
negociei com o medalhão e o cordão tirados do rei, evidentemente não contando a
verdade sobre a sua origem, obtendo ainda troco.
23

Ao encher a carroça com essas mercadorias, fiz-me alvo da curiosidade geral e


temi ser pilhado por ladrões, anunciando então que prosseguiria viagem para a vila
vizinha, dormindo a poucas milhas dali, debaixo de árvores. Mal saí, tomei o caminho
oposto, disfarçando a trilha deixada pelas rodas da carroça, e corri para o baú,
desenterrando-o e imediatamente partindo na noite. Consegui retornar sem dificuldade
por que as marcas deixadas eram visíveis e auxiliaram-me. Com o que trouxera, pude
criar, plantar, colher e cozinhar, nunca deixando que se esgotassem. Afinal, tempo para
tratar dessas coisas jamais me faltaria. Da casa, cuidei-a da melhor maneira possível,
arranjando troncos, fabricando tábuas, amarrando cipós, inventando colas de resinas.
Entretanto, como viesse a necessitar de mais coisas, fiz com o tempo mais duas
dessas viagens, visitando outras vilas, porque temia ser reconhecido onde estivera
antes. Gastei o que me restara do ouro recebido de troco do comerciante anterior e
negociei com as jóias que tirara do rei, e com o cordão e medalhão tomados do
tesoureiro. Nas duas últimas viagens procedi como da primeira vez, levando comigo o
baú, enterrando-o e depois o desenterrando. Mais tarde, como o animal que possuísse
viesse a morrer, não pude realizar mais viagens e aqui me encerrei definitivamente.
Essa é a minha história, senhor Sertório, incrível, porém verdadeira, e prisioneiro estou
da maldição, a espera que um dia, como me prometeu a serpente, possa encontrar a
virtude que me libertará.

Antes que Sertório dissesse qualquer coisa, o bufão enfiou dois dedos entre o cinto
e a cintura puxando a mecha de cabelos vermelhos, atirando-a sobre a mesa. Sertório
olhou-a com curiosidade, sem tocá-la, voltando a encará-lo, induzindo e perguntando:
- Supondo que tua história seja verdadeira, senhor Aldegundes, estes cabelos se
tenham materializado de teu próprio sangue e o ouro de fato exista aqui guardado, que
esperas de mim para auxiliar-te?

O bufão apoiou um braço na mesa e arregaçou a manga da camisa.


- Vês, aqui estão as marcas de que te falei. Num lugar qualquer está o baú com o
ouro. Estou cansado, senhor Sertório, realmente muito cansado. Tendo ouvido falar de
ti e de teus feitos, julgo que sejas o único homem de quem tenho notícias capaz de
ajudar-me. Não saberia como procurar sozinho uma virtude, ou algo fazer para me
libertar da maldição.

Sertório, levando a mão ao queixo ficou pensativo por instantes. Aldegundes


olhava-o silenciosamente, piscando com apreensão. Então o visitante falou:
- Há entre nós, criaturas do mesmo Pai, obrigações e dívidas. Isto se estende para
além das fronteiras humanas, atingindo, pois, o reino das almas. Não vejo como
auxiliar-te a sair desta longuíssima enrascada em que te meteste, senhor Aldegundes,
sem ficares a dever-me pelo serviço, endividando-te também comigo.

O bufão enrijeceu o tronco e apoiou as mãos nervosamente na beirada da mesa,


piscando assustado e desconcertado.
- Então... não há virtudes em ti e recebes pelo que fazes? – perguntou ainda
agitado.
24

- Fosse eu um santo a peregrinar e ensinar pelo mundo, como viveria sem a paga
de meus serviços? Há diversas formas de pagamentos ou compensações, como há
serviços e ajudas. Ademais, o virtuosismo não se desmerece por um punhado de
moedas de ouro, nem por centenas de milhares delas. Existe, exatamente, por ser
distinto e independente de tal apego, sabendo dar e receber. Assim, senhor bufão,
proponho-me auxiliar-te, em resposta ao teu apelo, por uma boa recompensa de teu
ouro maldito!
- Meu ouro? – levantou-se o homenzinho - jamais, nunca!
- Que tens então a oferecer-me em troca?- perguntou calmamente, mostrando um
sorriso de malícia. Aldegundes olhou em torno e nada respondeu.- Vês, nada tens de
valor para cambiar a não ser o ouro, que dizes?

Aldegundes voltou a sentar-se, carregando no cenho expressão de profunda


contrariedade. De repente, seus olhos cintilaram e o rosto encheu-se com ar de
satisfação:
- Lembras-te das palavras do bruxo? Disse-me ele que eu não gastaria uma só
moeda que não me viesse trazer prejuízo ou desgosto. Como, pois, dar-te o ouro?
- Entendas tu, senhor Aldegundes, de que não o estarás negociando. Pagarás por
uma virtude que te libertará dessa mesma maldição. Que tens assim a perder se
desperdiçaste uma vida inteira por causa desse mesmo ouro? O bufão carregou de
novo o cenho, levantando-se e andando de um lado para outro a murmurar:
- Meu ouro, meu ouro!

Como o homenzinho não se decidisse, Sertório pediu-lhe que lhe mostrasse onde
dormiria. Aldegundes, ainda contrariado, trouxe-o até um quarto vazio e apontou para o
chão de terra.
- Não tenho outra acomodação a oferecer-te, trovador, mas arranjarei alguma
palha seca para teu melhor conforto! Sertório saiu e retornou trazendo ao ombro seu
cobertor de lã, falando ao bufão:
- Aguardo por tua resposta pela manhã. Dono de meu destino, daqui parto pelos
caminhos do mundo sob o sol abençoado, livre como o ar e o vento.

Aldegundes saiu resmungando levando a vela, deixando Sertório mergulhado na


escuridão. Pela madrugada, Sertório foi acordado pelo bufão. Sob a oscilante chama,
seu rosto mostrava intensa preocupação, denotando que ainda não dormira.
- Como pretendes encontrar a virtude que me falta? – perguntou sem delongas.
Sertório sentou-se provocando ruído nas palhas e redargüiu com seriedade:
- Já decidiste pagar-me?
- Primeiro conte-me como irás ajudar-me?
- Primeiro a promessa do pagamento! O bufão levantou-se soltando imprecações.

Sertório riu e deitou-se novamente, sem desviar-lhe os olhos. Ele de novo andava
de um lado a outro. Finalmente parou e dobrou as pernas, pondo-se de cócoras, com
impaciência:
- Está bem, prometo pagar-te do ouro!
- Quanto?
- Dez moedas!
25

- Nada feito.
- Vinte!
- Hum, hum!
- Ofereço-te então cinqüenta, nem uma a mais!
- Quero um terço do que existe no baú!
- Um terço? É loucura, é roubo! Não farei negócio contigo! E saiu furioso, deixando
o quarto a escurecer como antes.

De madrugada, Sertório levantou-se e andou pé ante pé. Ao chegar à cozinha


nada havia visto ou percebido. A escuridão era intensa e ele tateou pela parede,
encontrando uma porta. Cuidadosamente abriu-a. Ao sair, percebeu uma luz
tremeluzente no fundo do quintal, junto à base do barranco. Aproximou-se, guardando
cautelosa distância, e pode ver com certa nitidez que o bufão retirava do baú muitas
moedas, enchendo um caixote rude. Havia um buraco cavado no barranco e montes de
terra espalhados. Sertório sorriu e voltou ao quarto, deitando-se novamente e
dormindo.

Ao levantar, pouco depois do dia raiar, foi recebido pelo bufão à mesa, com o
desjejum pronto. Eram frutas e um caldo quente e Sertório se alimentou. Houve
proposital silêncio de sua parte. Aldegundes, por seu turno, nada também dizia. Após o
repasto, Sertório encaminhou-se para o fundo do quintal, dando milho e água a
Firmamento e o encilhando. Ao puxar o belo animal e passar adiante da porta o bufão
ali o aguardava, Sertório trouxe o chapéu ao peito, dobrou-se levemente e disse:
- Muito te agradeço pela hospitalidade, senhor Aldegundes. Não tenho ouro e
momentos existem em que moedas pouco valem diante do que nos proporcionam.
Assim mesmo pagar-te-ia se tivesse. Impossibilitado, porém, ofereço-te o que de mais
precioso possuo na humilde intenção de recompensar-te.

E trazendo a viola aos braços, cantou e recitou uma trova - admiráveis momentos
de inspirada arte. Mas, como antes, o bufão não se comoveu com a preciosa oferenda
do artista, permanecendo rijo e surdo. Terminado, Sertório conduziu Firmamento em
direção ao portão e antes mesmo de ali chegar, Aldegundes já o alcançava colocando-
se ao seu lado, falando nervosamente:
- Setenta moedas! Sertório meneou negativamente a cabeça, continuando a
caminhar. Aldegundes o alcançou fora da propriedade e ao seu lado novamente
propôs-lhe:
- Cem! Sertório não parou e nem respondeu, ele fez novo lance:
- Uma última oferta: cento e vinte moedas! Sertório, silencioso, voltou-se para
Firmamento e fez menção de montar.
- Está bem, fazes-me chantagem, um terço do que tenho no baú. Sertório estancou
o movimento e Aldegundes olhou-o interrogativamente.
- Um terço do teu ouro, incluindo aquele que retiraste do baú esta madrugada.
- Raios, então me surpreendeste? – reclamou furioso.
- Pela última vez, senhor bufão, aceita minha proposta, ou parto imediatamente?
- Maldição, não tenho alternativa. Dize-me, então, como irás encontrá-la?
- Primeiramente indo e vindo por aí, sozinho, até que o momento eleito aconteça.
- Somente isso? – interrogou-o com ar atarantado.
26

- Por enquanto, somente. O bufão grunhiu e gesticulou, andando


impacientemente.
- Diabos, demônios, como posso confiar em ti homem? Julgava-te uma coisa,
agora vejo-te totalmente diferente! - súbito, com a mesma cara enfarruscada, voltou-se
agitadamente para Sertório - E que garantias me dás, trovador, de que irás retornar
com a virtude, ou com os meios de eu conseguí-la?
- Retornarei. Basta dar-te minha palavra. Se houver achado a virtude que te falta,
ela virá comigo! Furioso, o bufão entrou, deixando Sertório a sorrir largamente.

Sertório partiu levando um terço do ouro. Eram muitas moedas e ele encheu dois
sacos velhos que o bufão possuía, - de ganhos dos passantes, - reforçados com fibras
obtidas nos arredores, jogando-os aos flancos de Firmamento. Aldegundes, de
cócoras, cotovelos nos joelhos, braços encolhidos e mãos semi fechadas, mordia-as e
praguejava, vendo-o aos poucos desaparecer por entre ramagens e folhas, ouvindo-lhe
o canto cada vez mais fraco.

O tempo passou, três meses. Certo dia, Aldegundes corre à porta para atender a
um chamado. Ao ver que se tratava de Sertório quase teve um desmaio; recuperou-se,
no entanto, mandando-o que se aproximasse. O trovador, puxando Firmamento,
chegou-se com sorriso despreocupado e rosto a irradiar alegria e zombaria.
Aldegundes, ao contrário, vestia-se de característica carranca. Sertório, parando a três
passos da porta, retirou o chapéu da cabeça e o cumprimentou com habitual vênia,
dobrando-se ligeiramente:
- Boa tarde, senhor Aldegundes, eis-me de volta, conforme te prometi.
- Trazendo-me o que foste buscar, espero!
- Trazendo-te notícias do mundo, em princípio.
- Que me interessam as notícias do mundo neste momento. Quero somente aquilo
que necessito e pelo que te paguei! – respondeu em tom agressivo.
- É certo, senhor Aldegundes, pois são as notícias que te trago que necessitas.
Mas não me convidas a entrar como outrora e não me ofereces alimento?

Aldegundes mirou-o desconfiado e grunhiu. Como Sertório nada mais dissesse e


aguardasse, ele deu um passo atrás, fazendo aceno afirmativo de cabeça. Após a
refeição, em que o silêncio novamente imperou, Sertório resolveu falar, olhando o
ansioso e feio rosto do bufão.
- Pois bem, senhor Aldegundes, lamento dizer-te que nada encontrei que possa
servir-te.
- Nada encontraste? Que fizeste do meu ouro?
- Distribui-o aos necessitados.
-Distribuíste-o aos necessitados? - o truão enfureceu-se, levantando-se
repentinamente, batendo com os punhos na mesa - O meu ouro? Diabos, que homem
és tu, onde está tua honra, tua palavra?
- Diante de ti, homenzinho esquisito! Não te prometi que algo traria, mas sim, que
andaria até o momento eleito acontecer. Porém, o quase indecifrável destino não quis
ainda mostrar-te o estreito caminho da salvação e eis-me aqui, cumprindo minha
promessa de voltar.
27

- Meu ouro, fui enganado! – ele sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos e
lamentando.
- Não lamentes o destino de teu amaldiçoado ouro, avaro! Ao invés, deves
lamentar tua insipiência e cupidez. És ainda cego e tolo, após tantos anos já vividos.
- Sou um homem amaldiçoado, já te disse! – resmungou com choraminga sem
alterar a postura.
- És pior do que isto: és uma alma trancafiada em tua própria criação. Apesar de
todas as coisas acontecidas erigiste outro cativeiro e nele te encerraste
voluntariamente, assim permanecendo.
- Que faço agora, como vou livrar-me da maldição? O bruxo estava certo, começo
a ter prejuízos e desgostos!
- Cala-te, boca insana! Olha ao menos uma vez para dentro de ti e busca a
esperança que te resta!
- Viverei eternamente aqui, estou prisioneiro das forças satânicas, que fazer? O
bufão não se acalmava, chorando a sua sorte.
- Dá-me mais um terço do teu ouro que continuarei na busca do que precisas –
falou Sertório com naturalidade.
- Meu ouro? Estás louco? Fico pobre! – gritou, quase pulando tal o espanto,
olhando-o com fisionomia alterada.
- Então, creio nada mais poder fazer-te; sem ouro, sem ajuda!
- Ladrão eis o que és! Roubaste-me uma vez e queres roubar-me outra. Não te
darei nem mais uma moeda, é meu o ouro!
- Serei eu de fato o ladrão? De onde te veio o ouro, e de que maneira?
- Arrisquei minha vida para ganhá-lo!
- Para roubá-lo, hipócrita! Ele não te pertence por direito, nem uma só moeda. Tu
és o ladrão, não eu! Apenas fi-lo retornar em parte a quem ele de fato pertence. Se,
todavia, preferes viver encerrado e amaldiçoado em tua horrível teia, não te lamentes.
Tudo tem um preço. Se não queres pagar por tua liberdade, fazes a pior escolha. Vou-
me embora, adeus, senhor bufão!
- Espera! Já dei-te um terço do ouro, portanto paguei-te por minha liberdade.
Tenho o direito de exigi-la!
- A quem? O bufão calou-se, olhando-o nervosamente. Logo, entretanto,
insistindo:
- Fizeste um preço, assim assumiste um compromisso, cumpra-o agora!
- O ouro que me deste somente pagou uma parte de teus males. A virtude está
ainda escondida. Dá-me mais ouro, outro terço, ou terás perdido uma coisa e outra.
- Ladino, espertalhão! Não te darei!
- Então, adeus, homem tolo. Nada mais posso fazer para ajudar-te!

E Sertório levantou-se, saindo. Aldegundes apoiou de novo a cabeça com as mãos


ficando a resmungar e a dizer imprecações. Pouco depois, ao levantar o rosto dando-
se conta de que se encontrava novamente sozinho, desesperou-se, saindo porta afora,
gritando feito louco:
- Senhor Sertório, senhor Sertório!

Sertório, andando pelo quintal, puxava Firmamento. Aldegundes, transtornando,


parou adiante, implorando de mãos juntas:
28

- Não se vá, por favor!


- Nada de querelas ou barganhas. Dá-me imediatamente outro terço do ouro ou
não te darei atenção!
- Dou-te, mas, por favor, ajuda-me!

Sertório partiu e, como antes, voltou alguns meses depois. Ao contar para o bufão
que nada trazia e de novo distribuíra o ouro aos necessitados, ele sentou-se ali
mesmo, urrando feito animal ferido. Não conseguindo verter lágrimas, puxava os
cabelos e rolava pelo chão. Sertório assistia a tudo impassivelmente, ao término do
desespero houve um silêncio sepulcral. Finalmente, o bufão falou com voz desanimada
e arrastada:
- Voltaste não só para dar-me conta de teus atos, mas também para levar-me o
último terço do meu ouro.
- Exatamente, senhor Aldegundes! – confirmou simplesmente Sertório.
- E estás absolutamente convicto de que te darei?
- Não, totalmente, porém com muita resistência, creio ainda.
- Pois te enganas, astuto trovador. Desta feita não mais resistirei. Porém, não irás
só; iremos ambos juntos em tua companhia, meu ouro e eu.
- Bravos, senhor Aldegundes, mostras afinal sensatez! Todavia, permite-me aduzir
duas exigências: primeira, irás onde eu for; segunda, o ouro estará sob minha custódia,
fazendo eu próprio uso dele sempre que necessário.
- Então o ouro não mais me pertencerá?
- Nenhuma só moeda, se desejares encontrar tua virtude, naturalmente. O bufão
estava realmente desalentado e esgotado e fez um breve aceno de cabeça
concordando. Tal foram essa facilidade e submissão que Sertório de novo
surpreendeu-se.

A noite parecera não produzir bons eflúvios na alma de Aldegundes. Pela manhã
acordara irritado e maledicente, resmungando entre dentes pelos cantos aonde ia.

Partiram. Sertório cavalgava tranquilamente, levando como antes o ouro sobre


Firmamento em dois sacos iguais. Já houvera convidado o companheiro de viagem
para que montasse, tendo recebido resposta negativa, acompanhada de um grunhido.
Em dado instante, notando os fragmentos dos raios solares a se intrometer dentre os
espremidos espaços arbóreos e a espalhar figuras múltiplas pelo chão, Sertório, tocado
em sua sensibilidade, trouxe a viola adiante, afogando-a de encontro ao peito e
afagando-a com mãos carinhosas de pai e de mestre. Então, fazendo escorregar os
artísticos dedos sobre as reluzentes cordas, despertou-a da inércia. Como um
gigantesco alento, sua audaciosa e limpa voz tonificou com tal ritmo a alma da floresta
que só os deuses dos homens saberiam inspirar. Depois mais e mais.

Porém, se a alma de todas as coisas ali se regozijava, incluindo o dócil animal que
sacudia a cabeça em assentimento, Aldegundes, ainda surdo para a magia dos sons,
caminhava ensimesmado em seu egocêntrico e descolorido mundo, tão descolorido
como era neste momento o seu rosto cor de cera. Mas Sertório não se incomodava,
acostumara-se com almas assim em suas andanças e retornou a viola às costas,
passando a assobiar e a murmurar trechos e variações de seu grande repertório.
29

Não muito haviam caminhado o bufão pediu para descansar. Sertório, ainda
assobiando, freou Firmamento, sentando-se de lado na cela, dobrando uma perna.
Aldegundes encostou-se num tronco de árvore e se esticou, gemendo. Como o tempo
passasse, Sertório chamou-o para continuar viagem por que havia muito a vencer.
Aldegundes não quis obedecer e Sertório tomou posição tocando Firmamento. O
bufão, vendo que ficaria para trás, levantou-se de imediato e os alcançou poucos
passos adiante. Mal tinham vencido curta distância, Aldegundes pediu novamente para
descansar. Sertório mais uma vez aquiesceu, pulando de Firmamento, desta feita
andando pelos arredores à cata de frutas silvestres, nada encontrando. Pouco depois,
insistia novamente para prosseguirem e retomava a iniciativa. Numa terceira vez, o
bufão resolveu pedir-lhe para montar, ao que Sertório concordando com malicioso
sorriso, estendeu-lhe a mão puxando-o para o dorso do animal. Adiante, era Sertório
quem descia e puxava Firmamento pelas rédeas a fim de não forçá-lo em demasia,
pois além dos cavaleiros, o animal levava muitos quilos em ouro e dois grossos
cobertores. Depois o bufão descia e andava e Sertório cavalgava.

Neste rodízio de posições, alcançaram um casebre de pessoas conhecidas de


Sertório, num local retirado da vegetação mais densa, rodeado por um riacho
deslizante sobre muitas pedras. Era o lar de um lenhador que ali vivia com a mulher e
dois filhos. Sendo próximo do meio dia, os homens retornavam do trabalho numa
carroça rude, carregando troncos, e se encontraram todos ao portão. Após saudações
habituais e alegres, aguardaram pela apresentação de Aldegundes, ao qual olhavam
admirados. Sertório apresentou-o como um amigo. Eles o saudaram e receberam em
troca grunhidos e meneios de cabeça do truão.

Convidados a entrar, encontraram a mulher alegre e jovial a recebê-los. Sentaram-


se todos à mesa e o esquisito Aldegundes nada falou, preocupado tão somente em
comer. Ao final, Sertório quis pagar pela refeição, mas o dono da casa negou-se a
receber, dizendo que o ouro ganho nas duas vezes em que ele aqui estivera fora
suficiente para propiciar-lhe adquirir uma parelha de animais novos. Os animais
desempenhavam a contento o trabalho, ajudando-os obter pequenos lucros. Pela
primeira vez Aldegundes pareceu escutar os assuntos, levantando a cabeça e olhando
inquisitivamente para Sertório. Mas a mulher quis ouvir Sertório cantar. Ele, satisfeito,
puxou a viola e a atendeu, inebriando os corações generosos daquela gente humilde.

Prosseguiram viagem por dez dias. Sertório tinha muitos amigos e os ia visitando.
Nessas paradas, aproveitavam para alimentar-se, às vezes dormir sob seus tetos. Ao
final, Sertório pagava-lhes. Alguns, a exemplo do lenhador, não aceitavam o
pagamento; outros mais necessitados, sim. Por todo o trajeto presenciaram também
pobreza ou miséria. Sertório, condoído, ofertava-lhes um pouco do ouro para amenizar-
lhes o sofrimento. Cada punhado de moedas distribuídas - guardado o devido cuidado
para não lhes mostrar de onde as retirava e quanto possuía - pois os sacos passavam
por bagagem comum embrulhados pelos cobertores, Aldegundes contorcia-se e se
sentia apunhalar. Por causa destas extravagâncias do trovador, o bufão tornara-se
mais ainda taciturno, quase assustador a quantos o viam com sua carranca.
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Ao cabo do décimo dia, o ouro de um dos sacos houvera acabado. Aldegundes


parecia ter envelhecido cem anos. O relacionamento entre ambos tornava-se cada vez
mais difícil, como de dois estranhos, entendendo-se quase que exclusivamente através
de gestos. Durante as noites, enquanto dormiam em confortáveis quartos, em paióis ou
sob árvores, ajudados às vezes contra o frio por fogueiras, Sertório acordava ouvindo
os reclamos e gritos do companheiro em seguidos pesadelos. No décimo quinto dia de
jornada, esgotados, avistaram o mosteiro. Isso animou o trovador por que afinal
descansaria, mas Aldegundes não se alterou, olhando o prédio simplesmente.

Em lá chegando, Sertório foi recebido com calor e levado para um dos aposentos
de hóspedes, o mesmo sucedendo a Aldegundes. Após o banho e vestido com um
hábito emprestado, Sertório compareceu diante dos religiosos. Na oportunidade,
contou-lhes somente parte da história, pois se detinha à promessa do silêncio feita ao
bufão e ofereceu-lhes o ouro que restara a fim de que o utilizassem como achassem
melhor. Antes, porém, pediu-lhes licença, derramando o ouro no chão, ficando a
remexê-lo por uns momentos, finalmente se levantando e mostrando-lhes uma moeda.
- Eis o terceiro deles. A cada terço do ouro encontrei dentre as moedas um dobrão.
Estranho valor de um país longínquo, logo não pertencente ao nosso padrão, por isso
retirei-os. Fico com eles até saber ao certo o que fazer.

Ambos permaneceram por uma semana no mosteiro. Sertório descansava e


meditava. Aldegundes, calado, trancafiara-se no seu quarto, abrindo somente a porta
para receber alimentos. Findo este período, Sertório veio-lhe ao encontro, propondo-
lhe:
- Creio termos descansado o suficiente, uma vez que aqui estás de passagem. É
natural não nos determos em demasia, por isso partimos amanhã bem cedo, caso não
penses em tomar-te de maiores delongas. O bufão olhou-o e piscou, não fazendo
qualquer gesto ou comentário e Sertório saiu.

O sol se levantava. Sertório pôs-se de pé procurando por Firmamento e o


encilhando. Os monges realizaram seus rituais do alvorecer e foram à mesa para o
desjejum, vindo Sertório acompanhar-lhes. Mal o tinham acabado, receberam a notícia
por um dos irmãos responsável em servir ao enclausurado hóspede, que ele não abrira
a porta de seu quarto para colher o alimento e nem respondera aos seguidos
chamados. Preocupados, foram até lá e o chamaram insistentemente, não obtendo
qualquer resposta, permanecendo a porta trancada. Mediante as circunstâncias, não
encontrando outra solução senão lançar mão de uma segunda chave, eles abriram a
porta. A surpresa foi total! Viram a cama vazia e ele sentado a um canto, encolhido e
sisudo, olhando-os sem nada dizer.

Passada a surpresa e como Aldegundes permanecesse imóvel, Sertório solicitou a


todos que se retirassem a fim de conversar a sós com ele. Tão logo isto se deu, o
trovador fez-lhe perguntas, tentando saber o motivo daquela atitude, mas nada
conseguiu. Convencido de que nada obteria do bufão, informou-o estar pronto e
preparado para partir, aguardando-o no pátio. Decorrido algum tempo, o bufão surgiu
no local combinado, emburrado, ainda alheio a todas as coisas parando ao lado de
Firmamento. Sertório despediu-se dos monges e estendeu-lhe a mão convidando-o a
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montar, mas ele recusou a oferta com um gesto rude. Sertório então pulou para a cela
e tocou Firmamento. Aldegundes o seguiu.

O sol parecia mais radiante, o ar mais leve e o céu mais limpo. Eles retomaram a
estrada e desapareceram da vista dos religiosos acompanhando a sinuosidade de um
pequeno monte coberto de capim rasteiro. Sertório começou a assobiar, fingindo não
se importar com o estado de espírito do companheiro. De vez em quando o olhava
disfarçadamente, mas como ele em nada se modificasse, calou o solfejo e falou:
- Estranhas e misteriosas são as coisas criadas por Deus. O homem, outra de
Suas criações, vive perdido no meio delas. Pode ele, realmente, atribuir valores sem
conveniências se tem o péssimo hábito de só olhar de fora, valorizando pelo momento
ou o desprezando? Quando possui vangloria-se e exalta-se. Quando não possui luta
absurdamente até a morte para possuir. Quão mísero e insignificante é o preço de sua
vida ao cambiar-se com os bens terrenos, passando a valer menos do que tudo. Cruel,
eis no que se transforma! Insano, eis o que é! A alma do mundo grita e se agita e ele é
agitado e impelido para ela num roldão impressionante. Nada vê senão ao seu próprio
ser: insignificante e perecível, tão perecível como são todas as coisas da natureza
visual. Como chamá-lo para que refreie o seu ímpeto de ambicionar e destruir; de que
maneira acordá-lo de seu insensato sonho, para não dizer tenebroso pesadelo? O
sofrimento, eis a ponte abençoada que se levanta. Esta perene dor que nunca morre e
ao devido tempo vem devorar ilusões e destruir ao próprio homem! - ele mirou-o
novamente e o bufão lançou-lhe olhar assustado. Vendo que fazia algum progresso,
continuou - Olha tu, o teu próprio mundo. Que fizeste em cento e cinqüenta anos? Se
hoje morresses e em seguida renascesses em idênticas circunstâncias, certamente
repetirias os mesmos erros, tornando-te, de novo, no mesmo infeliz homem. Vês como
os valores atribuídos ao mundo misturam-se de tal forma em tua consciência que não
os consegue isolar e a eles te subjugas? E o que representam tais valores senão
efêmeros conceitos mundanos, modelados pela alma do mundo, voluptuosa e cega?
Mas consegues de fato entender o que te digo?

O bufão não respondeu, continuando em sua marcha. Logo, porém, sentou-se


para descansar. Sertório pulou da cela e também se sentou; trouxe a viola ao peito e
dedilhou-a. Findo o descanso, ele montou e esperou um breve instante. Aldegundes,
teimosamente, como outrora, saiu a caminhar, ignorando a tentativa de auxílio do
trovador. Tendo eles vencido um bom trecho, Aldegundes levantou o rosto e
surpreendentemente falou:
- Falas do homem e de sua ambição. Dizes que ele luta com insanidade até a
morte para possuir, mas o que seria dele se não lutasse? Como viveria sem o ouro que
a tudo compra?
- Eis o erro fundamental, senhor Aldegundes. Ao crer-se que o ouro a tudo compra,
corrompe-se a alma. A luta na Terra é salutar e necessária. As dificuldades e
obstáculos são as lições a aprender. Porém, ao procurar-se por atalhos e neles perder-
se, desmerece-se.
- Balelas! Vê meu exemplo: durante um tempo segui o curso natural da vida, o que
obtive? Fui um miserável e insignificante bufão, mandado e pisoteado por um rei e uma
princesa cruéis. Depois resolvi lutar pela minha independência e fiz-me rico, podendo
ter tudo e sentir o verdadeiro sabor da vida. Mas por um infortunado encontro fiz-te
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meu confidente, confiando-te o meu segredo. Que ganhei com isso? Foi-se o meu ouro
por tua intromissão e sou mais infeliz e pobre do que nunca!
- Não te queixes, homem injusto e insensato se te libertei da maldição do ouro, já
esqueceste? Viveste acorrentado ao ouro por mais de um século. Não o possuís mais,
é verdade, todavia é igual verdade que ele também não mais te possui e agora andas
livre e sem temores. O bufão dando-se conta desta realidade franziu a testa e seus
olhos apertaram-se instantaneamente. Ficou assim por um breve instante, mas logo
recomeçou olhando para adiante:
- Nem tudo está fácil, resta ainda minha aliança. Possuo a alma presa aos
malignos poderes!
- Desejas ainda deles libertar-te ou pretendes desistir?
- Naturalmente que desejo libertar-me. Por que haveria de querer ficar
escravizado?
- Então é chegado o momento de procurarmos pela virtude! O bufão estancou,
olhando-o com a fisionomia alterada, arregalando os olhos e apontando-lhe o dedo:
- Que dizes? Não a procuraste até hoje? Enganaste-me o tempo todo? Sertório
puxou as rédeas e parou Firmamento, apoiando a mão sobre o salpicado lombo do
animal, virando-se para responder:
- Não te enganei, senhor Aldegundes. Disse-te seguidamente que andava a espera
que o momento eleito acontecesse. Cumpri primeiro de livrar-te de um cativeiro, agora
cuidamos ambos do outro.

Mas o inconformismo e a incoerência eram o estado normal do bufão e ele se


deixou cair, levando as mãos à cabeça, ficando a lamentar:
- Meu ouro, tudo perdido inutilmente! Nada mais me resta, sou o mais infeliz dos
homens sobre a Terra!

Tendo prosseguido viagem, chegaram a uma taberna, entrando para obter


algum alimento. Já àquela hora havia muitos homens espalhados pelas mesas,
comendo e bebendo vinho. Ao verem o esquisito bufão, começaram a rir de sua
aparência e a exigir-lhe que fizesse algo para diverti-los. Irritado, ele soltou
imprecações e atirou-lhes canecas de vinho, promovendo um tumulto. Os homens,
vendo nele um insignificante ser para tomar-se de tal energia, avançaram para agarrá-
lo, porém Sertório gritou e falou:
- Senhores, por favor, não estragueis o apetite e não sofrais indigestões. O
alimento é sagrado como sagrado é o direito de todo o homem de se recusar ao que
julga injusto. Não useis da força contra o próximo nem da violência. Antes, ouvi o que a
dócil alma da arte tem para dizer-vos e agraciar-vos.

E trazendo a viola ao peito, começou a cantar. Os homens se acalmaram,


retornando aos seus lugares, ouvindo atentos.
- Bravos! - aplaudiu o taberneiro, satisfeito por não ter tido prejuízos - canta e toca
mais!
- Por dois pratos de comida e duas canecas de vinho, cantarei e tocarei outras
duas vezes, aceita?
- Aceito! – respondeu prontamente o homem. E assim fez Sertório, sendo
aplaudido e elogiado ao final.
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Deixando a taberna prosseguiram. Aldegundes já se alternava com Sertório ao


dorso de Firmamento, entretanto permanecia taciturno. Logo chegaram aos limites de
uma cidade e nela penetraram. Algo acontecia no lugar; as pessoas corriam pelas ruas,
ansiosas.
- Um circo, chegou um circo! – gritavam.
- Um circo? Quero vê-lo! – exclamou Aldegundes entusiasmado, como que tocado
por um raio, pulando do lombo de Firmamento, largando a companhia de ambos e
saindo a correr desajeitado e manquitolando. Sertório, aturdido com aquela inesperada
atitude do frio bufão, seguiu-o, vendo-o ao longe a dobrar esquinas e perder-se por
vielas. Chegando a uma praça, a agitação era geral. As atrações desfilavam diante do
público e os artistas faziam mil e uma estripulias. Uns, sem sair do lugar, mostravam
empolgante exibicionismo, cercando-se de curiosos espectadores. Sertório procurou
Aldegundes e a custo conseguiu vê-lo próximo de uma equipe de saltimbancos. O
bufão, na primeira linha de assistentes, prestava inusitada atenção ao malabarismo que
realizavam. Depois, viu-o percorrer a todos os cantos da praça, apreciando tudo com
real satisfação.

Súbito, todas as atenções se voltaram para o centro da praça e os movimentos em


derredor estancaram. O povo ali se reuniu; o dono do circo informou que a maior
atração do mundo iria agora se apresentar: “Agnes, A Salamandra.” De novo
Aldegundes enfiou-se por entre o povo, posicionando-se na frente. Houve o afastar de
uma cortina e o aparecimento de uma urna de madeira, feito um caixão comprido e
retangular, apoiado em pé sobre um ressalto de terra batida, a guisa de uma
plataforma.

O apresentador e dono do circo, em voz solene, disse que Agnes havia chegado
naquele mesmo dia e aquela seria sua primeira exibição. Ninguém, nem mesmo ele, a
tinha visto atuar e, como todos, estava também curioso. O que ela faria? Encerrar-se-ia
na urna e mandaria que ateassem fogo, dali saindo somente quando a madeira já
estivesse consumida!

Feito o pedido para que abrissem alas, Agnes surgiu de dentro de uma carroça sob
uma capa vermelha que se arrastava pelo chão, feito um manto. Vinha apertando com
uma das mãos o capuz que lhe encobria a cabeça e parcialmente o rosto, deixando
unicamente os olhos e parte da testa pouco descobertos. As pessoas abriram espaço;
ela percorreu o pequeno trecho subindo o ressalto e parou diante da urna. O povo se
assustou com a estranha figura, se afastando uns passos. Dois homens abriram a urna
e ela entrou. Eles começaram a juntar palha seca de um dos fardos ali deixados e junto
à Agnes passaram a encher os espaços internos da urna. Os demais fardos foram
empilharam à volta. O silêncio era absoluto, ouvindo-se tão somente os ruídos
provocados pelos homens que realizavam a tarefa. Estando tudo preparado, eles
acenderam uma tocha e atearam fogo na palha de dentro da urna, fechando-a, e em
seguida nos fardos, se retirando.

O fogo ardeu, cresceu e rapidamente se espalhou, produzindo grande fogueira,


derramando calor sobre todos, fazendo-os recuar novamente. Quando o fogo já havia
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consumido os fardos e com incontida ânsia crepitava sobre a madeira, as paredes da


urna começaram a se descolar e soltar-se, caindo por terra. Estupefato, o povo ia
vendo-a imóvel, envolta e tomada pelas chamas. Uma espécie de terror os invadiu;
seria possível sobreviver a isto?

Passados instantes, o fogo que a envolvia completamente veio declinando e já


conseguiam ver parte de seu rosto. De repente, como que obedecendo a uma voz de
comando, as chamas se extinguiram todas e Agnes reapareceu por inteiro, nua e
exuberante, intacta e de braços abertos. As mães, em ato reflexo, horrorizadas,
procuravam tapar os olhos dos filhos. Os homens não sabiam ao certo se admiravam
sua nudez ou aquela incrível performance, inacreditável aos olhos humanos! Alheia a
soma de reações da platéia, ela passou a girar de braços abertos, sorrindo plenamente
ao ato vitorioso, dançando como uma deusa ígnea!

Ao vê-la assim, magnífica, e notar a incomparável e agressiva beleza de seu rosto,


beleza jamais suspeitada numa mulher, e verificar que seus fartos cabelos pousados
sobre os ombros eram da cor da própria chama, Aldegundes saboreou incrível
entusiasmo, sentindo no peito uma espontânea emoção e delicioso calor no coração.
Assim exaltado, ele mal conseguiu levar a mão ao cinto, lembrando-se de que trazia a
mecha ali escondida, puxando-a para diante do rosto a fim de compará-la aos cabelos
da maravilhosa Agnes. Ofegante, atestou que a mecha era idêntica em cor, e isto a
valorizou extraordinariamente.

O povo nem ainda se recuperara do impacto da estonteante e desnuda aparição,


quando lhe lançaram sobre o corpo um cobertor, envolvendo-a rapidamente, retirando-
a de cena para dentro da carroça de onde saíra. Muitos homens protestaram, mas o
dono do circo elevou de novo a voz, dizendo-se tão surpreso e extasiado quanto todos.
Solicitou que jogassem suas moedas nos sacos de coletas que as moças saiam a
carregar, a fim de que pudessem fazer face às suas necessidades e conseguir
proporcionar-lhes novos e fantásticos espetáculos. Em meio ao rebuliço, algumas
mulheres se reuniram e começaram a protestar contra a impudica e imoral
apresentação, ao passo que outro grupo, só de homens, contrapunha-se aplaudindo e
gritando calorosamente o nome de Agnes, abafando os protestos femininos.

Aldegundes, surdo a tudo, permanecia estático com a mecha apertada à mão,


mirando a carroça onde Agnes se escondera. Seu rosto revelava um ar hipnótico e os
olhos se apertavam em olhar distendido. Sem dúvida, jamais vira tamanho espetáculo,
jamais sentira algo assim! Sertório, puxando Firmamento, aproximou-se do bufão,
porém ele não os viu, continuando a fitar a carroça com o olhar distante.
- Vamo-nos, senhor Aldegundes, precisamos encontrar um lugar onde ficarmos. –
falou Sertório parando ao seu lado.
- Ficarei aqui! – respondeu Aldegundes, secamente, sem olhá-lo.
- Aqui, onde?
- Aqui, quero vê-la mais vezes!
- Agnes?
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Ele somente meneou a cabeça e caminhou até a proximidade da carroça onde ela
se encontrava. Sertório ficou a observá-lo. O bufão chamou, vendo a cortina abrir-se e
o rosto do dono do circo aparecer na porta. Pediu-lhe então para ficar e trabalhar. Faria
qualquer serviço em troca de comida e dormida, nada mais. Mediante tal
compensatória oferta e como estivessem sempre a precisar de braços para o trabalho,
ele o aceitou. Ademais, sendo anão se confundiria com os especialistas do circo,
podendo até figurar em espetáculos. Como Aldegundes fosse aceito, Sertório
aventurou-se a também pedir pousada e comida; em troca cantaria e alegraria aos
artistas.
- Já temos músicos, senhor, não precisamos mais!
- Devem ser bons, não os desmereço, mas o que trago comigo é algo que eles
certamente não possuem!
- O que, senhor?
- A alma da arte. Ela vive em mim é meu alimento. Mas aprecio compartilhar dela
com todos que a amam!

O homem olhou-o incrédulo. Estava acostumado com falsos virtuosos. Sertório,


vendo-lhe a desconfiança, tomou a viola e começou a cantar. Ao término, muitos o
rodeavam e o dono do circo tinha pulado da carroça, pedindo-lhe:
- Canta mais, senhor...?
- Sertório, vosso amigo e das artes.
- Sertório?! – surpreenderam-se muitos.
- Sertório, o trovador, raios, porque não me disseste logo?
- Não acreditarias, caro senhor, foi preferível antes cantar. Então, me aceitas?
- Por todo o tempo que desejares. Mas canta, canta outra! E Sertório, satisfeito,
cantou e inebriou-os. E cantou mais após o jantar, até que todos se recolhessem para
dormir.

Entusiasmado com Sertório e com o sucesso da apresentação de Agnes, ele


ofereceu ao trovador lugar em sua carroça, que era a mais espaçosa e confortável,
porém Sertório recusou polidamente, preferindo ir fazer companhia a Aldegundes
noutro lado da praça. Assim, sobre dois colchões velhos dormiram debaixo de uma
carroça mais modesta. Manhã seguinte, Aldegundes foi chamado para os trabalhos e
Sertório, mais tarde, solicitado pelos músicos e artistas a conversar. O bufão ia e vinha
carregando coisas, servindo de auxiliar nas tarefas, obedecendo sem o menor rancor.
Sertório cantava e ensaiava os músicos com novas canções ou corrigia-lhes aqui e
ensinava-lhes acolá.

Veio o almoço e depois a hora de novo espetáculo. Eles haviam construído outra
urna sobre o ressalto de terra providenciando que, tão logo o fogo se extinguisse,
lançassem novamente um cobertor sobre Agnes a fim de que ela não expusesse sua
nudez, como já acontecido. Agnes entraria na urna e lançaria fora a capa fornecida
pelo dono do circo tomada emprestado de uma equilibrista. Tendo-a largado, eles a
guardariam por que não podiam, a cada espetáculo, dar-lhe uma nova, embora aquela
que se queimara, ela a tivesse trazido.
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Após a fulgurante apresentação Agnes se fechara em sua dependência e dali não


saíra para nada, nem para comer. Ninguém a vira mais e representava um mistério.
Chegara de repente; apresentara-se ao dono do circo com aquela capa vermelha e
nenhuma bagagem, gesticulando e se oferecendo para fazer esse sensacional número.
Não pronunciara uma só palavra, somente sibilos, mas conseguira convencê-lo de que
realizaria o que propunha. Entusiasmado com aquela extraordinária mulher, ele a
aceitou dando imediatas ordens para que lhe arranjassem todas as coisas, oferecendo-
lhe uma dependência em sua carroça, na divisão do fundo. Sentiu por ela enorme
atração e quando perguntada sobre seu nome ela se abaixou e escreveu com o dedo:
Agnes e ele alcunhou-a, A Salamandra, julgando-a, todavia, muda.

Preocupado com sua ausência, chamou-a, perguntando-lhe se estava bem e se


faria hoje nova apresentação. Ela enfiou a cabeça pela fresta da porta confirmando
com aceno positivo, abrindo largo e maravilhoso sorriso.

Neste dia, Aldegundes não se acalmou. Realizava suas tarefas buscando passar
sempre próximo à carroça na intenção de vê-la. Não dormira aquela noite. A imagem
espetacular de Agnes, seu rosto, seu sorriso, tudo dela impregnara-lhe a memória. Ele
esquecia-se e aos percalços, ao ouro perdido, à maldição, à infelicidade que por toda a
vida permeara-o. Agnes passara a viver nele obsessivamente, a sugá-lo, ao mesmo
tempo a alimentá-lo. Desejava vê-la novamente, depois mais, a vida inteira, nada lhe
importando a partir de agora - somente Agnes!

A notícia sobre Agnes havia corrido pela cidade como um relâmpago, reforçada
pela propaganda que os componentes do circo haviam feito neste dia para mais um
incrível espetáculo. À hora anunciada a praça superlotava. Para a garantia da
arrecadação, o dono do circo mandara coletar as moedas antecipadamente, não
obtendo aquilo que esperava, insistindo, porém, que, ao final, todos se sentiriam na
obrigação de pagar mais, tal a grandiosidade das apresentações. Porém, o lançador de
facas, o equilibrista, o levantador de pesos, o lutador que desafiava qualquer
adversário, os saltimbancos; nenhum destes, nem outro qualquer, prendiam a atenção
dos espectadores. O público quase inteiro se postava impacientemente diante da urna
de madeira parcialmente invisível, encoberta por lances de véu. Havia ruídos,
nervosismo e agitação. Hoje não se viam crianças, nem mocinhas, mas homens de
muitas categorias e profissões, religiosos e mulheres. Como as atrações ali exibidas
não causassem mesmo maior interesse, e vozes já exigissem a presença de Agnes, o
dono do circo resolveu atender. Não seria bom o nervosismo de um público assim
aumentar.

Anunciada sua presença, exagerada ao máximo na dramaticidade, ele mandou


que retirassem o suporte que prendia os véus, deixando a urna completamente à vista
e a chamou. O povo de novo se abriu em alas. Para a surpresa do pessoal do circo,
Agnes surgiu vestida com outra capa vermelha, exatamente igual a que o fogo
consumira-lhe no dia anterior, com o capuz enfiado na cabeça, entrando na urna sem
despi-la. De onde a teria obtido?
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De novo o povo silenciou. Os homens realizaram aqueles mesmos movimentos


preparatórios, aumentando propositalmente a expectativa do público, incendiando a
urna por dentro, fechando-a, e depois ateando fogo nos fardos. O fogo se espalhou e
cresceu. Em pouco tempo as partes da urna caíram ardentes e enfraquecidas. Agnes
então apareceu inteiramente encoberta pelas chamas, a exemplo de uma fogueira. Os
auxiliares, cobertor à mão, tomaram posição e se prepararam para envolvê-la tão logo
o fogo se apagasse. Mas o fogo não se apagou. Em inacreditável seqüência, as
labaredas escorregaram e vieram se constituir numa roda viva em derredor de seu
corpo - um anel ígneo que mantinha todos à distância - deixando-a novamente nua e
de braços abertos, a girar majestática.

Diante da visão muitos se abismaram, porém, muitos, principalmente religiosos e


fanáticos, horrorizaram-se, gritando e exigindo que terminassem com aquilo. Mas
Agnes, como antes, ignorava-os. Vestida somente de irônico e deslumbrante sorriso
ela girava e se mostrava. Como os protestos, desta feita, constituíssem maior volume
do que os aplausos e um tumulto ameaçasse acontecer, o dono do circo pediu-lhe para
que saísse de cena. Ela, entretanto, ignorou-o e a todos, permanecendo a girar e a
sorrir, protegida pelo anel de fogo.

Gritos de bruxa e feiticeira saíram de muitas bocas. O dono do circo, apavorado


com a possibilidade de drásticas conseqüências, ordenou que lançassem baldes de
água sobre o fogo, mas tudo inútil, o anel ardia e permanecia. Um dos homens
ensopou-se e se preparou para pular dentro do anel a fim de arrancá-la de cena de
qualquer maneira. Ela, vendo-o, fez movimento com o braço e o anel fechou-se de
cima abaixo, voltando a envolvê-la em crepitante fogueira. Este mágico ato fez que
recuassem apavorados, inclusive os que a aplaudiam! Foi uma confusão geral, mas de
novo o fogo arrefeceu e voltou a se constituir no anel, e ela a mostrar-se como antes,
bela e imponente, a girar e a sorrir.

O povo agora a temia. Todos concordavam que ela não podia ser humana. E se
resolvesse se voltar contra eles? Era perigosa, precisavam fazer algo! Quanto mais
confabulavam, mais iam se afastando, temendo e rezando, pedindo aos céus por uma
miraculosa intervenção. O pessoal do circo, igualmente confuso e amedrontado,
também se afastara, a nada mais se aventurando. O dono do circo, aproveitando-se de
que não reparavam nele, correra e se escondera, temendo represálias. Sertório, de
longe, montado em Firmamento, contemplava os acontecimentos com impassibilidade,
aguardando o resultado.

Mas dentre todos, havia um só que não arredara pé e fiel espectador permanecia
admirando-a. Com a mecha novamente à mão, Aldegundes apertava-a fortemente:
estático, extasiado, ardente, não perdendo um só de seus movimentos! Ali estava
Agnes, a mulher mais extraordinária que jamais vira em toda a sua secular vida. Ela o
fervilhava, agitava-o; rolava-lhe torrentes de lavas pelo sangue; produzia-lhe indizível
torvelinho de paixão! E ele ali estava: destemido, reverente, apaixonado, ansioso e
apelante! Ele a via e a desejava; ela pulsava-lhe, explodia-lhe! Era o peito, o coração, o
sangue, as mãos, era sua alma - toda Agnes!
38

E Agnes prosseguia na sua dança do fogo, provocando novas erupções em


Aldegundes, ativando fortíssima voltagem em todo o seu ser, alastrando-se dentro de
um mundo outrora frio e vazio, inflamando-o em cada fímbria que possuía. A claridade
das serpenteantes chamas movia-se inconstantemente em seu rosto. Os prisioneiros
olhos só refletiam aquela arrebatante imagem! Súbito, ele foi acordado e tirado daquela
soma de revoluteantes sensações, ouvindo os gritos da multidão, gritos mais fortes.
Eram brados que se misturavam no ar, indo do pasmo ao terror, da satisfação ao
medo; coisas que se produziam nas impressionáveis almas de quem a bem pouco
havia aplaudido entusiasticamente. O volume dos protestos ia ganhando corpo: a
massa agitava-se ameaçadoramente, embora não ousasse ainda uma ação declarada.

Tendo se conscientizado do perigo, ele se tomou de tremor, que nada tinha a ver
com a sucessão de abrasantes desejos que dele se haviam apossado traduzidos em
incandescente paixão, e apelou-lhe quase sussurrante, procurando conter-se na
excitação;
- Por favor, eles vão maltratar-te!

Ao escutar estas palavras, ela baixou o rosto encarando-o. Ante o ardente olhar,
Aldegundes sentiu o mundo rodopiar dentro de sua cabeça e chamuscantes faíscas
salpicar-lhe o corpo, cegando-o para tudo mais, produzindo um manto de trevas em
derredor. Agora só ela existia. Ela era-lhe a vida, o alento, o mundo, a deusa de todas
as coisas que se resumiam na sua única soberana e soberba presença. Essa ilusória
sensação, porém, logo diluiu-se, como se diluiu o anel de fogo que a circundava,
expondo-a ao perigo e à sanha da multidão.

Aldegundes, ressurgindo do torpor, teve um lampejo de lúcido heroísmo e pulou


para o ressalto de terra, segurando-a pela mão. Encorajada pela extinção do fogo, a
turba urrou e avançou, vindo os homens à frente sem saber ao certo se agiam somente
desejosos de agarrá-la e senti-la ou com outro objetivo ainda não definido. Vendo a
carroça como alternativa mais próxima ele para lá se dirigiu, puxando-a com
dificuldade, perdendo terreno para os perseguidores. Entretanto, Sertório surgiu à sua
retaguarda, empinando Firmamento com estardalhaço, assustando-os e gritando para
que se acalmassem. Isto valeu a ambos os fugitivos ganhar preciosos segundos e subir
na boléia da carroça. Aldegundes imediatamente chicoteou os cavalos, entrando pela
primeira rua que encontrou. Mas o povo, insatisfeito, correu atrás e os perseguiu até
próximo dos limites da cidade, ali parando.

Os mais exaltados, - a maioria fanáticos religiosos, - começou a esbravejar e a


insuflar a massa, apontando Agnes como perniciosa e endemoninhada, perigosa em
todos os sentidos. Precisava ser destruída, bem como seu acompanhante que com ela
se pactuava e contraíra o mal. Assim, insuflados ao extremo, mais aterrorizados do que
justiceiros, eles se organizaram. Como aqueles desatinados gritos e balbúrdia
despertassem a atenção da polícia, ela se detivera a acompanhar o povo. Deixando-se
envolver pela tempestuosa atmosfera emocional, os soldados tornaram-se também
solidários com a opinião geral, e partiram a cavalo pela estrada a fim de alcançá-los.
39

Neste comenos, a gente do circo, às pressas, arrumou suas coisas e fugiu pelo
outro lado da cidade, dando graças que o povo os tinha esquecido, mas certo de que
logo retornaria. Com efeito, o povo voltou furioso para a praça a fim de arrasar o circo.
Necessitava extravasar a ira destrutiva que deles se apossara, mas não o encontrou,
ficando desapontada.

Por outro lado, Aldegundes tomara a estrada principal e se distanciara, perdendo-


se depois entre o arvoredo de pequeno e marginal bosque. Julgando-se a salvo parou
numa clareira, debaixo de uma trepadeira folhada que se emaranhava nos galhos das
árvores, e pulou da carroça. Movendo-se rapidamente pela periferia da clareira, deu-se
conta de estar a sós com Agnes. Tomado então de um arremedo de escrúpulos,
buscou e achou um lençol dentre a roupa dobrada a um canto da carroça, correndo
para Agnes, que já se achava no chão, cobrindo-a. Suas mãos tremiam; Agnes o
perturbava com aquele olhar e enigmático sorriso. Quis dizer-lhe algo, mas não
encontrou palavras. Era-lhe difícil justificar sua desassombrada e heróica atitude, o
porquê de sua paixão - se estas coisas se explicam - se tanto não conseguia entender,
se a confusão em si se instalara, e calou-se. Entretanto, lembrou-se da mecha e
buscou-a entre o cinto e a roupa, não a encontrando. Preocupado por este fato, correu
opresso para a boléia da carroça, procurando-a avidamente, remexendo pelo banco e
debaixo dos panos dos assentos, agachando-se e achando-a, ali, no chão, trazendo-a
triunfante, estendendo-a para próximo dos cabelos dela. Era idêntica, sem qualquer
dúvida, como se lhe pertencesse, parecendo ter saído de sua farta e anelada cabeleira.

Mas Agnes nem a olhou, continuando calada e sorridente, e Aldegundes baixou os


olhos, tímido, embaraçado, submisso diante da estonteante figura alva e rubra. Esta
atitude, porém, não durou mais do alguns segundos por que logo a via girar, lançando
fora o lençol branco, abrindo de novo os braços a solfejar. Era algo forte, penetrante e
agudo, um indescritível sibilo que o deixava atordoado. Ela girou mais rápido e sibilou
mais forte. Aldegundes não conseguia manter os olhos abertos: fechava-os e abria-os.
Via-se agora girando com ela, embora, estranhamente, permanecesse parado. Ela
continuou a girar e ele percebeu que acontecia alguma coisa inacreditável: via-se e
sentia-se em dois lugares ao mesmo tempo, em torno dela e aqui parado! Mas o
Aldegundes que lá estava: etéreo, volátil, sensível a tudo, era um desdobramento deste
daqui, embora ele próprio; como um instrumento que recebe a ação e repercute na
caixa.

O sibilante canto já o envolvia amplamente, prendendo-o, tolhendo-o, produzindo-


lhe inebriante sensação. Fazia-o circunscrever uma órbita qual um planeta em torno de
seu sol. Quando aquilo atingia a um auge e Agnes rodopiava com incrível velocidade,
ela subitamente estancou, causando à Aldegundes fortíssima atração, indo sua
projeção chocar-se violentamente contra o belo corpo de Agnes. Neste exato instante,
ele gritou levando a mão ao coração, sentindo-se rasgar e queimar, o mesmo
sucedendo com ela, caindo ambos ao chão.

Por quanto tempo permaneceu desfalecido, não conseguiu saber. Foi dar-se conta
no momento em que abriu os olhos, sentando-se assustado, vendo-a ali, em pé, a olhá-
lo e a sorrir-lhe. Levantando-se meio atordoado, não teve tempo de pensar em nada,
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porque escutou ruídos à esquerda. Era Sertório que vinha cavalgando por entre
arbustos e árvores. Mas Aldegundes não chegou a vê-lo. Atrás de si, escutou ruídos
mais fortes, virando-se. Eram os seus perseguidores, que os vendo, gritaram furiosos
feito um bando de índios selvagens e investiram. Um deles, soldado da polícia, mais
arrojado, preso à forte sugestão dos fanáticos, portando somente a idéia do extermínio,
apontou sua lança para Agnes arremessando-a. Aldegundes, percebendo aquilo
segundos antes, pulou adiante, recebendo a lança no peito, sendo trespassado. Não
satisfeitos, eles continuaram a avançar com a mesma fúria e outro deles apontou nova
lança contra Agnes. Ela, porém, levantou um braço produzindo uma cortina de fogo em
derredor, assustando os cavalos que frearam, jogando-os a quase todos ao chão.

Eles se espalharam e o fogo cresceu mais, lançando-lhes línguas que


aterrorizavam. Acreditando mais do que nunca que se tratava de uma bruxa possuidora
de forças demoníacas, impossíveis de serem vencidas, correram espavoridos, gritando
por seus protetores no céu, abandonando o lugar.

Logo o fogo decresceu e sumiu. Sertório que a tudo observara, aproximou-se, indo
atender Aldegundes. Porém, era tarde. O bufão não mais vivia naquele pequeno e
disforme corpo. Seu rosto mostrava-se pálido e os olhos estavam fechados. As mãos
seguravam a mortífera lança; o sangue escorria-lhe abundantemente pelas vestes, indo
manchar a verde relva. Sertório olhou em torno ouvindo um sibilante som e seus olhos
puderam perceber uma forma clara e ardente que se esboçava e se afirmava. Atrás
dela e em redor, formas negras pretendiam abraçar, mas não ousavam, sendo
rechaçadas. Em novo seguimento, ele viu as chamas conformar-se em Agnes, mas
não se sustentavam, transformavam-se ao mesmo tempo em serpente que se enrolava
em torno da alma de Aldegundes, produzindo um tipo de energia que mantinha à
distância as formas negras.

Aldegundes, neste espaço etéreo, permanecia inerte com olhos fechados, qual seu
corpo físico na Terra. Sem dúvida seria levado para regiões mais altas, a salvo das
incursões das trevas, a fim de ser tratado e mais tarde conduzido ao Tribunal dos
Justos onde escutaria sua sentença. Sertório, com as poucas ferramentas encontradas
na carroça, cavou pequena cova ali mesmo, enterrando o corpo do bufão, envolvendo-
o no mesmo lençol com que cobrira Agnes. Em seguida, fez uma cruz de paus e cipós,
fincou-a, e orou por ele. Depois subiu na carroça, conduzindo-a até a primeira
estalagem fora da cidade, deixando-a lá com uma gorjeta e a recomendação de que
avisaria o pessoal do circo onde reavê-la e aos dois cavalos.

De volta ao mosteiro, relatou-lhes toda a história desde o início por que não
precisaria mais reter-se à promessa feita ao bufão. Finalizando, estendeu ao principal
uma pequena algibeira de couro, pronunciando em voz quase grave as seguintes
palavras, que soaram como uma profecia:
- Eis aqui os três dobrões que separei do ouro amaldiçoado. São como três irmãos
estrangeiros que viveram as experiências do mal; três flores do pântano que realizaram
a alquimia da terra; três criações que havendo mergulhado e conhecido, virão levantar-
se sob a plenitude da vida e sobre o ontem. São o amanhã que se desvelará para os
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homens de pouco viver. Estranho, não? Três peças, três moedas que cruzarão
destinos!

Anos mais tarde, dois monges partiriam para terras distantes cruzando o mar, com
a missão de fundar outro mosteiro, levando entre seus objetos pessoais a algibeira de
couro e os três dobrões.
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OS TRÊS DOBRÕES

RAYOM RA

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arcadeouro.blogspot.com
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Eram-lhe confiadas as mais difíceis tarefas. Ele sempre sabia o que fazer, qual
decisão tomar, qual o momento de atacar ou de aguardar. A inteligência, o apurado
faro para os negócios, as perfeitas e objetivas análises: tudo isto, sem dúvida, o
tornava o homem mais importante daquela importante empresa. Só não lhe tinham
oferecido o cargo de presidente, isto o próprio presidente não faria. Hermes Roubard
acumulava cargos e títulos e manipulava o dinheiro com extrema facilidade!

Os amigos fiéis de quem é bem sucedido o rodeavam; convidavam-no para todo o


tipo de distrações; as mulheres o cortejavam. Tudo lhe vinha às mãos!

Possuía uma bela casa onde morava. Investia em ações, letras; obtinha
rendimentos. Recebia visitas importantes, de vez em quando para retribuir às atenções
promovia e organizava festas. Hermes Roubard era admirado, desejado, invejado!

O tempo ia passando e sua fama crescia. Mas um dia deu-se conta de algo a
incomodar-lhe. Que seria? Era alguma coisa a roer-lhe por dentro, a tirar-lhe a
concentração não o deixando em paz! Cansaço! Boas férias junto de amigos
certamente lhe fariam bem!

O presidente aplaudiu a idéia, ressalvando, porém, que logo precisariam dele.


Roubard preparou-se para a viagem, telefonou aos amigos no exterior partindo no vôo
noturno!

Receberam-no com grande alegria. Hospedava-se entre pessoas de reais posses


e influência. Tudo fizeram, todas as distrações e prazeres lhe proporcionaram; nada lhe
permitiram faltar. Mas ele não conseguia esquecer. Esquecer o quê, Roubard? Ele
mesmo não sabia!

Resolveu interromper as férias retornando a casa. Não lhe foi difícil arranjar uma
boa desculpa. Chegou sem se anunciar ficando dias trancado. Tentava ler, concentrar-
se em alguma coisa. No meio das madrugadas, sob a argêntea lua, caminhava pelo
enorme pátio nas floridas alamedas; sentava-se na grama, andava em redor da piscina,
roía as unhas e pensava. Pensava sobre si, sua carreira, sua vida. Mas por que
pensava tanto? Não sabia também responder!

Uma tristeza veio acompanhar-lhe as cismas e um gosto amargo navegar em suas


emoções.
- Voltarei ao trabalho assim esquecerei!

O presidente recebeu-o efusivamente; mostrou-lhe desde logo os assuntos que se


haviam acumulado desde sua partida. Roubard procurou interessar-se, penetrar nos
problemas, buscar motivações. Tudo se resolveu com incrível rapidez e viu-se
novamente festejado e aclamado!
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Roubard agora não dormia. Descartava-se dos convites cumprindo somente os


compromissos inadiáveis. Tudo lhe era pesaroso: o trabalho, as reuniões sociais, os
dias! Mas nada se alterara externamente; ele continuava a receber abraços e
felicitações!

O presidente notou-lhe as olheiras. Roubard foi encaminhado ao melhor médico.


Fez exames; trouxe consigo uma receita de comprimidos comprou-os e os tomou. Tudo
inútil, cada dia piorava!

Os amigos procuravam interessar-se. As mulheres o visitavam e o acariciavam,


mas ele logo as despedia alegando cansaço.

Roubard pediu licença do trabalho. O presidente quase enfartou ao ouvir aquela


horrível notícia. Tentou demovê-lo. Afinal, o trabalho sempre fora sua principal
distração. Ele estava decidido e a licença lhe foi concedida. Acompanhou-a grande
rebuliço e preocupações por sua sorte, pela sorte da empresa!

Roubard mergulhou em misantropia. Somente a governanta e os dois empregados


tinham contato com ele, mesmo assim a horas certas. As profundas olheiras, a barba e
cabelos crescidos e o descaso aos trajes causavam pena ou medo!

Roubard proibiu abrirem os portões e ninguém mais veio visitá-lo. O tempo foi
passando, os empregados foram embora temerosos de suas esquisitices. A governanta
foi a última a se despedir.
- Coitado do senhor Roubard, tão moço e já ficando louco!

O abandono era completo: a casa desarrumada, as roupas amontoadas por lavar,


a cozinha em total desarranjo, as plantas descuidadas, o gramado por aparar, a piscina
vazia e empoeirada. Os bichos e plumosos pássaros que possuía em viveiros e os
cães de raça tinham sido roubados pelos empregados! A caixa do correio superlotava,
mas ele não recolhia a correspondência!

Um dia o presidente veio visitá-lo. Roubard não se importou com sua presença
ficando ali mesmo sentado sobre a alta grama. A empresa precisava dele, do seu
talento e inteligência. Muitos problemas haviam surgido; enfrentavam tremendas
dificuldades porque ele lá não estava. O presidente implorou, propôs-lhe dobrar sua
retirada, a participação nos lucros: ele não aceitou.
- Por que está jogando fora todas essas coisas, Roubard?
- Porque não sou feliz!

Roubard agora estava realmente só e abandonado! Nova e interminável noite


começava a cair e ele se recolheu. Fazia dias que não entrava no próprio quarto.
Sentou-se na cama, pensativo e pesaroso. As lágrimas afloraram quase de imediato,
banharam-lhe a barba e molharam o lençol amassado. Foi um choro diferente, mais
prolongado, mais sentido e ele pôde ali traduzir toda a angústia, toda a sua alma - e
desejou morrer!
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A noite se prolongou. A madrugada arrastou consigo o corpo cansado e


emagrecido de Roubard. Foi um sono profundo como há tempos não acontecia, e
sonhou. Sonhou que caminhava pela borda de um horrível abismo, cheio de negrume e
algo visguento a escorrer das paredes. Que importava este repelente aspecto, a vida
não tinha face mais atrativa. Basta um pulo e tudo estará terminado! Lá embaixo só
escuridão, nada mais. Aqui em cima, um homem desagregado. Mergulharei no
desconhecido, quem sabe não estará lá a resposta? (Não, Roubard, ainda não!). De
onde virá esta voz? (Não pule, Roubard!). Por que não? Sou tão infeliz; a vida para
mim é somente uma sombra, mais negra do que as profundezas deste abismo! (Quer
ser feliz?). Se quero ser feliz - ironizou - sou jovem e a vida se transformou em
amargor. Onde estará esta quimérica felicidade, onde? (Vou dizer-lhe: lá adiante há
dois caminhos, vê-os?). Vejo-os muito mal, somente os percebo. (Assim já está bem.
Você deverá lá chegar e tomar um deles. O caminho da felicidade é o mais longo. Se
realmente desejar a felicidade irá encontrar esse caminho!).

Roubard acordou agitado. Em sua lembrança ecoavam as palavras: o caminho da


felicidade!
- Mas qual a direção, qual o rumo? - resolveu sair a procurá-lo - E se for distante?
Tomarei meu carro, o procurarei!

O carro estava ainda na garagem, empoeirado como tudo. Os pneus tinham se


esvaziado e não havia combustível. Roubard tomava-se de indecisões. Outrora traria
imediatas soluções para estes pequenos problemas. Hoje, no entanto, vacilava, suava,
ficava nervoso. Procurou no depósito. Quase nada lá havia: tinham levado tantas
coisas, aqueles empregados indignos! Achou um galão. Por sorte tinha ainda
combustível; daria para chegar ao posto mais próximo; mas quanto aos pneus? O
posto não é distante, tentarei assim mesmo. Será que andará? Porém o motor não
acionou; não tinha bateria, haviam-na também roubado. Ele desesperou-se, que fazer?

Hermes Roubard sem dúvida estava mudado. A misantropia na qual mergulhara


tolhera-lhe os muitos de seus reflexos práticos. Sentia-se inútil, inferiorizado, sem
forças de combater! Sentou-se na grama, no mesmo lugar de sempre. Quis afundar em
pensamentos, mas lembrou-se do sonho, do caminho da felicidade. Vamos, Roubard,
ânimo! Levantou-se e correu para dentro; abriu a gaveta retirando de lá um maço de
notas. Com este dinheiro mandarei consertar meu carro. Dará? Só tenho este! E saiu.

Pouco depois retornava num jipe com dois homens. Traziam todos os acessórios
necessários. Terminado o trabalho pagou-lhes e deu-lhes gorjetas. Eles saíram
satisfeitos da vida, desejando-lhe mil felicidades. Roubard partiu. Deixava tudo
exatamente como estava. Na mente portava uma só idéia: o caminho da felicidade! Por
onde ia olhavam-no curiosamente; ele não ligava a nada; acariciava aquela idéia com
paixão e desejo - aquele sonho!

Deixou a cidade, ganhou estradas, cortou por atalhos, cruzou sobre uma ponte e
rodou por outros lugares.
- Onde estará este caminho, onde? - Adiante o combustível terminou - Raios, e
agora? - Nada havia por perto, ninguém para auxiliá-lo, ele abandonou o carro.
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A tarde logo terminaria, mas o Sol continuava inclemente. Ele parou à margem
daquela estrada de terra para descansar. O desânimo ameaçava enlaçá-lo, ele lutava
para não se entregar. Tinha forças ainda, por quanto tempo? A sede e a fome o
incomodavam, porém o que isto representava diante de sua busca? Na primeira curva
enorme susto: adiante da estrada, a alguns metros, os dois caminhos! Ele correu...,
quanta emoção! Tão excitado ficara que somente foi reparar em alguém sentado ali,
entre os dois caminhos, ao chegar. Era um monge, Roubard reconhecia o hábito. Um
desapontamento o tomou!
- Boa tarde, meu filho. Sente-se, descanse um pouco! - Roubard sério, um tanto
arfante e sisudo, sentou-se ao lado do monge - Parece-me sedento e faminto. Tome,
beba de meu cantil, coma de meu pão!

Roubard quis recusar. A sede e a fome não lhe permitiram. Tomou o cantil e o pão
das mãos do monge, bebendo avidamente, mastigando com instinto de lobo. O monge
olhava tranqüilamente para adiante. Ao término, Roubard devolveu-lhe o cantil. O
monge, com gesto sacerdotal, recolheu-o.
- Chamo-me Antônio, irmão Antônio, você como se chama?
- Hermes Roubard! – respondeu contrariado.
- Sabe, Roubard, estou aqui há quase uma hora. Eu sabia que você chegaria a
qualquer momento. Roubard deu um pulo, pondo-se de pé. Seu rosto tornou-se
carmim.
- Sabia, como? – encarou ao monge.
- Um monge conversa com Deus todos os dias. Ele quando quer responde. Tive
uma visão, você acredita em visões?
- Não sei... Nunca tive uma.
- Pois bem, a visão mostrou-me exatamente este lugar e a companhia de um
homem como você. Juntos trilharemos o caminho da felicidade.
- O senhor também, um monge?
- Chame-me de você, Roubard. De agora em diante marcharemos lado a lado. Não
se surpreenda comigo. Monges buscam exatamente aquilo que você busca, que todos
buscam consciente ou inconscientemente. A felicidade é de todos, pertence-nos. A
maioria, entretanto, não sabe como procurá-la se distanciando dela. Mas nós vamos
encontrá-la. A felicidade representa para nós a coisa mais importante: mais do que o
pão que comemos e a água que bebemos. Ela é como o ar, o alento etéreo, a
verdadeira vida! Um monge que não a almeja e não a visualiza, jamais chegará a
entender o significado da própria vida, o sentido de viver, nem um homem do mundo
como você. Somos, portanto, iguais, Roubard, você e eu, e juntos estaremos até o fim!

As palavras saiam-lhe impregnadas de uma forte energia que a princípio parecera


não possuir. O rosto redondo e sereno transformava-se pelo estranho e arrebatador
brilho dos olhos. Roubard impressionava-se com a disposição daquele sacerdote.
Agora, apagava-se a inicial decepção de ter de compartilhar sua jornada!

Resolveram partir. Roubard quis ajudar irmão Antônio a se levantar. Ele, com
gesto de mão, recusou, pondo-se de pé. Era alto, mais do que Roubard, e forte.
47

Guardou o cantil e jogou as tiras da sacola de couro ao ombro. Ficaram diante dos
caminhos ao final daquela estreita estrada. Qual deles tomar?
- O da direita! Roubard simplesmente assentiu com a cabeça, e nele
enveredaram.

O sol ainda manifestava a presença. O vento tocava-lhes os corpos bulindo com os


seus cabelos. O farfalhar de folhas, o chilreio de andorinhas, o trinar de canários, os
agudos guinchos de gaviões: essas vozes da natureza festejavam a vida parecendo
chamá-los a fazer parte daquela aquarela. Rajadas mais fortes do vento em ordem
ritualística dobravam os macios e flácidos capinais. O céu entremeava-se de efêmeras
e rápidas nuvens que viajavam para novas plagas. Irmão Antônio, em largos e
cadenciados passos, parecia sentir a mensagem da vida; assobiava um alegreto, um
hino religioso ou tentava um cântico gregoriano. O capuz descansava-lhe às costas; os
cabelos, fartamente ruivos combinavam bem com seu rosto corado e ligeiramente
sardento. Roubard não, somente caminhava, ia sério, por vezes carrancudo. A alegria
do monge o perturbava. Já não tinha tanta certeza, como ele, que marchariam juntos
até o fim!

Quando o sol mergulhava no horizonte, formando véu róseo e lilás, corando as


nuvens e deixando nelas essa transparência temporária, irmão Antônio parou e
apontou para os lados de uma plantação de milho.
- Lá adiante, Roubard, vejo fumaça. Certamente é da chaminé de uma casa.
Vamos chegar! - Roubard relutou, não queria isso, o monge puxou-o pelo braço,
fazendo-o andar. - Vamos, rapaz! Eu não desejo dormir ao relento, tentemos algo.
Quem sabe nos darão de comer e um teto por essa noite!

A casa era simples e velha. As paredes amareladas mostravam manchas, o


marrom das janelas descascava. Os viajantes aproximaram-se do muro, o monge
destravou o portão, abrindo-o. Nenhum movimento do interior da casa foi percebido.
Súbito, um cão enorme veio correndo e latindo pelo grande pátio. Roubard rapidamente
retornou para o lado de fora. O monge permaneceu onde estava. Roubard,
nervosamente, via o cão se aproximar e o monge parado. Ele gritou, o monge fez-lhe
sinal com a mão. Que idiota vai ser mordido porque quer!

O cão parou a dois passos do monge, rosnando e rangendo os dentes, tomando


posição para um terrível ataque. Suas mandíbulas fremiam, os olhos mostravam o
brilho do instinto aguçado. O monge simplesmente olhava-o nos olhos, e começou a
falar com maciez, sussurrando as palavras. O cão passou a ganir. Ele,
cuidadosamente, levantou um dos braços e com os dedos indicador e médio unidos fez
o sinal da cruz, pronunciando breve prece. O cão aquietou-se, se agachou apoiando a
cabeça sobre as patas, ganindo timidamente. O monge andou até ele; arcou-se,
acariciou-lhe a cabeça, escovou-lhe os pelos do corpo com a mão esticada, sorrindo e
falando:
- Pode vir, Roubard, ele não nos fará mal nenhum!

Roubard, boquiaberto, não acreditava no que vira e relutava. O monge chamou-o


novamente, ele ainda temeroso entrou indo para o seu lado. Nisso apareceu uma
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mulher na janela. O monge acenou-lhe. Ela correu para dentro sem nada dizer. O
monge e Roubard ali aguardaram. Logo a mulher reapareceu ao lado da casa; com ela
veio um homem. Ambos caminhavam depressa. O homem, tal como a mulher, mal
acreditava no que via; ao se aproximar ficou de cócoras a examinar o cão: abria-lhe a
boca e a cheirava.

O monge apresentou-se e a Roubard, pedindo-lhes um pouco de comida, água


fresca, se possível e pousada. Explicou-lhes nada ter acontecido ao cão, haviam
somente se tornado bons amigos. O homem, já de pé, um pouco refeito da surpresa,
convidou-os a entrar, fazendo-os aguardar na saleta em cadeiras de treliça.

O cheiro de comida estimulou-lhes o apetite, Roubard já ansiava pelo alimento.


Três crianças apareceram curiosas, procurando ver quem chegara. O monge chamou-
as e puxou conversa, passando a mão sobre suas cabeças, beijando-lhes as testas. A
maior de todas respondia vivamente às perguntas e contou que o irmãozinho estava
doente. O monge levantou-se imediatamente, chamando pela mulher. Ela veio
correndo pelo corredor encerado, enxugando as mãos no avental. O monge perguntou
sobre o menino, a mulher confirmou que ele realmente estava doente. Vinha fazendo
de tudo para curá-lo com remédios caseiros. No momento banhava-o. O monge pediu
para vê-lo, ela os levou ao quarto.

Lá chegando viram o homem auxiliando-a no banho à criança. O cheiro de álcool


impregnava todo o ambiente. O monge e Roubard permaneceram a um canto até o
final do banho.

Enquanto a mulher vestia o filho, o homem contava das dores na região do ventre
e rins sofridas pelo filho. Não o tinham ainda levado ao médico porque a viagem seria
longa e exaustiva e temiam pela resistência dele, posto que, para dita viagem, não
dispunham de um carro. Por outro lado, não fora em busca do médico pela incerteza de
sua disposição em vir atender ao chamado. No passado, fato ocorrido na vizinhança,
ele rejeitara a viagem, preferindo receitar à distância. Não podia mesmo se aventurar a
isso, porquanto não desejava deixar a mulher a sós na angustiante situação. Ademais,
a criança revelava, às vezes, alguma melhora, ficando tranqüila e sem queixas, isto os
enchia de esperança. Os vizinhos? Não podiam agora solicitar os seus préstimos por
causa do trabalho nas lavouras. Talvez amanhã alguém se apresentasse para uma
ajuda. Eram boa gente, mas necessitavam também lutar pela sobrevivência!

Terminada a tarefa, a mulher se pôs de lado e o monge passou a examinar a


criança, impondo-lhe as mãos sobre as partes doentes e orando. Ao afastar-se do leito,
solicitou à mulher que conseguisse algumas plantas, cujos nomes ela mostrou
conhecer, indo-se imediatamente. O homem trouxe-os de volta para a saleta e o
monge aguardou silenciosamente. Logo a mulher retornou com o solicitado, tendo o
monge lhe pedido que o levasse à cozinha, porque ia preparar remédios. Roubard,
atento a tudo, acompanhava-o. Lá chegando, o monge ordenou à mulher que pusesse
água a ferver. Ela o fez e o monge lavou as plantas numa bacia de alumínio,
misturando-as criteriosamente, preparando depois dois chás, tendo juntado num deles
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folhas e raiz de uma das plantas cortadas em pedacinhos. Ao término, mandou que os
desse a criança com intervalos de duas horas.

Jantaram todos. Roubard repetiu o prato e ainda se deliciou com os biscoitos de


milho postos à mesa com café. Mais tarde, o homem desculpou-se com ambos por não
lhes dar pousada dentro da casa pela falta de acomodações. Foi com eles ao paiol, e
sob a luz de um lampião arranjaram duas camas, forrando palhas de milho com
lençóis. Trouxe-lhes dois cobertores, despediu-se e se foi.

O dia raiava, os galos cantavam. O monge abriu os olhos e se levantou. Roubard,


embora houvesse feito um sono só, qual seu companheiro, não se animou, virou-se
para o outro lado e pretendeu dormir mais. O monge sacudiu-o fazendo-o despertar e
ele, mal humorado, pôs-se de pé. Saíram pelo quintal. O frescor da manhã vinha tocar-
lhes os rostos e despertá-los em definitivo. O cão acercou-se deles fazendo festa,
abanando o rabo. No fundo do quintal, próximo à cerca, enxergaram um poço para lá
se dirigindo. Após se lavarem, o monge espreguiçou-se inspirando profundamente,
absorvendo em maior quantidade o ar matinal que ali se temperava com o odor do
orvalho, da terra umedecida e das plantas que exalavam. O forte cheiro de canela
vinha somar-se a tudo que emanava, e eles notaram para lá da cerca alguns troncos
de madeira a ser cortados. O monge puxava assuntos, apontando para as coisas que
julgava significativas. Roubard, circunspeto como sempre, fazia meneios de cabeça ou
respondia monossilabicamente. O lugar exaltava as coisas naturais, isto agradava
plenamente ao monge, homem atento e perspicaz, pouco a Roubard, alma distanciada
da natureza.

Caminharam de volta. Ao atingir o meio do caminho o estimulante odor de café


fresco veio encontrá-los. A mulher assomou à porta, ao alto de rústica escada de
madeira de três degraus, sorriu-lhes alegremente e convidou-os a entrar. Roubard,
embora não movesse um único músculo da face animou-se, pois seu apetite fora
estimulado. Ao adentrar, a mulher ajoelhou-se e beijou a mão do monge. Essa atitude
espantou Roubard que se afastou um passo. Esse mesmo gesto da mulher repetiu-o o
homem. Contaram-lhe, então, que o menino acordara com outra disposição sem
nenhuma dor. O fato, sem dúvida, devia-se ao resultado da reza e dos chás. A pedido
do monge levaram-nos ao quarto e ele examinou novamente a criança, desta vez
olhando-a dentro dos olhos. Ao final, declarou que deveriam continuar com os chás por
mais dois dias, prescrevendo uma alimentação especial, à base de vegetais e papas de
cereais. Essa alimentação deveria conter o mínimo de sal durante os três primeiros
dias. Orou mais uma vez, impondo as mãos, e se retiraram. Nada mais havia a fazer de
sua parte.

A conversa do café foi mais alegre, menos para Roubard que somente pronunciou
três ou quatro palavras. Antes de partirem, a mulher embrulhou uma broa de milho num
papel verde; fez outro embrulho menor com bolinhos e encheu o cantil do monge com
água fresca. Ele guardou tudo, abençoou-os e desejou-lhes abundância, paz e saúde.
O generoso casal os levou ao portão e pouco depois, à primeira curva, os viajantes
desapareciam detrás das longas e dobradas folhas de um milharal.
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- A vida de um monge requer muitos sacrifícios - dizia irmão Antônio, à sombra de


uma árvore, à margem do caminho onde haviam parado para descansar e tomar água
- por anos a fio, desde a juventude, quando ainda é aspirante, ele se submete aos
mais cansativos exercícios e rígidas disciplinas. No início há aquele entusiasmo
natural, quase juvenil, próprio das almas ardentes e devotas. Ele vê naquilo o sentido
da existência; a possibilidade de uma completa e inteira realização. Deixa o mundo
com alegria - onde realmente nada de atrativo conseguiu encontrar - e vem entregar-se
a esta nova vida, como um homem apaixonado se entrega aos braços da mulher
amada da qual espera todas as compensações. Não mais toma conhecimento da vida
exterior, senão superficialmente, e concentra-se o tempo inteiro neste seu novo mundo.
Caem-lhe às mãos livros e mais livros; ouve prédicas; venera seus instrutores; vive
intensamente a aspiração de um dia chegar a monge.
Porém, vem o tempo em que o cansaço pouco a pouco o envolve e um desânimo
começa a grassar em seu universo íntimo. Em conseqüência, uma legião de pequenos
seres viventes, até então obstruída em suas ações, se levanta e se mistura aos
reclamos de seu ego. É a primeira grande prova do aspirante! Ele já não ora com tanta
freqüência; entrega-se mais longamente às reflexões da vida, aos desgostos dos
desejos insatisfeitos, de tudo quanto poderia ter feito e não fez. Muitas vezes procura
motivos para sair e visitar alguém. Na realidade, sai em busca de distrações, e excita-
se ao ver um corpo bem torneado de uma mulher, ou o sorriso malicioso de uma jovem
bonita. Arde-lhe o intenso desejo julgado extinto ao abraçar a vida monástica, e
quantas noites atravessa em claro, procurando abafar aqueles lancinantes apelos.
Mas vem novo tempo! Se resistiu bravamente as tentações vão diminuindo,
escoando como água que se misturou à terra, levando com ela muitas impurezas. Ele é
promovido a neófito. Novos estímulos, novos ensinamentos, novas práticas. Ele agora
traz consigo emoções mais controladas, uma aspiração melhor modelada. O
entusiasmo volta a compartilhar de seus atos, e as obrigações as realiza com outro
alento. Os anos vindouros virão ser consumidos naquela mesma luta, na abstinência,
em disciplinas e práticas. Mas a cada tempo previsto, o demônio das tentações virá
fazer-lhe periódicas visitas, saber ainda quanto lhe é devido!
Um dia, ele descobre o verdadeiro valor de tudo quanto vinha fazendo e ao que tão
resolutamente se entregou. O ser humano ganha novo conteúdo em suas reflexões. A
vida em si começa a se despir da primeira série de múltiplos véus que a encobrem. A
primeira volta da dança é completada. A natureza para ele não é mais uma sucessão
de formas de vidas biológicas, orgânicas ou inorgânicas. Há algo mais: há um sentido
pulsante e sumamente inteligente que nela agrega todas as coisas num plano definido
não percebido antes pelo intelecto. Ele agora começa a ver com a alma, a sentir
influxos de paz no coração, a perceber com maior nitidez meandros de uma
infinitesimal fração do complexo vida. Paralelo a isto, sente-se agigantar; viver
realmente. Nada mais o segura. Ele pretende amar a tudo, dar aos homens de seu
sangue, de seu pão, de sua vida!
Chegando a este elevado grau, as práticas, disciplinas e rituais, tão cansativos,
que para o restante de seus irmãos de monastério continuam a ser a forma inteligível
do espírito, caem-lhe desfalecidas. Não necessita mais delas. Descansa-as como um
homem recuperado descansa suas muletas. Ele agora atua com a alma, com a força
perene da vida que se espraia através das formas, das palavras e dos pensamentos.
Ele vê realizar em si as sublimes verdades tão exaustivamente descritas e definidas
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por filósofos e estudantes de ocultismo, a despeito de muitos deles não terem chegado
a conhecê-las.
Neste ponto uma sinuosa dúvida há de estar se arremessando em seus
pensamentos, Roubard. Você estará se perguntando por que estou aqui ao seu lado,
procurando trilhar este desconhecido caminho chamado por nós de o caminho da
felicidade, se tanto eu conheço, tantas coisas superiores eu descrevo, se já não
deveria ser feliz? Eu lhe direi: sonhos de um monge que viveu mais da metade de sua
vida encerrado em prisão de portas abertas, tentando em vão alcançá-los, que por isso
angustiou-se derramando copiosas lágrimas. Não estranhe estar confidenciando estas
coisas porque são a verdade. A felicidade para mim ainda é uma questão abstrata e
filosófica.
Mas Deus teve piedade deste humilde servo fazendo-o ter mais uma visão em
meio a tantas que já tivera, desta feita anelada a um desafio de coragem e desapego: o
de trilhar esse caminho prático ao lado de um irmão de igual aspiração e coragem;
alguém que como eu, desejando e acalentando esta felicidade, disposto estivesse por
ela a sacrificar-se, deixando para trás tudo o que possuísse e que lhe fosse amargo
como o fel.

Roubard nada dizia. Ouvira a tudo atentamente, observando o rosto corado do


monge. A menos de meia hora não o conhecia; julgava-o um homem misterioso e
impenetrável. Entretanto, neste momento, olhava-o através de uma janela aberta por
ele próprio. O que dizer se, apesar de tudo, não conseguia ainda distinguir com nitidez
aquela pequena parte de seu mundo interior? O monge levantou-se e Roubard o
acompanhou.

O sol alto viera banhar seus corpos com ardor. Eles se refugiaram novamente à
beira do caminho sentado-se sob uma árvore frondosa, e comiam. Por algum tempo o
silêncio acompanhou o repasto, como à mesa sacerdotal. Roubard novamente
apreciara os bolinhos e a broa de milho: estavam deliciosos. Irmão Antônio, sem fome,
comera somente meia fatia do pão e tomara três goles de água. Ao término, não se
levantaram. Algo os segurava por mais tempo naquela tranquila paragem. Irmão
Antônio, encostado no tronco, levantou os olhos divisando ao longe cumes de
montanhas vestidas de uma névoa azulada que já desmaiava. Mais acima, nuvens
escuras e enodoadas certamente deslizariam e trariam chuva. Ele baixou os olhos e
com mãos entrelaçadas mexeu os dedos grossos. Seu semblante tomara-se de uma
ansiedade qualquer, coisa que a alma sinalizava a querer retratar, tornar palavras.
- Numa de minhas visões - começou olhando para adiante - enquanto orava, vi
algo que permaneceu para sempre em minha memória. Eu saía à noite com lampião à
mão levando uma escavadeira. Ao ultrapassar os limites do muro do monastério,
encontrava um caminho. O caminho não era usual, e creio, raramente trilhado, vindo
terminar num barranco. Eu descia pelo barranco com grande dificuldade, escorregava e
me equilibrava o quanto podia; no sopé caminhava para a direita até achar uma pedra.
Da pedra para cima contava sete palmos, depois mais sete para a esquerda e
começava a cavar, encontrando um pequeno cofre envolto por uma capa de couro
apodrecida. Abria-o e retirava uma pequena algibeira, perfeita, intacta. Folgava o laço e
metia a mão dentro dela, encontrando três moedas de ouro, três dobrões! Com mil
trovões, quantos anos teria isso? Amarrava a algibeira à cintura por debaixo da veste e
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retornava. No caminho de volta encontrava um homem despido e dava-lhe a algibeira


com os três dobrões.
Essa visão permaneceu por muito tempo se reproduzindo em minha memória.
Meses depois, tendo solicitado permissão ao conselho para ausentar-me
periodicamente da vida monástica a fim de buscar no mundo o que eu não possuía,
permissão esta negada de imediato, lembrei-me de procurar o tal cofre. Saí à noite, à
lua cheia, enveredando pelos matos. Perdi-me várias vezes, retornando sempre ao
mesmo ponto. Recomeçava atento, procurando lembrar-me do que a visão mostrara-
me. A certa altura encontrei o caminho. Uma incontrolável emoção agitou-me fazendo
tremer-me o corpo. Apesar de um tanto diferente, um instinto de certeza me levava
acreditar ser ele. Com essa certeza em mente percorri-o chegando ao barranco. Desci
agarrando-me nas touceiras, mas acabei rolando para baixo. Todavia, a pedra ali
estava! Seguindo a indicação, contei os palmos e cavei, encontrando o cofre e a
algibeira, ei-la!

O monge meteu a mão no bolso e a retirou, mostrando-a. Estava toda enrolada


pelos cordéis. Roubard olhou-a sem muito interesse. O monge baixou a mão,
apoiando-a na coxa. Havia nele desassossego; apertava-a fortemente como uma
criança aperta um saquinho de doces. Logo seu rosto e corpo ficaram inertes. Um
único e quase imperceptível movimento mostrava ali uma vida: seu polegar que mexia
e acariciava a algibeira num vai-e-vem rígido, porém ritmado. Ele a segurava com mão
de ferro; que representaria aquilo? Roubard inquiria-se, agora realmente curioso.

Roubard incomodava-se com aquela quase inércia. A figura do monge assim


parada causava-lhe certo temor e ele perguntou-lhe a primeira coisa surgida à mente:
- E quanto à permissão, eles afinal a deram? O monge teve ligeiro
estremecimento.
- Não, eles jamais o fariam; é contra todas as regras e convenções da ordem. Um
monge não pode tomar resoluções como essa. Como era de se esperar, o conselho
decidiu que eu deveria permanecer cumprindo as minhas obrigações religiosas em
estrito acordo com os costumes. Dar-me-iam uma licença para meditar e refletir. Isso
seria passageiro, - sabiam de antemão, - logo eu voltaria a pensar como sempre, como
todos, como um só corpo. Fingi aceitar tal oferta, cujas restrições impunham-me a
permanência no monastério. Mas naquela mesma noite escrevi a carta de
desligamento, endereçada ao Irmão Maior, deixando-a a escrivaninha. Reafirmava os
meus motivos, dizendo principalmente de minha ansiedade, da necessidade de buscar
em meio às agruras do mundo. A decisão, informei-o ainda, já a tinha tomado há algum
tempo e ninguém conseguiria demover-me. Nada mencionei de minhas visões, como
jamais houvera feito antes. Visões suscitam dúvidas sobre a sanidade de um visionário,
por isso mantive o segredo. Saí, como disse, sorrateiramente, em busca da algibeira
que tinha deixado no mesmo lugar em que a achara; tomei-a dali e vim encontrá-lo,
Roubard. Ele agora sorria. Roubard não suportando aquele sorriso baixou os olhos. O
monge se levantou e recolocou a algibeira no bolso.

O caminho que trilhavam foi morrer sobre uma estrada também de terra.
Tomaram-na e prosseguiram. As pernas doíam-lhes obrigando-os a parar de trecho em
trecho. Uma nuvem de poeira chamou-lhes a atenção. Vinha pela estrada. Era de um
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caminhão com toldo que parou próximo a eles. O motorista meteu a cabeça para o lado
de fora mostrando sorriso e dois dentes de ouro, perguntando-lhes para onde iam. O
monge apontou para adiante.
- Para a cidade? – o monge confirmou - É muito longe, vou para lá também.
Venham subam! Eles subiram e se alojaram ao seu lado.

Uma chuva intensa obrigou o motorista estacionar fora da estrada. Passaram para
a carroceria e descansaram. Mais tarde, o homem resolveu cozinhar. Num fogareiro,
fritou lingüiça e fez café. Comeram com broa e com os bolinhos que restaram. A noite
veio alcançá-los ali mesmo e dormiram sobre lona, protegidos pelo encerado, sob a
forte chuva que aumentara.

Pela madrugada, o monge e Roubard acordaram com os gritos do homem. Ele


esperneava e arrancava a roupa do corpo. O monge acendeu o lampião para ver
melhor. O rosto do homem se transfigurava. Ele babava, rugia, puxava os cabelos.
Roubard, apavorado, pulou para fora do caminhão, gritando para o monge. Seria
perigoso ali permanecer com um possesso. O monge não lhe deu atenção se
aproximando do homem. Ele, vendo-o de lampião a mão, fez menção de atacá-lo. O
monge levantou a mão direita e recitou uma oração de exorcismo. O homem recuou,
jogando-se ao chão, debatendo-se. O monge ajoelhou-se, deixando de lado o lampião,
e pôs-lhe a mão sobre a testa. Esbravejou e agarrou-o pelos braços. O homem,
esbugalhando os olhos, gritou horrivelmente, depois desfaleceu. O monge pôs-lhe
novamente a mão sobre a testa e orou, desta vez tranqüilamente. O homem veio
retornando à consciência e sentou-se. Ao ver o monge ao seu lado e dar-se conta de
seu lastimável estado, chorou profundamente. Roubard, ensopado, pulou de volta para
a carroceria. Pouco depois os três voltavam a deitar.

Roubard não conseguia mais dormir, somente cochilava. Tentava ver o homem
deitado, mas devido à escuridão somente o percebia. Acordara inúmeras vezes
imaginando um novo e terrível acesso de loucura e o homem a se precipitar sobre eles
a fim de matá-los. Em certa hora, resolveu levantar-se não vendo o monge ao seu lado.
Preocupado, pulou para fora do caminhão. A chuva havia cessado; o sol ressurgia
brando e limpo. Irmão Antônio, ventarola à mão, lutava para manter vivas uma dúzia de
brasas. Ao lado havia três montes de folhas. Roubard tossiu e ele virou-se pedindo-lhe
que acordasse o homem, Roubard voltou para o caminhão tocando-o no ombro com
certo temor. O homem acordou assustado e acompanhou Roubard.

O monge ordenou-lhe que se aproximasse. As brasas agora eram grandes.


Timidamente ele obedeceu ficando a um passo. Irmão Antônio jogou as folhas no
braseiro e invocou. A fumaça ora espiralava ora dançava no ar como insinuantes
dançarinas, engrossava como fileiras de guerreiros, e subia. Mais folhas, mais
invocação, mais fumaça. Roubard olhava curioso e espantado. O homem fechava os
olhos, talvez de vergonha. Irmão Antônio ordenou que ele atravessasse a fumaça,
pulasse o braseiro e de novo assim fizesse. Sete vezes ele repetiu; sete vezes o
monge invocou. Roubard pouco entendia, o homem nem um pouco: o monge falava
em latim. O cheiro era forte, embora agradável, e Roubard gostou.
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Finalmente o monge rezou-o à frente e às costas, apagando o braseiro. Tirou um


papel do bolso dando-o ao homem. Disse-lhe para ler o que ali continha antes de
dormir, durante sete dias. Feito isso nada mais teria, a obsessão terminava. Em gesto
já familiar a Roubard, o homem ajoelhou-se e beijou a mão do monge. Pouco depois
comiam o que havia sobrado do jantar e seguiam viagem. O homem deixou-os à
entrada da cidade a pedido de irmão Antônio, agradecendo mais uma vez ao religioso,
e seguiu viagem.

Belas residências, homens e mulheres bem vestidos, carros novos e caros,


comércio bom e variado, era o que viam enquanto caminhavam. Roubard, sujo,
barbudo e com cabelos em desalinho envergonhava-se quando reparavam neles.
Irmão Antônio parecia com nada se importar. Conseguiram carona num jipe dirigido por
um rapaz alegre e extrovertido e se desviaram do centro, aproximando-se do outro
extremo da cidade. Para onde iriam? Roubard não sabia, nem o monge. O rapaz
largou-os numa rua qualquer e prosseguiram a pé.

A profunda miséria que ali viam chocaria almas sensíveis. O rosto do monge
contristava, a fisionomia de Roubard alterava-se. Para este seria nojo, mau cheiro do
pobre. Quanto mais andavam mais miséria iam vendo. Crianças sujas, mulheres
seminuas, homens desalentados, gente doente e abandonada. O monge parou e
segurou o braço de Roubard. Gotas de suor sobressaíam de sua larga testa. Ele arfava
ligeiramente; os olhos mostravam um tipo de ânsia, de sofrimento íntimo. Miséria assim
monge algum daquele monastério poderia ter visto, nem Roubard homem refinado e de
sociedade. O monge puxou-o a um canto, para trás da parede de tijolos de um
casebre.
- Roubard, quero dizer-lhe algo que trago guardado. Não lhe contei tudo acerca
das visões que tive. Não era ainda o momento ou talvez não tivesse a certeza, mas
contarei agora. Ao retornar com a algibeira à mão trazendo os dobrões, e ao dá-los ao
homem despido, não lhe pude ver as feições. Também não as vi do homem com quem
trilharia esse caminho. Esta certeza fui tê-la ao vê-lo chegar. Agora, novamente, a
certeza está em mim, e vejo tudo nitidamente. As duas pessoas eram uma só: você!
Tome a algibeira com os dobrões, são seus!

Roubard olhava-o com expressão aparvalhada. O monge depositara a algibeira


sobre sua mão. Os compridos cordéis apontavam diretamente para baixo como a
mostrar o mergulho de um longínquo mistério. “Descubra os véus, desnude o segredo,
possua-o!” Estas palavras soaram-lhe aos ouvidos. Ele, nervoso e trêmulo, dirigiu-se
ao monge:
- Que faço com isso, por que eu?
- Suas mãos são imantadas, Roubard. Não como as de um Midas, mas de um
mago que, por estranha sorte faz frutificar aquilo em que toca, atraindo o ouro e o
progresso. Plante-os, um a um, em lugares diferentes, ao longo de nossa jornada. Ali
ficarão como poderosos talismãs, ali atrairão o progresso! – o monge falava com
grande emoção.

Ainda trêmulo, ele abriu a algibeira, retirando os dobrões. Eram grandes,


rebrilhavam. Irmão Antônio os havia polido, mostravam efígies, três diferentes, de
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épocas também diferentes a julgar pelos tipos. Curiosamente, em nenhum deles podia
ler os anos que tinham sido cunhados, nem suas origens.
- Guarde-os, Roubard; amarre a algibeira à cintura, sob a camisa. Não deixe que a
vejam; não a perca! Roubard obedeceu.

Uma mulher veio correndo. Era magra, mal vestida, e chorava. Segurou a mão do
monge, chamando-o de padre. Seu filho estava morrendo, seu único filho; apesar de
toda a miséria ela o amava e não queria perdê-lo! O monge a seguiu juntamente com
Roubard. Penetraram por vielas, espremeram-se entre paredes, pularam sobre esgotos
fétidos a céu aberto. Tudo era desolador; aquela gente vivendo jogada como se não
pertencesse a um mundo de homens! Vez por outra encontravam abrigos em melhores
condições. A grande maioria carecia de todas as coisas. Finalmente chegaram. Um
menino esquelético deitava-se sobre um colchão aos pedaços. De tão fraco nem abria
os olhos. O monge rezou-o impondo-lhe as mãos. Ele necessitava mais do que rezas:
de alimentação. O monge chamou Roubard, mandando que a mulher aguardasse.
- Tem algum dinheiro, Roubard?
- Nenhum.
- Então venha comigo, precisamos fazer algo!

Saindo daquela parte miserável chegaram a meio caminho entre o rico e o pobre.
Havia pelas imediações um grande empório, farto de alimentos. O monge e Roubard
entraram, um homem gordo, de bigode, veio atendê-los. O monge explicou ao que
vinham, pedindo algum alimento: produtos vegetais, ovos e vinho, se possível. O
homem não se sensibilizou; nada podia fazer. O monge propôs-lhe trocar alimentos por
um dia de trabalho de Roubard, talvez dois. Roubard olhou-o assustado. O homem
mirou-o não gostando de sua aparência. O monge explicou que Roubard era homem
de dar sorte, se aceitasse a permuta certamente seus lucros aumentariam. O homem
coçou as mãos rechonchudas, o queixo, enroscou os curtos dedos nos cabelos e
propôs uma quinzena de trabalho. Em troca, além dos produtos pedidos pelo monge,
daria também roupas limpas para Roubard, refeição e dormida no fundo do
estabelecimento.
- Para dois? - insistiu o monge
- Está bem, para dois.

O monge abraçava o alimento. O homem nervosamente escolhia-o. Ao final, irmão


Antônio, satisfeito, se foi. Roubard, mal humorado, permaneceu. Seu patrão mandou-o
que tomasse banho. Trouxe-lhe roupas limpas: calças, cuecas, camisa e sandálias de
couro. Estendeu-lhe ainda um aparelho de barbear com lâmina, um tubo de creme e
um pincel. Juntou a isso um pedaço de sabão de coco e uma toalha grande.
Resmungava a todo instante. Não sabia por que estava fazendo aquilo. Afinal não
fizera bom negócio. Pouco depois, Roubard reapareceu; tinha novo aspecto, ficara
mais jovem, cheirava à limpeza. O homem riu de satisfação; Roubard era simpático,
isto era bom para os negócios! Deu-lhe de comer e instruiu-o como fazer, solicitando-
lhe sorrir sempre; jamais contrariar a opinião do freguês.

O monge lutou bravamente contra a morte. Preparou sucos, caldos, arranjou


mastruço, bateu vinho com ovos, saiu pelos matos em busca de ervas e raízes, orou e
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implorou. Às noites voltava para o fundo do estabelecimento onde Roubard trabalhava.


Comia e dormia sobre um colchão, pelo chão, tal como Roubard.

O monge tornara-se conhecido. A população pobre vinha pedir-lhe rezas,


conselhos, ajuda. Ele fazia o que podia, mas não podia fazer muito sozinho.

Quinze dias se passaram. Roubard acordou disposto a largar o trabalho, mas o


monge disse-lhe para ficar; precisavam levar alimentos para aquela criança e para
outras. A morte não havia sido vencida naquele caso. O homem apareceu satisfeito
declarando que realmente a freguesia passara a freqüentar mais o estabelecimento.
Seus lucros aumentavam um pouco, somente isso. Pediu para Roubard ficar. O monge
olhava-o severamente; o homem aguardava. Roubard, contrariado, aceitou. Ficaria por
mais uma semana.

A morte foi vencida. Novos casos surgiram. Roubard foi ficando: mais uma
semana, um mês. O povo admirava-os. Roubard não gostava muito disso, daquela
gente mal cheirosa. Irmão Antônio atendia-a, falava-lhe, orava e curava. O homem vivia
a rir de satisfação.

O tempo passou. O monge vinha encontrá-lo, como sempre, às noites. Roubard


andava carrancudo e mal humorado. Evitava conversar com o monge. Certa manhã,
decidido, iria procurar o dono do estabelecimento a fim de deixar o trabalho. Irmão
Antônio zangou-se, disse-lhe para ficar, precisavam disto. Roubard enfureceu-se,
desatou o nó da algibeira, a jogou ao chão aos pés do monge.
- Tome, monge, eu os devolvo! Não pense que me comprou com suas histórias.
Estou farto de você, de suas ordens. Vamos, Roubard, faça isso! Fique aqui, Roubard,
tome conta disso! Não tenho sido outra coisa além de um instrumento de manejo. Você
está me escravizando, tirando-me a força e a capacidade de decidir e viver: atrela-me
como a um dócil animal. Se não pode se agüentar sozinho volte para o monastério,
seja lá outra coisa ou de novo um anacoreta! Vou retornar de onde vim e tomar o outro
caminho. Até este você decidiu por mim, adeus monge! Roubard bateu a porta com
violência. Irmão Antônio permaneceu. O portão rangeu e voltou e Roubard se foi!

A chuva o pegara desprevenido. Roubard, molhado, abrigava-se debaixo de uma


árvore. A água corria pela estrada, misturava-se à terra e empoçava. Os finos galhos
balançavam, pendiam sob o peso. A natureza toda se regozijava pelo banho, pelo
rejuvenescimento, pela sede que matava! Roubard, encorujado, lamentava a sorte. A
barba crescia-lhe de novo, negra, quase farta. O semblante expressava angústia,
mostrava olheiras, abatimento: o estômago reclamava da fome! Duras palavras ditas
ao monge, afiadas e cortantes. A alma ferida arremessara-lhe as armas. Estaria
arrependido? Mesmo se estivesse não desejava submeter-se mais às suas ordens, às
ordens de ninguém, era independente. Trilharia o caminho sozinho!

A chuva estiara. Roubard, pé na estrada lamacenta, foi em frente. De repente, vê


um vulto; seria ele? Seu coração dispara: emoção, alegria? Procura controlar-se, ele
vem vindo do mesmo jeito, no mesmo largo passo. Vem sério, nunca o vira assim.
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- Roubard, companheiro, perdoe-me. Suas palavras naquela manhã calaram-me


profundamente. Na ânsia de fazer pelo próximo sacrificava-o. Não tinha esse direito.
Sua revolta foi espontânea e necessária. Desejo corrigir meu erro; sou pouco
experiente no trato com os homens do mundo. Quer ainda compartilhar comigo desta
jornada?
- Sim, quero - respondeu cabisbaixo, logo prosseguindo - mas quero também
pensar e decidir!
- Prometo não interferir!

Os dois retornaram. Irmão Antônio ofereceu-lhe pão e Roubard aceitou. Voltaram


conversando e traçando planos.

O dono do estabelecimento ao ver Roubard e o monge correu feliz a abraçá-los


convidando Roubard a voltar para o emprego. Roubard prometeu pensar a respeito. À
sós com o amigo, conversou. Precisariam de muitas coisas para ajudar aqueles
infelizes. Roubard agora se animava. Finalmente, chegaram a um ponto comum e
Roubard foi procurar o dono do estabelecimento: aceitaria o trabalho sob novas
condições. Queria um salário e ajuda material para os pobres. Que ajuda? Inicialmente
madeira e outros acessórios para que pudessem construir um galpão junto a eles. Lá o
monge lhes prestaria assistência; depois de pouco em pouco levariam suprimentos e
remédios. O homem coçou a mão, o queixo, levou os curtos dedos aos cabelos.
Roubard, vendo-lhe a indecisão, prometeu ousadamente que dentro em pouco
necessitaria aumentar o empório, tal a procura. Os olhos do homem brilharam, as
gordas bochechas coraram e aceitou.

O plano dava resultados. O galpão construído fora transformado em quase tudo:


hospital, farmácia, central para distribuição de algum alimento e até em confessionário.
Todo dinheiro que Roubard ganhava dava-o ao monge. A profecia de Roubard também
cumpria-se. Em um ano o empório fora ampliado. O estoque de mercadorias duplicara,
as vendas aumentavam sempre. Roubard modernizara o atendimento da clientela;
criara pequenos departamentos, selecionara melhor os produtos e ampliara as opções.
Instituíra entregas em domicilio; estabelecera vendas por telefone e abrira créditos
especiais para clientes importantes. Patrocinava um programa na rádio local, juntara-se
a outros patrocinadores em pequenos eventos esportivos em clubes ou em áreas
públicas, às vezes em parceria com a prefeitura. O dono do estabelecimento levava as
mãos à cabeça sempre que precisava abrir o caixa. Mas sorria largamente e acendia
um charuto quando Roubard, ao final dos meses, mostrava-lhe os resultados positivos
dos balancetes. Então lhe atendia aos pedidos, muitas vezes pela metade.

O monge trabalhava sem tempo para meditar. Roubard de novo pensava. Como
antes, vinha sentindo uma onda de tristeza e enfado. Começou a desviar a atenção do
trabalho. Irmão Antônio logo notou-lhe a mudança, porém aguardou. O processo
tomava corpo. Roubard já não conversava. Finalmente abriu-se contando ao monge
que, como outrora, aquele trabalho o cansava e desejava fazer outras coisas.
- Que coisas, Roubard?
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- Algo assim como você faz. Gostaria de saber orar, curar, conhecer fórmulas
mágicas. Há um vazio em mim, uma necessidade de vida, de um estímulo interno.
Quero saber meditar, abençoar, amar. Quem sabe seja isto que me faz falta!

Irmão Antônio olhou-o com admiração. Seu largo rosto aclarou-se num brando
sorriso. De mãos unidas à frente, sentava-se sobre pequeno banco de madeira no
fundo do galpão como Roubard. Ali pouca coisa mudara, eles não faziam questão de
conforto, dormiam por lá mesmo. Roubard olhava para o chão e o monge falou:
- Por quanto tempo venho esperando ouvir isto, companheiro. O excelente trabalho
realizado por você foi, sem dúvida, importante. Sem ele pouco ou nada poderíamos ter
feito em benefício dessa gente pobre e deserdada. Todavia, a alma é insaciável; é
permanentemente observadora; ela pede sempre mais, preside os dramas de nosso
ser inteiro. E somente nos alivia com as coisas vindas do alto. Tudo é bom e
necessário: o trabalho, o alimento, a cura. Ajudam-nos a bem viver com nossas
consciências e com os homens. Porém, em certas crises de nossas vidas, o ego
reclama autonomia, liberação de liames com o mundo; ele deseja novas experiências.
Este é o segundo vislumbre deste seu momento, Roubard. O primeiro deu-se ao optar
pelo caminho. Vou ajudá-lo!

Roubard decidiu não trabalhar mais como vinha fazendo. O comerciante assustou-
se:
- Vai deixar-me?
- Não, ainda. Quero agora trabalhar três dias na semana com os mesmos ganhos.
Os dias restantes quero vivê-los inteiramente com Irmão Antônio. O homem protestou,
propôs aumentá-lo, o queria trabalhando o tempo todo, a semana inteira.
- Aceita o que proponho ou vou trabalhar para o vizinho? O homem aceitou.

Roubard passou a conviver mais de perto com a miséria. Agora a tocava, ajudando
ao monge em quase tudo. Ouvia e aprendia.

Ampliava-se o campo de trabalho. Os problemas avolumavam-se e a popularidade


de ambos crescia. O tempo passava. O monge costumava liberar Roubard para ir
visitar doentes, - àqueles cujo tratamento ele, o monge, houvera iniciado. Na
necessidade da fé ou do conhecimento mais profundo do mal, Roubard somente
acompanhava. Nesses casos, ia fazendo chás, aconselhando, catalogando reações,
sempre ao comando do monge, e impunha as mãos. De nada reclamava: tudo
realizava como vacilante discípulo em quem faltava ainda, verdadeiramente, o talento e
a alma sacerdotal. Houve fracassos. Em muitas ocasiões seus esforços eram
anulados. Tinha de acontecer, os recursos de que dispunham eram precários, alguns
inexistentes. Em certas situações, unicamente pelo saber de algumas leis naturais, o
monge chegava aos problemas, porém nem sempre às raízes ou às soluções. Não
obstante, mais do que o auxílio positivo e concreto contra os males do corpo, era a
presença de ambos que marcava e confortava aquela gente, principalmente a figura do
monge que se assumia gigantesca e sólida ao alcance de todos.

Roubard agora conseguia vislumbrar contornos, rostos e imagens enquanto


meditava. Vez por outra sonhava, via-se conversando e ouvindo.
59

Certa manhã o monge mandou-o visitar uma doente. Era moça bonita, inteligente,
embora inculta. Ela recuperava-se e Roubard lá voltou outras vezes. Uma paixão
repentina brotou em seus corações. Roubard passou a visitá-la às noites. Esta paixão
ardia-lhe e o dividia. Noites em que não a visitava, desejava lá estar. Ela era ardente e
cada vez mais apaixonada.

Roubard já não era o mesmo. Sua atenção e aplicação ao trabalho sofriam


sensíveis quedas. A custo conseguia interessar-se por um problema ou acompanhar a
evolução de uma tarefa. Com efeito, não via mais o ideal da mesma maneira como há
cinco anos! Finalmente contou ao monge. Disse-lhe de suas emoções e sentimentos:
fragmentava-se; sentia exaustão. Não podia mais continuar daquela maneira: casava-
se dando novo rumo a sua vida ou partia.
- Roubard, novamente o sofrimento pungente o impulsiona a decisões
transcendentais. Como antes, o ego debate-se, enlaça-se nos fios de sua própria
criação, querendo deles se libertar. Gritos ecoam na consciência, gritos de socorro ou
de clamor pela liberdade, qualquer que seja essa liberdade. Eu também sinto
inconstância. Há tempos instalou-se em mim a necessidade de partir. O pouco aqui
realizado pôde trazer conforto e esperança para muitos. O caminho espera-me, chama-
me para que eu prossiga. Se optar por partir iremos ambos pela manhã. Caso
contrário, parto eu, sozinho!

Roubard não se decidia; varava a noite acordado. Nesses momentos, como


outrora, estremecia, hesitava. Fora algo assim que o levara a abandonar toda a sua
boa e folgada vida, a ficar praticamente nu diante de um caminho. Irmão Antônio tinha
razão: o sofrimento costuma anteceder a uma grande decisão. Partir ou ficar, qual o
verdadeiro destino? Um gosto amargo descia-lhe pela garganta aferroando-se em seu
coração.

Cansado, finalmente adormeceu. Ao despertar, uma réstia de sol entrava pela


janela. Ele sentou-se na cama não vendo o monge. Sua bolsa e os demais pertences
não lá estavam. A cama feita tinha alguma coisa sobre ela. Roubard quase esquecera,
passara-se tanto tempo desde aquele dia! Uma dor aguda atravessou-lhe o coração e
lágrimas queimaram-lhe a face. Seu grande amigo partira, porém confiara-lhe seu
valioso tesouro: os três dobrões!

Havia uma enxada a um canto usada em suas hortas. Roubard lançou-lhe súbito
olhar e agarrou-a com decisão. Saiu do galpão e no pequeno pedaço de terra ao fundo,
afastou algumas madeiras apoiadas na parede começando a cavar profundamente.
Exaurido e ofegante, com mãos trêmulas, abriu a algibeira e derramou sobre a palma
direita uma moeda, apertando-a firmemente. A moeda aqueceu-se; ele fundia-se nela.
Não sabia o que pensar ou dizer, então decidiu jogá-la no buraco, fosse o que fosse!
Tapou tudo, bateu a terra, depois entrou correndo!

`A saída da cidade veio encontrá-lo. Irmão Antônio sentava-se à margem. Roubard


chegou arfante e descansou ao seu lado. O monge estendeu-lhe o cantil; Roubard
60

bebeu e o devolveu. O monge aguardava. Roubard permanecia calado. O monge


resolveu quebrar o silêncio:
- Continuamos nessa mesma direção, Roubard, ou terá alguma outra idéia? -
Roubard meneou negativamente a cabeça e o monge retomou - Vamo-nos, então,
nossa jornada deverá ser longa!

O sol vinha aquecer os seus corpos. Dentro em pouco a cidade estaria acordada e
todos os pobres se descobririam novamente órfãos. Um vento suavizara em brisa, a
brisa parecia abençoá-los. Já ganhavam o cenário das pradarias, das plantações. O
monge assobiava, Roubard caminhava taciturno como nos primeiros tempos.
Estranhamente repudiava a decisão. Não entendia que caminho seria esse, embora o
caminhasse. Inquiria-se sobre esta perseguida felicidade. Vira dramas, dores e
misérias. Lutara com denodo para amenizá-los. Aplicara-se; tornara-se discípulo de um
monge, ao mesmo tempo seu confidente. Tudo fizera ao seu alcance, mas o caminho
nada ainda acrescentara-lhe. Ao contrário, trouxera-lhe de recompensa outra profunda
dor; para esta não havia agora remédios ou lenitivos!

Como num filme lento a cores os cenários iam passando. Aqui e ali flores silvestres
se ofereciam em buquês naturais. Irradiavam vida, coloriam-se pelo sol! Adiante, eram
os altos e imponentes bambuzais. Tocavam-se lá em cima, produziam curiosas
formações de arcos. As nódoas solares e os borrões das sombras escorregavam sobre
seus corpos.

Irmão Antônio cessara o canto, não solfejava mais. Os passos largos e o corpo
forte traziam aos cenários maior vigor. O vento ao tocar-lhe os ruivos cabelos
encaracolados parecia querer refrescar-lhe a têmpera, abrandar uma ardência,
amansar sua vontade férrea. A natureza provocava-o; ele se impunha; ela o respeitava;
ele a transformava!

Ao contrário do monge, Roubard era presa fácil. Seu próprio mundo o encerrava.
Não escutava o clangor inaudível ou a sussurrante voz inimaginável. Não desafiava,
não detinha a percepção do intuitivo: vivia o óbvio, o tangível. Era de alma ainda
indômita, atordoada. A dor e o sofrimento o polarizavam. Mas por obra do destino ali
estava. Trazia nas mãos um tesouro e no ventre uma fogueira!

Adiante viram um pontilhão sobre um riacho. Atravessaram-no indo procurar um


local aprazível. Sentaram-se, molharam os pés, a cabeça, e comeram. Roubard falou,
contou ao monge que enterrara um dobrão no lado de fora do galpão. O monge sorriu e
agradeceu-lhe.

Um ônibus velho parou e o motorista os convidou. Prosseguiram viagem até certo


trecho e por mais dois dias viajaram a pé. Descansavam, pediam pousada e partiam
cedo. No terceiro dia aproximaram-se de outra cidade. Vinham notando que a região
era produtiva. A terra generosamente frutificava. Os cereais destacavam-se em maior
escala.
61

Uma onda de vozes, gritos e estampidos os fez de repente atentar. Súbito, um jipe
carregado de lavradores quase os atropela. Empunham foices, enxadas e armas de
fogo. Surge um caminhão com outros homens do campo. Eles gritam, cerram os
punhos, clamam por vingança. Um trem apita, vem chegando. Irmão Antônio e
Roubard, curiosos, aceleram os passos alcançando à cidade. A anarquia é geral. De
um lado posicionam-se os lavradores, de outro o exército. Lojas estão saqueadas, as
vitrines em pedaços. Há carros tombados, incendiados. Há sangue, gente morta,
bombas explodindo, fumaça, uma verdadeira guerra!

Chegam reforços do lado dos lavradores; mas muito mais do lado do exército, o
trem os traz. A luta prossegue encarniçada. Levantam barricadas, novas mortes
acontecem, os lavradores debandam; muitos são seguros pelos homens do exército,
espancados e jogados nos vagões. A maioria consegue fugir com tiros às costas;
alguns ainda caem atingidos. O monge e Roubard escondem-se à distância, temendo
ser confundidos.

Quando os ânimos serenam, o monge corre para socorrer os feridos. Roubard o


segue. Atendem lavradores e soldados. Um oficial os vê, inquiri-os; eles explicam que
estavam de passagem e ele os permite ajudar. Os feridos gravemente são removidos
para o hospital municipal; os mortos levados para serem enterrados. O trem parte
levando presos, gente ferida e soldados mortos. O exército passa a patrulhar ruas e
estradas, vem instalar-se pelas praças, montar tendas! O monge e Roubard
permanecem e tomam conhecimento de uma versão da história.

Os dias se passam e a situação se tranqüiliza. O monge e Roubard conseguem


pousada no fundo de um entreposto. Pilhas de batatas mal cheirosas fazem-lhes
companhia. As mulheres trazem comida, viram-nos ajudar aos feridos e contam-lhes a
outra versão da história. Ao final, ambos concluem que os homens do campo lutavam
contra a exploração de poderosos latifundiários e comerciantes atravessadores. As
autoridades policiais para não ver a cidade completamente saqueada e incendiada
diante da sanha dos revoltosos, solicitaram ajuda ao exército, mas era tarde e uma
grande luta fora deflagrada.

O monge e Roubard, de comum acordo, iniciam um trabalho junto aos


camponeses. Existe ainda revolta em muitos corações, e pobreza. Logo conseguem
angariar a confiança daquela gente. O monge pratica a vocação sacerdotal, reza
doentes, realiza curas, mas sem o mesmo labor diário de antes. Não deseja prender-se
unicamente a isso, resolve distribuir melhor suas atividades na semana. Roubard
procura fazer o melhor. O tempo vai passando, porém a situação entre as classes não
melhora. Roubard e o monge não se envolvem, simplesmente trabalham. Tornam-se
conhecidos por toda a região. Moram num casebre de um sítio; gente de todos os
lugares vem visitá-los. Ali eles estão bem e uma paz temporária os abençoa.

Porém, entre os homens essa paz não existe. Novos conflitos vêm à tona. Os
líderes dos lavradores revoltam-se, fazem comícios, ameaçam. Juntam-se a eles os
sem-terra. Torna-se iminente o perigo de invasões, de quebra-quebra, de queima de
plantações. Há negociações, desacordos, desafios. Lavradores de vilas distantes
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apóiam, também reivindicam, rebelam-se. Fazendeiros armam-se, contratam jagunços.


Chegam notícias de mortes; a situação torna-se cada dia mais tensa!

- Irmão Antônio - começou Roubard - passam-se sete anos desde que aqui
chegamos. Esta noite tive um sonho. Vi-me novamente retomando o caminho,
deixando para trás este lugar turbulento. Não estou certo sobre a profecia do sonho,
pois há tempos venho pensando em partir. Seria verdadeira a mensagem ou é
simplesmente manifestação de meu subconsciente?
- Não posso responder-lhe de maneira objetiva. Não tive visões a respeito. Mas,
como outrora, sinto-me inquieto, parecendo, tal como a você, que algo vem me chamar
e impelir-me para adiante. Se assim é partamos, não acha?

Roubard acordou no meio da noite. O monge dormia e ele assim o deixou. Ao abrir
a porta, o jorro argênteo esparramou-se em facho pelo chão. Não sabia porque aquela
insônia, aquela vontade de andar. Percorreu os arredores e notou que ao luar
conseguiria até encontrar uma moeda. Sim, era isso! Correu em busca de uma
escavadeira jogando-a sobre um ombro e saiu por um caminho. Andou quase um
quilometro sem rumo definido. Uma vontade repentina tomou-o e lançou-se
temerariamente mato adentro. Pensava pisar numa cobra venenosa, ver-se diante de
uma jaguatirica, um lobo do mato. Estava desarmado, tinha somente a escavadeira.
Todavia, continuou. Adiante cortou a estrada principal em diagonal e prosseguiu por
outro caminho.

O ar estava leve. Somente com muita suavidade a brisa vinha jogar com a copa de
uma árvore, com a folhagem de um arbusto ou balançar os compridos caules dos
trigais. Tão leve como o ar e a brisa macia, um calor se espalhava em seu peito e uma
sensação nervosa percorria-lhe todo o corpo. Tudo suave, estimulante, quase irreal. A
luz do astro celeste infundia-se em si; sentia penetrá-lo como num conto de magia. Isto
vinha criar-lhe um novo ânimo, impor uma coragem ante o desconhecido. Ele
caminhava, aspirava o cheiro do mato, ouvia o ruflar de asas de uma coruja, percebia o
quebrado e rasante vôo de um morcego. Mas nada realmente o assustava e
simplesmente prosseguia.

Adiante, formas escuras das árvores assomavam figuras fantasmagóricas, mas ele
não se permitia imaginá-las assim. Olhava-as com naturalidade, eram somente formas.
De repente parou. Chegara a um lugar descampado rodeado unicamente por touceiras
e pequenos arbustos. Sentiu vontade de cavar e cavou exatamente ali. Após um tempo
descansou. Levantou a camisa e desatou o nó da algibeira, retirando um dobrão!

A moeda ofuscava-se sob os raios lunares, mas não totalmente. Um místico


conúbio ali se realizava. Roubard, participante único e oficiante deste cerimonial,
apertou-a na palma da mão direita, repetindo o gesto da primeira vez, transferindo-lhe
calor e emoção. Seu pensamento foi encontrar o rosto redondo e plácido de irmão
Antônio, como se, invisivelmente, ele ali acompanhasse a todos os seus movimentos.
Decidido, arremessou a moeda para dentro do buraco murmurando palavras de bons
augúrios. Este supremo ato, para o qual todos os anteriores contribuíram em seqüência
incidental, precedeu a um desfecho e um frêmito tomou-o aliviando-o da emoção
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contida. Ele tapou o buraco, disfarçou-o com touceiras de capim arrancadas nas
imediações, e preparou-se para voltar.

Súbito, uma luz penetrante varou a noite. Um poderoso farol surgiu ao longe em
medidos ziguezagues. Ele aguardou e logo ouviu o distante ruído da máquina. Viajor
noturno o trem vinha chegando. Minutos depois, em reduzida marcha, passava a
poucos metros de onde ele se encontrava, apitando e se anunciando.

De novo se punham a caminho. Roubard, desta feita, não carregava o ingente


peso da dor: ia com naturalidade. Cabelos e a barba tinham encanecido e o rosto
vincara-se mais. Entretanto, algo começava a crescer em si. Invisível atmosfera
permeava-o, um ar de simpatia e atração configurava-lhe certa e natural altivez,
embora nada disso ele pudesse perceber.

Irmão Antônio, mais avançado em idade, curvava-se ligeiramente. Seus passos,


embora ainda largos e cadenciados como a marcar o compasso de um ritmo sempre
constante, arrastavam-se um pouco, mostrando diferença de outrora. Segurava um
cajado, rusticamente torneado por suas próprias mãos, no qual se apoiava com certa
coreografia de um velho e habilidoso ator. O semblante, o conteúdo de sua expressão,
entretanto, não envelhecia. Os ruivos cabelos, sim, e qual em Roubard vinham tomar
conhecimento dos anos: eram ainda visivelmente crespos, porém já mesclados de
branco.
- Sabe irmão Antônio - começou Roubard - nestes últimos sete anos muito me
aconteceu. Nos primeiros meses, preso ainda àquela paixão que me corroia, não
conseguia atinar com o verdadeiro valor das coisas. Tudo me era inútil, soando-me
como se tocasse a vida sem verdadeiramente senti-la. O amargor trazido em meu
coração provocava rudeza em meus gestos e tudo eu fazia desejando unicamente
gastar-me. Tomava as obrigações como quem toma uma anestesia a fim de poder
suportar uma incisão que lhe rasga a carne ou para a extração de um dente que o
tortura. Não sei bem a que altura de nossas obrigações com o povo desse lugar o
torpor foi passando sem que notasse esse efeito. Mas conseguia observar que, de
pouco em pouco, minhas atitudes mudavam. Por uma graça ou por um trabalho
realizado, uma estranha sensação viria mais tarde tomar-me, parecendo anunciar-me
uma nova época, novos tempos. Ficava a imaginar o que seria: um mensageiro do céu
a revelar-me anos de felicidade? Um despertar de poderes como os têm você?
Entrementes, algo mais se modificou em mim e certa trégua veio acontecer em
minhas inconstâncias. Entretanto, quando a paz emocional queria instalar-se em
definitivo, um grito proposital vinha feri-la e espantá-la. Ora uma criança doente
chorava diante de mim; uma mulher desesperada agarrava-se a meus braços, ou um
lavrador confessava-me seus dramas íntimos. Isto me comovia, fazendo-me por vezes
derramar lágrimas. Um sofrimento que não era meu sacudia-me não permitindo ao meu
próprio eu ausentar-se. Em outras palavras: o processo de autoconhecimento que em
mim se instalara parecia querer se resguardar, manifestar-se num futuro mais propício.
O momento era de atrelar-me ao mundo, de adotar atitudes solidárias. Não obstante, o
pensamento voltava a me pertencer e não evocava mais a triste recordação. Os ecos
da paixão, antes poderosos e retumbantes, se enfraqueciam e somente por uma
associação de idéias, em momentos de divagação, voltavam à tona. Contudo, não
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possuíam mais aquela antiga força insufladora de emoções; apagavam-se à dura


realidade sem nada conseguir me provocar.
Não encontrei a felicidade, caro monge, você sabe. Talvez a sensação descrita
seja uma mensagem profética, um aviso de que a felicidade estaria a caminho,
somente a caminho. O momento, quando e onde, me é totalmente desconhecido. Não
me valeram até o instante as longas meditações, as tentativas de inserir-me no todo
pela contemplação, conforme você ensinou-me e pratica, para ao menos estender a
mão em direção dessa irreal fatalidade, essa coroação de esforços místicos, o summus
stratus de toda a peregrinação humana. Se a mensagem é corretamente interpretada,
o caminho é único nessa mesma trilha, mas os sentidos são opostos: ela estará
realmente vindo e eu estarei indo. Sou infeliz ainda, irmão Antônio, mas não tanto!

Irmão Antônio pôs a mão no ombro daquele homem ao mesmo tempo amigo e
discípulo, e falou:
- Alegra-me ouvir isto, Roubard. Os anos para alguns se arrastam, para outros
voam como uma máquina cruzando o céu. Em você o peso começa a aliviar-se, não
em termos de corpo evidentemente, mas de alma terrena. Você não o sente mais como
um homem angustiado e martirizado - não agora. A balança alteia-se e abaixa-se, e o
fiel, você próprio, a controla e a ajusta. Existe ainda amargura em sua alma, porém
suportável; há também ilusões que ao devido tempo estarão descartadas. Tem razão,
Roubard, a felicidade é uma questão de tempo e ele preside à solução de nossos mais
intrincados enigmas. Ela vem vindo, chegará um dia, haverá de chegar!

Chegaram a um rio largo e navegável. Havia ali um barco a motor e um barqueiro.


Roubard olhou para o monge e ambos concordaram com a inequívoca sugestão. Ao
conversarem com o homem souberam existir rio abaixo uma vila, o ponto mais próximo
de atracação. Tomaria-lhes o dia inteiro se não acontecesse forte chuva ou qualquer
outro imprevisto. Como ambos possuíssem algum dinheiro, economizado de uma ou de
outra maneira, juntaram-no conseguindo pagar as passagens. O barco tinha uma
pequena cabine e um toldo encerado; ali poderiam descansar ou dormir com certa
proteção.

Ao cabo do tempo finalmente desembarcaram. Seus corpos doíam pelo


desconforto, mostrando marcas de mordidas de mosquitos. Pisaram a relva macia um
tanto úmida espreguiçando-se. Havia em meio ao cansaço e monotonia da viagem a
quase alegria de estar novamente em terra firme sem a necessidade de retornar ao
barco, como nas paradas realizadas durante o percurso. O barqueiro amarrou o barco
e veio acompanhá-los até a vila em busca de passageiros.

Era um lugar pobre sem ser miserável. O povo olhava-os com curiosidade. Ao
barqueiro eles já conheciam. Um rápido comentário percorreu todos os pontos de
conversa. Logo alguém suspeitou que fossem dois missionários. Estariam chegando
para edificar uma igreja. Algumas mulheres se apresentaram, beijando-lhes as mãos.
Roubard não resistia, já se acostumara. O monge explicava-lhes que embora fosse um
sacerdote não construiriam igreja alguma. Pretendiam ficar ali, talvez para auxiliá-los
noutras coisas. O povo não se convencia.
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Pararam diante de uma casa velha e abandonada. O barqueiro prosseguiu. O


monge perguntou àqueles que os vinham seguindo o que acontecera com as pessoas
que ali tinham morado. Eles explicaram-lhe que havia muitos anos esse lugar fora uma
escola, mas a professora morrera de pneumonia e ninguém mais ensinara. Somente
meia dúzia de pessoas por aqui sabia ler e escrever.
- Então podemos nos instalar aqui até decidirmos o que fazer?
- Sim, senhor, padre, mas vocês podem dormir nas nossas casas. Onde dormem
cinco, dormem sete! - falou-lhes um dos homens reunidos em torno dos visitantes. O
monge e Roubard, apesar dos convites, insistiram em ali permanecer.

Havia um funcionário da arrecadação municipal sendo ao mesmo tempo


conselheiro do povo. Tudo no lugar era pelo mínimo: as obras públicas e os impostos e
ele veio encontrá-los na abandonada escola, oferecendo-lhes melhores acomodações.
Tanto insistiu que o monge e Roubard acabaram por aceitar, indo para sua casa,
ficando no quarto de hóspedes.

Pela manhã, convidou-os a conhecer a vila e ao povo. Sendo homens da cidade


seriam motivo de honra para o lugar e os levou numa charrete puxada por dois cavalos.
Viram, então, de perto, como vivia aquela gente e as condições rudimentares de sua
agricultura, completamente obsoleta e quase caótica. Mas o pequeno comércio resistia
às necessidades, apesar do desinteresse por sua sorte. O povo era uma gente jovial,
amável e de boa natureza. A rudeza nos gestos e no falar devia-se quase inteiramente
a uma carência de educação: à seu modo eram pessoas hospitaleiras. No entanto, o
monge pressentia de longe que novos métodos, adequadas técnicas de agricultura, e
uma educação escolar, lhes fariam muito bem. Não seria tarefa fácil por que o espírito
humano não larga com facilidade seu atavismo, a idiossincrasia. Isso, longe de
desalentá-lo, estimulava-o. Além do mais, tinha Roubard, homem bafejado por aquilo a
que chamavam de sorte. Quem sabe, - continuava a imaginar, - com jeito conseguisse
desviar Roubard da pregação, deixando-a mais para o futuro, recolocando-o
justamente nesta sua vocação de atrair os bons eflúvios do progresso material? Com
sorte, acentuava ainda, coadunariam três trabalhos com maior vigor: a educação, a
agricultura e o comércio, anexando ao povo novas energias.

Conversou com Roubard propondo-lhe trabalharem desde logo em dois campos


diferentes. Roubard reconstruiria a escola, ensinando objetivamente tudo quanto
pudesse e o que de fato eles necessitassem. Ele, o monge, buscaria convencê-los a
colocar em prática os melhores métodos da plantação, cultivo e colheita que aprendera
na vivência com os homens do campo. Havendo bons resultados, forçariam o
progresso em todas as áreas e direções, tanto quanto possível.

Não houve qualquer resistência do funcionário da arrecadação diante das idéias,


pelo contrário, aplaudiu-as como se fossem suas! Uma campanha foi feita junto ao
povo, para cujo interesse o nome do funcionário aparecia sempre em primeiro lugar,
logo se iniciando a reconstrução da escola. O funcionário orientava adultos e crianças a
fim de que fossem aprender com o professor Roubard. Seria bom para a comunidade,
para a vila. Aproveitava para informar ao povo, que o monge se reuniria com
lavradores e donos de sítios a fim de expor-lhes suas idéias e planos para uma nova
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época na agricultura. Era pensamento seu - dizia ainda o funcionário referindo-se a si


próprio - que houvesse maior progresso da vila, pois ocupavam os últimos lugares na
arrecadação do município. Precisavam mudar aquela situação, ser notados no cenário
político, evoluir, seria bom para todos, para as futuras gerações.

Passado um tempo a escola reabriu começando a ser freqüentada por algumas


crianças e pouquíssimos adultos. Era somente uma turma. Em relação às idéias do
monge, não houvera qualquer interesse, nem reuniões. Para não ficar totalmente alheio
ele foi visitar os produtores e conversar com cada um deles.
-Os meios para trabalhar a terra continuarão os mesmos por enquanto, explicava-lhes.
Entretanto, plantaremos maiores quantidades, negociaremos. - Eles argumentavam
que as vilas vizinhas, ou cidades, eram distantes e de todas as formas produziam para
seus próprios sustentos. - Haverá coisas que não plantam ou a produção seja
insuficiente necessitando importar; ademais, há a estrada de ferro. Vocês venderão
para outras cidades, ganharão dinheiro, comprarão equipamentos modernos!

Tudo inútil havia realmente forte resistência a novos métodos e depois de


repetidas tentativas o monge finalmente desistiu. Não se saíra bem naquele papel. Isso
talvez coubesse melhor a Roubard!

Como alternativa, uniu-se a Roubard na escola, passando a assisti-lo. Mais tarde,


viriam os jovens. Estes se interessavam de fato e aprendiam tudo rápido. Uma vez por
ano os dois professores partiam para outras cidades em busca de material escolar e
didático. Traziam livros, cadernos e acessórios para o ensino procurando sempre
modernizar o que faziam.

Alguns anos consumiram nesse labor, mas não muitos. O cansaço ou alguma
coisa já conhecida de outrora viria novamente encontrá-los. Decididos a não se deter
por mais tempo, partiriam pela madrugada sem nada avisar. Haviam ganho dois burros
para se locomover pelos lugares distantes e agrestes da região, nas visitas que faziam
para educar ou auxiliar as pessoas, e resolveram levá-los. Desta feita, foi Roubard
quem julgou tomar a decisão e sem excitação ou especial motivação mística cavou no
fundo da escola, com ajuda de Irmão Antônio. Antes de jogar o último dobrão dentro do
buraco, realizou o pequeno ritual de aquecimento da moeda na palma da mão,
pronunciando palavras de bons augúrios.

Ao romper do dia já estavam longe. Iam pelo mato rio abaixo. Paravam muitas
vezes para descansar. Não agüentavam mais as agruras de uma jornada como aquela
com a mesma disposição de outrora. Estavam quase velhos, precisavam cuidar-se. Por
dois dias viajaram no lombo dos animais, dormindo sob árvores, armando barracas e
fazendo fogueiras. Conseguiam pescar e comer peixe frito. Ao final do terceiro dia
cruzaram uma ponte; adiante tomaram uma trilha desconhecida embrenhando-se mais
ainda mato adentro, deixando o rio para trás. Pouco andaram logo acampando.
Dormiram mais uma noite sob o cricrido de grilos, o coaxar de sapos, o piar de corujas.
Ao crepúsculo de um novo dia levantaram-se, mas não foram muito longe. A poucos
metros dali viram um casebre de pau-a-pique com telhas de barro cozido. Curiosos,
aproximaram-se e chamaram. Ninguém veio atendê-los, eles abriram a porta: estava
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abandonado! Percorreram o quintal notando a existência de um galinheiro vazio; mais


ao longe viram um pequeno curral de porcos, também vazio. Um córrego vinha cortar a
terra por entre capins e matos. Ao fundo, bem mais distante, dois pequenos morros
impunham-se como duas colinas gêmeas. Em derredor, se mostrava um extenso
campo de agricultura semi trabalhado. Havia por ali uma horta com hortaliças e
verduras; havia aipim, abóbora, pés de milho e frutas, todos carentes de cuidados pelo
abandono. Um cacarejar chamou-lhes a atenção e viram uma galinha vermelha sair do
mato, acompanhada de meia dúzia de pintos. Eles riram e sentaram-se. Ficariam por
ali o quanto desse, até que o dono voltasse. O dono não voltou, eles foram ficando.
Pretenderam modificar o panorama do lugar, dar melhor produtividade à terra
semeando-a, mas não tinham ferramentas nem sementes.

Um viajante passou fortuitamente pelo lugar: era um mestiço forte. Ao vê-los


aproximou-se. Perguntado acerca do dono do lugar não soube responder, era a
primeira vez que tomava esse caminho. Os dois não se identificaram, dizendo somente
terem chegado para morar e Roubard teve uma idéia. Disse estarem a enfrentar
imensas e inesperadas dificuldades e procurou barganhar. Ele traria-lhes uma lista de
coisas e em troca receberia seu burro de cargas. Os olhos do mestiço brilharam e
entrou para discutir a barganha.

Com as ferramentas que conseguiram e demais coisas que as acompanhou,


principalmente sementes, uma nova fase iniciou-se naquele solitário lugar. Aos poucos
iam modificando o antigo cenário. A horta crescia, o verde se esparramava. O campo
de agricultura fora limpo em grande área, no milharal brotavam belas e saudáveis
espigas. O galinheiro fora reconstruído, possuíam agora galinhas e ovos.

O mestiço voltou e o monge ofereceu-lhe o seu burro. De novo barganharam.


Equipavam-se uma vez mais de necessários utensílios, conseguindo estabelecer-se
com certo conforto. Por três vezes mais, ao longo de dois anos, o mestiço retornou
trazendo-lhes coisas, recebendo o dinheiro que possuíam. Vinha sempre remando e
atracava mais abaixo na grande volta do rio, há meia hora dali. Quando o dinheiro
acabou o mestiço não voltou mais.

Suas vidas decorriam agora com poucas nuanças. Quando não estavam a cuidar
das plantações, ou a fazer reparos na casa, meditavam ou descansavam. Pouco
conversavam, somente o essencial; tinham se tornado autênticos eremitas!

O tempo forjara-lhes definitivas e indeléveis marcas. Roubard não possuía mais


um único fio negro em sua barba e cabeleira. A testa sulcava-se profundamente. O
monge perdera os cabelos e ganhara rugas. Seus corpos dobravam-se ante o peso
dos anos. Com dificuldade se locomoviam. Muitas vezes adoeciam e procuravam
tratar-se com ervas e plantas. Por grande sorte, ou pela vida natural que levavam, não
tinham contraído nenhuma doença grave ou incurável. No entanto, já não podiam dizer-
se completamente esquecidos do mundo, pois outras pessoas que por ali passavam os
chamavam a fim de pedir água, algum alimento ou mesmo entravam para descansar. O
mestiço tinha espalhado que no casebre moravam dois homens bons que não
desejavam sair de lá para nada.
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Certa ocasião, um homem resolveu procurá-los. Tinha uma dor de cabeça


incurável. Soubera anos atrás na cidade por onde passara, que um padre milagroso
tinha morado ali perto num sitio de um lavrador. Fizera muitas curas e desaparecera de
repente com seu auxiliar sem deixar vestígios. Por instinto ou intuição suspeitava de
que seriam as mesmas pessoas de quem falara o mestiço.

Ao saber de ambos saiu a procurá-los, explicando ao monge o motivo de sua


vinda, implorando que o curasse. Irmão Antônio avaliou o seu problema dizendo-lhe
que um espírito doente o perseguia, estando colado a ele. O homem pediu-lhe para
afastá-lo de si. Irmão Antônio mandou-o aguardar saindo pelas redondezas, voltando
ao cabo de meia hora com ramos de plantas e uma braçada de diversos galhos verdes.
Ordenou-lhe que se despisse completamente e o homem sequer relutou.

Estando completamente nu, irmão Antônio sapecou-lhe as plantas por todo o


corpo. Conforme ia batendo grunhia, resmungava ou dava ordens ao espírito. Depois
lhe impôs as mãos à cabeça, rezou e fez o sinal da cruz diversas vezes. Finalmente,
com dedos unidos bateu-lhe três vezes no coração e três na testa, afirmando ter
arrancado o espírito obsessor que não mais o perturbaria. Mandou-lhe - ao chegar a
casa - que ateasse fogo nessa roupa que vestia e nas demais que possuísse, jogando
as cinzas no rio ou num cemitério e comprasse novas. O homem vestiu-se, beijou-lhe
as mãos e foi embora.

Duas vezes ao ano, por alguns anos, esse homem agradecido voltou, trazendo-
lhes roupas, cobertores, calçados, algum mantimento, sementes, às vezes até garrafas
de vinho ou licores. Irmão Antônio e Roubard agradeciam e aceitavam. Em ocasiões,
ele dormia na casa partindo ao amanhecer, não sem antes pedir ao monge uma reza
ou uma benção.

Certa tarde chuvosa e fria, enquanto sentavam próximo ao fogão a fim de aquecer-
se, o monge começou a recitar qualquer coisa. A voz saía-lhe rouca e pausada.
Fechara os olhos deixando as mãos pousadas sobre os joelhos. Falava com grande
dificuldade, não tanto pela idade, mas por uma razão até então não entendida por
Roubard. Passado instante, a voz foi se tornando vibrante. O rosto se transformava do
inexpressivo ao jovial; a recitação, ainda vibrante, era agora acompanhada de gestos.

Roubard, a princípio assustado, seguia com atenção a sucessão de movimentos do


companheiro. Os sons pronunciados pelo monge enchiam aquele pequeno espaço,
estremeciam o corpo de Roubard deixando-o algo atordoado. Iam do grave ao agudo,
cresciam ou decresciam, tornavam-se fortes ou mansos ou verdadeiramente mântricos!

Aos sons seguiu-se uma invocação em linguagem desconhecida. A cabeça erguia-


se, os braços abriam-se para cima. Depois uma sussurrante prece - suave como um
bálsamo ou bela poesia. A prece atraiu ao ambiente uma paz que a tudo permeava. A
cabeça do monge então pendeu para adiante. Roubard levantou-se indo ampará-lo.
69

Manhã seguinte, gemendo e com imensa dificuldade, Roubard arrastava o corpo


inerte de irmão Antônio. Envolveu-o num lençol branco e o depositou na cova aberta no
fundo do quintal. Fincou ali uma grande cruz, desejando que significasse quão grande
tinha sido aquele homem. Depois chorou muito e soluçou.

O inverno passou, também a primavera. Roubard, mais só do que nunca, pensava.


Não tinha mais disposição para se mexer ou trabalhar. Lembrou-se do monge. Haviam
se decidido ao mesmo tempo por um motivo mais forte para viver. Encontraram-se na
mesma encruzilhada diante de um único destino. O caminho trilhado prometia levá-los
ao encontro da felicidade, daquilo que se elegia em seus pensamentos como o cume, a
coisa mais importante, a única motivação que julgavam existir para continuar
respirando. Ao invés disto que haviam encontrado? Miséria, dor, trevas, sangue e
mortes. Em verdade, a felicidade jamais houvera se apresentado. Existiria de fato ou
seria quimérica ilusão construída pelo demônio, justamente para enganar homens sem
esperanças?

Julgara-se a certa altura da jornada menos infeliz. Adiante, viveria de emoções


insulsas jamais da realidade. Ao experimentar certa trégua em suas íntimas lutas,
atribuíra-a ao próprio trabalho que o mantinha ocupado, às experiências acumuladas.
Nunca a uma possível aproximação desta mística forma de um sonho louco! Ainda era
a mesma pessoa solitária e infeliz. Afastara-se definitivamente dos homens; tornara-se,
por fim, um morto-vivo. As visões que costumavam povoar seu mundo íntimo enquanto
meditava, provaram-se também ilusórias; eram amorfas, escorregadias, intangíveis,
nada mais do que isto. Pareciam rir de sua dor, de sua tolice em tentar. Louco e
demente eis o que sempre fora. Louco e demente fora também seu companheiro de
infortúnios, um monge curioso conhecedor de fórmulas mágicas, de cânticos e técnicas
construídas pela imaginação. As visões quixotescas, as intuições, os sonhos de atingir
o inexistente, os três dobrões! De onde os teria obtido se nada vindo dele possuía
realidade ou formas concretas?

Cansa-me este lugar agora que meu companheiro partiu. Vou-me embora. Adeus,
irmão Antônio, adeus, monge! Deixo-o só. Perdoe-me se não suporto mais olhar para
estas coisas. A todo instante vêm lembrar-me de minha vida, de nossas vidas. Sei que
não adianta fugir por que a natureza não deixará de enviar sua executora impiedosa a
fim de retomar aquilo que me deu emprestado para se divertir. Porém, assim mesmo
vou andando, talvez para apressar este encontro último!

E Roubard se foi. Vestia-se como um pobre que realmente era. Levava ao ombro a
bolsa de couro velha e encoscorada, a única coisa que lhe lembrava do amigo. Ao
chegar ao rio sentou-se à margem para novamente descansar. Queria também molhar
os pés, refrescar-se. As pernas doíam-lhe, respirava com dificuldade; o calor era forte,
consumia-lhe energia.

Súbito, o ruído ritmado e acelerado de um motor penetrou-lhe os ouvidos e viu um


barco subindo. O barco aproximava-se rapidamente, Roubard assustou-se. Quis correr,
teve medo, entretanto tropeçou e estirado. O condutor do barco, moço alto e forte,
percebendo os movimentos daquela pessoa, desviou seu curso para a margem
70

aproximando-se. Ao notar que se tratava de um pobre velho que o olhava assustado,


pulou do barco, rindo e debochando, ajudando-o a se levantar. Roubard, mediante
essa disposição, acalmou-se um pouco concatenando as palavras com dificuldade,
dizendo-lhe que pretendia ir rio acima. Depois de tanto tempo era-lhe tão difícil falar,
dialogar! O rapaz, penalizado, apoiou-o e o colocou sobre o barco o levando.

Pouco conversavam por que Roubard não sustentava os assuntos e mal


respondia. O barqueiro assobiava e cantava. Por todo este dia viajaram. Roubard
trouxera frutas e as comia. O rapaz ofereceu-lhe peixe frito e pão. Roubard pôde
alimentar-se melhor. Finalmente o barco veio encostando à margem. O rapaz atracou
informando-lhe que ficaria por ali. Adiante havia uma cidade; lá Roubard conseguiria
outro tipo de ajuda. Roubard, num impensado gesto, abraçou-o fortemente desejando-
lhe sorte.

Era tudo estonteante! Os carros correndo e buzinando pela estrada; casas,


comércio, rádios, músicas explosivas, restaurantes, lojas, aparelhos de televisão!
Roubard encolhia-se quando ouvia o ronco mais forte do motor de um veículo; levava
as mãos aos ouvidos. As pessoas olhavam-no, caçoavam dele, de seu modo de se
conduzir, das esquisitices.

Entrara diretamente no movimento da cidade. Via gente bem vestida, apressada.


Via mais carros, mais lojas, ouvia mais barulho por toda a parte! Meio atordoado
atravessou a rua; foi sentar-se num banco no meio da praça. Descansou e observou.
Há quanto tempo não via gente assim, cidade! Achava-se desconcertado, fora do ritmo
da vida. Tudo era tão diferente: as pessoas, as roupas, a maneira de falar, de ser! Não
entendia porque corriam tanto, da pressa! Passou as mãos nos cabelos brancos, alisou
a longa barba e virou-se para o lado a fim de acompanhar o voo solitário de um pombo.
Pelo menos esse não participava daquela confusão dos diabos, ou não contribuía. O
pombo insinuou-se entre árvores, ultrapassou-as e descreveu um semicírculo. Roubard
seguiu-o com olhos atentos: admirava seu desprendimento, a independência do voo!
Em lance calculado, o pombo imprimiu um novo ritmo ao bater das asas, ganhou
velocidade, subiu abruptamente e pousou no telhado de um largo edifício, o maior
daquela quadra.

O pombo aquietara-se. Roubard trazia os olhos para o frontispício do prédio


deslizando-os com lentidão, lendo o que ali estava escrito. Ao término estava tenso,
mal podendo acreditar. As palavras em peças de aço brilhoso anunciavam:
“ACADEMIA ANTÔNIO E ROUBARD”.

Roubard atravessou a rua sob buzinas, sendo quase atropelado. Estava


boquiaberto. Diante do prédio releu o título. Quantos anos teriam se passado, dez,
quinze, mais ainda? Perdera a conta, nem sabia em que ano estavam. A escola, a vila:
tudo se transformara! O incontido progresso chegara, alcançara-os. O dobrão fora o
responsável, mudara o rumo e a história do lugar. Irmão Antônio estava certo, mas o
que fizera seria bom?
71

Alguém o esbarrou, ele se desequilibrou caindo sentado. Ouviu palavras de zanga,


escárnio e impropérios. Mandaram-no procurar o albergue no final da rua. Roubard
estava cansado. A emoção somava-se ao desgaste natural da viagem, antinatural para
ele ao absorver a atmosfera super dinâmica e nervosa da cidade. Foi se arrastando
para o final da rua, encontrando o albergue. Entrou e sentou-se no chão.
]
Uma mão sacudiu-o, acordando-o. Dormira sem sentir, desfalecera de cansaço.
Havia movimento, fila; pisavam-lhe os pés, ele se levantou. Hora da comida! Entrou na
fila, recebeu um prato, foi servido indo sentar-se ante comprida mesa sobre um longo
banco ladeado por companheiros de sorte! Tendo comido, um homem chamou-o
fazendo-o entrar numa sala. Despiram-no. Ele não esboçou a menor reação por que
vira que lhe dariam novas roupas: era tudo tão estranho, seria verdadeiro?
Estenderam-lhe roupas usadas, mas limpas: ele as vestiu. As que vinha usando
estavam sujas, amontoaram-nas com outras. Procurou a velha bolsa. Estava a um
canto para ser também jogada fora. Ele a agarrou e saiu.

Retornou à praça; ficou ali a contemplar a obra. Fizeram-lhe companhia,


perturbaram-no, ele se levantou saindo sem destino. Um objeto rebrilhou no chão. Era
um porta-níqueis de metal dourado. Ele o pegou e o abriu, havia notas e moedas.
Recolheu-as colocando-as no bolso, largando o porta-níqueis no chão. Adiante, tomou
o primeiro ônibus que viu parado. O ônibus saiu da cidade ingressando numa estrada.
Roubard desejava reconhecer um lugar, uma casa, a memória não ajudava. Final da
viagem. Roubard, sem saber para onde ir aguardou. Outro ônibus parou e ele o tomou.
Foi levado a lugares mais afastados do centro da cidade. Adiante, viu uma estrada de
ferro e em seguida a estação. Excitou-se, tomaria o trem, viajaria para mais longe!

Roubard instalou-se no banco, relaxou e dormiu. O trem sacudia; o banco era duro
e desconfortável; ele dormia e acordava. Antes do sol se levantar, Roubard estava
atento à janela; observava o panorama que aos poucos se tornava mais nítido. Viu
campos de plantios e lavouras bem tratadas. Surpreendia-se com as dimensões de
cada reserva, com a quantidade de máquinas, algumas estranhas e desconhecidas
para ele! Caminhões enfileiravam-se pelas estradas transportando homens àquela hora
da manhã, dirigindo-se para várias direções e sentidos ou circulando em torno dos
campos. A julgar pelo que via os homens estariam sendo transportados para fazerem a
colheita.

Com efeito, adiante viu campos e colheitas. Meia hora depois o agente anunciava
a próxima cidade já entrando em seus limites. Algo lhe despertou os sentidos, mas não
identificava exatamente o que seria. Na medida em que o trem se interiorizava,
Roubard procurava atentar para o tamanho da cidade. Seria grande, muito maior do
que a anterior de onde vinha!

Dizeres de boas vindas indicavam o nome daquela cidade e ele finalmente


lembrou-se. Excitado levantou o vidro. Queria observar, ver o que suspeitava! À
margem da estrada de ferro viu muitos armazéns, silos e entrepostos. Constituíam
enorme área para a estocagem dos produtos agrícolas e manufaturados. Havia
movimento; entra e sai de caminhões; via homens com papéis e pranchetas à mão.
72

A parada foi rápida. Logo o trem partiu. Um passageiro veio sentar-se no banco da
frente. Roubard sem conter-se o tocou ao ombro perguntando-lhe acerca da cidade,
das relações entre lavradores e comerciantes. Surpreso, respondeu-lhe que há muitos
anos não tinham qualquer problema entre classes. Isto pertencera ao passado.
Pequenos e grandes proprietários agiam com normalidade: plantavam e colhiam; os
produtos eram trazidos para os armazéns das cooperativas. Se problemas existiam
quanto a preços, decorriam das oscilações do próprio mercado, seriam de outra ordem.
Os lavradores, além do mais, tinham sindicato para representá-los, levavam suas
exigências às esferas legalmente constituídas. Negociavam, faziam suas
reivindicações. Havia escolas, hospitais, o livre culto das religiões. Nada lhes faltava
nas relações capital, trabalho e sociedade; tinham todas as instituições necessárias à
vida moderna e as faziam funcionar da melhor maneira possível.

O dobrão, pensou Roubard, o segundo deles. Havia-o enterrado próximo dali, não
lhe restava a menor dúvida, ele açoitara o mal, atraíra o progresso e o impulsionara!

O trem prosseguiu. Para Roubard a viagem terminaria numa estação qualquer.


Cansado de tanto viajar sobre trilhos resolvera ficar. A fome incomodava, restava-lhe
ainda algum dinheiro e parou numa birosca de beira de estrada comendo pão, ovos,
lingüiça frita e tomando café. Comprou mais e acondicionou na bolsa, depois seguiu a
pé. Uma chuva veio pegá-lo no caminho, precisou andar depressa, mais do que
normalmente fazia. Por sorte encontrou uma ponte sobre pequeno rio, protegendo-se
debaixo dela. Como a chuva apertasse, ele ali permaneceu na companhia de uma
velha mendiga, com quem dividiu o alimento que trazia. A mulher soltava palavras sem
nexo, de vez em quando concatenava idéias e conversava com lógica. Mas depois de
gastar pequeno repertório coerente voltava a dizer tolices.

Num desses momentos de breve lucidez, perguntou-lhe de onde ele vinha. De


muito longe, de tal cidade, respondeu Roubard. E para onde você vai? Para uma
cidade onde estive há muitos anos. E qual é o nome desta cidade? Apesar do tempo,
esse registro não lhe desaparecera da memória porque era ponto base de seu destino,
de sua vida, como lhe foram as cidades que há bem pouco deixara para trás. Assim,
informou-lhe o nome. A velha mulher, com riso, afirmou-lhe ser ali mesmo. Mas esse
não é o nome da cidade, falou Roubard desanimado, desconfiando que ela começasse
de novo a fugir da razão. Foi mudado há muitos anos, eu me lembro sim. Foi pouco
depois que meu noivo me deixou, fugindo em companhia de um padre. Nós íamos nos
casar, mas ele fugiu, Roubard fugiu! Ela gargalhou e tossiu. Não fuja, Roubard, volte!
Gritou e gargalhou de novo!

Roubard levou um tremendo choque, trazendo a mão ao coração. O sangue subiu-


lhe ao rosto asfixiando-o por segundos e nada mais enxergou. Quando isto foi
passando, outra dor mais profunda arrancou-lhe um novo pedaço da alma. O
arrependimento fazia-o pagar por aquilo que deixara em aberto no livro do destino. Ele
se levantou e ajoelhou-se diante da mendiga:
- Perdão, eu não sabia o mal que lhe estava causando. Eu só pensava em mim!
73

Tomou-lhe as mãos e quis beijá-las, ela arrancou-as com violência e gargalhou até
cair de costas. Lágrimas inundaram-lhe os olhos, descendo pela barba. Ela silenciara
aquietando-se; unicamente os soluços de Roubard eram agora ouvidos.

Pela manhã a mendiga ainda dormia; ele deixou-lhe todo o alimento que restara.
Nada mais tinha para dar-lhe e orou fervorosamente, pedindo que sua alma finalmente
encontrasse a paz. Saiu cautelosamente temendo despertá-la.

As pernas mal obedeciam, o peito doía, ele arfava. Parava de trecho em trecho,
respirava com dificuldade e descansava. Súbita tonteira sobreveio-lhe; ele quis agarrar-
se, mas não tendo onde se apoiar caiu desfalecido.

Ao acordar estava sobre uma cama; via soro, balão de oxigênio, enfermeiras. Quis
levantar-se, não lhe permitiram. Que aconteceu? O senhor foi encontrado desmaiado à
beira da estrada por nossa ambulância. O médico colocou-o na maca trazendo-o para
o hospital. O senhor teve enfarte, precisa repousar. Não, eu tenho de prosseguir! Por
favor, fique quieto, senão vai piorar!

Seguraram-no, obrigaram-no aquietar-se, deram-lhe anestésico e ele dormiu. Ao


acordar, alimentou-se. Resignou-se por dois dias. Mas, à noite, enquanto na enfermaria
todos dormiam e pelo hospital a vigilância interna relaxava, ele arrancou os tubos de
soro e medicação, vestiu-se, pegou a bolsa e evadiu-se. Chegando à rua saiu a andar
pelo quarteirão. Mas se sentindo cansado buscou refúgio num horto, encontrando uma
gruta à beira de um lago nela permanecendo. Algo familiar veio novamente mexer com
sua memória, trazer-lhe recordações não definidas, agitar com o subconsciente. Como
o dia raiasse, ele voltou para as imediações do hospital. No caminho encontrou um
negro avançado em idade e perguntou-lhe acerca daquele hospital.

O homem contou-lhe que fora construído há muitos anos. Ele se lembrava de toda
a sua história porque era morador das redondezas. Dois missionários, um padre e um
homem comum, haviam chegado. O bairro era muito pobre, miserável mesmo, eles
tinham vindo para ajudar o povo. Construíram um galpão de madeira e à moda deles
transformaram-no em hospital e em muito mais coisas. Trabalharam com dedicação
pelo povo. Mas um dia se foram sem nada avisar abandonando o galpão.
Coincidentemente, no mesmo dia, veio um grupo de universitários, estagiários de
medicina e assistentes sociais que faziam um mapeamento das comunidades carentes,
segundo um programa de governo. De seus relatórios da miséria daquela gente, a
atenção do governo foi sendo despertada e como os jornais e a televisão passassem a
se interessar, uma comissão oficial de estudos foi enviada para definitivamente tratar
do assunto. Ao constatarem o abandono da população, fizeram planos para a
construção de um hospital, iniciando a obra no exato lugar do galpão. Demoliram
muitas casas transferindo moradores. Depois foi a vez de outras casas na periferia do
hospital, até que finalmente quase todo o bairro veio a ser demolido. O hospital
ampliou-se, outros prédios vieram fazer parte do bairro, segundo um projeto urbano
muito bem elaborado. Com o correr dos anos o bairro cresceu, o comércio expandiu-
se, mas o hospital permaneceu atendendo principalmente à população pobre.
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O homem se foi, Roubard sentado no meio fio sob uma árvore refletia acerca da
história. Uma leve tonteira veio cortar-lhe a reflexão; ele buscou inspirar com mais
vigor, seu corpo inteiro doía-lhe, os pés inchavam, as pernas tinham ficado
endurecidas. A tonteira foi passando, mas uma fraqueza veio instalar-se. Tinha fome,
talvez a fraqueza fosse devido a isto. Levantou a cabeça e viu dois pobres caminhando
em sua direção. Ao passarem adiante perguntou-lhes onde havia comida. No albergue
do hospital, estamos indo para lá.

Roubard os seguiu a certa distância, estava fraco demais para acompanhá-los. No


albergue comeu boa comida e saiu. Aquela cidade não lhe causava nenhum bem,
queria deixá-la o quanto antes. Estava muito cansado, as dores não passavam, de vez
em quando sobrevinham-lhe novas tonteiras. Um gosto estranho subia-lhe pela
garganta, quase vomitava. Como não tivesse dinheiro para viajar resolveu esmolar.
Sentado na esquina com uma lata à mão recebia migalhas de dinheiro. Durante três
dias assim ficou, comia no albergue do hospital e por lá também dormia. Juntara
somente pequena quantia, insuficiente ainda para adquirir uma passagem de ônibus. A
saúde abalava-se cada vez mais. No final deste mesmo dia, por engano ou por
desígnio, jogaram dentro da lata uma nota dobrada. Ele a retirou e alegrou-se. Com ela
poderia agora adquirir a passagem; sobraria troco para comprar comida!

No albergue deram-lhe roupas limpas, ele comeu ali pela última vez. Problemas
vieram mudar os seus planos e não pode comprar a passagem por que não tinha
documentos. Além de tudo, quem iria viajar ao lado de um mendigo? Ele saiu da
rodoviária desalentado e triste. Somente ali tinham exigido tal coisa, desprezavam-no.
Habituara-se às chacotas e ao escárnio, não ao desprezo. Estava, porém, decidido e
se pôs a caminho com todas as dores e dificuldades. Ao deixar os limites urbanos da
cidade e palmilhar a estrada, passavam-se três dias. Ele tossia muito, descansava a
todo o momento.

Roubard não agüentava mais. Ao longe, dentre confusas imagens, viu um grande
veículo imaginando que seria outro ônibus. Quem sabe aqui lhe permitiriam viajar nele?
Meteu a mão no bolso retirando o dinheiro que possuía mostrando-o. Era um
caminhão. O motorista ao vê-lo quase se lançando no meio da estrada, freiou o
veículo. Roubard pediu-lhe ajuda, iria até onde seu dinheiro pagasse. O motorista
puxou-o para dentro da cabine. O caminhão transportava carga coberta por um
encerado; por várias horas viajaram. Roubard, estafado, dormiu. O dinheiro que
segurava esparramou-se sobre o banco. Ao pararem num posto de gasolina, próximo a
um restaurante, o motorista acordou-o. Roubard, assustado, ajeitou-se. O motorista
disse-lhe que ia deixá-lo ali porque poderia comer e descansar. Roubard quis dar-lhe
todo o dinheiro, mas ele recusou e prosseguiu viagem.

Roubard piorava; as dores por vezes aumentavam, ele levava a mão ao peito.
Comprou um pão, tomou café e saiu a caminhar. Ingressou numa estrada qualquer e
afastou-se do movimento pesado da rodovia. A estrada veio cruzar um caminho no
qual ingressou. Via casas, quintais, pequenas plantações, arvoredo. A tarde estava
agradável, a temperatura amena. Mas Roubard não tinha condições de sentir
plenamente todas essas coisas. De vez em quando via pedaços mais profundos do
75

céu, via nuvens brancas. Queria ver mais, desejava respirar o ar campestre, rever
pastagens, sentir o bucolismo da vida pacata. Dores profundas e lancinantes vinham
interromper esses desejos, tolher os seus passos, trazer-lhe angústias. Ele
cambaleava, levava a mão ao peito, gemia. O gosto estranho na garganta lembrava-lhe
sangue; o rosto queimava, a cabeça latejava: assim mesmo ele prosseguia!

Uma imagem livre, sem conecção alguma, assomou dos labirintos de sua mente:
era irmão Antônio! Ele sorria-lhe. Idiota, pensava Roubard. Veja a que estou reduzido,
ao que cheguei. De seus gloriosos e místicos sonhos nada restaram. Os dobrões,
aqueles traidores talismãs. Trouxeram esperanças inúteis, coisas e mais coisas. Vejo
agora, sinto claramente. Por minhas mãos eles escorregaram infiltrando-se na terra, no
mundo dos homens, semeando o progresso e a edificação de monumentos.
Monumentos a quê? À cegueira humana, ao orgulho das classes. Veja, Roubard, aqui
há escolas, os homens aprenderão coisas, serão doutores. Ali, Roubard, guardarão
seus produtos, os alimentos; a fome e o desconforto não os alcançarão. Aqui, Roubard,
o hospital magnífico atende aos esquecidos, aos que não têm onde cair mortos!
Malditos dobrões, malditas moedas de ouro. Enganaram-me o tempo todo, enganaram-
nos seu monge cabeçudo! Parte de minha vida carreguei-os julgando-os portadores de
alguma profética verdade, da anunciação de uma nova vida. Mas eles eram somente
três moedas: a magia estava em minhas mãos. Eu sou o culpado!

Uma dor mais forte fê-lo cair de joelhos gritando. Ele suportou aquilo por quase um
minuto. A dor atenuou e ele se levantou. Na mente aquele rosto ainda sorrindo. Estou
indo monge, estou indo! Deu mais alguns passos e chegou ao final daquele caminho,
ali se deitando. Fechava os olhos, via confusas imagens, deformações. Abria-os e
essas coisas continuavam. Um peso fez com que os cerrasse em definitivo: a dor agora
o torturava mais e começou a ouvir muitas vozes. Quis prestar atenção, não as
entendia. Aos poucos vieram a ser abafadas: uma só voz passou a ecoar claramente:
era forte, enérgica, ele a conhecia muito bem:

- Nós vamos encontrá-la, Roubard, precisamos dela. Ela representa para nós a
coisa mais importante; mais do que o pão que comemos e a água que bebemos!
- Fala-me agora, monge, recorda-me de nosso início!

Um som agudo como a vocalização de um cântico, penetrou-lhe os ouvidos. Ouvia


agora palavras estranhas entoadas como música, como mágicos sons! Seu corpo
estremeceu e convulsionou num derradeiro frêmito; uma paz imensa e grandiosa que
nunca conhecera o tomou, um sorriso de felicidade veio rasgar seu rosto inerte e ele
assim permaneceu!
Naquele lugar onde dois caminhos vinham se juntar e prosseguir numa estrada,
acharam o seu corpo. Removeram-no dali e o enterraram como indigente. Tiveram a
idéia de fincar uma cruz de paus entre os dois caminhos, no exato lugar onde ele
terminara os seus dias. A cruz suportou muitos anos. Os braços abertos estariam a
espantar a quem desejasse um dia iniciar semelhante caminho sem estar preparado.
Pois para tal empreitada, era requerido o despojo de todas as ilusões e prazeres
mundanos e do próprio desejo da felicidade. Não fosse essa a firme disposição a
caminhada seria vã e não valeria a pena ser tentada!
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