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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA

ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS


ORIENTAÇÕES PARA A INCLUSÃO DA CRIANÇA
DE SEIS ANOS DE IDADE

2a edição
Brasília
2007

36082-Ensino Fundamental de 9 an1 1 14/08/07 19:03


Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica

Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental

Coordenação-Geral do Ensino Fundamental

Organização do documento
Jeanete Beauchamp
Sandra Denise Pagel
Aricélia Ribeiro do Nascimento

Grupo de trabalho responsável pela elaboração do documento:


Aricélia Ribeiro do Nascimento • Cecília Correia Lima Sobreira de Sampaio • Cleyde de Alencar Tormena
• Jeanete Beauchamp • Karina Risek Lopes • Luciana Soares Sargio • Maria Eneida Costa dos Santos
• Roberta de Oliveira • Roseana Pereira Mendes • Sandra Denise Pagel • Stela Maris Lagos Oliveira •
Telma Maria Moreira (in memoriam) • Vania Elichirigoity Barbosa • Vitória Líbia Barreto de Faria

Revisão de texto: Alfredina Nery e Luciana Soares Sargio

Apoio administrativo: Miriam Sampaio de Oliveira e Paulo Alves da Silva

Tiragem: 420 mil exemplares

Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental


Coordenação-Geral do Ensino Fundamental
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, sala 618
Brasília-DF. CEP: 70.047-900
Telefone: (61) 2104-8650
www.mec.gov.br
0800 616161

Apoio

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ensino fundamental de nove anos : orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade / organização Jeanete Beauchamp, Sandra
Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. –Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
135 p. : il.

1. Ampliação da escolarização. 2. Ensino fundamental. 3. Escolaridade obrigatória. 4. Duração da escolarização. I. Beauchamp,


Jeanete. II. Pagel, Sandra Denise. III. Nascimento, Aricélia Ribeiro do. IV. Brasil. Secretaria de Educação Básica.

CDU 37.046.12

Impresso no Brasil
Impressão e Acabamento: Leograf - Gráfica e Editora Ltda.

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SUMÁRIO
5 Apresentação

7 Introdução

13 A infância e sua singularidade


Sonia Kramer

25 A infância na escola e na vida: uma relação fundamental


Anelise Monteiro do Nascimento

33 O brincar como um modo de ser e estar no mundo


Ângela Meyer Borba

47 As diversas expressões e o desenvolvimento da criança na escola


Ângela Meyer Borba e Cecília Goulart

57 As crianças de seis anos e as áreas do conhecimento


Patrícia Corsino

69 Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica


Telma Ferraz Leal, Eliana Borges Correia de Albuquerque e Artur
Gomes de Morais

85 A organização do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento


como eixos orientadores
Cecília Goulart

97 Avaliação e aprendizagem na escola: a prática pedagógica


como eixo da reflexão
Telma Ferraz Leal, Eliana Borges Correia de Albuquerque e Artur
Gomes de Morais

109 Modalidades organizativas do trabalho pedagógico: uma possibilidade


Alfredina Nery

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APRESENTAÇÃO

E
ste governo, ao reafirmar a urgência da construção de uma escola inclusiva, cidadã, solidá-
ria e de qualidade social para todas as crianças, adolescentes e jovens brasileiros, assume,
cada vez mais, o compromisso com a implementação de políticas indutoras de transfor-
mações significativas na estrutura da escola, na reorganização dos tempos e dos espaços escolares,
nas formas de ensinar, aprender, avaliar, organizar e desenvolver o currículo, e trabalhar com o
conhecimento, respeitando as singularidades do desenvolvimento humano.
O Ministério da Educação vem envidando efetivos esforços na ampliação do ensino fundamental
para nove anos de duração, considerando a universalização do acesso a essa etapa de ensino de
oito anos de duração e, ainda, a necessidade de o Brasil aumentar a duração da escolaridade obri-
gatória. Essa relevância é constatada, também, ao se analisar a legislação educacional brasileira:
a Lei no 4.024/1961 estabeleceu quatro anos de escolaridade obrigatória; com o Acordo de Punta
Del Este e Santiago, de 1970, estendeu-se para seis anos o tempo do ensino obrigatório; a Lei
no 5.692/1971 determinou a extensão da obrigatoriedade para oito anos; já a Lei no 9.394/1996
sinalizou para um ensino obrigatório de nove anos de duração, a iniciar-se aos seis anos de idade,
o que, por sua vez, tornou-se meta da educação nacional pela Lei no 10.172/2001, que aprovou
o Plano Nacional de Educação (PNE). Finalmente, em 6 de fevereiro de 2006, a Lei no 11.274,
institui o ensino fundamental de nove anos de duração com a inclusão das crianças de seis anos
de idade.
Com a aprovação da Lei no 11.274/2006, ocorrerá a inclusão de um número maior de crianças no
sistema educacional brasileiro, especialmente aquelas pertencentes aos setores populares, uma vez
que as crianças de seis anos de idade das classes média e alta já se encontram, majoritariamente,
incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do ensino fundamental.
A importância dessa decisão política relaciona-se, também, ao fato de recentes pesquisas mostra-
rem que 81,7% das crianças de seis anos estão na escola, sendo que 38,9% freqüentam a educação
infantil, 13,6% pertencem às classes de alfabetização e 29,6% estão no ensino fundamental (IBGE,
Censo Demográfico 2000).
Outro fator importante para a inclusão das crianças de seis anos de idade na instituição escolar
deve-se aos resultados de estudos demonstrarem que, quando as crianças ingressam na instituição
escolar antes dos sete anos de idade, apresentam, em sua maioria, resultados superiores em relação
àquelas que ingressam somente aos sete anos. A exemplo desses estudos, podemos citar o Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2003. Tal sistema demonstra que crianças com 5

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histórico de experiência na pré-escola obtiveram melhores médias de proficiência em leitura: vinte
pontos a mais nos resultados dos testes de leitura.
Para que o ensino fundamental de nove anos seja assumido como direito público subjetivo e,
portanto, objeto de recenseamento e de chamada escolar pública (LDB 9.394/1996, Art. 5º), é
necessário, nesse momento de sua implantação, considerar a organização federativa e o regime
de colaboração entre os sistemas de ensino estaduais, municipais e do Distrito Federal. Deve-se
observar, também, o que estabelece a Resolução CNE/CEB no 3/2005, de 3 de agosto de 2005, que
fixa, como condição para a matrícula de crianças de seis anos de idade no ensino fundamental,
que essas, obrigatoriamente, tenham seis anos completos ou a completar no início do ano letivo
em curso.
Ressalte-se que o ingresso dessas crianças no ensino fundamental não pode constituir uma medida
meramente administrativa. É preciso atenção ao processo de desenvolvimento e aprendizagem
delas, o que implica conhecimento e respeito às suas características etárias, sociais, psicológicas
e cognitivas.
Nesse sentido, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB) e do
Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental (DPE), buscando fortalecer
um processo de debate com professores e gestores sobre a infância na educação básica, elaborou
este documento, cujos focos são o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças de seis anos
de idade ingressantes no ensino fundamental de nove anos, sem perder de vista a abrangência da
infância de seis a dez anos de idade nessa etapa de ensino.
Finalmente, informamos que este documento compõe-se de nove textos: A infância e sua singulari-
dade; A infância na escola e na vida: uma relação fundamental; O brincar como um modo de ser e estar
no mundo; As diversas expressões e o desenvolvimento da criança na escola; As crianças de seis anos e
as áreas do conhecimento; Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica; A organização do
trabalho pedagógico: alfabetização e letramento como eixos orientadores; Avaliação e aprendizagem na
escola: a prática pedagógica como eixo da reflexão; e Modalidades organizativas do trabalho pedagógico:
uma possibilidade.

Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica

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INTRODUÇÃO

A
implantação de uma política de ampliação do ensino fundamental de oito para nove
anos de duração exige tratamento político, administrativo e pedagógico, uma vez que o
objetivo de um maior número de anos no ensino obrigatório é assegurar a todas as crianças
um tempo mais longo de convívio escolar com maiores oportunidades de aprendizagem.

Ressalte-se que a aprendizagem não depende apenas do aumento do tempo de permanência na


escola, mas também do emprego mais eficaz desse tempo: a associação de ambos pode contribuir
significativamente para que os estudantes aprendam mais e de maneira mais prazerosa.

Para a legitimidade e a efetividade dessa política educacional, são necessárias ações formativas
da opinião pública, condições pedagógicas, administrativas, financeiras, materiais e de recursos
humanos, bem como acompanhamento e avaliação em todos os níveis da gestão educacional.

Nesse sentido, elaboramos este documento Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para
a inclusão da criança de seis anos de idade, uma vez que a implementação dessa política requer
orientações pedagógicas que respeitem as crianças como sujeitos da aprendizagem.

Em se tratando dos aspectos administrativos, vale esclarecer que a organização federativa garante que
cada sistema de ensino é competente e livre para construir, com a respectiva comunidade escolar, seu
plano de ampliação do ensino fundamental, como também é responsável por desenvolver estudos
com vistas à democratização do debate, o qual deve envolver todos os segmentos interessados em
assegurar o padrão de qualidade do processo de ensino-aprendizagem.

Faz-se necessário, ainda, que os sistemas de ensino garantam às crianças de seis anos de idade,
ingressantes no ensino fundamental, nove anos de estudo nessa etapa da educação básica. Durante
o período de transição entre as duas estruturas, os sistemas devem administrar uma proposta
curricular que assegure as aprendizagens necessárias ao prosseguimento, com sucesso, nos estudos
tanto às crianças de seis anos quanto às de sete anos de idade que estão ingressando no ensino
fundamental de nove anos, bem como àquelas ingressantes no, até então, ensino fundamental
de oito anos.
7

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A ampliação do ensino fundamental demanda, ainda, providências para o atendimento das
necessidades de recursos humanos – professores, gestores e demais profissionais de educação – para
lhes assegurar, entre outras condições, uma política de formação continuada em serviço, o direito
ao tempo para o planejamento da prática pedagógica, assim como melhorias em suas carreiras.
Além disso, os espaços educativos, os materiais didáticos, o mobiliário e os equipamentos precisam
ser repensados para atender às crianças com essa nova faixa etária no ensino fundamental, bem
como à infância que já estava nessa etapa de ensino com oito anos de duração.

Neste início do processo de ampliação do ensino fundamental, existem muitas perguntas dos
sistemas de ensino sobre o currículo para as classes das crianças de seis anos de idade, entre as quais
destacamos: o que trabalhar? Qual é o currículo? O currículo para essa faixa etária será o mesmo
do último ano da pré-escola? O conteúdo para essa criança será uma compilação dos conteúdos
da pré-escola com os da primeira série ou do primeiro ano do ensino fundamental de oito anos?

Antes de refletirmos sobre essas questões, é importante salientar que a mudança na estrutura do
ensino fundamental não deve se restringir a o que fazer exclusivamente nos primeiros anos: este
é o momento para repensar todo o ensino fundamental – tanto os cinco anos iniciais quanto os
quatro anos finais.

Quanto às perguntas anteriores, lembramos que os sistemas, neste momento, terão a oportunidade
de rever currículos, conteúdos e práticas pedagógicas não somente para o primeiro ano, mas para
todo o ensino fundamental. A criança de seis anos de idade que passa a fazer parte desse nível de
ensino não poderá ser vista como um sujeito a quem faltam conteúdos da educação infantil ou
um sujeito que será preparado, nesse primeiro ano, para os anos seguintes do ensino fundamental.
Reafirmamos que essa criança está no ensino obrigatório e, portanto, precisa ser atendida em todos
os objetivos legais e pedagógicos estabelecidos para essa etapa de ensino.

Faz-se necessário destacar, ainda, que a educação infantil não tem como propósito preparar crianças
para o ensino fundamental, essa etapa da educação básica possui objetivos próprios, os quais devem
ser alcançados a partir do respeito, do cuidado e da educação de crianças que se encontram em
um tempo singular da primeira infância. No que concerne ao ensino fundamental, as crianças
de seis anos, assim como as de sete a dez anos de idade, precisam de uma proposta curricular que
atenda a suas características, potencialidades e necessidades específicas.

Nesse sentido, não se trata de compilar conteúdos de duas etapas da educação básica, trata-se de
construirmos uma proposta pedagógica coerente com as especificidades da segunda infância e que
atenda, também, às necessidades de desenvolvimento da adolescência.

A ampliação do ensino fundamental para nove anos significa, também, uma possibilidade de
qualificação do ensino e da aprendizagem da alfabetização e do letramento, pois a criança terá
mais tempo para se apropriar desses conteúdos. No entanto, o ensino nesse primeiro ano ou
nesses dois primeiros anos não deverá se reduzir a essas aprendizagens. Por isso, neste documento
de orientações pedagógicas, reafirmamos a importância de um trabalho pedagógico que assegure
8 o estudo das diversas expressões e de todas as áreas do conhecimento, igualmente necessárias à
formação do estudante do ensino fundamental.

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Vale lembrar que todos nós – professores, gestores e demais profissionais de apoio à docência
– temos, neste momento, uma complexa e urgente tarefa: a elaboração de diretrizes curriculares
nacionais para o ensino fundamental de nove anos. Tendo em vista essa realidade, Ministério da
Educação (MEC) e Conselho Nacional de Educação (CNE) já estão trabalhando para atender a
essa nova exigência da educação básica.

Retomando as idéias iniciais deste texto, é preciso, ainda, que haja, de forma criteriosa, com base
em estudos, debates e entendimentos, a reorganização das propostas pedagógicas das secretarias de
educação e dos projetos pedagógicos das escolas, de modo que assegurem o pleno desenvolvimento
das crianças em seus aspectos físico, psicológico, intelectual, social e cognitivo, tendo em vista
alcançar os objetivos do ensino fundamental, sem restringir a aprendizagem das crianças de seis
anos de idade à exclusividade da alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental de nove
anos, mas sim ampliando as possibilidades de aprendizagem.

Desse modo, neste documento, procuramos apresentar algumas orientações pedagógicas e


possibilidades de trabalho, a partir da reflexão e do estudo de alguns aspectos indispensáveis para
subsidiar a prática pedagógica nos anos iniciais do ensino fundamental, com especial atenção às
crianças de seis anos de idade. A seguir, passamos a abordar alguns pontos específicos de cada um
dos textos que compõem este documento.

No primeiro texto, exploramos A infância e sua singularidade, tendo como eixo de discussão as
dimensões do desenvolvimento humano, a cultura e o conhecimento. Consideramos a infância
eixo primordial para a compreensão da nova proposta pedagógica necessária aos anos/séries
iniciais do ensino fundamental e, conseqüentemente, para a reestruturação qualitativa dessa
etapa de ensino.

Logo em seguida, refletimos sobre a experiência, vivenciada por crianças, de chegar à escola pela
primeira vez, o que, sem dúvida, é um acontecimento importante na vida do ser humano. Por
isso, elegemos o tema A infância na escola e na vida: uma relação fundamental para conversarmos
sobre o sentimento de milhares de crianças que adentram, cheias de expectativas, o universo
chamado escola. Precisamos cuidar para não as frustrar, pois, por muitos anos, freqüentarão esse
espaço institucional. Optamos por enfatizar a infância das crianças de seis a dez anos de idade,
partindo do pressuposto de que elas trazem muitas histórias, muitos saberes, jeitos singulares de ser
e estar no mundo, formas diversas de viver a infância. Estamos convencidos de que são crianças
constituídas de culturas diferentes. Então, como as receber sem as assustar com o rótulo de “alunos
do ensino fundamental”? De que maneira é possível acolhê-las como crianças que vivem a singular
experiência da infância? Como as encantar com outros saberes, considerando que algumas estão
diante de sua primeira experiência escolar e outras já trazem boas referências da educação infantil?
Essas são algumas das reflexões propostas nesse texto.

Partindo do princípio de que o brincar é da natureza de ser criança, não poderíamos deixar de
assegurar um espaço privilegiado para o diálogo sobre tal temática. Hoje, os profissionais da
docência estão diante de uma boa oportunidade de revisão da proposta pedagógica e do projeto
pedagógico da escola, pois chegaram, para compor essa trajetória de nove anos de ensino e 9

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aprendizagens, crianças de seis anos que, por sua vez, vão se encontrar com outras infâncias de
sete, oito, nove e dez anos de idade. Se assim entendermos, estaremos convencidos de que este
é o momento de recolocarmos no currículo dessa etapa da educação básica O brincar como um
modo de ser e estar no mundo; o brincar como uma das prioridades de estudo nos espaços de debates
pedagógicos, nos programas de formação continuada, nos tempos de planejamento; o brincar
como uma expressão legítima e única da infância; o lúdico como um dos princípios para a prática
pedagógica; a brincadeira nos tempos e espaços da escola e das salas de aula; a brincadeira como
possibilidade para conhecer mais as crianças e as infâncias que constituem os anos/séries iniciais
do ensino fundamental de nove anos.

Mais adiante, convidamos cada profissional de educação, responsável pelo desenvolvimento e pela
aprendizagem no ensino fundamental, para um debate sobre a importância das Diversas expressões
e o desenvolvimento da criança na escola por entendermos que, para favorecer a aprendizagem,
precisamos dialogar com o ser humano em todas as suas dimensões. Não com um sujeito que
entra livre na escola e, de maneira cruel, é limitado em suas potencialidades e reduzido em suas
possibilidades de expressão. Para tanto, a escola deve garantir tempos e espaços para o movimento, a
dança, a música, a arte, o teatro... Esse ser humano que carrega a leveza da infância ou a inquietude
da adolescência precisa vivenciar, sentir, perceber a essência de cada uma das expressões que o
tornam ainda mais humano. Portanto, é necessário rever o uso dessas expressões como pretexto
para disciplinar o corpo, como, por exemplo, a utilização da música exclusivamente para anunciar
a hora do lanche, da saída, de fazer silêncio, de aprender letras, de produzir textos, de ir ao
banheiro... Sem permitir que crianças e adolescentes possam sentir a música em suas diferentes
manifestações; sem dar a esses estudantes a possibilidade de se tornarem mais sensíveis aos sons
dos cantos dos pássaros, à leveza dos sons de uma flauta, felizes ou surpresos diante do acorde alegre
ou melancólico de um violão...

Ao apresentarmos, no quinto texto deste documento, a temática As crianças de seis anos e as áreas
do conhecimento, objetivamos discutir essas áreas e a relação delas entre si em uma perspectiva de
menor fragmentação dos saberes no cotidiano escolar. Estamos diante de uma tarefa complexa
que requer atitude de curiosidade científica e de reflexão, de investigação sobre o que sabemos
a respeito de cada um dos conteúdos que compõem essas áreas, de inquietude diante de fazeres
pedagógicos cristalizados. Neste texto, procuramos explorar, mesmo que de forma mínima, cada
uma dessas áreas, na perspectiva de dialogar com o(a) professor(a) sobre as inúmeras possibilidades
por elas apresentadas para o desenvolvimento curricular das crianças dos anos/séries inicias do
ensino fundamental.

Outro tema de extrema relevância nesse processo de ampliação da duração do ensino obrigatório
é a questão da alfabetização nos anos/séries iniciais, por isso procuramos incentivar um debate
sobre Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica. Assim, optamos por abordar alguns
aspectos que devem ser objeto de estudo dos professores: a importância da relação das crianças
com o mundo da escrita; a incoerência pedagógica da exclusividade da alfabetização nesse primeiro
ano/série do ensino fundamental em detrimento das demais áreas do conhecimento; a importância
do investimento na formação de leitores, na criação de bibliotecas e salas de leitura; e a relevância
do papel do professor como mediador de leitura. Este é um momento adequado, também, para
10 revermos nossas concepções e práticas de alfabetização. É urgente garantir que os estudantes

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tenham direito de aprender a ler e a escrever de maneira contextualizada, assim como é essencial
buscar assegurar a formação de estudantes que lêem, escrevem, interpretam, compreendem e fazem
uso social desses saberes e, por isso, têm maiores condições de atuar como cidadãos nos tempos e
espaços além da escola.

Organizar o trabalho pedagógico da escola e da sala de aula é tarefa individual e coletiva de


professores, coordenadores, orientadores, supervisores, equipes de apoio e diretores. Para tanto, é
fundamental que se sensibilizem com as especificidades, as potencialidades, os saberes, os limites,
as possibilidades das crianças e adolescentes diante do desafio de uma formação voltada para a
cidadania, a autonomia e a liberdade responsável de aprender e transformar a realidade de maneira
positiva. A forma como a escola percebe e concebe as necessidades e potencialidades de seus
estudantes reflete-se diretamente na organização do trabalho escolar. Por isso, vale ressaltar que,
como cada escola está inserida em uma realidade com características específicas, não há um único
modo de organizar as escolas e as salas de aula. Mas é necessário que tenhamos eixos norteadores
comuns. Portanto, procuramos, neste momento de ampliação do ensino fundamental para nove
anos, estar atentos para a necessidade de que aspectos estruturantes da escola precisam ser analisados
e reelaborados. Por exemplo: como o projeto pedagógico da escola assegura a flexibilização dos
tempos e dos espaços na lógica da diversidade, da pluralidade, da autonomia, da criatividade, dos
agrupamentos e reagrupamentos dos estudantes com vistas a uma efetiva aprendizagem em todas
as dimensões do currículo? Como a instituição escolar tem pensado a alfabetização e o letramento,
ao organizar e planejar tempos e espaços que assegurem aprendizagens para a formação humana?
Com o objetivo de aprofundar o estudo sobre essas e outras questões que permeiam esse tema,
elegemos A organização do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento como eixos orientadores um
assunto relevante na reestruturação do ensino fundamental.

Compreendemos essa ampliação, também, como uma oportunidade de rever concepções e práticas
de avaliação do ensino-aprendizagem, partindo do princípio de que precisamos, na educação
brasileira, de uma avaliação inclusiva. Para isso, tornam-se urgentes a revisão e a mudança de
determinadas concepções de avaliação que se traduzem e se perpetuam em práticas discriminatórias
e redutoras das possibilidades de aprender. Assim, no texto Avaliação e aprendizagem na escola: a
prática pedagógica como eixo da reflexão, tratamos da avaliação dando ênfase à escola que assegura
aprendizagem de qualidade a todos. Ressaltamos a importância de uma escola que, para avaliar,
lança mão da observação, do registro e da reflexão constantes do processo de ensino-aprendizagem
porque não se limita a resultados finais traduzidos em notas ou conceitos. Enfatizamos a escola que,
para avaliar, elabora outros procedimentos e instrumentos além da prova bimestral e do exercício
de verificação porque entende que o ser humano – seja ele criança, adolescente, jovem ou adulto
– é singular na forma, na “quantidade” do aprender e em demonstrar suas aprendizagens, por isso
precisa de diferentes oportunidades, procedimentos e instrumentos para explicitar seus saberes. É
nessa perspectiva de avaliação que reafirmamos um movimento que procura romper com o caráter
meramente classificatório e de verificação dos saberes, que busca constituir nos tempos e espaços
da escola e da sala de aula uma prática de avaliação ética e democrática.

Ao apresentarmos, no último texto, algumas Modalidades organizativas do trabalho pedagógico: uma


possibilidade, partimos do princípio de que se faz necessário apresentar, neste momento de ampliação
da duração do ensino fundamental, algumas propostas de trabalho cotidiano. Entretanto, nenhuma 11

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delas terá significado se o(a) professor(a) não se permitir assumir o seu legítimo lugar de mediador
do processo ensino-aprendizagem, se não as recriar. As atividades aqui apresentadas não foram
elaboradas como modelos, mas como subsídios ao planejamento da prática. Foram elaboradas,
apostando na infinita capacidade criativa do(a) professor(a) de reinventar o já pronto, o já posto.
Tais atividades têm como propósito encorajar o(a) professor(a) na elaboração de tantas outras
muito mais ricas e de resultados mais eficientes para a aprendizagem dos estudantes; e foram
propositadamente apresentadas para que o(a) professor(a) possa superá-las no estabelecimento
de novas referências pedagógicas e metodológicas com vistas a um ensino fundamental de
qualidade.

Finalmente, temos convicção de que a tarefa que nós – professores, gestores e demais profissionais da
educação – temos em mãos é da mais profunda complexidade. Sabemos, também, que as reflexões
e possibilidades apresentadas neste documento não bastam, não abrangem a diversidade da nossa
escola em suas necessidades curriculares, mas estamos certos de que tomamos a decisão ética de
assegurar a todas as crianças brasileiras de seis anos de idade o direito a uma educação pública
que, mais do que garantir acesso, tem o dever de assegurar a permanência e a aprendizagem com
qualidade.

Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental


Coordenação-Geral do Ensino Fundamental

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A INFÂNCIA E
SUA SINGULARIDADE1
Sonia Kramer2

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em


casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-
independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte
ele veio contando que caíra no pátio da escola um
pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito
queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta
vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi
proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as
borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá
Elpídia e queriam formar um tapete voador para
transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu
levá-lo ao médico. Após o exame, o
Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é
mesmo um caso de poesia.

Carlos Drummond de Andrade

E
ste texto tem o objetivo de refletir so anos de idade. Pretendemos, com este texto,
bre a infância e sua singularidade. Nele, discutir a infância, a escola e os desafios colo-
a infância é entendida, por um lado, cados hoje para a educação infantil e o ensino
como categoria social e como categoria da fundamental de nove anos.
história humana, englobando aspectos que Inicialmente, são apresentadas algumas idéias
afetam também o que temos chamado de sobre infância, história, sociedade e cultura
adolescência ou juventude. Por outro lado, a contemporânea. Em seguida, analisamos as
infância é entendida como período da história crianças e a chamada cultura infantil, tentan-
de cada um, que se estende, na nossa socieda- do refletir sobre o significado de atuarmos com
de, do nascimento até aproximadamente dez as crianças como sujeitos. Aqui, focalizamos

1
Texto escrito a partir de: KRAMER, S. Infância, cultura e educação. In: PAIVA, A. ; EVANGELISTA, A. PAULINO, G.;
VERSIANIN, Z. (Org.). No fim do século: a diversidade. O jogo do livro infantil e juvenil. Editora Autêntica/CEALE, 2000, p. 9-36;
e KRAMER, S. Direitos da criança e projeto político-pedagógico de educação infantil. In: BAZILIO, L.; KRAMER, S. Infância, educação
e direitos humanos. São Paulo: Ed.Cortez, 2003. p. 51-81.
2
Professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, onde coordena o Curso de Especialização em Educação
Infantil. 13

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também interações, tensões e contradições de infância na sociedade moderna,
entre crianças e adultos, um grande sabemos que as visões sobre a
desafio enfrentado atualmente. Por infância são construídas social
fim, abordamos o impacto dessas e historicamente. A inser-
reflexões, considerando os direi- Numa sociedade ção concreta das crianças e
tos das crianças, a educação in- desigual, as crianças seus papéis variam com as
fantil e o ensino fundamental. desempenham, nos formas de organização da
diversos contextos, sociedade. Assim, a idéia de
Infância, História e infância não existiu sempre
Cultura Contemporânea
papéis diferentes.
e da mesma maneira. Ao
Profissionais que trabalham na edu- contrário, a noção de infância
cação e no âmbito das políticas sociais surgiu com a sociedade capitalista,
voltadas à infância enfrentam imensos desa- urbano-industrial, na medida em que
fios: questões relativas à situação política e mudavam a inserção e o papel social da criança
econômica e à pobreza das nossas populações, na sua comunidade. Aprendemos com esses
questões de natureza urbana e social, proble- estudos: (i) a condição e a natureza histórica
mas específicos do campo educacional que, e social das crianças; (ii) a necessidade de
cada vez mais, assumem proporções graves pesquisas que aprofundem o conhecimento
e têm implicações sérias, exigindo respostas sobre as crianças em diferentes contextos; e
firmes e rápidas, nunca fáceis. Vivemos o (iii) a importância de atuar considerando-se
paradoxo de possuir um conhecimento teóri- essa diversidade.
co complexo sobre a infância e de ter muita As contribuições do sociólogo francês Bernard
dificuldade de lidar com populações infantis e
Charlot, nos anos 1970, também foram fun-
juvenis. Refletir sobre esses paradoxos e sobre
damentais e ajudaram a compreender o signi-
a infância, hoje, é condição para planejar o
ficado ideológico da criança e o valor social
trabalho na creche e na escola e para imple-
atribuído à infância: a distribuição desigual
mentar o currículo. Como as pessoas percebem
de poder entre adultos e crianças tem razões
as crianças? Qual é o papel social da infância
na sociedade atual? Que valor é atribuído à sociais e ideológicas, com conseqüências no
criança por pessoas de diferentes classes e gru- controle e na dominação de grupos. As idéias
pos sociais? Qual é o significado de ser criança de Charlot favorecem compreender a infância
nas diferentes culturas? Como trabalhar com de maneira histórica, ideológica e cultural: a
as crianças de maneira que sejam considerados dependência da criança em relação ao adulto,
seu contexto de origem, seu desenvolvimento diz o sociólogo, é fato social e não natural.
e o acesso aos conhecimentos, direito social de Também a antropologia favorece conhecer a
todos? Como assegurar que a educação cumpra diversidade das populações infantis, as práticas
seu papel social diante da heterogeneidade culturais entre crianças e com adultos, bem
das populações infantis e das contradições da como brincadeiras, atividades, músicas, his-
sociedade? tórias, valores, significados. E a busca de uma
psicologia baseada na história e na sociologia
Ao longo do século XX, cresceu o esforço pelo
– as teorias de Vygotsky e Wallon e seu debate
conhecimento da criança, em vários campos
com Piaget – revelam esse avanço e revolucio-
do conhecimento. Desde que o historiador
nam os estudos da infância.
francês Philippe Ariès publicou, nos anos 1970,
seu estudo sobre a história social da criança e Numa sociedade desigual, as crianças desem-
14 da família, analisando o surgimento da noção penham, nos diversos contextos, papéis

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diferentes. A idéia de infância moderna foi industrial condenavam-nas a não ser crianças:
universalizada com base em um padrão de meninos trabalhavam nas fábricas, nas minas
crianças das classes médias, a partir de cri- de carvão, nas ruas. Mas até hoje o projeto
térios de idade e de dependência do adulto, da modernidade não é real para a maioria das
característicos de sua inserção no interior populações infantis, em países como o Brasil,
dessas classes. No entanto, é preciso conside- onde não é assegurado às crianças o direito de
rar a diversidade de aspectos sociais, culturais brincar, de não trabalhar.
e políticos: no Brasil, as nações indígenas, Pode a criança deixar de ser inf-ans (o que não
suas línguas e seus costumes; a escravidão das fala) e adquirir voz num contexto que, por um
populações negras; a opressão e a pobreza de lado, infantiliza jovens e adultos e empurra
expressiva parte da população; o colonialis- para frente o momento da maturidade e, por
mo e o imperialismo que deixaram marcas outro, os adultiza, jogando para trás a curta eta-
diferenciadas no processo de socialização de pa da primeira infância? Crianças são sujeitos
crianças e adultos. sociais e históricos, marcadas, portanto, pelas
Recentemente, outras questões inquietam contradições das sociedades em que estão inse-
os que atuam na área: alguns pensadores de- ridas. A criança não se resume a ser alguém que
nunciam o desaparecimento da infância. Per- não é, mas que se tornará (adulto, no dia em
guntam “de que infância nós falamos?”, uma que deixar de ser criança). Reconhecemos o
vez que a violência contra as crianças e entre que é específico da infância: seu poder de ima-
elas se tornou constante. Imagens de pobreza ginação, a fantasia, a criação, a brincadeira en-
de crianças e trabalho infantil retratam uma tendida como experiência de cultura. Crianças
situação em que o reino encantado da infância são cidadãs, pessoas detentoras de direitos, que
teria chegado ao fim. Na era pós-industrial produzem cultura e são nela produzidas. Esse
não haveria mais lugar para a idéia de infân- modo de ver as crianças favorece entendê-las e
cia, uma das invenções mais humanitárias também ver o mundo a partir do seu ponto de
da modernidade; com a mídia e a Internet, o vista. A infância, mais que estágio, é categoria
acesso das crianças à informação adulta teria da história: existe uma história humana porque
terminado por expulsá-las do jardim da infân- o homem tem infância. As crianças brincam,
cia (Postman, 1999). Mas é a idéia de infância isso é o que as caracteriza. Construindo com
que entra em crise ou a crise é a do homem pedaços, refazendo a partir de resíduos ou so-
contemporâneo e de suas idéias? bras (Benjamin, 1987b), na brincadeira, elas
Estará a infância desaparecendo? A idéia de estabelecem novas relações e combinações. As
infância surgiu no contexto histórico e social crianças viram as coisas pelo avesso e, assim,
da modernidade, com a redução dos índices de revelam a possibilidade de criar. Uma cadeira
mortalidade infantil, graças ao avanço da ci- de cabeça para baixo se torna barco, foguete,
ência e a mudanças econômicas e sociais. Essa navio, trem, caminhão. Aprendemos, assim,
concepção, para Ariès, nasceu nas classes mé- com as crianças, que é possível mudar o rumo
dias e foi marcada por um duplo modo de ver estabelecido das coisas.
as crianças, pela contradição entre moralizar As crianças e a cultura infantil
(treinar, conduzir, controlar a criança) e pa-
paricar (achá-la engraçadinha, ingênua, pura, Procurando entender a infância e as crianças
querer mantê-la como criança). A miséria das na sociedade contemporânea, de modo que
populações infantis naquela época e o trabalho possamos compreender a delicada comple-
escravo e opressor desde o início da revolução xidade da infância e a dimensão criadora 15

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das ações infantis, encontramos na obra de lhar com crianças sem saber brincar, sem ter
Walter Benjamin interessantes contribui- nunca brincado?
ções.3 Muitos de seus textos expressam uma
visão peculiar da infância e da cultura infantil b) A criança é colecionadora, dá sentido
e oferecem importantes eixos que orientam ao mundo, produz história
outra maneira de ver as crianças. Para nossa Como um colecionador, a criança caça, procu-
discussão, propomos quatro eixos, baseados ra. As crianças, em sua tentativa de descobrir
em Benjamin: e conhecer o mundo, atuam sobre os objetos
a) A criança cria cultura, brinca e nisso e os libertam de sua obrigação de ser úteis. Na
reside sua singularidade ação infantil, vai se expressando, assim, uma
experiência cultural na qual elas atribuem
As crianças “fazem história a partir dos restos da significados diversos às coisas, fatos e artefa-
história”, o que as aproxima dos inúteis e dos tos. Como um colecionador, a criança busca,
marginalizados (Benjamin, 1984, p.14). Elas perde e encontra, separa os objetos de seus
reconstroem das ruínas; refazem dos pedaços. contextos, vai juntando figurinhas, chapinhas,
Interessadas em brinquedos e bonecas, atraídas ponteiras, pedaços de lápis, borrachas antigas,
por contos de fadas, mitos, lendas, querendo pedaços de brinquedos, lembranças, presentes,
aprender e criar, as crianças estão mais próxi- fotografias.
mas do artista, do colecionador e do mágico, A maioria de nós – adultos que estamos lendo
do que de pedagogos bem intencionados. A este texto – tem também caixas e gavetas em
cultura infantil é, pois, produção e criação. que verdadeiras coleções vão sendo formadas
As crianças produzem cultura e são produzidas dia a dia, como partes de uma trajetória. A his-
na cultura em que se inserem (em seu espaço) tória de cada um e cada uma de nós vai sendo
e que lhes é contemporânea (de seu tempo). reunida, e só pode ser contada por nós. Nós
A pergunta que cabe fazer é: quantos de nós, conhecemos os significados de cada uma dessas
trabalhando nas políticas públicas, nos pro- coisas que evocam situações vividas, conquis-
jetos educacionais e nas práticas cotidianas, tas ou perdas, pessoas, lugares, tempos esque-
garantimos espaço para esse tipo de ação e cidos. Observar a coleção aciona a memória
interação das crianças? Nossas creches, pré- e desvela a narrativa da história. Quantos de
escolas e escolas têm oferecido condições nós estamos dispostos a nos desfazer de nossas
para que as crianças produzam cultura? Nossas coleções, ou seja, de nossa história? “Arrumar
propostas curriculares garantem o tempo e o significaria aniquilar”, diz Benjamin. Quantos
espaço para criar? de nós estamos sempre dispostos a arrumar as
Nesse “refazer” reside o potencial da brinca- coleções infantis? Como garantir a ordem sem
deira, entendida como experiência de cultura. destruir a criação?
Não é por acaso que, em diversas línguas, a pa-
c) A criança subverte a ordem e estabe-
lavra “brincar” – spillen, to play, jouer – possui o
lece uma relação crítica com a tradição
sentido de dançar, praticar esporte, representar
em uma peça teatral, tocar um instrumento Olhar o mundo a partir do ponto de vista da
musical, brincar. Ao valorizar a brincadeira, criança pode revelar contradições e uma outra
Benjamin critica a pedagogização da infância maneira de ver a realidade. Nesse processo, o
e faz cada um de nós pensar: é possível traba- papel do cinema, da fotografia, da imagem, é
3
Benjamin viveu na Europa no início do século XX e foi leitor de Marx, Freud, Proust, Kafka e Baudelaire, além de interlocutor
16 crítico dos pensadores da Escola de Frankfurt, de Bertolt Brecht, Chagall, Gershon Scholem.

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importante para nos ajudar a constituir esse e a situação de pobreza da maioria de nossas
olhar infantil, sensível e crítico. Atuar com populações com políticas e práticas capazes
as crianças com esse olhar significa agir com de assegurar igualdade e justiça social. Isso
a própria condição humana, com a história implica garantir o direito a condições dignas
humana. Desvelando o real, subvertendo a de vida, à brincadeira, ao conhecimento, ao
aparente ordem natural das coisas, as crianças afeto e a interações saudáveis.
falam não só do seu mundo e de sua ótica de No contexto dessa reflexão, um paradoxo fica
crianças, mas também do mundo adulto, da evidenciado: as relações entre crianças e adul-
sociedade contemporânea. Imbuir-se desse tos atualmente e sua delicada complexidade.
olhar infantil crítico, que vira as coisas pelo Discutiremos esse ponto a seguir.
avesso, que desmonta brinquedos, desmancha
construções, dá volta à costura do mundo, Crianças e adultos:
é aprender com as crianças e não se deixar identidade, diversidade e
infantilizar. Conhecer a infância e as crian- autoridade em risco?
ças favorece que o humano continue sendo
A história humana tem sido marcada pela
sujeito crítico da história que ele produz (e
destruição e pela barbárie. Mas, além dos
que o produz). Sendo humano, esse processo é
problemas econômicos, políticos e sociais
marcado por contradições: podemos aprender
que temos enfrentado, os quais não são de
com as crianças a crítica, a brincadeira, a virar
solução rápida, os acontecimentos recentes e
as coisas do mundo pelo avesso. Ao mesmo
a guerra nos inquietam. Ao discutir infância,
tempo, precisamos considerar o contexto,
creche e escola, é importante tratar de temas
as condições concretas em que as crianças
como: direitos humanos; a violência praticada
estão inseridas e onde se dão suas práticas e
contra/por crianças e jovens e seu impacto nas
interações. Precisamos considerar os valores
atitudes dos adultos, em particular dos profes-
e princípios éticos que queremos transmitir
sores; as relações entre adultos e crianças e a
na ação educativa.
perda da autoridade como um dos problemas
d) A criança pertence a uma classe social sociais mais graves do cenário contemporâ-
neo. As relações estabelecidas com a infância
As crianças não formam uma comunidade expressam a crítica de uma cultura em que não
isolada; elas são parte do grupo e suas brin- nos reconhecemos. Reencontrar o sentido de
cadeiras expressam esse pertencimento. Elas solidariedade e restabelecer com as crianças
não são filhotes, mas sujeitos sociais; nascem e os jovens laços de caráter afetivo, ético,
no interior de uma classe, de uma etnia, de um social e político exigem a revisão do papel
grupo social. Os costumes, valores, hábitos, que tem sido desempenhado nas instituições
as práticas sociais, as experiências interferem educativas. Na modernidade, a narrativa
em suas ações e nos significados que atribuem entra em extinção porque a experiência vai
às pessoas, às coisas e às relações. No en- definhando, sendo reduzida a vivências, em
tanto, apesar do seu direito de brincar, para reação aos choques da vida cotidiana. Expe-
muitas o trabalho é imposto como meio de riência e narrativa ajudam a compreender
sobrevivência. Considerar, simultaneamente, processos culturais (também educacionais)
a singularidade da criança e as determinações e seus impasses. Mais do que isso, esses con-
sociais e econômicas que interferem na sua ceitos contribuem para práticas com crianças
condição, exige reconhecer a diversidade cul- e para estratégias de formação que abram o
tural e combater a desigualdade de condições espaço da narrativa, para que crianças, jovens 17

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e adultos possam falar do que vivem, viveram, nas classes médias, esse discurso reforça a idéia
assistiram, enfrentaram. de que a vontade da criança deve ser atendida
Muitas iniciativas têm tentado resgatar histó- a qualquer custo, especialmente para consu-
rias de grupos, povos, pessoas, classes sociais; mir; nas classes populares, crianças assumem
refazendo as trajetórias, velhos sentidos são responsabilidades muito além do que podem.
recuperados e as histórias ganham outras Em ambas, as crianças são expostas à mídia, à
configurações. Os conceitos de infância, violência e à exploração.
narrativa e experiência fornecem elementos Por outro lado, o reconhecimento do papel
básicos para pensar na delicada questão da social da criança tem levado muitos adultos a
autoridade. Para Benjamin (1987a), o que dá abdicarem de assumir seu papel. Parecem usar
autoridade é a experiência: a proximidade da a concepção de “infância como sujeito” como
morte dava ao moribundo maior autoridade, desculpa para não estabelecerem regras, não
derivada de sua maior experiência e de uma expressarem seu ponto de vista, não se posi-
mais clara possibilidade de narrar o vivido, cionarem. O lugar do adulto fica desocupado,
tornando-o infinito. A vivência, que é finita, como se para a criança ocupar um lugar, o adulto
se torna infinita (e ultrapassa a morte) graças precisasse desocupar o seu, o que revela uma
à linguagem: é no outro que a narrativa se distorção profunda do sentido da autoridade.
enraí-za, o que significa que a narrativa é E como valorizar e reconhecer a criança sem
fundamental para a constituição do sentido abandoná-la à própria sorte ou azar e sem
de coletividade, em que cada qual aprende a apenas normatizar? Pergunto: como atuar,
exercer o seu papel. A arte de narrar diminui considerando as condições, sem expor e sem
porque a experiência entra em extinção. Em largar as crianças? Como reconhecer os seus
conseqüência, reduz a autoridade constituída direitos e preservá-los? Na escola, parece que
e legitimada pela experiência. as crianças pedem para o professor intervir e
No que se refere aos desafios das relações ele não o faz, impondo em vez de dividir com
contemporâneas entre adultos e crianças, Sar- a criança em situações em que poderia fazê-lo,
mento alerta para os efeitos da “convergência e exigindo demais quando deveria poupá-la. A
de três mudanças centrais: a globalização social, questão da sociabilidade tornou-se tão frágil
a crise educacional e as mutações no mundo do que os adultos – professores, pais – não vêem
trabalho” (2001, p. 16). Trata-se de um pa- as possibilidades da criança e ora controlam,
radoxo duplo: os adultos permanecem cada regulam, conduzem, ora sequer intervêm, têm
vez mais tempo em casa graças à mudança medo de crianças e jovens, medo de estabelecer
nas formas de organização do trabalho e ao regras, de fazer acordos, de lidar com as crian-
desemprego crescente, enquanto as crianças ças no diálogo e na autoridade. O equilíbrio e
saem mais de casa, sobretudo por conta da sua o diálogo se perdem e esses adultos, ao abrirem
crescente permanência nas instituições. “Há, mão da sua autoria (de pais ou professores), ao
deste modo, como que uma troca de posições entre cederem seu lugar, só têm, como alternativa,
gerações. Este é um dos mais significativos efeitos o confronto ou o descaso.
gerados pelas mutações no mundo do trabalho” No centro dessa questão parece se manifestar
(Sarmento, 2001, p. 21). Além disso, a sociabi- uma indisponibilidade em relação às crianças,
lidade se transforma e as relações entre adultos uma das mais perversas mudanças de valores
e crianças tomam rumos desconcertantes. O dos adultos: perguntas ficam sem respostas;
discurso da criança como sujeito de direito e da transgressões ficam sem sanção; dúvidas ficam
infância como construção social é deturpado: sem esclarecimento; relatos ficam sem escuta.
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Diversos fatores interferem nas relações 2001) e corroídos no seu caráter (Idem,
entre crianças e adultos. Um aspec- 1999), os adultos têm encontrado
to se situa no centro da questão: soluções para lidar com identi-
a indisponibilidade do adulto Em contextos em dade, diversidade e para deli-
que parece impregnar a vida near padrões de autoridade,
que não há garan-
contemporânea, marcada ressignificando seu papel,
tia de direitos, na esfera social coletiva?
pelo individualismo e pela
mercantilização das relações. acentuam-se a desi- Ou identidade, diversidade
Com a perda da capacidade gualdade e a injus- e autoridade estão em risco,
do diálogo na modernidade, tiça social. agravando a desumanização,
as pessoas só conversam sobre o se é possível usar essa expressão
preço das coisas; sem o diálogo, sem diante da barbárie que o século XX
a narrativa, ficam impossibilitadas de logrou nos deixar como herança?
dar ou de ouvir um conselho que é, segundo
Benjamin (1987a), sempre a sugestão de como Direito das crianças,
educação infantil e ensino
poderia uma história continuar. Desocupan-
fundamental: desafios
do seu lugar, os adultos ora tratam a criança
como companheira em situações nas quais ela Aprendemos com Paulo Freire que educação e
não tem a menor condição de sê-lo, ora não pedagogia dizem respeito à formação cultural
assumem o papel de adultos em situações nas – o trabalho pedagógico precisa favorecer a
quais as crianças precisam aprender condutas, experiência com o conhecimento científico e
práticas e valores que só irão adquirir se forem com a cultura, entendida tanto na sua dimen-
iniciadas pelo adulto. As crianças são negli- são de produção nas relações sociais cotidianas
genciadas e vão ficando também perdidas e e como produção historicamente acumulada,
confusas. Muitos adultos parecem indiferentes presente na literatura, na música, na dança,
e não mais as iniciam. A indiferença ocupa o no teatro, no cinema, na produção artística,
lugar das diferenças. histórica e cultural que se encontra nos mu-
Em contextos em que não há garantia de direi- seus. Essa visão do pedagógico ajuda a pensar
tos, acentuam-se a desigualdade e a injustiça sobre a creche e a escola em suas dimensões
social e as crianças enfrentam situações além políticas, éticas e estéticas. A educação, uma
de seu nível de compreensão, convivem com prática social, inclui o conhecimento cientí-
problemas além do que seu conhecimento e fico, a arte e a vida cotidiana.
experiência permitem entender. Os adultos Educação infantil e ensino fundamental são
não sabem como responder ou agir diante freqüentemente separados. Porém, do ponto
de situações que não enfrentaram antes de vista da criança, não há fragmentação. Os
porque, embora adultos, não se constituíram adultos e as instituições é que muitas vezes
na experiência e são cobrados a responder opõem educação infantil e ensino funda-
perguntas para as quais nunca ninguém lhes mental, deixando de fora o que seria capaz
deu respostas. Além disso, o panorama social de articulá-los: a experiência com a cultura.
e a conjuntura política mais ampla de banali- Questões como alfabetizar ou não na educação
zação da violência, valorização da guerra e do infantil e como integrar educação infantil e
confronto, agressão, impunidade e corrupção ensino fundamental continuam atuais. Temos
geram perplexidade e o risco, que ela implica, crianças, sempre, na educação infantil e no
do imobilismo. Sem autoridade (Sennett, ensino fundamental. Entender que as pessoas
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são sujeitos da história e da cultura, além de acompanhado por adultos na educação infantil
serem por elas produzidas, e considerar os mi- e no ensino fundamental e que saibamos, em
lhões de estudantes brasileiros de 0 a 10 anos ambos, ver, entender e lidar com as crianças
como crianças e não só estudantes, implica ver como crianças e não apenas como estudantes.
o pedagógico na sua dimensão cultural, como A inclusão de crianças de seis anos no ensino
conhecimento, arte e vida, e não só como fundamental requer diálogo entre educação
algo instrucional, que visa a ensinar coisas. infantil e ensino fundamental, diálogo ins-
Essa reflexão vale para a educação infantil e titucional e pedagógico, dentro da escola e
o ensino fundamental. entre as escolas, com alternativas curriculares
Educação infantil e ensino fundamental são in- claras.
dissociáveis: ambos envolvem conhecimentos No Brasil, temos hoje importantes documen-
e afetos; saberes e valores; cuidados e atenção; tos legais: a Constituição de 1988, a primeira
seriedade e riso. O cuidado, a atenção, o aco- que reconhece a educação infantil como
lhimento estão presentes na educação infantil; direito das crianças de 0 a 6 anos de idade,
a alegria e a brincadeira também. E, com as dever de Estado e opção da família; o Estatuto
práticas realizadas, as crianças aprendem. Elas da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069,
gostam de aprender. Na educação infantil e de 1990), que afirma os direitos das crianças
no ensino fundamental, o objetivo é atuar e as protege; e a Lei de Diretrizes e Bases da
com liberdade para assegurar a apropriação Educação Nacional, de 1996, que reconhece
e a construção do conhecimento por todos. a educação infantil como primeira etapa da
Na educação infantil, o objetivo é garantir educação básica. Todos esses documentos
o acesso, de todos que assim o desejarem, a são conquistas dos movimentos sociais, mo-
vagas em creches e pré-escolas, assegurando o vimentos de creches, movimentos dos fóruns
direito da criança de brincar, criar, aprender. permanentes de educação infantil. E qual tem
Nos dois, temos grandes desafios: o de pensar a sido a ação desses movimentos e das políticas
creche, a pré-escola e a escola como instâncias públicas nos municípios? Como tem sido a
de formação cultural; o de ver as crianças como participação das creches, pré-escolas e escolas?
sujeitos de cultura e história, sujeitos sociais. As conquistas formais têm se tornado ações de
O ensino fundamental, no Brasil, passa agora fato? Que impacto tais conquistas promovem
a ter nove anos de duração e inclui as crianças no currículo? De que maneira a antecipação
de seis anos de idade, o que já é feito em vários da escolaridade interfere nos processos de
países e em alguns municípios brasileiros há inserção social e nos modos de subjetivação
muito tempo. Mas muitos professores ainda de crianças, jovens e adultos? As escolas têm
perguntam: o melhor é que elas estejam na levado em conta essas questões na concepção e
educação infantil ou no ensino fundamental? na construção dos seus currículos? Os sistemas
Defendemos aqui o ponto de vista de que os de ensino têm se equipado para fazer frente às
direitos sociais precisam ser assegurados e que mudanças?
o trabalho pedagógico precisa levar em conta O tempo da infância é o tempo
a singularidade das ações infantis e o direito à de aprender e ... de aprender com
brincadeira, à produção cultural tanto na edu- as crianças
cação infantil quanto no ensino fundamental.
É preciso garantir que as crianças sejam aten- As reflexões desenvolvidas aqui se voltam
didas nas suas necessidades (a de aprender e para uma perspectiva da educação contem-
a de brincar), que o trabalho seja planejado e porânea, na educação infantil ou no ensino
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36082-Ensino Fundamental de 9 an20 20 14/08/07 19:03


fundamental, na qual o outro é visto relações entre adultos e crianças, é
como um eu e na qual estão essencial para a intervenção e a
em pauta a solidariedade, o mudança.
respeito às diferenças e o Sem conhecer as Sem conhecer as inte-
combate à indiferença e
à desigualdade. Assumir
interações, não há como rações, não há como
educar crianças e jovens educar crianças e jovens
a defesa da escola – uma
numa perspectiva de numa perspectiva de
das instituições mais
humanização necessá-
estáveis num momento humanização necessária ria para subsidiar polí-
de absoluta instabili- para subsidiar políticas ticas públicas e práticas
dade – significa assu- públicas e práticas educativas solidárias
mir uma posição contra
o trabalho infantil. As
educativas solidárias. entre crianças, jovens e
adultos, com ações cole-
crianças têm o direito de
tivas e elos capazes de gerar
estar numa escola estruturada
de acordo com uma das muitas o sentido de pertencer a. Que
possibilidades de organização curricular papel têm desempenhado a creche, a
que favoreçam a sua inserção crítica na cul- pré-escola e a escola? Que princípios de iden-
tura. Elas têm direito a condições oferecidas tidade, valores éticos e padrões de autoridade
pelo Estado e pela sociedade que garantam ensinam às crianças? As práticas contribuem
o atendimento de suas necessidades básicas para humanizar as relações? Como? As práticas
em outras esferas da vida econômica e social, de educação infantil e ensino fundamental têm
favorecendo mais que uma escola digna, uma levado em conta diferenças étnicas, religiosas,
vida digna. regionais, experiências culturais, tradições e
costumes adquiridos pelas crianças e jovens
Como ensinar solidariedade e justiça social, e
respeitando as diferenças, contra a discrimi- no seu meio de origem e no seu cotidiano de
nação e a dominação? Estão nossas crianças relações? Têm favorecido às crianças experiên-
e jovens aprendendo a rir da dor do outro, a cias de cultura, com brinquedos, museus,
humilhar, a serem humilhadas, a não mais se cinema, teatro, com a literatura? E para os
sensibilizar? Perdemos o diálogo? Como recu- professores? Qual é a sua formação cultural?
perá-lo? As práticas, feitas com as crianças, E sua inserção cultural? Quais são suas expe-
humanizam-nas? Nosso maior desafio é obter riências de cultura? Que relações têm com a
entendimento e uma educação baseada no leitura e a escrita?
reconhecimento do outro e suas diferenças de
Esses e muitos outros desafios são atualmente
cultura, etnia, religião, gênero, classe social,
enfrentados por nós. Ao considerarmos os
idade e combater a desigualdade; viver uma
ética e implementar uma formação cultural paradoxos dos tempos em que vivemos e os
que assegure sua dimensão de experiência valores de solidariedade e generosidade que
crítica. É preciso compreender os processos re- queremos transmitir, num contexto de intenso
lativos aos modos de interação entre crianças e e visível individualismo, cinismo, pragmatis-
adultos em diferentes contextos sociais, culturais mo e conformismo, são necessárias condições
e institucionais. O diálogo com vários campos do concretas de trabalho com qualidade e ação
conhecimento contribui para agir com as crian- coletiva que viabilizem formas de enfrentar os
ças. Conhecer as ações e produções infantis, as desafios e mudar o futuro.
21

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––––––. La imaginación y el arte en la infancia (ensayo psicológico). México: Ed. Hispanicas, 1987.

23

36082-Ensino Fundamental de 9 an23 23 14/08/07 19:03


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A INFÂNCIA NA
ESCOLA E NA VIDA: UMA
RELAÇÃO FUNDAMENTAL
Anelise Monteiro do Nascimento1

Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo,
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé
Comprida história que não acaba mais
.......................................
Eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.2

Carlos Drummond de Andrade

E
ste texto tem como objetivo contribuir ditamos que são necessárias a participação de
para o debate sobre o ensino fundamen todos e a ampliação do debate no interior de
tal de nove anos, tendo como foco a cada escola. Nesse processo, a primeira per-
busca de possibilidades adequadas para rece- gunta que nos inquieta e abre a possibilidade
bermos as crianças de seis anos de idade nessa de discussão é: quem são as crianças hoje? Tal
etapa de ensino. Para tanto, faz-se necessário pergunta é fundamental, pois encaminha o de-
discutir sobre quem são essas crianças, quais bate para pensarmos tanto sobre as concepções
são as suas características e como essa fase da de infância que orientam as práticas escolares
vida tem sido compreendida dentro e fora do vigentes, quanto sobre as possibilidades de
ambiente escolar. mudança que este momento anuncia.
Para superarmos o desafio da implantação de Como vimos no primeiro texto deste caderno,
um ensino fundamental de nove anos, acre- os estudos de Philippe Ariès (1978) indicam

1
Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, professora de educação infantil.
2
Robinson Crusoé é o personagem central do livro As aventuras de Robinson Crusoé, escrito por Daniel Defoe. O livro conta a
história do naufrágio de um navio que levou seu único sobrevivente, Robinson, para uma ilha desconhecida onde ele, solitário,
reconstruiu a vida longe da civilização. Com suas próprias mãos, fez uma casa, teceu roupas, preparou seus alimentos e enfrentou
muitos desafios para sobreviver.
25

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que o conceito de infância muda historica- como a sociedade vê a infância. Ao lado,
mente em função de determinantes sociais, encontram-se duas reproduções de pinturas
culturais, políticos e econômicos. para refletirmos sobre como esse conceito é
A literatura, as artes, a poesia e o cinema têm socialmente construído.
sido grandes aliados na percepção do modo Pensemos sobre a maneira como as crianças
são retratadas pelos dois artistas. A criança
do segundo quadro é o próprio Renoir que
aparece como um bebê recebendo os cuidados
de sua mãe. Sua vestimenta é diferente da
dos adultos. Na imagem, que retrata um
episódio cotidiano do fim do século XIX,
há uma distinção entre criança e adulto. Já
observando o quadro de Velásquez, pintado
em meados do século XVII, podemos dizer
que essa distinção não é tão explícita. O
que marca a diferença entre os adultos e
as crianças nesse quadro? O que podemos
pensar sobre as concepções de infância
subjacentes às obras?
Agora, vamos ler o poema O Pirata, de Rosea-
na Muray:
O pirata
As meninas - Velásquez (1656) Roseana Muray
O menino brinca de pirata:
sua espada é de ouro
e sua roupa de prata.
Atravessa os sete mares
em busca do grande tesouro.
Seu navio tem setecentas velas de pano
e é o terror do oceano.
Mas o tempo passa e ele se cansa
de ser pirata.
E vira outra vez menino.
Quem é o menino do poema? Sem dúvida, o
contexto histórico-social em que foram produ-
zidos os quadros e a poesia é influenciado tanto
pelo conceito de infância vigente, quanto
pelo olhar do próprio artista. A poesia destaca
o papel que a imaginação desempenha na
vida da criança, as diversas possibilidades
de representação do real e os modos próprios
de estar no mundo e de interagir com ele.
26 A família do artista - Renoir (1896)
Nos quadros de Velásquez e Renoir, embora

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evidenciem diferentes maneiras de conceber sua ampliação. Se já caminhamos para a uni-
a infância, esse olhar matreiro e curioso da versalização desse atendimento, ainda temos
criança está ausente. muito a construir em direção a uma estrutura
social em que a escolaridade seja considerada
Refletindo sobre a pluralidade da prioridade na vida das crianças e jovens e es-
infância tes, por sua vez, sejam olhados pela escola nas
Ao contribuir para desmistificar um conceito suas especificidades para que a democratização
único de infância, chamando atenção para o efetivamente aconteça.
fato de que existem infâncias e não infância, Nesse sentido, podemos ver o ensino funda-
pelos aspectos sociais, culturais, políticos e mental de nove anos como mais uma estratégia
econômicos que envolvem essa fase da vida, de democratização e acesso à escola. A Lei no
os estudos de Ariès apontam a necessidade 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, assegura o
de se desconstruir padrões relativos à con- direito das crianças de seis anos à educação
cepção burguesa de infância. Esse olhar para formal, obrigando as famílias a matriculá-las e
a infância possibilita ver as crianças pelo que o Estado a oferecer o atendimento. Mas como
são no presente, sem se valer de estereótipos, assegurar a verdadeira efetivação desse direito?
idéias pré-concebidas ou de práticas educativas Como fazer para que essas crianças ingres-
que visam a moldá-las em função de visões santes nesse nível de ensino não engrossem
ideológicas e rígidas de desenvolvimento e futuras estatísticas negativas? Acreditamos
aprendizagem. que o diálogo proposto pelo Ministério da
No Brasil, as grandes desigualdades na Educação com a publicação deste documento e
distribuição de renda e de poder foram os debates que devem ser promovidos em cada
responsáveis por infâncias distintas para escola podem auxiliar nesse sentido. Pense-
classes sociais também distintas. As condi- mos: o que temos privilegiado no cotidiano
ções de vida das crianças fizeram com que o escolar? As vozes das crianças são ouvidas ou
significado social dado à infância não fosse silenciadas? Que temas estão presentes em
homogêneo. Del Priori (2000) afirma que a nossas salas de aula e quais são evitados? Esta-
história da criança brasileira não foi diferen- mos abertos a todos os interesses das crianças?
te da dos adultos, tendo sido feita à sua sombra. No poema Certas Palavras, Drummond busca
Sombra de uma sociedade que viveu quase o encontro com alguns sentimentos próprios
quatro séculos de escravidão, tendo a divisão da infância:
entre senhores e escravos como determinante Certas Palavras
da sua estrutura social. Carlos Drummond de Andrade
As crianças das classes mais abastadas, segun- Certas palavras não podem ser ditas
do a autora, eram educadas por preceptores Em qualquer lugar e hora qualquer.
particulares, não tendo freqüentado escolas Estritamente reservadas
até o início do século XX, e os filhos dos Para companheiros de confiança,
pobres, desde muito cedo, eram considerados Devem ser sacralmente pronunciadas
força produtiva, não tendo a educação como Em tom muito especial
prioridade. Lá onde a polícia dos adultos
Não adivinha nem alcança.
Vale lembrar que, no Brasil, ainda é muito
Entretanto são palavras simples
recente a busca pela democratização da esco-
Definem
larização obrigatória e presenciamos agora a
Partes do corpo, movimentos, atos 27

36082-Ensino Fundamental de 9 an27 27 14/08/07 19:03


Do viver que só os grandes se permitem professores, gestores, coordenadores e demais
E a nós é defendido por sentença profissionais que atuam na escola. Propomos
Dos séculos. esse exercício porque, ainda hoje, é comum
observar atitudes de adultos, dentro e fora da
E tudo é proibido. Então, falamos. escola, que desconsideram a criança como ator
Que espaços e tempos estamos criando para social e, assim, queremos chamar atenção para
que as crianças possam trazer para dentro da a necessidade de a escola trabalhar o sentido
escola as muitas questões e inquietudes que da infância em toda a sua dimensão.
envolvem esse período da vida? As peraltices Diante disso, qual é o papel da escola? Quais
infantis têm tido lugar na escola ou somos dimensões do conhecimento precisamos con-
somente a “polícia dos adultos”? siderar? Se acreditamos que o principal papel
A estética dos espaços e as relações que se da escola é o desenvolvimento integral da
estabelecem revelam o que pensamos sobre criança, devemos considerá-la: na dimensão
criança e educação. Essas concepções estão afetiva, ou seja, nas relações com o meio, com
presentes em todas as práticas existentes no as outras crianças e adultos com quem convive;
interior da escola, deixando mais ou menos na dimensão cognitiva, construindo conhe-
explícitos os valores e conceitos dessa insti- cimentos por meio de trocas com parceiros
tuição. Tomemos como exemplo os murais. mais e menos experientes e de contato com o
O que compõem os murais? Por quem são conhecimento historicamente construído pela
organizados? Costumam trazer as produções humanidade; na dimensão social, freqüentando
das crianças? São um espaço de exposição em não só a escola como também outros espaços
que podemos acompanhar o desenvolvimento de interação como praças, clubes, festas po-
delas? Os murais têm ocupado um espaço de pulares, espaços religiosos, cinemas e outras
comunicação dos saberes delas? instituições culturais; na dimensão psicológica,
atendendo suas necessidades básicas, como,
Refletir sobre a infância em sua pluralidade por exemplo, espaço para fala e escuta, cari-
dentro da escola é, também, pensar nos espa- nho, atenção, respeito aos seus direitos (Brasil.
ços que têm sido destinados para que a criança Ministério da Educação, 2005).
possa viver esse tempo de vida com todos os
direitos e deveres assegurados. Neste texto, Cabe destacar que assumir o desenvolvimento
embora tenhamos como objetivo o debate integral da criança e se comprometer com ele
sobre a entrada das crianças de seis anos no não é uma tarefa só dos professores, mas de
ensino fundamental, queremos pensar que a toda a comunidade escolar.
infância não se resume a essa faixa etária e Infância nos espaços e os
propor uma reflexão sobre que aspectos têm espaços da infância
orientado a nossa prática. Quem sabe a entrada
das crianças de seis anos não nos ajude a ver A entrada das crianças de seis anos no ensino
de forma diferente as crianças que já estavam fundamental se faz em um contexto favorável,
em nossas salas de aula? Está posto aí um novo pois nunca se falou tanto da infância como
desafio: utilizar essa ocasião para revisitar ve- se fala hoje. Os reflexos desse olhar podem
lhos conceitos e colocar em cheque algumas ser percebidos em vários contextos da socie-
convicções. Esse é um exercício que requer dade. No que diz respeito à escola, estamos
tanto uma tomada de consciência pessoal, em um momento de questionarmos nossas
quanto o fortalecimento da organização cole- concepções e nossas práticas escolares.
28 tiva de estudo acerca desse tema, envolvendo Esse questionamento é fundamental, pois,

36082-Ensino Fundamental de 9 an28 28 14/08/07 19:03


algumas vezes, durante o desenvolvimento do cujas vidas são pouco valorizadas. Crianças
trabalho pedagógico, podemos correr o risco vistas como ameaças na rua enquanto, na esco-
de desconsiderar que a infância está presente la, pouco se sabe sobre elas. Como são tratadas,
nos anos/séries iniciais do ensino fundamental vistas e olhadas essas crianças que estão nas
e não só na educação infantil. ruas, nas escolas, nos lares e que sofrem toda
sorte de opressão?
Nosso intuito é provocativo no sentido da
reflexão e da investigação sobre quem são essas Por outro lado, as crianças que vivem nas
crianças que estão chegando às nossas salas pequenas cidades também trazem desafios
de aula. De onde vêm? Já tiveram experiên- para este momento. Quem são essas crianças?
cias escolares anteriores? Que grupos sociais De quê e onde brincam? Quais são os seus
freqüentam? interesses? Como realizar um diálogo entre as
vivências da criança dentro e fora da escola?
Para considerar a infância em toda a sua dimen-
são, é preciso olhar não só para o cotidiano das Será que a busca por essas respostas pode fazer
instituições de ensino como também para os com que tornemos a sala de aula um espaço
outros espaços sociais em que as crianças estão mais dinâmico? Ou ainda, será que uma
inseridas. Em que atividades estão envolvidas pesquisa sobre a realidade sociocultural das
quando não estão na escola? Existem locais de crianças nesses diferentes contextos poderia
encontros com outras crianças? abrir espaço para um projeto que buscasse
Ampliando o olhar, percebemos que não só a esse diálogo?
escola e a legislação têm voltado sua atenção Ao nos propormos a receber a criança de seis
para a criança. A mídia também encontrou anos no ensino fundamental, tenha ela
na infância um grande público consu- freqüentado, ou não, a educação
midor. Hoje as crianças estão expos- infantil, devemos ter em mente
tas a comerciais que buscam criar que esse é o primeiro contato
desejos e incentivar o consumo. Como realizar com o seu percurso no en-
Nos grandes centros urbanos, um diálogo entre sino fundamental. Como
vemos o oferecimento de um as vivências da fazer para recebê-la? O mo-
novo “serviço” que são os “can- criança dentro e mento da entrada na escola
tinhos da criança”. São espaços fora da escola? é um momento delicado
reservados, por exemplo, em super- que merece toda a atenção.
mercados, que se propõem a oferecer Graciliano Ramos, na obra
um maior conforto para as famílias e um Infância, narra suas memórias de
atendimento lúdico para a criança. menino e conta como recebeu a notícia
de que entraria para a escola:
Além das diferentes apropriações dos espaços
sociais, outro ponto que nos inquieta diz res- A notícia veio de sopetão: iam meter-
peito às condições de vida das crianças e às de- me na escola. Já me haviam falado
sigualdades que separam alguns grupos sociais, nisso, em horas de zanga, mas nunca
numa sociedade marcadamente estratificada. me convencera de que realizassem a
Crianças que vivem em situação de pobreza, ameaça. A escola, segundo informações
que precisam, muitas vezes, trabalhar para se dignas de crédito, era um lugar para onde
sustentar, que sofrem a violência doméstica se enviavam as crianças rebeldes. Eu me
e do entorno social, que são amedrontadas e comportava direito: encolhido e morno,
amedrontam. Crianças destituídas de direitos, deslizava como sombra. As minhas 29

36082-Ensino Fundamental de 9 an29 29 14/08/07 19:03


brincadeiras eram silenciosas. E nem me damentais, há, também, um outro ponto que
afoitava a incomodar as pessoas grandes merece ser destacado: como são organizados
com perguntas. os tempos e espaços escolares?
O que podemos pensar a partir da leitura desse Pensar sobre a infância na escola e na sala de
trecho do livro? Que escola está presente no aula é um grande desafio para o ensino fun-
imaginário do menino? O que estamos fazen- damental que, ao longo de sua história, não
do para receber a criança que estava em uma tem considerado o corpo, o universo lúdico,
instituição de educação infantil e agora vem os jogos e as brincadeiras como prioridade. In-
para o ensino fundamental? Como está nossa felizmente, quando as crianças chegam a essa
organização para recebermos aquelas que nun- etapa de ensino, é comum ouvir a frase “Ago-
ca tiveram experiência escolar? Na perspectiva ra a brincadeira acabou!”. Nosso convite, e
de refletirmos sobre essas questões, vejamos o desafio, é aprender sobre e com as crianças
relato a seguir: por meio de suas diferentes linguagens. Nesse
sentido, a brincadeira se torna essencial, pois
É o primeiro dia do ano, a escola está nela estão presentes as múltiplas formas de
preparada para receber as crianças ver e interpretar o mundo. A brincadeira é
para mais um ano letivo. Para algumas responsável por muitas aprendizagens, como
crianças, essa já é uma rotina conhecida, se vê no texto O brincar como um modo de ser
mas para Luiza, que está indo para a e estar no mundo.
escola pela primeira vez, não. Em seus
Faz-se necessário definir caminhos pedagógi-
olhos é possível notar um misto de medo
cos nos tempos e espaços da escola e da sala
e desejo. Ela chega acompanhada por
de aula que favoreçam o encontro da cultura
sua mãe. (...)
infantil, valorizando as trocas entre todos os
A sineta toca e todos se dirigem para que ali estão, em que crianças possam recriar as
as salas. Mariza acompanha Luiza até relações da sociedade na qual estão inseridas,
o encontro com a professora. A escola possam expressar suas emoções e formas de
parece enorme aos olhos de Luiza. Ao ver e de significar o mundo, espaços e tempos
encontrar com a professora, essa lhe que favoreçam a construção da autonomia.
dirige a palavra, abaixa, ficando da sua Esse é um momento propício para tratar dos
altura e diz: aspectos que envolvem a escola e do conhe-
cimento que nela será produzido, tanto pelas
–– Oi Luiza, eu estava te esperando.
crianças, a partir do seu olhar curioso sobre a
Sabe, podemos fazer muitas coisas realidade que as cerca, quanto pela mediação
diferentes aqui na escola. Eu vou ser sua do adulto.
professora e nós vamos brincar muito
juntas (Brasil/Ministério da Educação, Infância na escola e na vida:
2005). alguns desafios
A professora se coloca como mediadora entre Como vimos, são muitas as questões relativas
as expectativas da menina e o novo mundo à entrada das crianças de seis anos no ensino
a ser descoberto. O nome, a proximidade, o fundamental. Não podemos fazer frente a esse
olhar, o toque, a proposta do brincar: elos que momento somente considerando os aspectos
abrem possibilidades de continuidade, elemen- legais que o envolvem. O direito efetivo à
tos essenciais para a inserção e o acolhimento. educação das crianças de seis anos não acon-
30 Se as ações de acolhimento e inserção são fun- tecerá somente com a promulgação da Lei nº

36082-Ensino Fundamental de 9 an30 30 14/08/07 19:03


11.274, dependerá, principalmente, das práticas samos estar preparados para criar espaços de
pedagógicas e de uma política da escola para trocas e aprendizagens significativas, onde as
a verdadeira acolhida dessa faixa etária na crianças possam, nesse primeiro ano, viver a
instituição. Que trabalho pedagógico será experiência de um ensino rico em afetividade
realizado com essas crianças? Os estudos sobre e descobertas.
aprendizagem e desenvolvimento realizados
Algumas crianças trazem na sua história a
por Piaget e Vygotsky podem contribuir nesse
experiência de uma pré-escola e agora terão a
sentido, assim como as pesquisas nas áreas
oportunidade de viver novas aprendizagens,
da sociologia da infância e da história. Esses,
que não devem se resumir a uma repetição da
como outros campos do saber, podem servir
pré-escola, nem na transferência dos conte-
de suporte para a elaboração de um plano de
trabalho com as crianças de seis anos. O de- údos e do trabalho pedagógico desenvolvido
senvolvimento dessas crianças só ocorrerá em na primeira série do ensino fundamental de
todas as dimensões se sua inserção na escola oito anos.
fizer parte de algo que vá além da criação de As crianças possuem modos próprios de
mais uma sala de aula e da disponibilidade de compreender e interagir com o mundo. A
vagas. É nesse sentido que somos convidados à nós, professores, cabe favorecer a criação de
reflexão sobre como a infância acontece den- um ambiente escolar onde a infância possa ser
tro e fora das escolas. Quem são as crianças e vivida em toda a sua plenitude, um espaço e
que educação pretendemos lhes oferecer? um tempo de encontro entre os seus próprios
Os desafios que envolvem esse momento espaços e tempos de ser criança dentro e fora
são muitos. Para algumas crianças, essa será da escola.
a primeira experiência escolar, então, preci-

31

36082-Ensino Fundamental de 9 an31 31 14/08/07 19:03


Referências Bibliográficas

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DEL PRIORI, M. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
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36082-Ensino Fundamental de 9 an32 32 14/08/07 19:03


O BRINCAR COMO UM MODO DE SER
E ESTAR NO MUNDO
Ângela Meyer Borba1

[...] as crianças são inclinadas de modo especial a


procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde
visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas.
Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo
que surge na construção, no trabalho de jardinagem
ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em
produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo
das coisas volta exatamente para elas, e para elas
unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos
adultos do que põem materiais de espécie muito
diferente, através daquilo que com eles aprontam no
brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si.

Walter Benjamim

P
ipa, esconde-esconde, pique, passaraio, tempos estão presentes nas vidas das crianças
bolinha de gude, bate-mãos, amareli hoje? Diferentes espaços geográficos e culturais
nha, queimada, cinco-marias, corda, implicam diferentes formas de brincar? Qual
pique-bandeira, polícia e ladrão, elástico, casinha, é o significado do brincar na vida e na cons-
castelos de areia, mãe e filha, princesas, super- tituição das subjetividades e identidades das
heróis...2 Brincadeiras que nos remetem à crianças? Por que à medida que avançam os
nossa própria infância e também nos levam a segmentos escolares se reduzem os espaços e
refletir sobre a criança contemporânea: de que tempos do brincar e as crianças vão deixando
as crianças brincam hoje? Como e com quem de ser crianças para serem alunos?
brincam? De que forma o mundo contemporâ- A experiência do brincar cruza diferentes
neo, marcado pela falta de espaço nas grandes tempos e lugares, passados, presentes e futuros,
cidades, pela pressa, pela influência da mídia, sendo marcada ao mesmo tempo pela conti-
pelo consumismo e pela violência, se reflete nuidade e pela mudança. A criança, pelo fato
nas brincadeiras? As brincadeiras de outros de se situar em um contexto histórico e social,

1
Doutora em Educação – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Em diferentes regiões, cidades e bairros, podemos encontrar diferentes denominações para as mesmas brincadeiras. Por exemplo,
amarelinha também pode ser macaca, academia, escada, sapata. 33

36082-Ensino Fundamental de 9 an33 33 14/08/07 19:03


ou seja, em um ambiente estruturado a partir crianças e adultos, autores de seus processos
de valores, significados, atividades e artefatos de constituição de conhecimentos, culturas
construídos e partilhados pelos sujeitos que e subjetividades. Tendo em vista esses eixos,
ali vivem, incorpora a experiência social e perguntamos: quais são as principais dimen-
cultural do brincar por meio das relações que sões constitutivas do brincar? Que relações
estabelece com os outros – adultos e crianças. tem o brincar com o desenvolvimento, a
Mas essa experiência não é simplesmente aprendizagem, a cultura e os conhecimentos?
reproduzida, e sim recriada a partir do que a Como podemos incorporar a brincadeira no
criança traz de novo, com o seu poder de ima- trabalho educativo, considerando-se todas as
ginar, criar, reinventar e produzir cultura. dimensões que a constituem?
A criança encarna, dessa forma, uma possibili- Infância, brincadeira,
dade de mudança e de renovação da experiên- desenvolvimento e aprendizagem
cia humana, que nós, adultos, muitas vezes
não somos capazes de perceber, pois, A brincadeira é uma palavra estrei-
ao olharmos para ela, queremos ver tamente associada à infância e às
a nossa própria infância espelha- crianças. Porém, ao menos nas
da ou o futuro adulto que ela se Que relações tem sociedades ocidentais, ainda
tornará. Reduzimos a criança a o brincar com o é considerada irrelevante ou
nós mesmos ou àquilo que pen- desenvolvimento, de pouco valor do ponto de
samos, esperamos ou desejamos a aprendizagem, vista da educação formal,
dela e para ela, vendo-a como assumindo freqüentemente
um ser incompleto e imaturo e,
a cultura e os a significação de oposição ao
ao mesmo tempo, eliminando-a conhecimentos? trabalho, tanto no contexto
da posição de o outro do adulto. da escola quanto no cotidiano
Mas como podemos compreender a familiar.
criança nas suas formas próprias de ser, pensar Nesse aspecto, a significativa produção teó-
e agir? Como vê-la como alguém que inquieta rica já acumulada afirmando a importância
o nosso olhar, desloca nossos saberes e nos da brincadeira na constituição dos processos
ajuda a enxergar o mundo e a nós mesmos? de desenvolvimento e de aprendizagem não
Como podemos ajudar a criança a se consti- foi capaz de modificar as idéias e práticas que
tuir como sujeito no mundo? De que forma a reduzem o brincar a uma atividade à parte,
compreensão sobre o significado do brincar paralela, de menor importância no contexto
na vida e na constituição dos sujeitos situa o da formação escolar da criança. Por outro
papel dos adultos e da escola na relação com lado, podemos identificar hoje um discurso
as crianças e os adolescentes? generalizado em torno da “importância do
Nesse contexto, convidamos os professores a brincar”, presente não apenas na mídia e na
refletirem conosco sobre essas questões tendo publicidade produzidas para a infância, como
como eixos alguns pontos: a singularidade também nos programas, propostas e práticas
da criança nas suas formas próprias de ser e educativas institucionais. Nesse contexto, é
de se relacionar com o mundo; a função hu- importante indagarmos: nossas práticas têm
manizadora do brincar e o papel do diálogo conseguido incorporar o brincar como di-
entre adultos e crianças; e a compreensão mensão cultural do processo de constituição
de que a escola não se constitui apenas de do conhecimento e da formação humana? Ou
alunos e professores, mas de sujeitos plenos, têm privilegiado o ensino das habilidades e dos
34

36082-Ensino Fundamental de 9 an34 34 14/08/07 19:03


conteúdos básicos das ciências, desprezando dessas considerações, será que podemos pensar
a formação cultural e a função humanizadora o brincar de forma mais positiva, não como
da escola? Na realidade, tanto a dimensão oposição ao trabalho, mas como uma ativida-
científica quanto a dimensão cultural e artís- de que se articula aos processos de aprender,
tica deveriam estar contempladas nas nossas se desenvolver e conhecer? Vejamos alguns
práticas junto às crianças, mas para isso é caminhos nessa direção.
preciso que as rotinas, as grades de horários, Os estudos da psicologia baseados em uma
a organização dos conteúdos e das atividades visão histórica e social dos processos de desen-
abram espaço para que possamos, junto com volvimento infantil apontam que o brincar é
as crianças, brincar e produzir cultura. Muitas um importante processo psicológico, fonte de
vezes nos sentimos aprisionados pelos horários desenvolvimento e aprendizagem. De acordo
e conteúdos rigidamente estabelecidos e não com Vygotsky (1987), um dos principais
encontramos espaço para a fruição, para o representantes dessa visão, o brincar é uma
fazer estético ou a brincadeira. Cabe então a atividade humana criadora, na qual imagina-
pergunta: é possível organizar nosso trabalho ção, fantasia e realidade interagem na produ-
e a escola de outra forma, de modo que esse ção de novas possibilidades de interpretação,
espaço seja garantido? Que critérios estão em de expressão e de ação pelas crianças, assim
jogo quando significamos nosso tempo como como de novas formas de construir relações
ganho ou perdido? Vale a pena refletir sobre sociais com outros sujeitos, crianças e adultos.
essas questões para vislumbrarmos formas de Tal concepção se afasta da visão predominante
transformar nossa vida nas escolas, organi- da brincadeira como atividade restrita à assi-
zando-as como espaços nos quais aprendemos milação de códigos e papéis sociais e culturais,
e vivemos a experiência de sermos sujeitos cuja função principal seria facilitar o processo
culturais e históricos! de socialização da criança e a sua integração
A brincadeira está entre as atividades fre- à sociedade. Ultrapassando essa idéia, o autor
qüentemente avaliadas por nós como tempo compreende que, se por um lado a criança de
perdido. Por que isso ocorre? Ora, essa visão fato reproduz e representa o mundo por meio
é fruto da idéia de que a brincadeira é uma das situações criadas nas atividades de brin-
atividade oposta ao trabalho, sendo por isso cadeiras, por outro lado tal reprodução não se
menos importante, uma vez que não se vin- faz passivamente, mas mediante um processo
cula ao mundo produtivo, não gera resultados. ativo de reinterpretação do mundo, que abre
E é essa concepção que provoca a diminuição lugar para a invenção e a produção de novos
dos espaços e tempos do brincar à medida que significados, saberes e práticas.
avançam as séries/anos do ensino fundamen- Ao observarmos as crianças e os adolescentes
tal. Seu lugar e seu tempo vão se restringindo de nossas escolas brincando, podemos co-
à “hora do recreio”, assumindo contornos cada nhecê-los melhor, ultrapassando os muros da
vez mais definidos e restritos em termos de escola, pois uma parte de seus mundos e expe-
horários, espaços e disciplina: não pode correr, riências revela-se nas ações e significados que
pular, jogar bola etc. Sua função fica reduzida constroem nas suas brincadeiras. Isso porque o
a proporcionar o relaxamento e a reposição processo do brincar referencia-se naquilo que
de energias para o trabalho, este sim sério os sujeitos conhecem e vivenciam. Com base
e importante. Mas a brincadeira também é em suas experiências, os sujeitos reelaboram e
séria! E no trabalho muitas vezes brincamos reinterpretam situações de sua vida cotidiana
e na brincadeira também trabalhamos! Diante e as referências de seus contextos sociocultu-
35

36082-Ensino Fundamental de 9 an35 35 14/08/07 19:03


rais, combinando e criando outras realidades. padeiro, quer esconder-se e torna-se ladrão
Quando as crianças pequenas brincam de ser ou guarda” (Benjamim, 1984). Vozes, gestos,
“outros” (pai, mãe, médico, monstro, fada, narrativas e cenários criados e articulados pelas
bruxa, ladrão, bêbado, polícia etc.), refletem crianças configuram a dimensão imaginária,
sobre suas relações com esses outros e tomam revelando o complexo processo criador en-
consciência de si e do mundo, estabelecendo volvido no brincar.
outras lógicas e fronteiras de significação da É importante ressaltar que a brincadeira não
vida. O brincar envolve, portanto, complexos é algo já dado na vida do ser humano, ou seja,
processos de articulação entre o já dado e o novo, aprende-se a brincar, desde cedo, nas relações
entre a experiência, a memória e a imaginação, que os sujeitos estabelecem com os outros e
entre a realidade e a fantasia. com a cultura. O brincar envolve múltiplas
A imaginação, constitutiva do brincar e do aprendizagens. Vamos tentar explicitar algu-
processo de humanização dos homens, é um mas delas.
importante processo psicológico, iniciado Um primeiro aspecto que podemos apon-
na infância, que permite aos sujei- tar é que o brincar não apenas
tos se desprenderem das restri- requer muitas aprendizagens,
ções impostas pelo contexto mas constitui um espaço de
imediato e transformá-lo.
A brincadeira não aprendizagem. Vygotsky
Combinada com uma ação (1987) afirma que na
performativa construída é algo já dado na
vida do ser humano, brincadeira “a criança
por gestos, movimentos, se comporta além do
vozes, formas de dizer, ou seja, aprende-se a comportamento habi-
roupas, cenários etc., a brincar, desde cedo, nas tual de sua idade, além
imaginação estabelece relações que os sujeitos de seu comportamento
o plano do brincar, do
estabelecem com os diário; no brinquedo, é
fazer de conta, da criação como se ela fosse maior
de uma realidade “fingida”. outros e com a cultura.
do que ela é na realida-
Vygotsky (1987) defende que de” (p.117). Isso porque a
nesse novo plano de pensamen- brincadeira, na sua visão, cria
to, ação, expressão e comunicação, uma zona de desenvolvimento pro-
novos significados são elaborados, novos ximal, permitindo que as ações da criança
papéis sociais e ações sobre o mundo são ultrapassem o desenvolvimento já alcançado
desenhados, e novas regras e relações entre (desenvolvimento real), impulsionando-a a
os objetos e os sujeitos, e desses entre si, são conquistar novas possibilidades de compre-
instituídas. ensão e de ação sobre o mundo.
É assim que cabos de vassoura tornam-se
O brincar supõe também o aprendizado de
cavalos e com eles as crianças cavalgam para
uma forma particular de relação com o mundo
outros tempos e lugares; pedaços de pano
marcada pelo distanciamento da realidade da
transformam-se em capas e vestimentas de
príncipes e princesas; pedrinhas em comi- vida comum, ainda que nela referenciada.
dinhas; cadeiras em trens; crianças em pais, As brincadeiras de imaginação/fantasia, por
professores, motoristas, monstros, super-heróis exemplo, exigem que seus participantes com-
etc. A “criança quer puxar uma coisa torna- preendam que o que está se fazendo não é o
se cavalo, quer brincar com areia e torna-se que aparenta ser. Quando o adulto imita uma
36

36082-Ensino Fundamental de 9 an36 36 14/08/07 19:03


bruxa para uma criança, esta sabe que ele não Mariana, sentada em cima do
é uma bruxa, por isso pode experimentar, com escorrega, olha para Isabela que está
segurança, a tensão e o medo, e solucioná-los embaixo:
fugindo ou prendendo a bruxa. Quando as Eu tô presa!
crianças brincam de luta, é preciso que elas Isabela: Dá a carteira de identidade pra
saibam que aqueles gestos e movimentos ele! Abaixa-se e pega uma folha.
corporais “fingem” uma luta, não causando Mariana pega um objeto pequeno
machucados uns nos outros. A brincadeira é de borracha que está em cima do
um espaço de “mentirinha”, no qual os sujeitos escorrega e mostra para João.
têm o controle da situação. Justamente essa Mariana: Eu tenho, eu tenho!
atitude não-literal permite que a brincadeira João, olhando o objeto: Pode sair!
seja desprovida das conseqüências que as Isabela dá a folha para João.
mesmas ações teriam na realidade imediata, João: É papel, é papel! E a deixa sair.
abrindo janelas para a incoerência, para a ul- Se analisarmos esse fragmento, que corres-
trapassagem de limites, para as transgressões, ponde a um tipo de brincadeira altamente
para novas experiências. apreciado por grande parte das crianças dessa
Vejamos uma situação3 observada em uma es- faixa etária, veremos quantos aspectos presen-
cola pública. Um grupo de meninos e meninas tes envolvem aprendizagens variadas – cada
de cinco e seis anos brinca de polícia e ladrão criança se comporta de acordo com seu papel
no parque da escola. Eles usam pás, gravetos e e com as idéias gerais que definem o universo
ancinhos como se fossem armas, empunhan- simbólico da brincadeira: os policiais perse-
do-os, emitindo sons e fingindo atirar: Pou, guem e prendem enquanto os ladrões fogem e
pou! Os papéis assumidos pelas crianças se salvam os companheiros; ambos usam armas,
dividem entre policiais e ladrões e à medida transformando o significado de objetos que en-
que vão entrando e participando da brinca- contram no parque; os gestos e as ações ajudam
deira, as crianças escolhem: Eu sou ladrão, eu a significar os objetos e a construir a narrativa
sou polícia! Muitas vezes é necessário negociar: da brincadeira. Estão em jogo também habi-
Não, alguém tem de ser polícia! Eu não vou ser! lidades de correr, pular, subir, expressar-se e
Eu sou, eu sou polícia! A brincadeira consiste comunicar-se, garantindo que todos compre-
na perseguição dos policiais aos ladrões. Esses endam que o que se faz ali é brincadeira e não
últimos precisam correr muito para fugir. a realidade da vida comum. Elementos novos,
“Policiais” e “ladrões” sobem e descem escor- como a carteira de identidade, são introduzidos
regas, trepa-trepa, entram e saem da casinha, na brincadeira e facilmente incorporados pelas
percorrendo toda a extensão do parque. As crianças, o que podemos observar pela coorde-
nação de suas ações. Para tanto, tais elementos
expressões, gestos, movimentos e falas revelam
se conectam com as referências socioculturais
grande envolvimento e excitação das crianças.
das crianças – o valor da carteira de identidade
Em alguns momentos, os policiais prendem
como documento principal de identificação
um dos ladrões, segurando-o, fingindo dar uma
do cidadão –, possibilitando a construção de
“gravata”, derrubando-o. Algum companheiro
um significado comum partilhado no espaço
aparece para salvá-lo. A um dado momento,
do brincar.
João diz que prendeu Mariana na parte de cima
do escorrega.
3
Situação retirada de: BORBA, A. M. Culturas da infância nos espaços-tempos do brincar: um estudo com crianças de 4-6 anos em
instituição pública de educação infantil. Tese (Doutorado). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2005. 37

36082-Ensino Fundamental de 9 an37 37 14/08/07 19:03


Se observarmos com cuidado diferentes e Sua apropriação se dá no próprio processo de
variadas situações de brincadeiras coleti- brincar. É brincando que aprendemos a brincar.
vas organizadas por crianças e adolescentes É interagindo com os outros, observando-os
– como queimado, pique-bandeira, corda, e participando das brincadeiras que vamos
elástico, jogos de imaginação (cenas do- nos apropriando tanto dos processos básicos
mésticas, personagens e enredos de novelas, constitutivos do brincar, como dos modos
contos de fadas, séries televisivas etc.), entre particulares de brincadeira, ou seja, das rotinas,
outras possibilidades –, poderemos aprender regras e universos simbólicos que caracterizam
muito sobre as crianças e os processos de de- e especificam os grupos sociais em que nos
senvolvimento e aprendizagem envolvidos inserimos.
em suas ações. Observemos com atenção suas Um outro aspecto a ressaltar é que os modos de
falas, expressões e gestos enquanto brincam. comunicar característicos da brincadeira cons-
Ficaremos impressionados com seu investi- tituem-se por novas regras e limites, diferentes
mento no planejamento e na organização da comunicação habitual. Esses limites são
das brincadeiras com a intenção de definir e definidos pelo compromisso com o reconheci-
de negociar papéis, turnos de participação, mento do brincar como uma outra realidade,
cenários, regras, ações, significados e conflitos. uma nova ordem, seja no contexto dos jogos
É também surpreendente, principalmente nos de faz-de-conta, em que as situações e regras
jogos de imaginação (faz-de-conta), a maneira são estabelecidas pelos significados imaginados
como as crianças agem, diferente da habitual, e criados nas interações entre as crianças, seja
modificando as vozes, a entonação de suas no plano dos jogos/brincadeiras com regras
falas, o vocabulário, os gestos, os modos de preexistentes (bola de gude, amarelinha, quei-
andar etc.! Para ser monstro, Pedro não pode mada etc.). É importante enfatizar que o modo
se comportar como Pedro, e terá de andar, de comunicar próprio do brincar não se refere a
expressar-se, falar e agir como monstro. No um pensamento ilógico, mas a um discurso or-
entanto, Pedro não deixa de ser Pedro, apenas ganizado com lógica e características próprias,
finge para convencer os parceiros de que é um o qual permite que as crianças transponham
monstro “de men-tirinha”. Parece que estamos espaços e tempos e transitem entre os planos
diante de atores de teatro, compromissados da imaginação e da fantasia, explorando suas
com a verdade daquelas ações representadas! contradições e possibilidades.
Quantos conhecimentos estão envolvidos
Assim, o plano informal das brincadeiras
nessas ações!
possibilita a construção e a ampliação de
Essas observações levam-nos a perceber que a competências e conhecimentos nos planos
brincadeira requer o aprendizado de uma forma da cognição e das interações sociais, o que
específica de comunicação que estabelece e certamente tem conseqüências na aquisição
controla esse universo simbólico e o espaço in- de conhecimentos no plano da aprendizagem
terativo em que novos significados estão sendo formal. A partir das considerações feitas até
partilhados. Dito de outra forma, a apropria- aqui, vale a pena refletir sobre as relações entre
ção dessa forma de comunicação é condição aquilo que o brincar possibilita – tais como
para a construção das situações imaginadas aprender a olhar as coisas de outras maneiras
(falas/diálogos dos personagens, narrativas das atribuindo-lhes novos significados, a estabe-
ações e acontecimentos), bem como para a lecer novas relações entre os objetos físicos e
organização e o controle da brincadeira pelas sociais, a coordenar as ações individuais com
crianças. Mas de que maneira se constrói e se as dos parceiros, a argumentar e a negociar, a
38 organiza esse modo de comunicar?

36082-Ensino Fundamental de 9 an38 38 14/08/07 19:03


organizar novas realidades a partir de planos pelos sujeitos nos contextos históricos e sociais
imaginados, a regular as ações individuais em que se inserem. Representa, dessa forma,
e coletivas a partir de idéias e regras um acervo comum sobre o qual os
de universos simbólicos – e o sujeitos desenvolvem atividades
processo de constituição de conjuntas. Por outro lado, o
conhecimentos pelas crian- Os processos de brincar é um dos pilares da
ças e pelos adolescentes. Os desenvolvimento constituição de culturas
processos de desenvolvi- e de aprendizagem da infância, compreen-
mento e de aprendizagem didas como significações
envolvidos no brincar são
envolvidos no brincar são e formas de ação social
também constitutivos do também constitutivos do específicas que estruturam
processo de apropriação de processo de apropriação as relações das crianças
conhecimentos! A possibi- de conhecimentos! entre si, bem como os mo-
lidade de imaginar, de ultra- dos pelos quais interpretam,
passar o já dado, de estabelecer representam e agem sobre o
novas relações, de inverter a ordem, mundo. Essas duas perspectivas
de articular passado, presente e futuro configuram o brincar ao mesmo tempo
potencializa nossas possibilidades de aprender como produto e prática cultural, ou seja, como
sobre o mundo em que vivemos! patrimônio cultural, fruto das ações humanas
Podemos afirmar, a partir dessas reflexões, transmitidas de modo inter e intrageracional,
que o brincar é um espaço de apropriação e e como forma de ação que cria e transforma
constituição pelas crianças de conhecimentos significados sobre o mundo.
e habilidades no âmbito da linguagem, da Constituindo um saber e um conjunto de prá-
cognição, dos valores e da sociabilidade. E que ticas partilhadas pelas crianças, o brincar está
esses conhecimentos se tecem nas narrativas estreitamente associado à sua formação como
do dia-a-dia, constituindo os sujeitos e a base sujeitos culturais e à constituição de culturas
para muitas aprendizagens e situações em que em espaços e tempos nos quais convivem co-
são necessários o distanciamento da realidade tidianamente. Esse saber, base comum sobre a
cotidiana, o pensar sobre o mundo e o inter- qual as crianças desenvolvem coletivamente
pretá-lo de novas formas, bem como o desen- suas brincadeiras, é composto de elementos
volvimento conjunto de ações coordenadas exteriores e interiores às comunidades infan-
em torno de um fio condutor comum. tis. Externamente, pode ter como fontes a
cultura televisiva, o mercado de brinquedos,
Brincadeira, cultura e
a educação dos adultos e as suas representa-
conhecimento: a função
ções sobre a brincadeira e a infância, além
humanizadora da escola
das práticas culturais transmitidas por outras
Vamos refletir agora sobre as relações entre crianças e adultos. Internamente, compõe-se
o brincar, a cultura e o conhecimento na de atitudes coletivas e elementos culturais
existência humana e, mais particularmente, particulares (regras, modos de falar e de fazer,
na experiência da infância. valores, técnicas, artefatos etc.) gerados nas
Por um lado, podemos dizer que a brincadeira é práticas e reinterpretações dos elementos
um fenômeno da cultura, uma vez que se con- externos. Existe assim uma dinâmica entre
figura como um conjunto de práticas, conhe- universalidade e diversidade que se traduz em
cimentos e artefatos construídos e acumulados permanências e transformações, configurando 39

36082-Ensino Fundamental de 9 an39 39 14/08/07 19:03


o brincar como uma complexa experiência tanto correr, ser rei, caubói, ladrão, polícia,
cultural que simultaneamente une e especifica desafiar os limites da realidade cotidiana. A
os grupos sociais. idéia de liberdade está associada, entretanto,
não à ausência de regras, mas à criação de
Pintores, poetas, escritores, cineastas, teatró-
formas de expressão e de ação e à definição
logos costumam utilizar o tema da infância e
de novos planos de significação que implicam
dos brinquedos e brincadeiras em suas obras,
novas formas de compreender o mundo e a si
ofecerendo-nos, por meio do olhar artístico,
mesmo.
interpretações sensíveis.
Pipas colorindo os céus. Crianças e adultos, em
- O bom da pipa não é mostrar aos
outros, é sentir individualmente a pipa, todas as regiões do Brasil e em várias partes do
dando ao céu o recado da gente. mundo “empinam” esse brinquedo, com mo-
- Que recado? Explique isso direito! dos variados de confeccioná-lo, praticá-lo, sig-
João olhou-me com delicado desprezo. nificá-lo e com ele estabelecer relações sociais.
- Pensei que não precisasse. Você solta Universalidade e pluralidade são suas marcas,
o bichinho e solta-se a si mesmo. Ela é e de muitos outros brinquedos e brincadeiras,
sua liberdade, o seu eu, girando por aí, como a amarelinha. Domínio da experiência
dispensado de todas as limitações. humana e ao mesmo tempo especificidade de
(Carlos Drummond de Andrade grupos sociais.
apud Carvalho, Ana M.A. e Pontes,
Pega-pega, pira, picula. Pique-cola, pique-baixo,
Fernando A.R.)
pique-alto, pique-estátua, pique-fruta. Diferen-
Drummond expressa o sentimento de liberdade tes denominações e variações para uma brin-
e desprendimento promovido pela brincadeira. cadeira cuja estrutura básica é a perseguição e
Brincar seria “soltar-se a si mesmo”, despren- a fuga, ou seja, há um pegador que corre atrás
der-se da realidade imediata e de seus limites, dos demais tentando alcançá-los. A brinca-
voar, lançar-se ao céu, mas ao mesmo tempo deira percorre três etapas básicas: a partir da
diríamos que é possuir o controle do vôo nas formação do grupo, a escolha do “pegador”; o
mãos, segurando e movimentando a linha da
desenvolvimento do jogo por meio de tenta-
pipa e regendo o “eu” por meio dos contornos
tivas de pegar e do revezamento de pegadores;
dessa nova dimensão da realidade.
e a finalização.
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês Um repertório de brincadeiras, cujos esque-
A noiva do caubói era você além das mas básicos ou rotinas são partilhados pelas
outras três crianças, compõe a cultura lúdica infantil, ou
Eu enfrentava os batalhões, os alemães seja, o conjunto de experiências que permite
e seus canhões às crianças brincar juntas (Brougère, 2002,
Guardava o meu bodoque e ensaiava o 2004). Esses esquemas, contudo, não são
rock para as matinês estáticos, mas transpostos e transformados de
(João e Maria – Chico Buarque) um contexto para o outro. Nesse sentido, são
A liberdade no brincar se configura no inverter influenciados tanto pelo contexto físico do am-
a ordem, virar o mundo de ponta-cabeça, fazer biente, a partir dos recursos naturais e materiais
o que parece impossível, transitar em diferen- disponíveis, como também pelo contexto sim-
tes tempos – passado, presente e futuro – Agora bólico, ou seja, pelos significados preexistentes
eu era o herói... Rodar até cair, ficar tonto de e partilhados pelo grupo de crianças. Desse
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36082-Ensino Fundamental de 9 an40 40 14/08/07 19:03


modo, ambientes escolares organizados para a significados e a negociação de conflitos e dis-
brincadeira, compostos de mobiliário e objetos putas. Nesse contexto, as crianças estabelecem
vinculados à vida doméstica, suscitam laços de sociabilidade e constroem sen-
brincadeiras de papéis familiares; timentos e atitudes de solidariedade
rios, mares, lama e areia geram e de amizade.
A brincadeira
brincadeiras de nadar, pular, É importante demarcar que
fazer castelos; personagens é um lugar de
no brincar as crianças vão se
de novela conhecidos pelas construção de
constituindo como agentes
crianças criam brincadeiras culturas fundado de sua experiência social,
de papéis e cenas domésticas; nas interações organizando com autono-
super-heróis tematizam piques sociais entre as mia suas ações e interações,
e brincadeiras de perseguição.
crianças. elaborando planos e formas de
Todos esses elementos externos ao ações conjuntas, criando regras de
jogo, localizados na escola, na família, convivência social e de participação
no bairro ou na mídia televisiva, entre outros nas brincadeiras. Nesse processo, instituem
espaços propiciadores de experiências sociais coletivamente uma ordem social que rege as
e culturais, são reinterpretados pelas crianças relações entre pares e se afirmam como autoras
e articulados às suas experiências lúdicas. de suas práticas sociais e culturais.
A partir daí, geram-se novos modos de brincar.
Brincar com o outro, portanto, é uma expe-
A televisão, por exemplo, é um elemento ex-
riência de cultura e um complexo processo
terno de grande influência hoje, mas é preciso
interativo e reflexivo que envolve a constru-
salientar que suas imagens e representações
ção de habilidades, conhecimentos e valores
não são simplesmente imitadas pelas crianças,
sobre o mundo. O brincar contém o mundo e
mas recriadas a partir de suas práticas lúdicas.
ao mesmo tempo contribui para expressá-lo,
Assim, podemos ver os bonecos Power Ran-
pensá-lo e recriá-lo. Dessa forma, amplia os
gers – personagens de uma série televisiva
conhecimentos da criança sobre si mesma e
– lutando e usando seus poderes nas mãos das
sobre a realidade ao seu redor.
crianças, mas também comendo, dormindo,
brincando com bonecas Barbie, etc. Para que As reflexões que desenvolvemos até aqui nos
se abram e se ampliem as possibilidades de levam a perguntar: como temos significado e
criação no brincar é imprescindível, contu- compartilhado com as crianças e os adoles-
do, que as crianças tenham acesso a espaços centes suas experiências de brincadeiras? O
coletivos de brincadeira e a experiências de espaço do brincar nas nossas escolas é apenas
cultura. passatempo e liberação-reposição de energias
para alimentar o trabalho? Ou é uma forma
A brincadeira é um lugar de construção de
de interpretar, agir e nos relacionar com o
culturas fundado nas interações sociais entre as
mundo e com os outros, vivenciada como
crianças. É também suporte da sociabilidade.
experiência que nos humaniza, levando-nos
O desejo de brincar com o outro, de estar e
à apropriação de conhecimentos, valores e
fazer coisas com o outro, é a principal razão
significados, com imaginação, humor, criati-
que leva as crianças a se engajarem em gru-
pos de pares. Para brincar juntas, necessitam vidade, paixão e prazer?
construir e manter um espaço interativo de Mas sabemos verdadeiramente o que é brincar
ações coordenadas, o que envolve a partilha e de que e como nossas crianças e adolescentes
de objetos, espaços, valores, conhecimentos e brincam? Pensar sobre a função humanizado-
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ra da brincadeira nos provoca inquietações entre pares se observarmos: que assuntos estão
quanto à organização da escola e do trabalho em jogo quando brincam? Como se organizam
pedagógico. Como podemos transformá-los em grupos? Que critérios e valores perpassam
de forma que deixem a brincadeira fluir? Nos a escolha/seleção dos parceiros (amizade,
provoca também a redescobrir em nós mes- alianças, hierarquias, preconceitos, relações de
mos o gosto e o prazer do fazer lúdico e das poder etc.)? Que conhecimentos as crianças e
brincadeiras, levando-nos a buscar em nossas os adolescentes revelam? Quais são as regras
experiências de infância, em leituras e por que regem as relações entre pares?
meio de um olhar atento às diferentes práti- Essas observações e o que podemos aprender
cas culturais de brincadeira que identificam com elas contribuem para a nossa aproximação
os grupos sociais, fontes para a ampliação do cultural com as crianças e para compreen-
nosso repertório e das nossas formas de ação dermos melhor a importância do brincar nas
lúdica sobre o mundo. Afinal, brincar é uma suas vidas. Certamente ficará mais claro para
experiência de cultura importante não apenas nós que o brincar é uma atividade humana
nos primeiros anos da infância, mas durante significativa, por meio da qual os sujeitos se
todo o percurso de vida de qualquer ser huma- compreendem como sujeitos culturais e hu-
no, portanto, também deve ser garantida em manos, membros de um grupo social e, como
todos os anos do ensino fundamental e etapas tal, constitui um direito a ser assegurado na
subseqüentes da nossa formação! vida do homem. E o que dirá na vida das
Uma excelente fonte de conhecimentos sobre crianças, em que esse tipo de atividade ocupa
o brincar e sobre as crianças e os adolescentes um lugar central, sendo uma de suas principais
é observá-los brincando. Penetrar nos seus formas de ação sobre o mundo! Perceberemos
jogos e brincadeiras contribui, por um lado, também, com mais profundidade, que a esco-
para colhermos informações importantes para la, como espaço de encontro das crianças e
a organização dos espaços-tempos escolares e dos adolescentes com seus pares e adultos e
das práticas pedagógicas de forma que possam com o mundo que os cerca, assume o papel
garantir e incentivar o brincar. Por outro fundamental de garantir em seus espaços o
lado, ajuda na criação de possibilidades de direito de brincar. Além disso, ao situarmos
interações e diálogos com as crianças, uma vez nossas observações no contexto da contem-
que propicia a compreensão de suas lógicas e poraneidade, veremos que esse papel cresce
formas próprias de pensar, sentir e fazer e de em importância na medida em que a infância
seus processos de constituição de suas identi- vem sendo marcada pela diminuição dos
dades individuais e culturas de pares. Mediante espaços públicos de brincadeira, pela falta de
nossas observações, podemos compreender tempo para o lazer, pelo isolamento, sendo a
melhor a dinâmica do brincar, perguntan- escola muitas vezes o principal universo de
do-nos: de que as crianças e os adolescentes construção de sociabilidade.
brincam? Que temas e objetos/brinquedos Vamos refletir agora sobre as práticas que nos
estão envolvidos? Que brincadeiras se repe- aproximam e, ao mesmo tempo, sobre aque-
tem cotidianamente? Que regras organizam las que nos afastam das concepções sobre a
as brincadeiras? Em que espaços e durante brincadeira discutidas até aqui. O brincar é
quanto tempo brincam? Como se escolhem sugerido em muitas propostas e práticas pe-
e se distribuem os participantes? Que papéis dagógicas com crianças e adolescentes como
são assumidos por eles? Aprenderemos muito um pretexto ou instrumento para o ensino de
também sobre as suas vidas e suas relações conteúdos. Como exemplos, temos músicas
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36082-Ensino Fundamental de 9 an42 42 14/08/07 19:03


para memorizar informações, jogos de interessantes de aprender brincando ou
operações matemáticas, jogos de de brincar aprendendo. Quantos de
correspondência entre imagens e nós lembramos das muitas des-
palavras escritas, entre outros. Ao planejarmos cobertas que fizemos por meio
Mas quando tais atividades atividades lúdicas, de jogos e atividades lúdicas?
são compreendidas apenas é importante Se incorporarmos de forma
como recursos, perdem o sen- mais efetiva a ludicidade nas
perguntar: a que
tido de brincadeira e, muitas nossas práticas, estaremos po-
fins e a quem estão tencializando as possibilidades
vezes, até mesmo o seu caráter
lúdico, assumindo muito mais servindo? de aprender e o investimento e o
a função de treinar e sistematizar prazer das crianças e dos adolescen-
conhecimentos, uma vez que são usadas tes no processo de conhecer. E, com
com o objetivo principal de atingir resultados certeza, descobriremos também novas formas
preestabelecidos. É preciso compreender que de ensinar e de aprender com as crianças e os
o jogo como recurso didático não contém os adolescentes!
requisitos básicos que configuram uma ativi- Mas como planejar essas atividades? Um bom
dade como brincadeira: ser livre, espontâneo, começo é nos perguntarmos: conhecemos bem
não ter hora marcada, nem resultados prévios nossas crianças ou adolescentes? Sabemos do
e determinados. Isso não significa que não que gostam ou não de fazer, de seus interesses,
possamos utilizar a ludicidade na aprendiza- de suas práticas? Sabemos ouvi-los? Criamos
gem, mediante jogos e situações lúdicas que espaços para que eles também nos conhe-
propiciem a reflexão sobre conceitos mate- çam? A abertura de portas para o encontro e
máticos, lingüísticos ou científicos. Podemos a proximidade cultural com as crianças e os
e devemos, mas é preciso colocá-la no real adolescentes é fundamental para organizarmos
espaço que ocupa no mundo infantil, e que atividades que estejam em maior sintonia com
não é o da experiência da brincadeira como seus interesses e necessidades. Ao planejarmos
cultura. Constituem apenas diferentes modos atividades lúdicas, é importante perguntar:
de ensinar e aprender que, ao incorporarem a a que fins e a quem estão servindo? Como
ludicidade, podem propiciar novas e interes- estão sendo apresentadas? Permitem a escuta
santes relações e interações entre as crianças das vozes das crianças? Como posso me posi-
e destas com os conhecimentos. cionar junto a elas de modo que seja possível
Existem inúmeras possibilidades de incorpo- promover uma experiência lúdica? O que se
rar a ludicidade na aprendizagem, mas para quer é apenas uma animação ou a intenção
que uma atividade pedagógica seja lúdica é é possibilitar uma experiência em que se es-
importante que permita a fruição, a decisão, tabeleçam novas e diversas relações com os
a escolha, as descobertas, as perguntas e as conhecimentos?
soluções por parte das crianças e dos ado- É importante demarcar que o eixo principal
lescentes, do contrário, será compreendida em torno do qual o brincar deve ser incor-
apenas como mais um exercício. No processo porado em nossas práticas é o seu significado
de alfabetização, por exemplo, os trava-lín- como experiência de cultura. Isso exige a
guas, jogos de rima, lotos com palavras, jogos garantia de tempos e espaços para que as
da memória, palavras cruzadas, língua do pê próprias crianças e os adolescentes criem e
e outras línguas que podem ser inventadas, desenvolvam suas brincadeiras, não apenas
entre outras atividades, constituem formas em locais e horários destinados pela escola a 43

36082-Ensino Fundamental de 9 an43 43 14/08/07 19:03


essas atividades (como os pátios e parques para alianças, amizades, hierarquias e relações de
recreação), mas também nos espaços das salas poder entre pares. Estabelecendo pontes, com
de aula, por meio da invenção de diferentes base nessas observações, entre o que se aprende
formas de brincar com os conhecimentos. Mas no brincar e em outras atividades, fornecendo
de que maneira podemos assegurar nas nossas para as crianças a possibilidade de enriquece-
práticas escolares que o brincar seja vivido rem-se e enriquecerem-nas. Centrando a ação
como experiência de cultura? Vamos pensar pedagógica no diálogo com as crianças e os
juntos alguns caminhos. adolescentes, trocando saberes e experiências,
Organizando rotinas que propiciem a ini- trazendo a dimensão da imaginação e da cria-
ciativa, a autonomia e as interações ção para a prática cotidiana de ensinar e
entre crianças. Criando espaços aprender.
em que a vida pulse, onde se Enfim, é preciso deixar que as
construam ações conjun- O eixo principal crianças e os adolescentes
tas, amizades sejam feitas e em torno do qual brinquem, é preciso apren-
criem-se culturas. Colo- o brincar deve ser der com eles a rir, a inverter
cando à disposição das a ordem, a representar, a
incorporado em
crianças materiais e objetos imitar, a sonhar e a ima-
para descobertas, ressig- nossas práticas é ginar. E, no encontro com
nificações, transgressões. o seu significado eles, incorporando a di-
Compartilhando brincadei- como experiência mensão humana do brincar,
ras com as crianças, sendo de cultura. da poesia e da arte, construir
cúmplices, parceiros, apoiando- o percurso da ampliação e da
as, respeitando-as e contribuindo afirmação de conhecimentos sobre o
para ampliar seu repertório. Observando-as mundo. Dessa forma, abriremos o caminho
para melhor conhecê-las, compreendendo seus para que nós, adultos e crianças, possamos
universos e referências culturais, seus modos nos reconhecer como sujeitos e atores sociais
próprios de sentir, pensar e agir, suas formas plenos, fazedores da nossa história e do mundo
de se relacionar com os outros. Percebendo as que nos cerca.

44

36082-Ensino Fundamental de 9 an44 44 14/08/07 19:03


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45

36082-Ensino Fundamental de 9 an45 45 14/08/07 19:03


46

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AS DIVERSAS EXPRESSÕES
E O DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA NA ESCOLA
Ângela Meyer Borba1
Cecília Goulart2

Pescadores de vida
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago
Kovadloff, levou-o para descobrir o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E
foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor,
que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano

A
dança, o teatro, a música, a literatura, a vida, reproduzindo-a e tornando-a objeto
as artes visuais e as artes plásticas re de reflexão. Sendo assim, convidamos os pro-
presentam formas de expressão criadas fessores para refletirem conosco sobre esses
pelo homem como possibilidades diferenciadas espaços nas escolas. Que sentidos assumem
de dialogar com o mundo. Esses diferentes na formação das crianças e dos adolescentes?
domínios de significados constituem espaços Como incorporá-los nas práticas pedagógicas
de criação, transgressão, formação de senti- cotidianas e no currículo escolar?
dos e significados que fornecem aos sujeitos, O debate atual em torno da necessidade de
autores ou contempladores, novas formas de incluir a dimensão artístico-cultural na forma-
inteligibilidade, comunicação e relação com ção de crianças e de adolescentes caminha na

1
Doutora em Educação – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Doutora em Letras – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). 47

36082-Ensino Fundamental de 9 an47 47 14/08/07 19:03


direção não apenas das questões relativas ao elaborando e reconhecendo de modo sensível
acesso e à apropriação da produção existente, nosso pertencimento ao mundo.
como também da organização da escola como A chamada natureza humana não existe de
espaço de criação estética. Nesse contexto, modo independente da cultura; o homem,
a arte não está a “serviço da educação” (Os- diferentemente dos animais, não é capaz de
tetto e Leite, 2004), mas constitui-se como
organizar sua experiência sem a orientação
experiência estética e humana, como área de
de sistemas simbólicos. Os símbolos não são
conhecimento que tem seus conteúdos pró-
simples expressões e instrumentos da natureza
prios. É importante não reduzir a arte a mero
humana – são historicamente constituidores
recurso ou pretexto para o ensino de conteúdos
da natureza das pessoas, de diferentes maneiras.
privilegiados na escola, pois qualquer tentativa
Há situações culturais, formas de vida, objetos
de normatizá-la como recurso didático leva à
e saberes que são peculiares a determinados
sua destruição. Como nos diz Kramer (1998)
grupos e sociedades e não podem ser despre-
“Para ser educativa a arte precisa ser arte e não
zados, sob o risco de serem descaracterizados
arte educativa”. O que significa então trabalhar
cultural e politicamente, despersonalizados,
com arte nas escolas?
pelo valor humano essencial que possuem
Para encaminhar essa discussão, vamos re- para aquelas pessoas que têm suas vidas por
fletir sobre as relações entre arte, cultura e eles marcadas.
conhecimento no espaço escolar, focalizando
Na educação, considerando os objetivos de
a importância da apreciação e da criação
alargar e aprofundar o conhecimento do ser
artístico-cultural na formação das crianças.
humano, possibilitando-lhe maior compreen-
Refletiremos, também, sobre possibilidades de
são da realidade e maior participação social,
trabalho com as variadas formas de expressões
não podemos prescindir de trabalhar com a
artísticas.
arte. Daí a necessidade de levar crianças e ado-
Arte, cultura, conhecimento e lescentes a participar de exposições de vários
educação: apreciação e criação tipos, assistir a filmes, danças, ouvir músicas
estética de diferentes compositores, entre muitas outras
atividades. Hoje, por meio de novas tecnolo-
A arte, a linguagem e o conhecimento, de gias como CDs, DVDs, e mesmo a televisão,
modo geral, são frutos da ação humana sobre esse trabalho está facilitado.
o mundo, sobre a realidade. Ao mesmo tempo
É importante também que as crianças tenham
em que os criamos, agem sobre nós, identifi- acesso a livros de arte (há coleções inclusive
cando-nos de muitas maneiras, dependentes em bancas de jornal), de literatura e também
do tempo histórico e dos grupos sociais em acesso a livros biográficos de autores de produ-
que nascemos. A arte, a linguagem e o co- ções artísticas, não só contemporâneos. Nossa
nhecimento fazem parte do acervo cultural do sensibilidade e nossos modos de ler o mundo
homem, como resultado de suas necessidades se ampliam pelo conhecimento das obras e
filosóficas, biológicas, psicológicas e sociais, das vidas das pessoas que as elaboraram – re-
entre outras. Estabelecemos novas realida- dimensionamos a nossa condição humana e as
des, novas formas de inserção no mundo e nossas possibilidades de viver e agir no mundo,
de visão deste mesmo mundo, quando, como engrandecendo-as. Propiciar às crianças e aos
autores e atores, dançamos, pintamos, tocamos adolescentes o prazer do exercício de explorar
instrumentos, entre muitas outras possibilidades, as potencialidades de todo mundo e de cada
48

36082-Ensino Fundamental de 9 an48 48 14/08/07 19:03


um, conhecendo outras formas de ordem arte. Partiram para o trabalho com as crianças,
e de desordem, neles mesmos e nos outros. convidando-as a se transportarem para o mundo
A educação tem sentido justamente porque de cada artista, ouvindo as histórias de cada um
nos possibilita estabelecer novos entendimen- e conhecendo algumas de suas obras. Várias
tos, novas ordens. atividades foram desenvolvidas – observação,
A produção artística oral, escrita e plástica descrição e interpretação das obras – e buscou-se
que historicamente os grupos populares identificar o que os artistas estavam representando
vêm realizando faz parte do acervo cultural e expressando, a maneira como o fizeram, que
da humanidade e nos representa de modo cores e materiais usaram; comparação entre
legítimo também. as obras de cada artista e descoberta de suas
características particulares; comparação das
Educar e ensinar no contexto da cultura é um
grande desafio. Aprendemos muito também nós, obras dos diferentes artistas selecionados;
professores. As obras de arte são modos insti- releituras das obras pelas crianças por meio
gantes de ver e ler o mundo, estão impregnadas da confecção de obras próprias; elaboração de
de conteúdos sociais que, portanto, textos coletivos sobre as aprendizagens
podem ser analisados e debatidos, e informações coletadas; visita
pelas várias interpretações que ao museu de Arte Naïf, na
podem suscitar. O olhar cidade do Rio de Janeiro; e
A produção artística realização de uma Oficina
crítico que as crianças
desenvolvem com esse oral, escrita e plástica de Cultura Popular, em
tipo de conhecimento, que historicamente os que as pesquisas e pro-
muitas vezes, surpreen- grupos populares vêm duções das crianças fo-
de-nos. É preciso apostar produzindo faz parte ram expostas e os pais e
muito nas crianças e nos do acervo cultural da pessoas do bairro foram
adolescentes, em suas convidados a realizar
humanidade e nos
capacidades de aprender também suas produções.
e conhecer. representa de modo
Por meio desse trabalho,
legítimo. crianças e professores não
As professoras Renata dos
Santos Melro, Maria Inês Barreto apenas ampliaram os seus co-
Neto, Adriana Santos da Mata e Lí- nhecimentos sobre arte e cultura,
lian Cristina de Azevedo Teixeira de Aguiar, mas também enriqueceram suas possibi-
de Niterói/RJ, desenvolveram o projeto “Arte lidades de criar, experimentando novas cores,
Naïf”, com crianças de 3 a 5 anos da educação
3
significados, combinações, traços e formas.
infantil. Inicialmente, as professoras estudaram
Conforme o relato dessa experiência, desde mui-
o tema, buscando compreender o que é Arte
to cedo as crianças podem ter acesso a produções
Naïf, analisando obras de pintores e realizando
artísticas, fruindo-as, conversando e discutindo
leituras sobre aspectos conceituais relacionados
sobre as suas impressões e características. Que
à arte e à cultura em geral, e à arte popular e
à Arte Naïf em particular. Selecionaram os tal vivenciar com as crianças experiências como
artistas cujas obras seriam trabalhadas, organi- essa?
zando e reunindo um rico material sobre suas A professora Kátia Raquel Testoni Longen, de
vidas e obras: pastas-catálogo, DVDs e livros de Atalanta/SC, organizou o projeto Pequenos

3
Trabalho publicado pelo MEC em Prêmio Professores do Brasil 2005 - experiências premiadas. 49

36082-Ensino Fundamental de 9 an49 49 14/08/07 19:03


Poetas, com sua turma de crianças de nove a para a experiência estética, provocando novas
onze anos, cujo objetivo foi ampliar a leitura formas de sentir, pensar, compreender, dizer
e trabalhar a apreciação e a criação de poesias, e fazer. Significa promover o encontro dos
de forma que ultrapassassem a concepção sujeitos com diferentes formas de expressão e
reduzida de poesia como aquilo que “rima e de compreensão da vida.
tem sílabas contadas” e alcançassem a com- Mas como se dá esse encontro? Bakhtin nos diz
preensão de que a poesia é, acima de tudo, que o sujeito, ao entrar em contato com uma
“jogo de palavras, é emoção que desperta, é obra de arte e contemplá-la, vivencia uma rela-
uma maneira especial de ler e ver o mundo”. ção estética movida pela busca de compreensão
A professora iniciou o projeto, lendo poesias de seu significado. A pessoa que aprecia uma
para as crianças, no início e no fim de cada obra, seja ela criança ou adulto, entra em diá-
dia letivo, durante uma semana, envolvendo logo com ela, com seu autor e com o contexto
gêneros diferentes, poetas variados (Elias José, em que ambos estão referenciados. Relaciona-
se com os signos que a compõem, elabora uma
Ruth Rocha, Ferreira Gullar, Olavo Bilac,
compreensão dos seus sentidos, procurando
Arnaldo Antunes, Cecília Meireles, Manuel reconstruir e apreender sua totalidade. Nessa
Bandeira), poesias com e sem rimas, en- relação, coloca em articulação a expe-
graçadas e tristes. Em seguida, a partir riência nova provocada pela relação
do conto “O catador de pensamen- A contempla- com a obra – de estranhamento da
tos”, de Monica Feth, as crianças situação habitual, de surpresa, de
foram convidadas a ser “catadores
ção é um ato assombro, de inquietação – com
de poesias”, o que consistia em sair de criação, de a experiência pessoal acumulada
pela escola, pelo bairro, pela cidade co-autoria. – encontros com outras obras, co-
e conversar com as pessoas sobre poe- nhecimentos apropriados nas práticas
sociais e culturais vivenciadas nos espaços
sia, convidando algumas delas para irem
familiares, escolares, comunitários etc. – tra-
à escola declamar uma poesia de sua escolha. zendo o seu ponto de vista para completar a
A partir da análise de poesias de diversos au- obra. A contemplação é um ato de criação, de
tores e da busca de compreensão de recursos co-autoria. Aquele que aprecia a obra continua
poéticos, tais como rimas, intertextualidade, a produção do autor ao tomar para si o processo
aliterações, parlendas, as crianças produziram de reflexão e de compreensão.
suas próprias poesias. Organizaram um livro Na experiência estética, a apreciação oferece o
ao término do projeto, com uma seleção de “excedente de visão” (Bakhtin, 2000), aquilo
temas e produções contemplando todas as que o outro não vê e que eu vejo, uma vez que me
crianças. Segundo a professora Kátia, o projeto situo fora do objeto estético. Dele me distan-
ensinou a todos “que produzir uma boa poesia ciando, admirando-o e inquietando-me com
não é só uma questão de inspiração, mas sim as emoções que em mim provoca, busco sua
de busca, de reflexão; enfim, que o poeta tem compreensão penetrando no seu interior, vol-
trabalho...” (Brasil. Ministério da Educação tando então a mim mesmo para lhe dar forma,
– Prêmio Incentivo à Educação Fundamental completando-o e atribuindo-lhe significados.
2004, p.157-164). Essa relação envolve o entrelaçamento entre
Tais relatos ajudam-nos a compreender que mim e o outro, ir e vir, velho e novo, distância
o acesso à arte significa possibilitar às crian- e aproximação, atos externos e internos, me-
ças, de qualquer idade, e aos (às) professores mória e imaginação, passado-presente-futuro.
(as), o contato e a intimidade com a arte no A apreciação como ato de criação estética, e
espaço escolar e, dessa forma, abrir caminhos não como atitude passiva ou olhar conformado
50

36082-Ensino Fundamental de 9 an50 50 14/08/07 19:03


que apenas reproduz, está ligada ao grau de do viver, um vivenciar-se no fazer; e em vez
intimidade com as diferentes linguagens e de substituir a realidade, é a realidade; é uma
produções artísticas. Intimidade que permite realidade nova que adquire dimensões novas”
a apropriação de sua história, características e (Ostrower, 1986, p.28) com base na imaginação
técnicas próprias e produz o reconhecimento e no olhar sensível. É uma realidade em que o
do prazer e do significado dessa relação. Inti- tempo, o espaço e as lógicas da realidade coti-
midade que constrói o olhar que ultrapassa diana se transformam e assumem uma outra di-
o cotidiano, colocando-o em outro plano, nâmica, ajudando-nos a ver o mundo sob outra
transgredindo-o, construindo múlti- ótica, outros meios de conhecimento.
plos sentidos, leituras e formas de
A criação geralmente é identifi-
compreensão da vida. O olhar
cada com a novidade e a liber-
aguçado pela sensibilidade,
Ninguém cria no dade absolutas. Será assim?
pela emoção, pela afetivida-
vazio e sim a partir O potencial de inovação e
de, pela imaginação, pela
das experiências de liberdade de fato existe,
reflexão, pela crítica. Olhar porém é preciso compre-
que indaga, rompe, quebra vividas, dos conhe- ender que o novo não se
a linearidade, ousa, inverte cimentos e dos desconecta do velho e do
a ordem, desafia a lógica, valores apropriados. já conhecido, tampouco a
brinca, encontra incoerências liberdade se traduz na ausên-
e divergências, estranha, admira cia de delimitações e definições.
e se surpreende, para então estabe- Ninguém cria no vazio e sim a partir
lecer novas formas de ver o mundo. das experiências vividas, dos conhecimentos
O prazer e o domínio do olhar, da escuta e do e dos valores apropriados. A novidade está
movimento sensíveis construídos no encontro em ver o que antes não se via, em perceber o
com a arte potencializam as possibilidades novo no velho e vice-versa, em fazer conexões
de apropriação e de produção de diferentes e associações que produzem múltiplas e novas
linguagens pelos sujeitos como formas de ex- leituras, em ressignificar a realidade.
pressão e representação da vida: por meio da O processo criador, segundo Vygotsky, ao
poesia, do conto, da caricatura, do desenho,
interpor realidade, imaginação, emoção e
da dança, da música, da pintura, da escultura,
cognição, envolve reconstrução, reelabora-
da fotografia etc.
ção, redescoberta. Nesse sentido, é sempre
O menino era ligado em despropósitos um processo singular no qual o sujeito deixa
Quis montar os alicerces de uma casa suas marcas revelando seus encaminhamentos,
sobre orvalhos
[...] Viu que podia fazer peraltagens com ordenamentos e formas próprias de se relacio-
as palavras. nar com os materiais, com o espaço, com as
[...) Foi capaz de modificar a tarde linguagens e com a vida. A criação se faz com
botando uma chuva nela. base em decisões, definições e configurações
O menino fazia prodígios. dadas pelas condições e pelas referências e
Até fez uma pedra virar flor! escolhas do sujeito. É nesse quadro que se
(Manoel de Barros) define a liberdade. O criar livremente não
O escritor nos fala de imaginação, fantasia, significa fazer qualquer coisa, de qualquer
quebra da ordem, transgressão, peraltagens na forma, em qualquer momento, mas sim o
vida e no processo de criar com as palavras. contínuo desdobramento e a redefinição de
Criação que “representa uma intensificação delimitações dentro das quais o sujeito pode 51

36082-Ensino Fundamental de 9 an51 51 22/08/07 00:58


ousar, divergir, inovar e estabelecer novas apenas pelas amarras de uma única forma de
relações (Leite, 1998). se expressar, mas também pela unicidade e
previsibilidade dos sentidos possíveis.
A importância da criação estética
Que implicações isso tem para as
na formação humana configura
crianças e para a sua formação?
a função da escola de garantir O criar livre- Nesse contexto, qual é o im-
o acesso às diferentes formas mente não pacto do ingresso no ensino
de linguagens e de promover, significa fazer fundamental para as crianças
por meio do fazer estético, a que vêm da educação infantil?
apropriação pelas crianças de
qualquer coisa, de
qualquer forma, Como será que elas se sentem?
múltiplas formas de comu- E para aquelas que estão se
nicação e de compreensão do em qualquer inserindo pela primeira vez em
mundo e de si mesmas. Mas como momento. um espaço formal de educação?
trabalhar no contexto escolar com o
fazer estético que promove o encontro Se compreendemos que as diversas
do homem com a humanidade? O que fazer? linguagens artístico-culturais constituem
Como fazer? O que não fazer? Como podemos modos de conhecer e de explicar a realidade
tão válidos quanto os saberes organizados pelos
aprender com a arte e a cultura a ressignificar
diversos ramos da ciência, precisamos rever
nosso trabalho cotidiano e o processo de en-
nossas práticas educativas. A apropriação pelas
sinar e aprender?
crianças dos conhecimentos produzidos pela
Práticas pedagógicas com arte contribui para alargar o seu entendimento
diferentes formas de da realidade e para abrir caminhos para a sua
expressão nas escolas participação no mundo. Participação que se faz
pela ação que reinterpreta, cria e transforma.
Diferentes formas de expressão como desenho, Tomemos o exemplo do conhecimento pro-
pintura, dança, canto, teatro, modelagem, duzido por meio da arte feita com a palavra.
literatura (prosa e poesia), entre outras, en- Compreender e expressar a realidade por meio
contram-se presentes nos espaços de educação da literatura – ficção, contos tradicionais,
infantil (ainda que muitas vezes de forma re- poesia, etc. – mobiliza nossa sensibilidade,
duzida e pouco significativa), nas casas e nos imaginação e criação; ajuda-nos a perceber
demais espaços freqüentados pelas crianças. que existem diferentes sistemas de referência
E por que estão presentes? Porque são formas do mundo que se abrem para muitos sentidos
de expressão da vida, da realidade variada em possíveis ao se conectarem com os sujeitos,
que vivemos. Muitas vezes, à medida que a suas histórias e experiências singulares. Nesse
criança avança nos anos escolares ou séries do sentido, devemos propiciar às crianças prá-
ensino fundamental, vê reduzidas suas possibi- ticas de leitura e escrita que provoquem a
lidades de expressão, leitura e produção com imaginação, a fantasia, a reflexão e a crítica.
diferentes linguagens. Privilegia-se nas escolas Tais práticas devem mobilizar o diálogo das
um tipo de linguagem, aquela vinculada aos crianças com a pluralidade de produções,
usos escolares, ou seja, a que serve à reprodu- com diferentes autores e modos de expressão,
ção dos conteúdos dos livros didáticos median- e encorajá-las a brincar com as palavras, a
te sua transmissão, repetição e avaliação. Se buscar novos sentidos, novas combinações,
antes a criança tinha possibilidades de utilizar novas emoções e, assim, se constituírem como
outras linguagens para ler e dizer coisas sobre si autoras de suas palavras e modos de pensar,
e sobre o mundo, vê-se de repente cercada não narrar o mundo.
52

36082-Ensino Fundamental de 9 an52 52 14/08/07 19:03


As professoras Juju Andrade Rodrigues e Noê- cinco e seis anos, desenvolveu um projeto
mia Fabíola Costa do Nascimento, da Creche cujo objetivo foi informar as crianças sobre a
Municipal Maria Alice Gonçalves Guerra, em vida e a obra de Graciliano Ramos, autor que
Camaragibe/PE, desenvolveram um projeto dá nome à escola. A idéia surgiu a partir da
sobre as obras de Candido Portinari com crian- pergunta de uma criança sobre a origem do
ças de dois e três anos de idade. O projeto visa- nome da escola. As crianças tinham várias
va a “despertar nas crianças o gosto pela arte e hipóteses: nome do dono da escola, nome de
pela cultura, possibilitando uma identificação jogador de futebol, nome de político ou de
com Portinari menino e, paralelamente, escritor. Essa foi a primeira etapa do projeto.
resgatar as brincadeiras populares Todos trabalharam na seleção de
contextualizando-as com situa- materiais para o projeto; a pro-
ções vivenciadas na creche, fessora leu um livro do autor,
visando ao desenvolvimento A ampliação da em capítulos, para a turma,
do senso de observação e experiência estética, e discutiram a importância
à recriação, por meio dos fazendo circular dife- do trabalho de mestre
desenhos das crianças, do rentes manifestações Graça. Montaram uma
tema estrutural da obra”. linha do tempo com
artístico-culturais, informações sobre a vida
As professoras fizeram uma
seleção de revistas, livros,
é base fundamental e a obra do autor. Elabo-
sites da Internet, entre outros para o processo de raram textos coletivos,
materiais. Selecionaram as criação. listas de obras, etiquetaram
telas que retratavam a infância fotos, uma infi nidade de ati-
do pintor. Fizeram exposição, leram vidades aconteceu dentro e fora
textos sobre a vida de Portinari e desenvolve- da escola! (Brasil. Ministério da Educação,
ram muitas outras atividades com as crianças, Prêmio Qualidade na Educação Infantil
valorizando os seus conhecimentos e encora- 2004, p. 13-17).
jando-as a novas descobertas por meio da fala, Não há como nos constituirmos autores,
das interações e da interpretação de aspectos críticos e criativos, se não tivermos acesso à
simbólicos das obras observadas (Brasil. Mi- pluralidade de linguagens e com elas sermos
nistério da Educação – Prêmio Qualidade na livres para opinar, criar relações, construir
Educação Infantil 2004, p. 70-73). sentidos e conhecimentos. A ampliação
Assim, as professoras apostaram na capacidade da experiência estética, fazendo circular di-
intelectual e na sensibilidade das crianças de ferentes manifestações artístico-culturais, é
dois e três anos, contando histórias de um base fundamental para o processo de criação,
menino que se tornou um grande pintor. Daí pois alarga o acervo de referências relativas
para a realização de muitas outras atividades às características e ao funcionamento de cada
só precisou da inventividade das professoras tipo de expressão, bem como amplia a rede de
que, junto com as crianças, viajaram pelo significados e modos diferenciados de comu-
mundo da criação. Isso nos leva a concluir: nicabilidade e compreensão.
se é possível realizar atividades dessa natu- É importante salientar que as práticas com
reza com crianças tão pequenas, é possível arte de que estamos falando não se confundem
realizá-las também com crianças maiores! com os exercícios de técnicas, treinamentos
Gerlane Muriel de Lima Oliveira, professora psicomotores ou cópias de modelos. O desenho,
de Maceió/AL, trabalhando com crianças de por exemplo, como forma de linguagem, não
53

36082-Ensino Fundamental de 9 an53 53 14/08/07 19:03


se revela nas atividades de cobrir pontilhados, a subordinação das atividades de desenho às
colorir desenhos mimeografados, montar demais disciplinas e, em especial, ao processo
bonecos com formas geométricas segundo mo- de alfabetização, os professores organizaram
delos, desenhar figuras preestabelecidas, entre um projeto para o ano letivo cujo objetivo
outras práticas tão comuns nos primeiros foi ressignificar os conceitos e valores
anos de escolaridade. estéticos das crianças, a partir de
O desenho é uma forma de ex- ações e movimentos com linhas.
pressão de como a criança e/ou O desenho é uma O estudo partiu da apreciação e
o jovem vêem o mundo e suas representação das fachadas das
forma de expressão
particularidades. Quando uma casas da paisagem local, com-
de como a criança parando-as com as de dife-
criança desenha, por exemplo,
e/ou o jovem vêem o rentes moradias. “A intenção
uma casa fechada, deixando
transparecer os móveis no mundo e suas parti- era despertar o olhar reflexivo
interior, está desenhando o que cularidades. das crianças e remetê-las a re-
sabe existir dentro daquela casa, conhecer a linha arquitetônica
como mesas e cadeiras. As crianças das moradias enquanto configura-
surpreendem-nos com seus conhecimentos dora de formas culturais e históricas e,
de vários modos, narrando aspectos da realida- assim, instigá-las a reelaborarem graficamente
de vivida e criada. A história relatada a seguir o tema ‘casa’ em suas produções”. As crianças
faz parte do repertório das conhecidas histórias realizaram várias atividades: desenharam suas
de Pedro Bloch, publicadas na revista Pais e casas e os tipos de casa que conhecem; obser-
Filhos, que mostra uma menina que, por meio varam as casas das calçadas das ruas do bairro e
desenharam casas; fizeram rodas de apreciações
de seu desenho, desafia a certeza da professora
utilizando painéis com desenhos de casas de
de modo muito seguro.
várias turmas. As crianças se surpreenderam
Uma professora de creche observava as com o fato de seus desenhos de casas serem
crianças de sua turma desenhando. tão semelhantes e estereotipados, à medida
Ocasionalmente passeava pela sala para que os contrastaram com suas observações
ver os trabalhos de cada criança. da realidade, uma vez que essas ressaltavam
a existência de uma grande diversidade de
Quando chegou perto de uma menina que
formas. Algumas crianças interpretaram
trabalhava intensamente, perguntou o
que isso ocorria porque “não sabiam” fazer
que desenhava. A menina respondeu:
direito, outras porque “a gente não olha di-
- “Estou desenhando Deus”. reito”. A partir dessas reflexões, as crianças
A professora parou e disse: realizaram novas atividades: de observação,
“retrato falado” da casa e releituras de obras
- “Mas ninguém sabe como é Deus”. de Kandinsky. Foram desenvolvidas também
Sem piscar e sem levantar os olhos de seu atividades com jogos, articulando a linguagem
desenho, a menina respondeu: imagética, a ação motora e a ludicidade com
o uso de barbante e cordão de rede. A idéia
- “Saberão dentro de um minuto”.
era encorajá-las a expressar com o corpo e a
Um projeto interessante envolvendo desenho, linha as suas construções imagéticas (a partir de
pintura e arquitetura é relatado pela professora um poema, de uma pintura, de uma fotografia
Evanir de Oliveira, de Natal/RN. Tal projeto etc.). Durante todo o trabalho, acreditou-se
envolveu várias turmas da escola, abrangendo nas capacidades das crianças e dos adolescentes,
54 a faixa etária de seis a doze anos. Inquietos com buscando romper a idéia, que muitos deles vão

36082-Ensino Fundamental de 9 an54 54 14/08/07 19:03


incorporando, de que não sabem desenhar; movimento constituam formas sensíveis de se
incentivaram-se a interpretação, o olhar críti- apropriar de conhecimentos sobre o mundo
co, a invenção e a descoberta de soluções. e sobre nós mesmos nos espaços escolares!
Certamente todos ganharam novos Tornemos a escola mais colorida,
conhecimentos e instrumentos encantada, viva, espaço de arte,
para enriquecerem suas possibi- Aprender a cultura e conhecimento!
lidades de expressão por meio ler imagens, sons, Aprender a ler imagens, sons,
do desenho. Ao término do
objetos amplia objetos amplia nossas possibi-
ano letivo, foi realizada uma
nossas possibili- lidades de sentir e refletir sobre
grande exposição coletiva
dades de sentir e novas ações que criem outras
das produções das crianças e
formas de vida no sentido de
adolescentes, resultado de um refletir sobre no- uma sociedade justa e feliz, assim
longo e rico processo em que vas ações. como incita as crianças a também
novos conceitos e saberes foram
se tornarem autoras de suas produ-
produzidos. (Brasil. Ministério da
ções e de suas vidas ao mesmo tempo
Educação – Prêmio Incentivo à Educação
em que se responsabilizam pela nossa herança
Fundamental 2004, p. 93-102).
cultural, por descobrirem seu valor.
Tal relato mostra-nos que o desenho possui
Conforme ensina Calvino (1991), cada um
conteúdos próprios, os quais fornecem novas de nós é uma enciclopédia, uma biblioteca,
possibilidades de expressão e de compreensão um inventário de objetos, uma amostragem de
do mundo e de si mesmo. Sendo assim, por objetos, de estilos, em que tudo pode ser con-
que é tão comum ser relegado a uma atividade tinuamente remexido e reordenado de todas
complementar aos conteúdos das disciplinas? as maneiras possíveis. Cada um de nós é uma
Por que à medida que as crianças avançam em combinatória de experiências, de informações,
idade e séries escolares vão compreendendo-o de leituras, de imaginações.
como uma linguagem restrita àqueles que “têm
O conhecimento, qualquer que seja, não
jeito, dom”? Como uma das diversas formas de
tem vida autônoma, visto que se trata de
conhecimento e inteligibilidade do mundo,
um produto cultural. Como afirma Bagno
todos nós deveríamos apropriar-nos do dese-
(2003, p.18) em relação à língua: “ ‘a língua’
nho como forma de expressão.
como uma ‘essência’ não existe: o que existe são
Deixemos a imaginação, a fruição, a sensi- seres humanos que falam línguas. (...) ela é tão
bilidade, a cognição, a memória transitarem concreta quanto os seres humanos de carne e
livremente pelas ações das crianças com o osso que se servem dela e dos quais ela é parte
lápis, a tinta e o papel, com as palavras escritas integrante”. O mesmo pode ser dito em relação
e orais, com argila e materiais residuais, com os à arte, à cultura e ao conhecimento, pois são
sons e ritmos musicais, os gestos e movimentos sujeitos de carne e osso, que interpretam a
do corpo, com as imagens de filmes, fotogra- realidade, dando vida às palavras, às ações, aos
fias, pinturas, esculturas...! Permitamos que o fazeres, criando diferentes formas de expressar
olhar, a escuta, o toque, o gosto, o cheiro, o o mundo.

55

36082-Ensino Fundamental de 9 an55 55 14/08/07 19:03


Referências Bibliográficas

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BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BARROS, M. de. Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
BRASIL. Ministério da Educação. Prêmio incentivo à educação fundamental 2004: experiências
premiadas. Brasília, 2005.
–––––––. Prêmio qualidade na educação infantil 2004: projetos premiados. Brasília, 2005.
–––––––. Prêmio professores do Brasil 2005: experiências premiadas. Brasília, 2006.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1990.
GALEANO, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: LP&M, 2005.
KRAMER, S. Produção cultural e educação: algumas reflexões sobre educar com museu. In: KRA-
MER, S.; LEITE, M. I. Infância e produção cultural. Campinas, SP: Papirus, 1998.
LEITE, M.I. Desenho infantil: questões e práticas polêmicas. In: KRAMER, S.; LEITE, M. I.
Infância e produção cultural. Campinas, SP: Papirus, 1998.
OSTETTO, L. E.; LEITE, M. I. Arte, infância e formação de professores: autoria e transgressão.
Campinas, SP: Papirus, 2004.
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1986.
VYGOTSKY, L. S. Imaginación y el arte en la infancia. México: Hispânicas,1987.

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36082-Ensino Fundamental de 9 an56 56 14/08/07 19:03


AS CRIANÇAS DE SEIS ANOS
E AS ÁREAS DO CONHECIMENTO
Patrícia Corsino1

Todo conhecimento [...] deve conter


um mínimo de contra-senso, como os
antigos padrões de tapete ou de frisos
ornamentais, onde sempre se pode
descobrir, nalgum ponto, um desvio
insignificante de seu curso normal.
Em outras palavras: o decisivo não é
o prosseguimento de conhecimento em
conhecimento, mas o salto que se dá
em cada um deles.

Walter Benjamin

A
inclusão das crianças de seis anos no criança está significando nesse processo de
ensino fundamental provoca uma sé- interação. O olhar sensível para as produções
rie de indagações sobre o que e como infantis permitirá conhecer os interesses das
se deve ou não ensiná-las nas diferentes áreas crianças, os conhecimentos que estão sendo
do currículo. Antes de discutir essas questões, apropriados por elas, assim como os elementos
trazemos texto de Walter Benjamin, filósofo culturais do grupo social em que estão imersas.
e crítico da modernidade, como um convite A partir daí, será possível desenvolver um
para iniciar as reflexões. No fragmento, o au- trabalho pedagógico em que a criança esteja
tor compara a apropriação do conhecimento em foco.
com um tapete tecido artesanalmente que, Em que consistiria esse desafio? A criança já
por ser único, carrega nos desvios e imperfei- não seria o foco das propostas educacionais?
ções do tecido a autenticidade que o distingue Não há dúvida de que muitos de nós, pro-
de qualquer outro. É na singularidade e não fessores(as), consideramos as crianças sujeitos
na padronização de comportamentos e ações do processo educativo e buscamos no cotidia-
que cada sujeito, nas suas interações com o no da sala de aula formas de conhecê-las, de
mundo sociocultural e natural, vai tecendo os aproximá-las de conhecimentos e de valorizar
seus conhecimentos. Esse pressuposto traz um suas produções. Mas também podemos ob-
grande desafio para nós, professores – tanto servar outras posições, como, por exemplo,
na educação infantil quanto no ensino funda- situações em que, embora os objetivos a ser
mental –, o de observar o que e como cada alcançados digam respeito às crianças, o foco
1
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro; Professora Adjunta do Departamento de
Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 57

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está no conteúdo a ser ensinado, no livro di- formas de aprender, suas facilidades e dificul-
dático, no tempo e no espaço impostos pela dades, como é seu grupo familiar e social, sua
rotina escolar, na organização dos adultos e vida dentro e fora da escola. Conhecer, por
até mesmo nas suposições, nas idealiza- sua vez, implica sensibilidade, conheci-
ções e nos preconceitos sobre quem mentos e disponibilidade para obser-
são as crianças e como deveriam var, indagar, devolver respostas
aprender e se desenvolver. Como pensar para articular o que as crianças
Numa outra posição, o foco num trabalho foca- sabem com os objetivos das
na criança é compreendido diferentes áreas do currículo.
como subordinação do tra-
do na criança sem Implica, também, uma orga-
balho às vontades da criança perder o compro- nização pedagógica flexível,
ou restrição das experiências misso com a sua aberta ao novo e ao imprevi-
educacionais ao seu universo inserção sociocul- sível; pois não há como ouvir
sociocultural, como se fosse tural? as crianças e considerar as suas
possível tecer o tapete sem ter falas, interesses e produções sem
os fios e sem aprender os pontos. Na alterar a ordem inicial do trabalho,
primeira posição, cabe à criança se adaptar sem torná-lo uma via de mão dupla onde
ou se encaixar ao que o adulto propõe porque as trocas mútuas sejam capazes de promover
é ele quem sabe e determina o que é bom ampliações, provocar os saltos dos conheci-
para ela. Já na segunda, ocorre o inverso, mentos, como Benjamin sugere.
tornam-se secundários a atuação do adulto e Esse enfoque coloca-nos num lugar estratégico
o compromisso da escola com a apropriação porque cabe a nós, professores(as), planejar,
de conhecimentos e com a aprendizagem propor e coordenar atividades significativas
da criança. e desafiadoras capazes de impulsionar o de-
Essas duas tendências contraditórias são senvolvimento das crianças e de amplificar
muito mais freqüentes do que supomos. Para as suas experiências e práticas socioculturais.
Pinto (1997), se analisarmos as concepções Somos nós que mediamos as relações das
de criança que subjazem quer ao discurso crianças com os elementos da natureza e da
comum, quer à produção científica centrada cultura, ao disponibilizarmos materiais, ao
no mundo infantil, perceberemos uma grande promovermos situações que abram caminhos,
disparidade de posições. Uns valorizam aquilo provoquem trocas e descobertas, incluam
que a criança é e faz, outros enfatizam o que cuidados e afetos, favoreçam a expressão por
lhe falta ou o que ela poderá ou deverá vir a meio de diferentes linguagens, articulem as
ser. E nós, professores(as), muitas vezes os- diferentes áreas do conhecimento e se fun-
cilamos entre as duas posições. Seria, então, damentem nos princípios éticos, políticos e
possível entender essa oscilação, trazendo as estéticos, conforme estabelecem as Diretrizes
contradições e paradoxos de forma dialética Curriculares para o Ensino Fundamental
para se buscar a superação dessa dicotomia? (Brasil. Ministério da Educação/Conselho
Como pensar num trabalho focado na criança Nacional de Educação – Resolução CEB no
sem perder o compromisso com a sua inserção 02/1998).
sociocultural? Mediar essas relações, entretanto, é uma tare-
Na busca desse foco, pensamos que um ponto fa desafiadora pelas escolhas que precisamos
de partida seria conhecer as crianças, saber continuamente fazer em relação à eleição de
quais são os seus interesses e preferências, suas conteúdos e temas e às propostas metodoló-
58

36082-Ensino Fundamental de 9 an58 58 14/08/07 19:03


gicas para aproximá-los das crianças. Quanto A criança de seis anos e o
ao conteúdo, há várias indagações: o que se- currículo do ensino fundamental
lecionar em face do acúmulo de produções
e informações a que estamos sujeitos Como o próprio nome indica, as Dire-
e suas constantes transformações? trizes Curriculares Nacionais para
Que conhecimentos são fun- o Ensino Fundamental (Brasil.
Que conheci- Ministério da Educação/Con-
damentais e indispensáveis à
mentos são selho Nacional de Educação,
formação das crianças? E como
essas escolhas são políticas, fundamentais e Resolução CEB no 2, 1998)
alargam-se as perguntas: que indispensáveis constituem o documento legal
elementos e de que cultura(s) à formação das que traça uma direção para que
estão sendo selecionados e adap- as escolas reflitam sobre suas
crianças? propostas pedagógicas. Como
tados para serem introduzidos às
crianças? Quais os que estão sendo eixos das propostas pedagógicas das
silenciados? De que ponto de vista estão escolas, as Diretrizes definem os seguintes
sendo abordados e para que grupos sociais? princípios: “a) Princípios Éticos da Autono-
Quais são as condições concretas de produção mia, da Responsabilidade, da Solidariedade
do trabalho escolar? e do Respeito ao Bem Comum; b) Princípios
Políticos dos Direitos e Deveres da Cidadania,
Quanto à metodologia, indagamos: que in- do Exercício da Criticidade e do Respeito à
tervenções do professor contribuem para os Ordem Democrática; c) Princípios Estéticos
processos de desenvolvimento integral das da Sensibilidade, Criatividade e Diversidade
crianças? Como ampliar o universo cultural de Manifestações Artísticas e Culturais”.
das crianças e suas possibilidades de intera-
ção? Que construções estão sendo realizadas A partir desses eixos, é importante que o
pelas crianças ante os elementos culturais trabalho pedagógico com as crianças de seis
e naturais que as circundam? Que situações anos de idade, nos anos/séries iniciais do
permitem e favorecem a manifestação das ensino fundamental, garanta o estudo arti-
diferentes linguagens? culado das Ciências Sociais, das Ciências
Naturais, das Noções Lógico-Matemáticas e
As indagações são muitas e as respostas se das Linguagens.
abrem a vários caminhos e novas questões.
Entendemos que o conhecimento é uma Trabalhar com os conhecimentos das Ciências
construção coletiva e é na troca dos sentidos Sociais nessa etapa de ensino reside, especial-
construídos, no diálogo e na valorização das mente, no desenvolvimento da reflexão crítica
diferentes vozes que circulam nos espaços de sobre os grupos humanos, suas relações, suas
interação que a aprendizagem vai se dando. histórias, suas formas de se organizar, de resol-
Sendo assim, é nosso objetivo neste texto ver problemas e de viver em diferentes épocas
discutir algumas das questões apresentadas, e locais. Assim, a família , a escola, a religião, o
trazer suas tensões e favorecer possíveis res- entorno social (bairro, comunidade, povoado),
postas para pensarmos juntos as diferentes o campo, a cidade, o país e o mundo são esferas
áreas do currículo e a inclusão das crianças da vida humana que comportam inúmeras
de seis anos de idade no ensino fundamental relações, configurações e organizações. Propor
de nove anos. A seguir, abordaremos o tema, atividades em que as crianças possam ampliar
trazendo alguns pontos para reflexão neste a compreensão da sua própria história, da sua
momento de acolhida dessas crianças. forma de viver e de se relacionar. Identificar
diferenças e semelhanças entre as histórias 59

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vividas pelos colegas e por outras pessoas e gru- natureza e membro de uma espécie – entre
pos sociais próximos ou distantes, que conhe- tantas outras espécies do planeta –, estabele-
cem pessoalmente ou que conheceram pelas cendo as mais diversas relações e percebendo
histórias ouvidas, lidas, vistas na televisão, em o significado dos saberes dessa área com suas
filmes, em livros, etc. Histórias individuais e ações do cotidiano.
coletivas que participam da construção O objetivo do trabalho com as
da história da sociedade. Noções Lógico-Matemáticas nas
O trabalho com a área das séries/anos iniciais é dar opor-
Ciências Sociais também É importante tunidade para que as crianças
objetiva ajudar a criança organizar os tempos coloquem todos os tipos de
a pensar e a desenvolver e os espaços da escola objetos, eventos e ações em
atitudes de observação, de para favorecer o todas as espécies de relações
estudo e de comparação (Kamii,1986). Encorajar
contato das crianças
das paisagens, do lugar onde as crianças a identificar
habita, das relações entre o com a natureza e com semelhanças e diferenças
homem, o espaço e a natu- as tecnologias. entre diferentes elementos,
reza. É importante conhecer as classificando, ordenando e se-
transformações ocorridas sob a ação riando; a fazer correspondências e
humana na construção, no povoamento agrupamentos; a comparar conjuntos; a
e na urbanização das diferentes regiões do pla- pensar sobre números e quantidades de objetos
neta. Perceber que a maneira como o homem quando esses forem significativos para elas,
lida com a natureza interfere na paisagem e, operando com quantidades e registrando as
conseqüentemente, na forma e na qualidade situações-problema (inicialmente de forma
de vida das pessoas. Propor atividades por meio espontânea e, posteriormente, usando a lin-
das quais as crianças possam investigar e inter- guagem matemática). É importante que as
vir sobre a realidade, reconhecendo-se como atividades propostas sejam acompanhadas de
parte integrante da natureza e da cultura. jogos e de situações-problema e promovam
Na área das Ciências Naturais, o objetivo é a troca de idéias entre as crianças. Especial-
ampliar a curiosidade das crianças, incentivá- mente nessa área, é fundamental o professor
las a levantar hipóteses e a construir conheci- fazer perguntas às crianças para poder intervir
mentos sobre os fenômenos físicos e químicos, e questionar a partir da lógica delas.
sobre os seres vivos e sobre a relação entre o O trabalho com a área das Linguagens parte
homem e a natureza e entre o homem e as do princípio de que a criança, desde bem
tecnologias. É importante organizar os tempos pequena, tem infinitas possibilidades para o
e os espaços da escola para favorecer o contato desenvolvimento de sua sensibilidade e de
das crianças com a natureza e com as tecno- sua expressão. Um dos grandes objetivos do
logias, possibilitando, assim, a observação, a currículo nessa área é a educação estética, isto
experimentação, o debate e a ampliação de é, sensibilizar a criança para apreciar uma pin-
conhecimentos científicos. tura, uma escultura, assistir a um filme, ouvir
As atividades didáticas dessa área têm como uma música. Nesse período, é importante a
finalidade desafiar as crianças, levá-las a criança vivenciar atividades em que possa ver,
prever resultados, a simular situações, a ela- reconhecer, sentir, experienciar, imaginar as
borar hipóteses, a refletir sobre as situações diversas manifestações da arte e atuar sobre
do cotidiano, a se posicionar como parte da elas. É fundamental que ela conheça as pro-
60

36082-Ensino Fundamental de 9 an60 60 14/08/07 19:03


duções artísticas de diferentes épocas e grupos Finalmente, ainda na área das Linguagens, é
sociais, tanto as consideradas da cultura popu- preciso assegurar um ensino pautado por uma
lar, quanto as consideradas da cultura erudita. prática pedagógica que permita a realização
O trabalho com as linguagens nas séries/anos de atividades variadas, as quais, por sua vez,
iniciais tem como finalidade dar oportunida- possibilitem práticas discursivas de diferentes
de para que as crianças apreciem diferentes gêneros textuais, orais e escritos, de usos,
produções artísticas e também elaborem suas finalidades e intenções diversos. Textos que
experiências pelo fazer artístico, ampliando a circulam nas diferentes esferas sociais e são
sua sensibilidade e a sua vivência estética. produzidos por interlocutores em processos
O trabalho pedagógico com ênfase na área das interativos (Bakhtin, 1992a, 1992b). Textos
Linguagens também inclui possibilitar a socia- significativos para as crianças, produzidos nas
lização e a memória das práticas esportivas e de mais variadas situações de uso da linguagem
outras práticas corporais. Entendemos que, em oral e escrita, em que elas participem como
todas as áreas, é essencial o respeito às culturas, locutores e como ouvintes. É importante
à ludicidade, à espontaneidade, à autonomia que o cotidiano das crianças das séries/anos
e à organização das crianças, tendo como iniciais seja pleno de atividades de produ-
objetivo o pleno desenvolvimento humano. ção e de recepção de textos orais e escritos,
O(a) professor(a), ao planejar atividades dessa tais como escuta diária da leitura de textos
área para as crianças, precisa escolher aque- diversos, especialmente de histórias e textos
las que promovam a consciência corporal, a literários; produção de textos escritos mediada
troca entre elas, a aceitação das diferenças, o pela participação e registro de parceiros mais
respeito, a tolerância e a inclusão do outro. experientes; leitura e escrita espontânea de
Reconhecemo-nos e diferenciamo- textos diversos, mesmo sem o domínio
nos a partir do outro, por isso, as das convenções da escrita; partici-
atividades devem permitir que pação em jogos e brincadeiras
todas as crianças possam par- As crianças devem com a linguagem; entre mui-
tas outras possíveis. Ao lado
ticipar, se divertir e aprender, ser encorajadas a
sejam elas gordas ou magras, disso, as crianças devem
pensar, a discutir, ser encorajadas a pensar,
altas ou baixas, fortes ou a conversar e,
franzinas, rápidas ou menos a discutir, a conversar e,
ágeis. Vale lembrar que o de-
especialmente, a especialmente, a raciocinar
senvolvimento dessa área na raciocinar sobre a sobre a escrita alfabética,
escola não tem como finalidade escrita alfabética. pois um dos principais obje-
classificar ou selecionar atletas. tivos do trabalho com a língua
Seu objetivo principal, antes de qual- nos primeiros anos/séries do ensino
quer intenção de desenvolver habilidades fundamental é lhes assegurar o conhe-
motoras, é promover a inclusão de todos. Sen- cimento sobre a natureza e o funcionamento
do assim, é importante que os conhecimentos e do sistema de escrita, compreendendo e se
as atividades dessa área sejam instrumentos de apropriando dos usos e convenções da lingua-
formação integral das crianças e de prática de gem escrita nas suas mais diversas funções.
inclusão social, e proporcionem experiências Diante dessa breve abordagem sobre a im-
que valorizem a convivência social inclusiva, portância de um planejamento cuidadoso,
que incentivem e promovam a criatividade, a que assegure o desenvolvimento de todas
solidariedade, a cidadania e o desenvolvimento as áreas do conhecimento, a ampliação do
de atitudes de coletividade. ensino fundamental para nove anos, que 61

36082-Ensino Fundamental de 9 an61 61 14/08/07 19:03


significa bem mais que a garantia de mais A linguagem é constituinte do sujeito e, por-
um ano de escolaridade obrigatória, é uma tanto, central no cotidiano escolar. De acordo
oportunidade histórica de a criança de seis com Vygotsky (1993, 2000), a linguagem
anos pertencente às classes populares ser é um dos instrumentos básicos inventados
introduzida a conhecimentos que foram fruto pelo homem cujas funções fundamentais são
de um processo sócio-histórico de construção o intercâmbio social – é para se comunicar
coletiva. Esse ano ou essa série inicial deve que o homem cria e utiliza sistemas de lin-
compor um conjunto com os outros anos ou guagem – e o pensamento generalizante – é
outras séries do ensino fundamental; portanto, pela possibilidade de a linguagem ordenar o
deve se articular a ele(a)s no plano pedagógico real, agrupando uma mesma classe de objetos,
de cada uma das escolas. eventos e situações, sob uma mesma categoria,
que se constroem os conceitos e os significados
Infância , linguagem, das palavras. A linguagem, então, atua não só
conhecimento e aprendizagem no nível interpsíquico (entre pessoas), mas
É importante que o(a) professor(a) pense nas também no intrapsíquico (interior do sujei-
crianças como sujeitos ativos que participam e to). Decorre disso que operar com sistemas
intervêm no que acontece ao seu redor porque simbólicos possibilita a realização de formas
suas ações são também forma de reelaboração de pensamento que não seriam possíveis sem
e de recriação do mundo. Nos seus processos esses processos de representação.
interativos, a criança não apenas recebe, mas Ainda para Vygotsky (2000), o elo central
também cria e transforma – é constituída na cul- do processo de aprendizagem é a formação de
tura e também é produtora de cultura. As ações conceitos. Esse autor compara e inter-relacio-
da criança são simultaneamente individuais e na duas categorias de conceitos: os conceitos
únicas porque são suas formas de ser e de estar espontâneos – construídos cotidianamente
no mundo, constituindo sua subjetividade, e pela ação direta das crianças sobre a realidade
coletivas na medida em que são contextua-li- experimentada e observada por elas – e os con-
zadas e situadas histórica e socialmente. Agi- ceitos científicos – construídos em situações
mos movidos por intenções, desejos, emoções formais de ensino-aprendizagem. Para o autor,
provocados por outras ações realizadas por nós os conceitos espontâneos percorrem muitos
mesmos ou por outros num continuum de sim- caminhos até a criança ser capaz de defini-los
bolizações. Sendo assim, a ação da criança no verbalmente. Por exemplo, quanto ao concei-
mundo não pode ser entendida apenas como to de irmão, o próprio Vygotsky relata a dificul-
desempenho ou comportamento, mas como dade inicial da criança em definir o conceito,
simbolização do sujeito. Nessa perspectiva, mesmo tendo a experiência de possuir um
conhecer a criança implica observar suas irmão. Já os conceitos científicos, que partem
ações-simbolizações, o que abre espaço para de uma definição, precisam aliar a formulação
a valorização de falas, produções, conquistas científica à experiência das crianças. Um bom
e interesses infantis e faz da sala de aula um exemplo disso é a definição de condensação
espaço de socialização de saberes e confronto da água. Ter observado uma roupa secando
de diferentes pontos de vista – das crianças, é importante para entender a mudança de
do professor, dos livros e de outras fontes estado da água para vapor. As apropriações
– fazendo o trabalho se abrir ao novo, inédito, dos conceitos espontâneos e dos conceitos
imprevisível e surpreendente. científicos seguem, assim, direções diferentes,
mas são processos intimamente interligados
62

36082-Ensino Fundamental de 9 an62 62 14/08/07 19:03


que exercem influências mútuas. Será que, para o plano da linguagem, isto é, recriá-la na
ao planejarmos atividades pedagógicas para as imaginação para que seja possível exprimi-la em
diferentes áreas do conhecimento, estamos palavras” (p. 275). Para o autor, o desen-
atentos à inter-relação entre as duas volvimento consiste nessa progressiva
categorias de conceitos? tomada de consciência dos con-
ceitos e operações do próprio
O autor enfatiza que a apreen- O desenvolvi-
são dos sistemas de conheci- pensamento.
mento dos con-
mento científicos pressupõe ceitos científicos Essas colocações são bastante
um tecido conceitual já am- provocativas para a escola,
plamente elaborado e desen-
não é fruto de especialmente para o trabalho
volvido por meio da atividade memorização ou com as crianças nos anos/séries
espontânea do pensamento de imitação. iniciais do ensino fundamen-
infantil. E destaca, ainda, que tal, quando se inicia o processo
o desenvolvimento dos conceitos de sistematização de conceitos e
científicos não é fruto de memoriza- formalização dos conteúdos. Como
ção ou de imitação, pois esses surgem e se pensar, então, nessa introdução das crianças
constituem por meio de uma tensão de toda a aos conceitos científicos? Como proceder para
atividade do próprio pensamento infantil: “na que as crianças progressivamente desloquem
medida em que a criança toma conhecimento os conceitos do plano da ação para o plano do
pela primeira vez do significado de uma nova pensamento?
palavra, o processo de desenvolvimento dos Em qualquer área, esses deslocamentos podem
conceitos não termina, mas está apenas come- ser pensados pelo(a) professor(a). Vejamos a
çando” (Vygotsky, 2000, p. 252). Será que no seguir algumas possibilidades:
cotidiano escolar estamos atentos à importân-
cia de as crianças mexerem, experimentarem, 1) plano da ação
descobrirem, investigarem, deduzirem? Temos
promovido e facilitado o contato direto das Propor atividades que favoreçam as ações
crianças com os elementos da natureza e da da criança sobre o mundo social e natural.
cultura? Temos planejado aulas-passeio, visi- Sem possibilidades de agir, a criança não tem
tas, entrevistas, observações, experimentações, elementos para construir os conceitos espon-
filmes, etc.? Quando trabalhamos um conceito tâneos e, conseqüentemente, chegar à tomada
científico, quais têm sido as atividades que o de consciência e aos conceitos científicos. Por
antecedem e as que vão sucedê-lo? isso, os planejamentos das atividades, sejam
elas de Matemática, Ciências, História, Ge-
Estudando as complexas relações entre as ografia ou Língua Portuguesa, precisam con-
duas categorias de conceitos, Vygotsky (2000) templar inicialmente a ação, ou seja, a própria
observou que, embora as crianças consigam movimentação da criança e manipulação de
operar espontaneamente com uma série de objetos e materiais, aulas-passeio, estudos do
palavras, elas não têm consciência da sua meio, visitas, entrevistas, etc. Como ação e
definição, ou seja, não conseguem tomar simbolização estão juntas, cabem também a
consciência do seu próprio pensamento. Isto leitura de histórias e poemas, a recepção de
é: quanto mais usam automaticamente alguma sons e imagens (músicas, filmes, documen-
relação tanto menos têm consciência dela. Por tários etc.) etc. Nesse processo, a criança vai
isso entende que “tomar consciência de alguma tendo a oportunidade de experimentar, ana-
operação significa transferi-la do plano da ação lisar, inferir, levantar hipóteses etc. A partir 63

36082-Ensino Fundamental de 9 an63 63 14/08/07 19:03


da ação, o professor pode pensar em planos notações como a linguagem matemática,
de representação e conseqüente tomada de gráficos, mapas, tabelas etc. As notações e
consciência dessa ação, ou seja, propor que escritas espontâneas das crianças, pelas su-
as crianças representem o que viram, sen- cessivas tomadas de consciência, a partir da
tiram, fizeram e depois falem sobre as suas mediação do(a) professor(a) e/ou de pessoas
representações, expliquem como chegaram mais experientes, gradativamente vão dando
a uma determinada solução etc. lugar às convencionais.

2) planos de representação Vygotsky considera que a tomada de consciên-


cia eleva o pensamento a um nível mais
Expressão corporal – são as brincadeiras, abstrato e generalizado. Sendo assim, pla-
imitações e dramatizações por meio das quais nejar o trabalho pedagógico tendo em vista
as crianças reapresentam o que viveram e o fluxo que vai da ação à representação e
sentiram com o próprio corpo ou manipulando dessa última à tomada de consciência – com
objetos como fantoches, bonecos, brinquedos a explicitação verbal do que foi feito – pode
etc.; ser um caminho para favorecer a apropriação
Expressão gráfica e plástica – são os dese- gradativa de conceitos científicos, além de
nhos, pinturas, colagens, modelagens que tornar o trabalho mais dinâmico. Ações,
as crianças fazem para representar o que foi representações e momentos de verbalização
vivido e experimentado. Gradativamente, do que foi elaborado podem ser pensados de
essas representações vão sendo planejadas maneira que alternem espaços da sala ou da
pelas crianças e vão ganhando formas mais escola (em pé, sentado na rodinha), mesa
definidas e elaboradas; (individual, grupo), pátio, sala de leitura etc.,
e atividades mais ou menos movimentadas,
Expressão oral – fala/verbalização – são as individuais ou em duplas, em pequenos gru-
situações em que as crianças são chamadas a pos ou com toda a turma.
conversar sobre o que fizeram, viram, sentiram,
como chegaram a determinados resultados, Para Vygotsky (1991), o aprendizado adequa-
que caminhos seguiram, ou seja, são incen- damente organizado resulta em desenvolvi-
tivadas a falar sobre suas experiências, seus mento e põe em movimento vários processos
sentimentos e também sobre o seu próprio que, de outra forma, não aconteceriam. Para
pensamento (procedimentos de metacogni- o autor, o desenvolvimento do indivíduo está
ção), além de terem a oportunidade de fazer diretamente ligado à sua relação com o am-
uso de diferentes gêneros discursivos; biente sociocultural e o papel social do outro
é de fundamental importância, uma vez que
Expressão/registros escritos – a língua escri- o indivíduo aprende e se desenvolve a partir
ta, assim como a oral, exerce várias funções do convívio com os outros de sua espécie.
e possui inúmeros usos sociais e formas de se Vygotsky vê o desenvolvimento retrospecti-
articular. Cada esfera da atividade humana vamente, no nível de desenvolvimento real,
produz seus gêneros discursivos. É importante que se costuma determinar pela solução inde-
que, na escola, as crianças sejam desafiadas a pendente de problemas e, prospectivamente,
fazer uso de diferentes gêneros e de diferentes no nível de desenvolvimento potencial,
formas de registrar as ações que viveram, determinado pela solução de problemas sob a
num processo de apropriação gradativa dos orientação de um adulto ou em colaboração
usos e convenções dos sistemas notacionais com companheiros mais experintes. É dessa
que incluem a linguagem escrita – com seus divisão do desenvolvimento em níveis que
64 diversos gêneros e tipos de textos – e outras

36082-Ensino Fundamental de 9 an64 64 14/08/07 19:03


Vygotsky formula o conceito de zona de desen- Nesse sentido, um caminho encontrado por vá-
volvimento proximal2 como a distância entre rios professores para desenvolver as diferentes
o nível de desenvolvimento real e o potencial. áreas do currículo de forma criativa e inter-
Conceito que permite a compreensão do curso disciplinar, que vá ao encontro dos interesses
interno do desenvolvimento do indivíduo e, das crianças e ao mesmo tempo possibilite a
ainda, o acesso aos processos que estão ama- ampliação de suas experiências e a sua inserção
durecendo e se encontram embrionariamente cultural, tem sido o trabalho com projetos, o
presentes. qual será abordado a seguir.
As investigações de Vygotsky (2000) mos- Projetos pedagógicos:
traram que todo objeto de aprendizagem possibilidade de diálogo entre as
escolar se constrói num terreno ainda não áreas do conhecimento
amadurecido e que a questão sobre as fun-
ções amadurecidas devem continuar sendo A opção de alguns professores em trabalhar
observadas porque com projetos tem revelado quanto os pro-
cabe definir sempre o limiar inferior cessos de ação-representação-tomada de
da aprendizagem. Mas (...) devemos consciência podem ser ampliados e quanto
ter também a capacidade para definir se pode atuar pedagogicamente no limiar
o limiar superior da aprendizagem. Só superior da aprendizagem, visto que os pro-
na fronteira entre estes dois limiares jetos caminham conforme os interesses das
a aprendizagem pode ser fecunda. Só crianças e a disponibilidade de recursos que
entre eles se situa o período de excelência escola e comunidade oferecem. Mas o que
do ensino de uma determinada matéria são os projetos de trabalho e como trabalhar
(p. 333). com eles?

Compreender esses limites é o grande desafio Trabalhar com projetos é uma forma de vin-
do trabalho pedagógico que se quer excelen- cular o aprendizado escolar aos interesses e
te. E eles nos remetem às questões ini- preocupações das crianças, aos problemas
cias do texto: conhecer as crianças. emergentes na sociedade em que vi-
Desafiá-las e instigá-las a ir além
Conhecer vemos, à realidade fora da escola e
do que já construíram. Como é as crianças. às questões culturais do grupo. Os
possível conhecer esses limites Desafiá-las e projetos vão além dos limites do
currículo, pois os temas eleitos
seguindo o livro didático tal e instigá-las a ir
qual, sem proceder a ampliações podem ser explorados de forma
além do que já ampla e interdisciplinar, o que
e alterações? Como planejar e construíram.
organizar o trabalho pedagógico implica pesquisas, busca de infor-
de forma que haja de fato aprendizado mações, experiências de primeira
das crianças e conseqüente desenvolvi- mão, tais como visitas e entrevistas, além
mento? Como trabalhar de forma que garanta de possibilitarem a realização de inúmeras
a atuação pedagógica no limiar superior, ou atividades de organização e de registro, feitas
seja, atuando na zona de desenvolvimento individualmente, em pequenos grupos ou com
imediato? a participação de toda a turma.

2
Bezerra, tradutor do livro de Vygotsky, A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000, diretamente
do russo, indica, no prefácio, que o termo mais próximo do que fora empregado por Vygotsky seria zona de desenvolvimento
imediato e não proximal como foi inicialmente traduzido do inglês. 65

36082-Ensino Fundamental de 9 an65 65 14/08/07 19:03


Os projetos valorizam o trabalho e a Os projetos de trabalho de uma turma
função do professor que, em vez de também podem ter caráter perma-
ser alguém que reproduz ou adapta nente, como a organização de
o que está nos livros didáticos Os projetos exi- uma horta, ou uma duração
e nos seus manuais, passa a gem cooperação, menor, como a elaboração de
ser um pesquisador do seu interesse, curio- um caderno de receitas. Al-
próprio trabalho. O professor guns projetos são vinculados
sidade, pesquisa
torna-se alguém que também a um tema específico, outros
busca informações sobre o tema coletiva em dife- podem ser desdobramentos de
eleito, incentiva a curiosidade e a rentes fontes. projetos institucionais. O mais
criatividade do grupo e, sobretudo, importante é que os projetos de
entende as crianças como sujeitos que trabalho partam de questões do grupo,
têm uma história e que participam ativamen- estejam diretamente ligados aos interesses
te do mundo construindo e reconstruindo a das crianças, possibilitem um contato com
cultura na qual estão imersos. Ao se tornar práticas sociais reais e permitam o estabele-
mais atento ao que surge do grupo, o professor cimento de múltiplas relações, ampliando o
amplia o diálogo com as crianças e se torna conhecimento de professores, alunos, pais
importante na busca, na organização e na e comunidade escolar sobre um assunto es-
mediação dos conhecimentos. A procura de pecífico. As etapas do trabalho devem ser
todos por respostas às questões que surgem no planejadas pelo professor e negociadas com
grupo mobiliza e torna a aprendizagem um as crianças para que essas possam acompanhar
desafio coletivo. E a escola pode ser um espaço e participar ativamente de todo o processo,
de busca, de reflexão, que se vale de fontes e dando sugestões, questionando, buscando
áreas de conhecimento diversas para enten- soluções, fontes de informação e até mesmo
der um fenômeno natural, cultural e social. avaliando. Os projetos exigem cooperação,
Lugar onde as diferentes linguagens assumem interesse, curiosidade, pesquisa coletiva em
grande importância, pois são as ferramentas diferentes fontes, registros do que está sen-
necessárias para ler, entender, interpretar e do pesquisado como fotografias, desenhos,
dizer o mundo. pinturas, colagens, maquetes, instalações,
Uma escola comporta vários tipos de projetos. teatro, dramatizações etc. e os mais variados
A começar pelo projeto político-pedagógico tipos de textos escritos. Ao professor cabe a
definidor da sua proposta. O projeto político- mediação de cada momento do processo por
pedagógico da escola se efetiva em ações orga- meio de planejamento e organização de pro-
nizadas em diferentes projetos institucionais postas (de ação, representação e tomada de
que podem ser de caráter permanente – como consciência), pesquisa de fontes para subsidiar
a organização e a utilização da biblioteca escolar o trabalho, conhecimento dos conteúdos,
ou do centro de estudos de professores – , podem observação e reflexão sobre os objetivos que
surgir de questões amplas da comunidade esco- devem ser necessariamente trabalhados, regis-
lar, como Direitos Humanos, sendo trabalhado tro das conquistas das crianças etc. Como já
ao longo de um ano letivo – ou podem também referido, a duração de um projeto é variável
ser mais pontuais, como Feira de Ciências, em razão da sua grande dose de imprevisibi-
Feira de Livro, Copa do Mundo, eleições. lidade.
Além dos projetos institucionais, há projetos O trabalho com projetos, por abordar um de-
por segmento, por série/ano e por turma. terminado assunto de forma contextualizada,
66

36082-Ensino Fundamental de 9 an66 66 14/08/07 19:03


amplia consideravelmente a gama de conhe- para as atividades precisam ser compreendidos
cimentos que podem ser ancorados ao tema como espaços sociais onde nós, professores(as),
eleito, permitindo a interdisciplinaridade e a temos papel decisivo, não só na organização e
transversalidade, além da inserção da educação disposição dos recursos, mas também na distri-
de forma ampla na cultura. Um projeto pode buição do tempo, na forma de mediar as relações,
desencadear outros e as diferentes formas de de se relacionar com as crianças e de instigá-las
buscar as informações e de socializá-las – jor- na busca de conhecimento.
nal, livro, exposições, feiras, etc. – permitem Cabe à educação das séries/anos iniciais valori-
que os conhecimentos construídos coletiva- zar as diferentes manifestações culturais, partir
mente circulem, estendam-se à comunidade e dos interesses e conhecimentos das crianças,
vice-versa. Quando compreendidos de forma ampliá-los e expandi-los em projetos de tra-
dinâmica, os projetos podem se tornar apostas balho interdisciplinares. Cabe ainda pensar na
coletivas de amplificação cultural. educação como espaço de humanização e de
Vale lembrar que o trabalho com projetos tor- luta contra a barbárie. Para Paulo Freire (1997,
na-se eficaz quando articulado com a proposta p. 26) “quando vivemos a autenticidade exigida
pedagógica da escola e quando, a partir de uma pela prática de ensinar-aprender participamos
reflexão coletiva dos professores, são estabele- de uma experiência total, diretiva, política,
cidas as finalidades do trabalho e apontada a ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética
construção de conceitos. e ética, em que a boniteza deve achar-se de
mãos dadas com a decência e com a seriedade”.
Mais algumas reflexões... A educação é simultaneamente um ato político,
Uma proposta pedagógica que envolva as di- estético e ético. A política como ação do sujeito
ferentes áreas do currículo de forma integrada na coletividade se efetiva com uma forma e um
se efetiva em espaços e tempos, por meio de conteúdo que, por sua vez, são indissociáveis.
atividades realizadas por crianças e adultos Separar ética, política e estética é desconhecer
em interação. As condições do espaço, orga- como se dá a própria ação educativa. Na prática
nização, recursos, diversidade de ambientes pedagógica, a estética dos espaços, dos mate-
internos e ao ar livre, limpeza, segurança etc. riais, dos gestos e das vozes dá visibilidade ao
são fundamentais, mas são as interações que que e como se propõe à criança e, ainda, ao que
qualificam o espaço. Um trabalho de qualidade o adulto pensa sobre ela e sobre a educação di-
para as crianças nas diferentes áreas do currí- rigida a ela. O político permeia tudo isso pelas
culo exige ambientes aconchegantes, seguros, vozes que podem ser ouvidas ou caladas, pela
encorajadores, desafiadores, criativos, alegres e possibilidade de os sujeitos expressarem-se,
divertidos nos quais as atividades elevem sua relacionarem-se, respeitarem-se, sensibili-
auto-estima, valorizem e ampliem as suas leitu- zarem-se e comprometerem-se com o outro
ras de mundo e seu universo cultural, agucem a e com o seu grupo social, apropriando-se de
curiosidade, a capacidade de pensar, de decidir, conhecimentos e inserindo-se nas diferentes
de atuar, de criar, de imaginar, de expressar; esferas culturais. O ensino fundamental para as
nos quais jogos, brincadeiras, elementos da crianças de seis anos, como um dos primeiros
natureza, artes, expressão corporal, histórias espaços públicos de convivência, é onde tudo
contadas, imaginadas, dramatizadas, lidas isso começa.
etc. estejam presentes. Os espaços disponíveis

67

36082-Ensino Fundamental de 9 an67 67 14/08/07 19:03


Referências Bibliográficas

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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
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1998.
______. Conselho Nacional de Educação. Resolução CEB nº 2, de 7 de abril de 1998.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992a.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992b.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
KAMII, C. A criança e o número. Campinas, SP: Papirus, 1986.
PINTO, M. A infância como construção social. In: ______.; SARMENTO, M. J. (Coord.). As
crianças:contextos e identidades. Braga, Portugal: Centro de Estudos da Criança – Universidade
do Minho, 1997. (Coleção Infans). p. 33-73.
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 4a. Edição, 1991.
______. Pensamento e linguagem. 5a. Reimpressão. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
______. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

68

36082-Ensino Fundamental de 9 an68 68 14/08/07 19:03


LETRAMENTO E
ALFABETIZAÇÃO: PENSANDO A
PRÁTICA PEDAGÓGICA
Telma Ferraz Leal1
Eliana Borges Correia de Albuquerque2
Artur Gomes de Morais3

Swgo"hqk"swg"fkuug"swg"gw"guetgxq"rctc"cu"gnkvguA
Swgo"hqk"swg"fkuug"swg"gw"guetgxq"rctc"q"dcu/hqpfA
Gw"guetgxq"rctc"c"Octkc"fg"Vqfq"Fkc0
Gw"guetgxq"rctc"q"Lqçq"Ectc"fg"Rçq0
Rctc"xqeí."swg"guvâ"eqo"guvg"lqtpcn"pc"oçq000
G"fg"uûdkvq"fgueqdtg"swg"c"ûpkec"pqxkfcfg"ê"c"rqgukc0
Q"tguvq"pçq"rcuuc"fg"etõpkec"rqnkekcn/uqekcn/rqnîvkec0"
G"qu"lqtpcku"ugortg"rtqencoco"swg"›c"ukvwcèçq"ê"etîvkecfi#
Ocu"gw"guetgxq"ê"rctc"q"Lqçq"g"c"Octkc
Swg"swcug"ugortg"guvçq"go"ukvwcèçq"etîvkec#
G"rqt"kuuq"cu"okpjcu"rcncxtcu"uçq"swqvkfkcpcu"eqoq"q"rçq"
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G"c"okpjc"rqgukc"ê"pcvwtcn"g"ukorngu"eqoq"c"âiwc"dgdkfc"
pc"eqpejc"fc"oçq0

Mário Quintana"

A criança e a linguagem: sociais vivenciadas por crianças e adultos.


interação e inclusão social Por meio da oralidade, as crianças participam
de diferentes situações de interação social e

A
s crianças, desde muito cedo, convi- aprendem sobre elas próprias, sobre a natureza
vem com a língua oral em diferentes e sobre a sociedade. Vivenciando tais situa-
situações: os adultos que as cercam ções, as crianças aprendem a falar muito cedo
falam perto delas e com elas. A linguagem e, quando chegam ao ensino fundamental,
ocupa, assim, um papel central nas relações salvo algumas exceções, já conseguem inte-

1
Doutora em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Professora Adjunta do Centro de Educação
da UFPE.
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Professora Adjunta do Centro de Educação da
UFPE.
3
Doutor em Psicologia pela Universidad de Barcelona; Professor Adjunto do Centro de Educação da UFPE. 69

36082-Ensino Fundamental de 9 an69 69 22/08/07 00:58


ragir com autonomia. Na escola, no entanto, conhecimentos relativos à aprendizagem da
aprendem a produzir textos orais mais formais escrita alfabética, assim como daqueles ligados
e se deparam com outros que não são comuns ao uso e à produção da linguagem escrita.
no dia-a-dia de seus grupos familiares ou de
Nessa perspectiva, convidamos professo-
sua comunidade. Na instituição esco-
res e professoras a refletir sobre o
lar, portanto, elas ampliam suas
papel do contato dos estudan-
capacidades de compreensão
Por meio da tes com diferentes textos,
e produção de textos orais, o
oralidade, as crian- em atividades de leitura e
que favorece a convivência
escrita realizadas dentro
delas com uma variedade ças participam de e fora da escola. No
maior de contextos de diferentes situações entanto, é preciso re-
interação e a sua reflexão de interação social cordar que esse contato
sobre as diferenças entre
essas situações e sobre os e aprendem sobre por si só, sem mediação,
textos nelas produzidos. elas próprias, sobre não garante que nossas
a natureza e sobre a crianças e nossos jovens
O mesmo ocorre em relação se alfabetizem, ou seja, que
à escrita. As crianças e os sociedade.
se apropriem do Sistema de
adolescentes observam palavras Escrita Alfabética. Desse modo,
escritas em diferentes suportes, consideramos relevante a distinção
como placas, outdoors, rótulos de embalagens; feita pela professora Magda Soares (1998) entre
escutam histórias lidas por outras pessoas, etc. alfabetização e letramento.
Nessas experiências culturais com práticas de
leitura e escrita, muitas vezes mediadas pela O primeiro termo, alfabetização, corresponderia
oralidade, meninos e meninas vão se consti- ao processo pelo qual se adquire uma tecno-
tuindo como sujeitos letrados. logia – a escrita alfabética e as habilidades de
utilizá-la para ler e para escrever. Dominar tal
Sabemos hoje (cf. Morais e Albuquerque, tecnologia envolve conhecimentos e destrezas
2004) que as crianças que vivem em ambien- variados, como compreender o funcionamento
tes ricos em experiências de leitura e escrita, do alfabeto, memorizar as convenções letra-
não só se motivam para ler e escrever, mas som e dominar seu traçado, usando instru-
começam, desde cedo, a refletir sobre as carac-
mentos como lápis, papel ou outros que os
terísticas dos diferentes textos que circulam ao
substituam.
seu redor, sobre seus estilos, usos e finalidades.
Disso deriva uma decisão pedagógica funda- Já o segundo termo, letramento, relaciona-se
mental: para reduzir as diferenças sociais, a ao exercício efetivo e competente daquela
escola precisa assegurar a todos os estudantes tecnologia da escrita, nas situações em que
– diariamente – a vivência de práticas reais de precisamos ler e produzir textos reais. Ainda
leitura e produção de textos diversificados. segundo a professora Magda Soares (1998, p.
47), “alfabetizar e letrar são duas ações distin-
Cabe, então, à instituição escolar, responsável
pelo ensino da leitura e da escrita, ampliar as tas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal
experiências das crianças e dos adolescentes de seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler
modo que eles possam ler e produzir diferentes e a escrever no contexto das práticas sociais
textos com autonomia. Para isso, é importante da leitura e da escrita”.
que, desde a educação infantil, a escola tam- Os(as) professores(as), há algum tempo, vêm
bém se preocupe com o desenvolvimento dos participando desse debate, no centro do qual
70

36082-Ensino Fundamental de 9 an70 70 14/08/07 19:03


se questionam as práticas de ensino restritas 1. situações de interação mediadas pela
aos velhos métodos de alfabetização e se busca escrita em que se busca causar algum
garantir que os meninos e as meninas possam, efeito sobre interlocutores em diferentes
desde cedo, alfabetizar-se e letrar-se, simulta- esferas de participação social: circulação
neamente. Resumindo o que foi descoberto de informações cotidianas, como, por
nos últimos 25 anos, Morais e Albuquerque exemplo, por meio de escrita e leitura de
(2004) afirmam que para “alfabetizar letrando” textos jornalísticos; comunicação direta
é necessário: (i) democratizar a vivência de entre pessoas e/ou empresas, mediante
práticas de uso da leitura e da escrita; e (ii) aju- textos epistolares (cartas, convites,
dar o estudante a, ativamente, reconstruir essa avisos); circulação de saberes gerados em
invenção social que é a escrita alfabética. diferentes áreas de conhecimento, por
meio dos textos científicos; orientações
Assim, a nossa proposta agora é refletir de
e prescrições sobre como realizar
forma mais aprofundada sobre aqueles aspectos
atividades diversas ou como agir em
constitutivos de uma prática de alfabetização
na perspectiva do letramento. determinados eventos, mediante textos
instrucionais; compar-tilhamento de
A leitura e a produção de desejos, emoções, valoração da realidade
textos no ensino fundamental vivida, expressão da subjetividade, por
meio dos textos literários; divulgação de
No início deste texto, foi mencionado que a eventos, produtos e serviços, mediante
linguagem ocupa papel de destaque nas rela- textos publicitários, entre outros;
ções sociais. Na nossa sociedade, a participa-
ção social é intensamente mediada pelo texto 2. situações voltadas para a construção
escrito e os que dela participam se apropriam e a sistematização do conhecimento,
não apenas de suas convenções lingüísticas, caracterizadas, sobretudo, pela leitura
mas, sobretudo, das práticas sociais em que e produção de gêneros textuais usados
os diversos gêneros textuais circulam. Desse como auxílio para organização e
modo, Bakhtin (2000, p. 279) chama a aten- memorização, quando necessário, de
ção de que “cada esfera de utilização da língua informações, tais como anotações,
resumos, esquemas e outros gêneros que
elabora seus tipos relativamente estáveis de enun-
utilizamos para estudar temas diversos;
ciados”. Ou seja, em cada tipo de situação de
interação, deparamo-nos com gêneros textuais 3. situações voltadas para auto-avaliação
diferentes e distintos modos de usá-los. e expressão “para si próprio” de sen-
timentos, desejos, angústias, como
Ao refletirmos sobre os usos que fazemos da
forma de auxílio ao crescimento pessoal
escrita no dia-a-dia, sabemos que tanto na
e ao resgate de identidade, assim como
sala de aula quanto fora dela isso fica eviden-
ao próprio ato de investigar-se e resolver
te. Qualquer cidadão lê e escreve cumprindo
seus próprios dilemas, com utilização de
finalidades diversas e reais. Precisamos ga-
diários pessoais, poemas, cartas íntimas
rantir esse mesmo princípio, ao iniciarmos os
(sem destinatários);
estudantes no mundo da escrita. Desse modo,
propomos, assim como defendido em Leal e 4. situações em que a escrita é utilizada
Albuquerque (2005), que sejam contempladas para automonitoração de suas próprias
na escola: ações, para organização do dia-a-dia, 71

36082-Ensino Fundamental de 9 an71 71 14/08/07 19:03


para apoio mnemônico, tais como e regular modos de comportamento,
agendas, calen-dários, cronogramas, tais como receitas, regras de jogo,
entre outros. regulamentos;
Reconhecendo essa diversidade e a necessida- (4) textos da ordem do expor, destinados
de de investirmos na formação dos estudantes à construção e à divulgação do saber,
para lidar de forma autônoma e crítica com tais como notas de enciclopédia,
essas situações, Dolz e Schneuwly (2004) artigos voltados para temas científicos,
propõem que façamos uma classificação dos seminários, conferências; e
textos, com fins didáticos, com o propósito (5) textos da ordem do argumentar, que se
de trabalharmos com uma gama variada de destinam à defesa de pontos de vista,
gêneros textuais na escola, promovendo, tais como textos de opinião, diálogos
assim, situações de leitura, produção de argumentativos, cartas ao leitor,
textos e reflexões sobre os aspectos cartas de reclamação, cartas de
sócio-discursivos dessa variedade solicitação.
textual. A leitura do
Nessa perspectiva, é impor-
Em sua prática, o(a) pro- texto literário é tante que a escola, desde
fessor (a) deve ter algum fonte de prazer e a educação infantil, pro-
critério para selecionar os precisa, portanto, ser mova atividades que
textos que serão produzidos considerada como envolvam essa diversi-
com os estudantes. Existe
meio para garantir dade textual e levem os
variedade? Os meninos e estudantes a construir
meninas podem conviver
o direito de lazer
das crianças e dos conhecimentos sobre os
com um universo rico de gê- gêneros textuais e seus usos
neros textuais que apresentam adolescentes.
na sociedade. Assim, mesmo
características distintas e cumprem as crianças ou os adolescentes
finalidades diversificadas? que não conseguem ainda ler e escre-
Dolz e Schneuwly ajudam-nos a refletir sobre ver convencionalmente de forma autônoma,
esse tema. Tais autores defendem que deve- podem fazê-lo por meio de uma outra pessoa.
ríamos propiciar em todos os anos o contato Em relação ao primeiro agrupamento referi-
com: do pelos autores – textos da ordem do narrar
(1) textos da ordem do narrar, que seriam –, por exemplo, podemos citar várias razões
aqueles destinados à recriação da que justificam a necessidade de garantir que
realidade, tais como contos, fábulas, os estudantes tenham acesso a esses textos: a
lendas; literatura é um bem cultural da humanidade
e deve estar disponível para qualquer cidadão;
(2) textos da ordem do relatar, que seriam
aqueles destinados à documentação a leitura do texto literário é fonte de prazer e
e à memorização das ações humanas, precisa, portanto, ser considerada como meio
tais como notícias, diários, relatos para garantir o direito de lazer das crianças e
históricos; dos adolescentes; a leitura do texto literário
promove no ser humano a fantasia, conduzindo-
(3) textos da ordem do descrever ações, que o ao mundo do sonho; possibilita, ainda, que os
seriam os que se destinam a instruir valores e os papéis sociais sejam ressignificados,
como realizar atividades e a prescrever influenciando a construção de sua identidade;
72

36082-Ensino Fundamental de 9 an72 72 14/08/07 19:03


por fim, sem termos a pretensão de esgotar tais defrontarem com um texto num livro de his-
razões, promove a motivação para que crianças tórias, elaboram antecipações sobre o que está
e adolescentes aprendam a ler e possibilita ali escrito, formulam hipóteses sobre como a
inseri-los em comunidades de leitores. história terminará, comparam o conteúdo e
No entanto, sabemos que, em nosso país, nem o estilo daquele texto com o de outros que já
todas as crianças e adolescentes têm a opor- conheceram previamente etc.
tunidade de conviver com livros de literatura Como você tem observado essas condutas em
infantil e juvenil antes e fora da escola e, com sua sala de aula? Além das histórias infantis e
isso, destacamos a importância de o professor juvenis, que outros textos você julga que po-
garantir em sua rotina pedagógica a prática de dem ser lidos e produzidos com nossas crianças
ler livros de literatura. As atividades de leitura e adolescentes? Para melhor refletirmos sobre
descritas, por exemplo, no último texto deste as possibilidades de trabalho com diferentes
documento, têm sido atividades constitutivas textos, apresentamos três relatos de experiên-
da prática de muitos docentes da educação cias de professoras dos anos/séries iniciais do
infantil e dos anos/séries iniciais do ensino ensino fundamental.
fundamental. Essas atividades, realizadas mui-
tas vezes diariamente, envolvem, sobretudo, a Exemplo 1: A trajetória do Menino
leitura de textos literários e de outros materiais Maluquinho
que interessam aos estudantes e que fazem
A professora Udenilza Pereira da Silva, da 3ª
parte do universo infantil e juvenil.
série, relatou uma experiência4 vivenciada em
Momentos diários de leituras compartilhadas, sua escola, que envolveu textos da ordem do
quando o professor lê para seu grupo, possibi- narrar (contos), do relatar (biografia) e do ar-
litando que os estudantes possam, inclusive, gumentar (resenha crítica), além de gêneros de
observar o escrito e as ilustrações, são de outras esferas de circulação. Essa experiência
grande importância nesse processo. Pesquisas contou com a participação de todas as turmas
realizadas em diversos países demonstram que da escola.
meninos e meninas que desde cedo escutam Como uma das ações da escola para o
histórias lidas e/ou contadas por adultos, ou ano de 2002, resolvemos (professoras,
que brincam de ler e escrever (quando ainda coordenadoras, diretora) fazer uma feira
não dominaram o sistema de escrita alfabé- literária, com o objetivo de desenvolver nos
tica), adquirem um conhecimento sobre a alunos o gosto pela leitura e o prazer da
linguagem escrita e sobre os usos dos diferen- escrita. Cada professora ficou responsável
tes gêneros textuais, antes mesmo de estarem por escolher um autor de textos literários,
alfabetizadas (cf. Teberosky, 1995). É por que não poderia ser repetido.
meio de atividades como essas que meninos Cada turma, tendo escolhido um autor que
e meninas vão gradativamente construindo agradasse ao grupo, planejaria uma homena-
idéias cada vez mais elaboradas sobre o que gem a ser feita na feira literária da escola. Ficou
é ler e escrever. Tais momentos possibilitam, combinado também que cada turma escreveria
inclusive, que eles se apropriem de estraté- um livro para ser doado à biblioteca, para que
gias de leitura típicas de um leitor experiente outras crianças pudessem conhecer um pouco
(cf. Solé, 2000). Assim, por exemplo, ao se mais sobre o autor e ler os textos produzidos

4
Relato publicado em Guimarães e Leal (2002). 73

36082-Ensino Fundamental de 9 an73 73 14/08/07 19:03


por eles próprios. Udenilza conta que sua tur- alunos tiveram acesso a um livro em que havia
ma escolheu as obras de Ziraldo. a biografia de Cecília Meireles e, em seguida,
Para a realização de tal atividade, foram cada aluno fez sua autobiografia oralmente,
pegos alguns livros desse autor. Uma grande resgatando, assim, seus conhecimentos pré-
dificuldade existente para a realização do vios”.
trabalho foi a não-existência, na escola, As informações sobre a vida do autor foram
de livros de Ziraldo. Por isso, foram pegos pesquisadas na Internet pela educadora de
livros emprestados de outras escolas (2 apoio (coordenadora pedagógica da escola) e
escolas). Após essa fase, li cada livro levadas para a sala pela professora. Verificamos
conseguido, selecionando 5 deles para que, nessa etapa do projeto, os meninos e as
serem trabalhados com a turma, que foram: meninas leram textos com diferentes finali-
“Pelegrino e Petrônio”, “Os dez amigos”, dades: divertir-se e apreciar as obras do autor
“O Menino Maluquinho”, “O bebê em por meio da leitura dos contos; selecionar
forma de gente” e “Dodó”. informações para escrever a biografia median-
A professora contou que, a cada dia, ela lia te a leitura dos textos da Internet; aprender
uma obra para a turma, que se deleitava com como se organizam as biografias por meio da
as histórias de Ziraldo, e depois as crianças leitura da biografia de outra autora, Cecília
Meireles. A produção oral das autobiografias,
inventavam histórias baseadas no conto lido,
por sua vez, foi uma atividade importante para
aproveitando os personagens, ou construindo
desenvolver capacidades de organização do
versões diferentes da contada pelo autor. A
texto oral e ativar nos estudantes os saberes de
empolgação era grande, tanto dos estudantes
outros gêneros já conhecidos por eles (relato
quanto da professora.
pessoal), os quais podiam ser usados nessa
Eu não conhecia a história do Menino nova tarefa. Levar os estudantes a perceber
Maluquinho, uma das mais conhecidas que as capacidades e os conhecimentos dos
obras de Ziraldo, por isso, confesso quais eles dispõem, relativos aos textos orais,
que me “apaixonei” pelas aventuras do podem ser transferidos para a produção de
personagem, sendo elas, literalmente, textos escritos é outro objetivo especialmente
malucas. Além de eu ter gostado bastante importante nos anos/séries iniciais do ensino
da história, consegui perceber que os fundamental. Por fim, ao escreverem a bio-
alunos se sentiram também envolvidos grafia, os estudantes estavam desenvolvendo
pela trajetória do personagem mais famoso diferentes capacidades textuais, referentes à
do autor. organização das informações no papel e às
características da escrita, diferenciando-as do
O livro produzido pelos estudantes foi or-
momento em que produziram oralmente suas
ganizado em três partes. Na primeira, eles
autobiografias.
escreveram a biografia de Ziraldo; na segunda,
produziram resenhas de três livros lidos, com Para a produção das resenhas, também foi
o objetivo de que outras crianças quisessem realizado um trabalho prévio, como conta
lê-los também; e, na terceira parte, foram co- a professora: “para a produção de resenhas,
locados os textos dos estudantes (um texto de foram citadas como exemplos a resenha es-
cada um, escolhido por eles entre os que foram portiva e a resenha de novela, para que os
elaborados no decorrer do projeto). alunos tivessem uma noção maior sobre o
gênero. Após isso, eles produziram resenhas
Para a produção da biografia, Udenilza conta coletivas, com a minha ajuda”.
74 que, antes de passar para a escrita do texto, “os

36082-Ensino Fundamental de 9 an74 74 14/08/07 19:03


No caso das resenhas que as crianças estavam O trabalho realizado foi de extrema
produzindo, havia diferenças marcantes em importância para mim, pois consegui
relação às apresentadas. No entanto, elas provocar nos estudantes um grande interesse
estavam aprendendo que poderiam transpor pela leitura e produção de diferentes gêneros
conhecimentos de alguns gêneros escritos para textuais, apesar de muitas dificuldades
outros. Por um lado, o fato de a professora ter de se trabalhar com uma turma com 38
produzido as resenhas coletivamente foi uma crianças de diferentes níveis. Um outro
boa alternativa, pois, nesse tipo de situação, ponto satisfatório foi a participação das
podemos fazer os estudantes perceberem as es- crianças que ainda não dominam a leitura
tratégias usadas para escrever o texto, relendo fluentemente, pois, por meio das imagens,
partes dele para dar continuidade, pensando elas sentiram prazer de ler e compreender
sobre as palavras que devem ser usadas, de- para, com isso, passar o que trabalharam
cidindo sobre a organização das sentenças, para o público visitante da feira literária.
enfim, sobre como expressar por escrito o Como disse a professora, um dado importante
que queremos dizer. Por outro lado, como
dessa experiência foi a sua realização com
eles estavam escrevendo uma resenha crítica
meninos e meninas de diferentes idades da
com fins de persuadir, precisavam pensar em
mesma escola. Na educação infantil, por
como estruturar o texto de modo que esse
exemplo, os estudantes também estavam len-
evidenciasse a qualidade dos contos lidos e
do e elaborando os mesmos gêneros textuais
como valeria a pena lê-los. Assim, a profes-
produzidos pelos estudantes de Udenilza. Ob-
sora tinha condições de enfocar a dimensão
viamente, aquelas crianças estavam desen-
argumentativa da situação.
volvendo outras capacidades e se apropriando
Para finalizar o trabalho, a professora organizou de outros conhecimentos. Ou estavam se
com eles os textos. Elaboraram a capa, fizeram apropriando de alguns conhecimentos e de-
ilustrações e ensaiaram uma dramatização senvolvendo capacidades similares aos dos
do Menino Maluquinho a ser apresentada na estudantes de Udenilza, mas com um nível
feira literária. Assim, eles se envolveram nas de apropriação diferente.
atividades de forma intensa e aprenderam
muito sobre o autor, sobre as obras e desen- Exemplo 2: Dicionário – prazer em
volveram capacidades relativas à produção e à conhecer
compreensão de textos. A leitura dos diversos
livros e a produção certamente aumentaram No exemplo 1, vimos situações em que os alu-
o repertório de conhecimentos dos meninos nos e a professora leram e produziram textos da
e meninas sobre textos literários e contribu- ordem do narrar, do relatar e do argumentar. E
íram para que eles se engajassem em práticas os da ordem do expor? Bem, sabemos que esses
de uso da linguagem com interesse e prazer. textos são muito freqüentes no contexto esco-
A participação dessas crianças na feira literá- lar. Pesquisamos temas de ciências, geografia,
ria, ouvindo o que os outros colegas tinham entre outras áreas do conhecimento e, para
para mostrar sobre outros autores e outras isso, nos deparamos com notas de enciclopédia,
obras, também foi um momento riquíssimo artigos científicos de revistas, textos didáticos,
para lidar com esses textos e com a cultura etc. Na escola, precisamos ajudar as crianças
literária. Para concluir, a professora diz que: e os adolescentes a usarem esses textos que
servem para aprendermos conceitos, para
construirmos conhecimentos sobre o homem,
sobre a natureza, sobre a sociedade. 75

36082-Ensino Fundamental de 9 an75 75 14/08/07 19:03


Um gênero textual também importante é o de aula, até aquele dia. Mas, na exploração
verbete, pois aprender a consultar dicionário do novo dicionário, paramos para ver que
e compreender as informações nele disponibi- em cada página apareciam destacadas, em
lizadas dependem de contatos com tal suporte vermelho, duas palavras. Chamei a atenção
textual. A professora Verônica Barros, da 4ª para a primeira e a última palavra de duas
série, contou como introduziu o trabalho com páginas seguidas e eles então descobriram
dicionários na sua turma.5 a função daquelas palavrinhas vermelhas
(os “cabeços”). Em vez de ficar lendo as
No dia em que os dicionários chegaram, a
palavras uma depois da outra, na página,
professora aproveitou para conversar com seus
descobriram que dava para saber se uma
alunos: quem já tinha dicionário em casa? Já
palavra que queríamos encontrar estava
tinham usado ou visto alguém usando? O que
sabiam sobre o dicionário? Para que servia? Sua naquela folha, olhando apenas para as tais
turma recebeu o dicionário escolar e ela então palavras destacadas no alto.
apresentou para os alunos esse novo material. Verônica, por meio dessa atividade, desper-
Eis o que ela relatou: tou nas crianças a curiosidade para explorar
Convidei os estudantes de minha 4 a o dicionário recebido e perceber suas utili-
série para irmos folheando o dicionário dades. Mas ela não parou aí; aproveitou o
e conversando. Eles se deram conta de interesse e, em outro dia, realizou um jogo
que, tanto antes quanto depois das seções com o dicionário:
dedicadas aos verbetes de cada letra, havia Num outro dia, na mesma semana, fiz
várias outras coisas. Vimos que o dicionário uma atividade de busca de palavras,
tinha uma seção de abreviaturas, um para orientá-los a usar os tais ‘cabeços’.
resumo de noções de gramática, quadros Num jogo em grupos, eu dizia a cada
de conjugação de verbos, lista de grupos vez uma palavra para eles procurarem.
indígenas do Brasil distribuídos pelos Ganhava ponto a equipe que me dissesse
estados, lista de países com suas moedas e primeiro qual era a página onde estava a
adjetivos pátrios, onomatopéias, coletivos, palavra. Depois de acharem e dizerem os
unidades de medida, além de outras seções cabeços, liam o verbete completo e víamos
(sobre obras literárias, presidentes do os significados. Eles então prestaram
Brasil, maiores rios de nosso país, etc.). atenção a outras novidades. Notaram que
Eu mesma não tinha parado, antes, para os diferentes significados eram separados
ver todos esses detalhes. Os alunos também por números, que tinha umas letrinhas
viram que, na seção de verbetes de cada (abreviaturas) que eles não conheciam, que
letra, apareciam as formas que a letra teve as palavras (os verbetes) apareciam com as
ao longo da história, em diferentes línguas sílabas separadas.
ou com diferentes formatos e que a primeira
“palavra” era a própria letra e sua definição. Chamamos para a reflexão o dado de que,
Às vezes, a mesma grafia, por exemplo, A, como bem relatam professores e demais es-
correspondia não só ao nome da letra, tudiosos, tais atividades não bastam para que
mas tinha outros significados também. crianças e adolescentes se familiarizem com
É preciso dizer que eles já dominavam a esse suporte textual. No entanto, é um bom co-
ordem alfabética e tinham feito consultas meço. É importante propiciar ainda situações
no único dicionário que tínhamos na sala em que eles usem o dicionário para descobrir

76 5
Esse relato foi publicado em Leal e Brandão (2005).

36082-Ensino Fundamental de 9 an76 76 14/08/07 19:03


os significados de palavras utilizadas nos textos dificuldades. Umas perguntavam:
com os quais se deparam, para decidir sobre – Como foi que a gente fez?!
a ortografia das palavras, para escolher, entre – Vocês precisam falar para que eu
diferentes significados de uma palavra, qual é escreva e outras crianças que não estão
o mais apropriado para um determinado presentes possam fazer o brinquedo.
contexto. A idéia, porém, de brincar com o Então, alguns arriscaram:
dicionário, constitui uma boa alternativa para – Pega os copos e faz assim...
aproximar os estudantes desse tipo de suporte Então, eu falei:
textual de modo lúdico. – Assim como? Como fizemos? É só
dizer como fizemos... E aí?… Vamos!
Exemplo 3: Brincando também se aprende Grande foi o meu espanto, porque as crian-
Outra professora também preocupada em ças não sabiam descrever o que elas próprias
promover a aprendizagem de modo prazeroso fizeram e acompanharam passo a passo.
é Silene Alves Santana. Ela relatou uma seqüên- Então, refleti: “E agora?” A minha inten-
cia de atividades em que objetivou trabalhar ção era servir de escriba para elas, uma vez
com instruções de confecção de brinquedos que não escreviam de forma convencional.
com material de sucata. Sua turma tinha vinte Daí, pensei: além de ser um escriba, preciso
crianças em torno de quatro anos de idade. ser também um ajudador na construção do
A idéia era produzir brinquedos de sucata texto. Percebi que, no trabalho da oralidade,
e ensinar a outras crianças como fazer seus o texto instrucional flui melhor (...). Então,
próprios brinquedos. O primeiro brinquedo refleti que, para que eles compreendessem
produzido foi o chocalho. A professora já estava como redigir esse texto, precisaríamos de
com o material e, juntamente com as crianças, outros conhecimentos prévios, algo que
foi montando o brinquedo. Em seguida, ela desconsideramos totalmente nesse momen-
desafiou os alunos para que ensinassem a ou- to. Com minha interferência, conseguimos
tras crianças como produzirem seus próprios concluir o texto. Porém, ao fazermos os
chocalhos. Coletivamente, os meninos e as outros brinquedos escolhidos (a peteca, o
meninas elaboraram o texto, com muita aju- cavalo de pau, os pés de lata, o bilboquê e
da da professora, que percebeu que, embora os pratos falantes), conseguimos descrever
eles soubessem explicar oralmente como fazer melhor a produção dos brinquedos, pois
os brinquedos, apresentavam dificuldades em antes tivemos a preocupação de mostrar
organizar o texto escrito. modelos de outros textos construídos por
– Gente, agora precisamos escrever outras crianças.
sobre como produzimos este “chocalho”. Ao perceber que os conhecimentos constru-
Precisa ficar muito claro como fizemos, ídos nas situações de uso da oralidade não
para que crianças da outra turma possam eram suficientes, a professora levou textos
ler e fazer os seus. instrucionais de outra escola onde esse pro-
– Vamos lá! Primeiro vamos escrever, jeto havia sido realizado e passou a lê-los para
listar quais os materiais utilizamos.
a turma. Assim, a etapa de montagem dos
Esse momento do registro da lista de
brinquedos foi mediada pelo texto escrito.
material foi muito fácil e prazeroso.
A professora lia as orientações escritas por
Logo, todos falaram em coro. Porém,
quando perguntei “E agora? Precisamos outros estudantes da escola enquanto os de
descrever como fizemos. Vamos! Como sua turma iam montando os brinquedos.
foi?”, as crianças sentiram muitas 77

36082-Ensino Fundamental de 9 an77 77 23/08/07 23:04


A finalidade da leitura era similar ao que descobrir isso por conta própria, à medida que
acontece fora da escola, pois é exatamente copiavámos e recopiavámos listas de sílabas ou
dessa forma que nós lemos receitas culinárias, palavras que não compreendíamos?
instruções de jogos e outros textos dessa es- Sabemos que durante muito tempo o ensino do
pécie (textos da ordem do descrever ações). A nosso sistema de escrita foi feito de uma ma-
tarefa de ditar o texto para a professora, então, neira mecânica, repetitiva, na qual os estudan-
ficou mais fácil para as crianças. tes eram levados a memorizar segmentos das
Um destaque que podemos fazer nesse exem- palavras (letras ou sílabas) ou mesmo palavras
plo é a realização da experiência por crianças inteiras, sem entender a lógica que relaciona-
de quatro anos de idade. Nesse caso, elas va as partes pronunciadas (pauta sonora) e a
ditavam para a professora os textos e eram seqüência de letras correspondente.
ouvintes da leitura que a professora fazia.
Hoje, entendendo que há um conjunto de
Nesses momentos, estavam aprendendo muito
conhecimentos a ser construído, temos con-
sobre a linguagem usada para escrever e sobre
as práticas diversificadas de uso da escrita. No dições de promover desafios que levem as
entanto, não era objetivo da professora, nessa crianças e os adolescentes a compreender que a
seqüência de atividades, vivenciar situações escrita possui relação com a pauta sonora. Essa
para que as crianças pensassem também sobre é uma descoberta que nem sempre é realizada
como registrar esses textos. Ou seja, ela não espontaneamente, razão pela qual se torna
estava abordando, nesse projeto, a apropriação imprescindível ajudarmos os estudantes a des-
do sistema alfabético de escrita. cobrir os princípios que regem aquela relação
Trazemos à tona tal discussão porque conside- enigmática: a relação entre as partes faladas e
ramos que se quisermos que nossos estudantes as partes escritas das palavras.
se insiram nas práticas sociais em que o texto Ferreiro (1985) diz que para chegar à com-
escrito está presente de modo autônomo, pre- preensão da correspondência entre as letras
cisamos promover, além do acesso aos textos – unidades gráficas mínimas – e os fonemas
mediado pelos adultos, momentos em que
– unidades sonoras mínimas, é preciso rea-
crianças e adolescentes possam pensar sobre
lizar uma operação cognitiva complexa. Nas
como notar (registrar) os textos no papel. Ou
seja, consideramos fundamental, como já dis- escritas alfabéticas, essa empreitada envolve
semos, ajudá-los a construir os conhecimentos entender:
sobre nosso sistema de escrita. z o que a escrita representa das palavras
faladas (isto é, que as letras representam
A apropriação do sistema
os sons e não os significados ou outras
alfabético de escrita de maneira
características físicas das coisas às quais
lúdica e reflexiva
aquelas palavras orais se referem);
É importante que nos recordemos de como foi
z como a escrita cria essas representações
a nossa experiência de estudante numa classe
(isto é, que a escrita funciona “traduzin-
de alfabetização. Será que pudemos vivenciar o
prazer de escutar, ler e produzir histórias e outros do”, por meio das letras, segmentos sonoros
textos variados naquela etapa inicial, quando pequenos, os fonemas, que estão no interior
ainda não dominavámos o registro da escrita alfa- das sílabas).
bética? Recebemos ajuda para entender como as Para realizar essa tarefa, o estudante neces-
letras registram os sons da fala? Ou precisamos sita elaborar em sua mente um princípio de
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36082-Ensino Fundamental de 9 an78 78 14/08/07 19:03


estabilização e igualação das unidades orais e classes de objetos substitutos, isto é, precisa
escritas. Isto é, as crianças e os adolescentes entender que as letras substituem algo, os
precisam observar, por exemplo, que uma letra segmentos sonoros mínimos, que chamamos
(digamos, A) é algo estável, que sempre apare- de fonemas. Para compreender o funciona-
ce em determinada posição no interior de uma mento da escrita alfabética, ela ou ele precisa
determinada palavra, e não é apenas “a letra considerar relações de ordem, de permanência e
do nome de uma pessoa ou de uma coisa”. Pre- relações termo a termo.
cisam compreender que aquela letra aparece Ilustrando as relações de ordem, poderíamos
sempre quando a palavra em questão contém dizer, de maneira simplificada, por exemplo,
um som /a/ naquele ponto, quando pronun- que aos poucos a criança entende que CA não
ciamos a palavra lentamente etc. Isto requer pode ser o mesmo que AC, “que a ordem muda
“olhar para o interior das palavras escritas”, as coisas, quando escrevemos”. Ela necessita
analisando suas unidades gráficas e refletindo perceber que a ordem em que registramos no
sobre elas. Como explicam Teberosky e Ribe- papel as letras corresponde à ordem em que
ra (2004), para desenvolver essas capacidades, pronunciamos os segmentos sonoros.
é preciso focar os signos gráficos do sistema Ao remetermo-nos às relações de permanên-
alfabético. O fato de as letras serem estáveis, cia, estamos evidenciando que o estudante
de aparecerem sempre na mesma posição no compreenderá que C é um símbolo que subs-
interior de uma palavra escrita, ajuda a criança titui algo (os sons /k/ ou /s/), independente-
ou o adolescente a desenvolver as capacida- mente de C aparecer manuscrito ou com outro
des de analisar a palavra oral (aquela a que a formato autorizado para ser C. Isso significa
notação escrita se refere) em seus segmentos que ele entenderá que há uma constância no
menores. Torna-se, portanto, fundamental registro gráfico dos segmentos sonoros. A isso
para os estudantes conhecer as letras e refletir denominamos correspondência grafofônica.
sobre suas relações com os sons.
A essa lista de descobertas, é preciso acrescen-
A partir dos estudos hoje disponíveis, podemos tar algo: ao desenvolver suas habilidades de
promover atividades que ajudem as crianças e reflexão fonológica, o estudante descobre que
os adolescentes a se familiarizar com as letras, o CA de casa é igual ao CA de cavalo, porque
por um lado, e a perceber que a cada letra as palavras orais /kaza/ e /kavalu/ “começam
(ou conjunto de letras, no caso dos dígrafos) parecido, quando falamos, embora se refiram a
corresponde uma unidade sonora (com poucas coisas bem diferentes no mundo real”. Assim,
exceções, como a que acontece em táxi, em que fica evidenciado para ele que há uma relação
uma letra – x – representa dois fonemas). termo a termo, ou seja, a palavra é segmentada
Se consultarmos Morais (2005), verificaremos em unidades silábicas e a cada sílaba pronun-
que, para dominar a notação alfabética, o es- ciada registramos uma seqüência de letras a
ela correspondente.
tudante precisa entender as relações entre o
todo escrito e o todo falado, ou seja, entre as Em várias atividades de reflexão sobre o siste-
palavras faladas e as palavras escritas, e entre ma de escrita, a tomada de consciência acerca
as partes do escrito (sílabas e letras) e as do desses princípios ocorre quando os estudantes
falado (sílabas e fonemas, que correspondem também percebem que a sílaba, que pode ser
às menores unidades das palavras). Para enten- segmentada oralmente, possui regularidades
der essas relações, no entanto, a criança ou o que facilitam a sua representação (ou notação)
adolescente precisa vir a tratar as letras como gráfica. Perceber que em toda sílaba de nossa
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36082-Ensino Fundamental de 9 an79 79 14/08/07 19:03


língua há uma vogal é uma aprendizagem im- de brincadeiras com a língua. Leal, Albuquer-
portante e parece favorecer a tarefa de tentar que e Rios (2005) lembram que brincar com a
encontrar as outras unidades no interior des- língua faz parte das atividades que realizamos fora
se segmento. Precisamos, portanto, ajudar da escola desde muito cedo. As autoras lembram
nossos estudantes a observar “o interior das que, quando cantamos músicas e cantigas de
palavras”, analisando a variedade e a quan- roda, recitamos parlendas, poemas, quadri-
tidade de letras que as compõem, sua ordem, nhas, desafiamos os colegas com diferentes
os casos de letras que se repetem etc. adivinhações, estamos nos envolvendo com
Nessa perspectiva, outra atividade importante a linguagem de uma forma lúdica e prazerosa.
para ajudar o estudante a tomar consciência Elas citam, ainda, diferentes tipos de jogos
desses princípios é a de fazê-lo perceber que que fazem parte da nossa cultura e envolvem
uma mesma unidade gráfica (a letra), em a linguagem: “Quem nunca brincou, fora da
diferentes contextos, mantém relações com escola, do jogo da forca, ou de adedonha,6 ou
um mesmo valor sonoro ou um valor sonoro de palavras cruzadas; dentre outras brincadei-
aproximado. Nesse sentido, Gallart (2004, ras? Todos esses jogos envolvem a formação de
p.46) atenta palavras e, com isso, podem ajudar no processo
de alfabetização”.
partindo da aprendizagem de palavras pró-
ximas, como os próprios nomes, os meninos Outros jogos, criados com o propósito de
e as meninas são capazes de incrementar alfabetizar crianças e adolescentes, também
seu universo de palavras e sons a partir de podem ser poderosos aliados dos professores.
letras e sons conhecidos. Ao mesmo tempo Podemos citar, para fins de exemplificação,
em que se vão desenvolvendo nesse proces- três tipos de jogos: (i) os que contemplam
so, são capazes de gerar outras palavras, atividades de análise fonológica sem fazer
jogando com as letras, as sílabas e os sons, correspondência com a escrita; (ii) os que
e dotando-os de sentido com os demais a possibilitam a reflexão sobre os princípios do
cada nova palavra gerada. sistema alfabético, ajudando os estudantes a
pensar sobre as correspondências grafofôni-
É por tal motivo que sugerimos muitas, cons-
cas (isto é, as relações letra-som); (iii) os que
tantes e variadas atividades com palavras sig-
ajudam a sistematizar essas correspondências
nificativas para as crianças e os adolescentes e grafofônicas.
com as quais eles se deparem com freqüência.
Tais palavras estáveis (ou fixas) ajudam o Os jogos fonológicos são aqueles em que
estudante a ir percebendo as regularidades do os estudantes são levados a refletir sobre
nosso sistema de escrita e a utilizar conheci- as semelhanças e diferenças sonoras entre
mentos (adquiridos quando as leram e escre- as palavras. Nesse tipo de atividade, eles
começam a perceber que nem sempre o foco
veram), ao se defrontarem com novas palavras
de atenção deve ser dirigido aos significados.
que tenham semelhanças com aquelas que, em
No caso da apropriação do sistema alfabético,
sua mente, estão mais estáveis e sobre as quais
é fundamental entender que é preciso atentar
refletiram mais.
para a pauta sonora para encontrar a lógica
Outras estratégias didáticas que podem auxiliar da escrita.
as crianças e os adolescentes a se apropriar do
sistema alfabético de escrita assumem a forma Os jogos que favorecem a reflexão sobre os
princípios do sistema alfabético são aqueles

80 6
Também chamado de “animal, fruta, pessoa” ou de “stop”.

36082-Ensino Fundamental de 9 an80 80 14/08/07 19:03


em que as crianças são convidadas a manipular esse duplo direito: de não apenas ler e registrar
unidades sonoras/gráficas (palavras, sílabas, autonomamente palavras numa escrita alfabé-
palavras), a comparar palavras ou partes delas, tica, mas de poder ler-compreender e produzir
a usar pistas para ler e escrever palavras. os textos que compartilhamos socialmente
como cidadãos.
Por fim, os jogos que auxiliam a siste-
matização das correspondências gra- Buscamos, neste texto, enfatizar que o
fofônicas são aqueles que ajudam os “Alfabetizar entendimento sobre como funciona
meninos e as meninas a consolidar letrando” a nossa escrita pressupõe ter familia-
e automatizar as correspondên- é um desafio ridade e se apropriar das diferentes
práticas sociais em que os textos
cias entre as letras e os sons, pois, permanente. circulam, por um lado; desenvolver
muitas vezes, temos estudantes que conhecimentos e capacidades cogniti-
entendem a lógica da escrita, mas ainda vas e estratégias diversificadas para lidar
não dominam todas as correspondências, com os textos nessas diferentes situações, por
trocam letras, omitem ou esquecem o valor outro lado e, aliado a tudo isso, desenvolver
sonoro relacionado a algumas delas. conhecimentos sobre como registrar (notar)
no papel o que se pretende comunicar e sobre
Fazendo um balanço... como transformar o registro gráfico em pauta
sonora, ou seja, apropriar-se do sistema alfa-
“Alfabetizar letrando” é um desafio perma-
bético de escrita.
nente. Implica refletir sobre as práticas e as
concepções por nós adotadas ao iniciarmos Como educadores, precisamos aprofundar a
nossas crianças e nossos adolescentes no reflexão aqui apresentada, dando continuidade
mundo da escrita, analisarmos e recriarmos e ampliando esse debate tão rico e necessário.
nossas metodologias de ensino, a fim de garan- Como você pensa em fazê-lo, juntamente com
tir, o mais cedo e da forma mais eficaz possível, seus colegas?

81

36082-Ensino Fundamental de 9 an81 81 14/08/07 19:03


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A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
PEDAGÓGICO: ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO COMO EIXOS
ORIENTADORES
Cecília Goulart1

Foi aí que nasci: Nasci na sala do 3o ano, sendo


professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus
tenha. Até então, era analfabeto e despretensioso.
Lembro-me: nesse dia de julho, o sol que descia da
serra era bravo e parado. A aula era de Geografia,
e a professora traçava no quadro-negro nomes de
países distantes. As cidades vinham surgindo na
ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de
uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava
bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam
misteriosamente, trazendo países inteiros. Então,
nasci. De repente nasci, isto é, senti vontade de
escrever. Nunca pensara no que podia sair do papel
e do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco
riscos representando as mãos. Nesse momento, porém,
minha mão avançou para a carteira à procura de um
objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu
alguma coisa parecida com a narração de uma
viagem de Turmalinas ao Pólo Norte.

Carlos Drummond de Andrade

M
uitas perguntas aparecem para nós, podemos fazer lá e o que não podemos? O que
professoras, no momento de orga vamos aprender?
nizar e planejar o trabalho, a ação Nosso diálogo neste texto trata da organiza-
pedagógica: para que serve a escola? Qual é ção do trabalho pedagógico nos anos/séries
o seu papel social? O que fazer para que as iniciais do ensino fundamental de nove anos,
crianças aprendam mais e melhor? considerando que a cada ano recomeçamos
E as crianças? Será que também surgem per- nossa ação educativa com novas crianças e
guntas para elas? Como é a escola? O que adolescentes num mundo em constante mu-
acontece lá dentro? Como acontece? O que dança. Daí a necessidade de estudo contínuo,

1
Doutora em Letras – Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). 85

36082-Ensino Fundamental de 9 an85 85 14/08/07 19:03


demandando, assim, atualização e revisão de Dúvidas, apreensões e desejos mobilizam todos
nossas práticas. os que se envolvem em novas experiências.
E nós, professores/professoras, a cada ano vi-
A forma como organizamos o trabalho peda-
vemos novas experiências e novos modos de
gógico está ligada ao sentido que atribuímos à
viver a prática pedagógica porque trabalhamos
escola e à sua função social; aos modos como
com pessoas, com crianças - trabalhamos então
entendemos a criança; aos sentidos que damos
com sujeitos vivos e pulsantes, e com conhe-
à infância e à adolescência e aos processos de
cimentos em constante ampliação, revisão e
ensino-aprendizagem. Está ligado do mesmo transformação. Que diferença de uma fábrica,
modo a outras instâncias, relacionadas aos onde o que se almeja é a homogeneidade, o
bairros em que as escolas estão localizadas; ao padrão! Na fábrica, um produto de uma mesma
espaço físico da própria escola e às atividades série deve ser rigorosamente igual ao outro para
que aí ocorrem; às características individuais que passe pelo controle de qualidade!
do(a)s professore(a)s e às peculiaridades de
suas formações profissionais e histórias de vida Na escola e na vida, encontramos a multipli-
– muitos fatores então condicionam a orga- cidade de sujeitos e de modos de viver, pensar
e ser. Mas encontramos também caracte-
nização do trabalho pedagógico. Em síntese,
rísticas e marcas que nos identificam como
está ligado à nossa concepção de educação:
seres humanos, pertencentes a um período
educar para quê? Como? Liga-se em conse-
histórico, a uma região geográfica e a tantos
qüência à construção de sujeitos cidadãos que
outros agrupamentos que se entrelaçam. E por
cada vez mais adentram os espaços sociais,
que isso acontece? Porque somos sujeitos cul-
participando e atuando no sentido da sua
turais, não somos sujeitos errantes: criamos
transformação.
vínculos, sentimentos, mundos, literatura,
E nós, professores e professoras, nos pergun- teorias, moda, receitas culinárias, filosofia,
tamos: como se constrói a educação como brincadeiras, jogos, arte, máquinas – tudo nos
prática de liberdade, no sentido de Paulo enreda e nos diz que, mesmo sem caminhos
Freire? Educar para que as crianças e os ado- traçados, como de modo geral acontece com
lescentes possam cada vez mais compreender os animais, construímos história e histórias,
o mundo em que vivem por meio do trabalho cultura e culturas que nos enraízam, nos en-
pedagógico com os conhecimentos que têm e volvem e nos identificam.
com aqueles conhecimentos de que vão, aos E a escola faz parte dessas criações humanas.
poucos, se apropriando pelo sentido vivo que É a instituição, o lugar de nos fortalecermos,
possuem e pelos interesses e desejos que geram. de nos entranharmos nessa história com cada
Nessa perspectiva, nossas crianças e jovens vão uma de nossas histórias, de nos fazermos fortes
se sentindo cada vez mais livres para transitar porque nos integramos socialmente, compre-
socialmente porque entendem melhor a com- endendo a força e a capacidade criadora do ser
plexidade do mundo. Ao mesmo tempo, vão humano. Compreendendo também a vida e a
se sentindo cada vez mais integrados e fortale- luta dos homens através dos tempos, os conhe-
cidos pela dimensão de cidadania que a prática cimentos produzidos e os modos de produção,
de trabalho organizado e colaborativo abre para as desigualdades criadas e as diferenças.
todos. As experiências pedagógicas coletivas E nós sabemos bem disso porque convivemos
de que participam sinalizam a partilha e a diariamente com crianças e adolescentes
construção cooperativa de ações comuns – e que trazem experiências e histórias que não
86 o valor de todos e de cada um se revela. são encantadas, são vividas concretamente,

36082-Ensino Fundamental de 9 an86 86 24/08/07 15:28


muitas vezes dramaticamente. Às de compreender e sistematizar determi-
vezes, preocupadas em demasia nados conhecimentos. Espera-se,
com os conteúdos de ensino, Às vezes, também, que tenha condições,
não paramos para conhecer por exemplo, de permanecer
preocupadas em
nossos alunos, para ouvir os mais tempo concentrada em
conteúdos tão significativos
demasia com os uma atividade, além de ter
de suas vidas. E aprendiza- conteúdos de en- certa autonomia em relação
gem envolve sensibilidade e sino, não paramos à satisfação de necessidades
mudança! Como diz Barbosa para conhecer básicas e à convivência social.
(1990), aprendizagem envolve nossos alunos. É importante observar que
risco, e não nos dispomos a cor- essas respostas variam de criança
rer ricos com qualquer pessoa – se para criança e a escola deve lidar de
não conseguimos desenvolver relações de modo atento com essas e muitas outras
confiança e afeto com os alunos, dificilmente diferenças.
construímos uma relação de ensino-aprendi- Nossa experiência na escola mostra-nos que a
zagem. criança de seis anos encontra-se no espaço de
A escola é, então, lugar de encontro de muitas interseção da educação infantil com o ensino
pessoas; lugar de partilha de conhecimentos, fundamental. Sendo assim, o planejamento
idéias, crenças, sentimentos, lugar de conflitos, de ensino deve prever aquelas diferenças e
portanto, uma vez que acolhe pessoas dife- também atividades que alternem movimentos,
rentes, com valores e saberes diferentes. É na tempos e espaços.
tensão viva e dinâmica desse movimento que É importante que não haja rupturas na pas-
organizamos a principal função social da esco- sagem da educação infantil para o ensino
la: ensinar e aprender – professoras, crianças, fundamental, mas que haja continuidade
funcionários, famílias e todas as demais pessoas dos processos de aprendizagem. Em relação
que fazem parte da comunidade escolar. às crianças que não freqüentaram espaços
Nosso objetivo é convidar o(a) professor(a) para educativos de educação infantil, habituadas,
conversar sobre princípios e questões relevantes portanto, às atividades do cotidiano de suas
para a organização do trabalho pedagógico no casas e espaços próximos, também aprendendo
ensino fundamental de nove anos, conside- e dando sentidos à realidade viva do mundo
rando as primeiras séries ou anos iniciais desse que as cerca, o mesmo cuidado deve ser to-
nível de ensino, com ênfase no trabalho com mado. É essencial que elas possam sentir a
as crianças de seis anos. Sua experiência pro- escola como um espaço diferente de seus lares,
fissional é fundamental para esta conversa. visto que aquele se organiza como um espaço
público e não privado como a casa, mas se
A ênfase na criança de seis anos sintam acolhidas e também possam continuar
aprendendo criativamente.
Parafraseando Vinícius de Moraes, a criança
de seis anos está naquela “idade inquieta” A escola potencializa, desse modo, a vivên-
em que já não é uma pequena criança, e não cia da infância pelas crianças, etapa essa tão
é ainda uma criança grande. Do ponto de importante da vida, em que se aprende tanto.
vista escolar, espera-se que a criança de seis Assim, considerando a participação ativa das
anos possa ser iniciada no processo formal crianças de seis a dez anos de idade na escola,
de alfabetização, visto que possui condições em espaços e tempos adequados à singularidade
87

36082-Ensino Fundamental de 9 an87 87 14/08/07 19:03


dessa fase da vida, a experiência de aprender ga- promovendo a produção de conhecimentos e
nha significado social na perspectiva da cons- a formação de pessoas íntegras e integradas à
tituição da autonomia e da cidadania, como sociedade por meio da participação cidadã, de
mencionamos anteriormente. Na interação forma autônoma e crítica.
com seus pares e com os professores, por meio
A escola como instituição está marcada pela
de variadas e dinâmicas atividades, as crianças
organização político-pedagógica que envolve
vivenciam os processos de aprender e também
os conhecimentos que ali são trabalhados para
de ensinar, com empenho, responsabilidade e
que as crianças aprendam. Isso acontece de tal
alegria.
modo que tem um valor estruturante na for-
Assim, a escola pode ser (sempre) um lugar de mação social das pessoas, dando-lhes identidade
afirmação do que as crianças e os adolescentes também pela aprendizagem de modos de ação e
já são e sabem, ao mesmo tempo em que os leva interação que são socialmente valorizados. Ou
a mudanças significativas, a novos conheci- seja, o processo de escolarização marca-nos no
mentos, por meio da aprendizagem, em relação sentido de ampliar a compreensão da dinâmica
à compreensão do grupo a que pertencem na social, das variadas forças e conhecimentos que
escola e à compreensão de novas possibilidades disputam poder na sociedade, das diferentes
de vida, de modo geral. interpretações de conteúdos, fatos, objetos,
fenômenos e comportamentos sociais. Nossa
A escola como espaço social
responsabilidade política de educadores leva-
pedagogicamente organizado
nos a investir cada vez mais na qualidade de
A organização do trabalho pedagógico carac- nossa atuação profissional.
teriza-se como uma dimensão muito impor- Os critérios de organização das crianças em
tante para o desenvolvimento do projeto classes/turmas/grupos e de arrumação das
político-pedagógico da escola como carteiras, dos grupos e dos mate-
um todo. O projeto político- riais nas salas de aula; o pla-
pedagógico, como sabemos, nejamento do tempo para
é um instrumento que nos A organização do brincadeiras livres e da
dá direções, nos aponta trabalho pedagógico hora da refeição; a pro-
caminhos, prevendo, de caracteriza-se como gramação de atividades
forma flexível, modos e os modos como elas
uma dimensão muito
de caminhar. O projeto são propostas e desen-
importante para o volvidas – tudo isso in-
é um eixo organizador
desenvolvimento fluencia na forma como
da ação de todos que
fazem parte da comuni- do projeto político- o projeto pedagógico
dade escolar. Apresenta pedagógico da escola. se desenrola. Trabalhos
coletivos constroem-se
quem somos e nossos papéis,
coletivamente; espaços de-
nossos valores e modos de pensar
mocráticos reorganizam-se com
os processos de ensino-aprendiza-
a participação de todos, inclusive
gem, além do que desejamos com o trabalho decidindo normas, limites, horários, distribui-
pedagógico. Um projeto político-pedagógico ção de tarefas... Se as crianças participarem,
é como uma radiografia do movimento que desde o início dessa organização, terão a
a escola realiza e pretende realizar para al- oportunidade de desenvolver o sentimento de
88 cançar seu objetivo mais importante: educar,

36082-Ensino Fundamental de 9 an88 88 14/08/07 19:03


pertencimento ao grupo e de responsabilidade e seus processos, e também sobre o que dese-
pelas decisões tomadas. jamos que aprendam, fazem parte de processos
organizativos. Organizar por quê? Para quê?
Todos aqueles que integram a comunidade Como? O que é necessário?
escolar precisam participar da organi-
zação do trabalho pedagógico. Todos A organização do trabalho pedagógico,
Ensinar- então, deve ser pensada em função
podem agir para que o trabalho
pedagógico de ensinar e aprender
aprender do que as crianças sabem, dos seus
aconteça; todos se beneficiam dele envolve certa universos de conhecimentos, em re-
intimidade. lação aos conhecimentos e conteúdos
e se comprometem com ele. Dessa
que consideramos importantes que
forma, a partir da definição de objeti-
elas aprendam. No caso das séries/anos
vos a ser alcançados na série, ou no ano,
iniciais do ensino fundamental, a aprendi-
ou no ciclo escolar, estabelecem-se rotinas de
zagem da língua escrita; o desenvolvimento
atividades a ser realizadas; definem-se os mate-
do raciocínio matemático e a sua expressão
riais necessários; e atitudes a ser desenvolvidas
em linguagem matemática; a ampliação de
para o bom andamento dos processos de ensi-
experiências com temáticas ligadas a muitas
no-aprendizagem. A integração família-escola
áreas do conhecimento; a compreensão de as-
desempenha papel de destaque nesse processo.
pectos da realidade com a utilização de diversas
É certo que nem todas as famílias participam,
formas de expressão e registro – tudo deve ser
ou podem participar, da mesma maneira, mas
trabalhado de forma que as crianças possam,
vale a pena incluí-las no planejamento escolar,
ludicamente, ir construindo outros modos de
por meio de solicitações sobre seus modos de
entender a realidade, estabelecendo novas
funcionamento, seus gostos, suas histórias,
condições de vida e de ação.
profissões, tudo isso está ligado às histórias de
vida das crianças. Os planejamentos de ensino, os planos de
aula e os projetos de trabalho são, portanto,
Na mesma direção anteriormente delineada,
frutos de reflexões coletivas e individuais cujo
os professores, também coletivamente, or-
objetivo é a aprendizagem das crianças. Por
ganizam-se para estudar e planejar, além de
isso, devem ser pensados a longo, médio e
avaliar os caminhos traçados e os resultados
curto prazos, abrindo espaço para alterações,
alcançados – avaliar a organização do trabalho
substituições e para novas e inesperadas situa-
como um todo. O movimento do conjunto de
professores e dos demais participantes da vida ções que acontecem nas salas de aula e no
escolar indica a disposição de, continuamen- entorno delas, que podem trazer significativas
te, rever posições, metodologias, modos de contribuições para a reflexão das crianças,
enfrentar surpresas e dificuldades. gerando novos temas de interesse, novos co-
nhecimentos e novas formas de interpretar a
Ensinar-aprender envolve certa intimidade. realidade.
O(a)s professore(a)s também devem se expor
como pessoas que são, narrando fatos de suas A organização discursiva da
histórias. Aprendemos com os outros: histórias escola e suas implicações: a
puxam histórias e envolvem-nos, gerando, importância do reconhecimento
assim, relações de confiança e cumplicidade, de diferentes modos de falar
básicas para consistentes relações de ensino-
aprendizagem. Somos profissionais formados para educar
crianças e adolescentes e temos competên-
Descobrir e refletir sobre o que as crianças e cia para isso. Ao provocarmos situações
os adolescentes já sabem, sobre suas histórias 89

36082-Ensino Fundamental de 9 an89 89 14/08/07 19:03


pedagógicas que levem os alunos a construir diferentes classes sociais, regiões geográficas,
conhecimentos, por meio do trabalho com idades, e até mesmo de diferentes gêneros,
diversos conteúdos, utilizamos principalmente utilizam a língua de maneiras diferentes. A
a linguagem verbal, oral e escrita. isto os lingüistas chamam de fenômeno da
Entre as muitas marcas que caracterizam os variação lingüística. As diferentes maneiras
modos de lidar com os conteúdos, co- de falar uma mesma língua são chama-
nhecimentos, tempos e espaços das de variedades lingüísticas. A
que organizam a escola, está o variação acontece em todos
que chamamos de organiza- os níveis da língua: sintático
ção discursiva (cf. Goulart,
Pessoas de (p.ex. determinadas cons-
2003, p. 267). Tal organi- diferentes classes truções e modos de orga-
zação se expressa: (i) no sociais, regiões geo- nizar o discurso são mais
movimento discursivo usados, ou menos usa-
das aulas – falando,
gráficas, idades, e até dos, em determinadas
ouvindo, escrevendo, mesmo de diferentes variedades da língua);
lendo, das mais varia- gêneros, utilizam a semântico (p.ex. usam-
das maneiras –, e tam- se palavras e expressões
bém (ii) nos padrões de
língua de maneiras diferentes para designar
textos que caracterizam a diferentes. a mesma coisa; ou certas
escola e são produzidos por palavras e expressões têm
ela: conversas, rodinhas, diários valores diferentes em diferentes
de classe, cronogramas, projetos de variedades); morfológico (p.ex. pala-
trabalho, exercícios e seus enunciados, rela- vras derivadas ou compostas são formadas em
tórios, planos de curso e de aula, programas, determinada variedade, mas não existem em
livros didáticos, entre outros. Essa organização outras); e fonológico (p.ex. diferentes maneiras
discursiva faz parte da cultura escolar e exerce de pronunciar as palavras, diferentes sotaques
um papel relevante nos processos de ensinar e entonações, nas diferentes variedades). Do
e aprender. ponto de vista da lingüística, todas essas va-
A atividade discursiva permeia todas as ações riedades são legítimas e corretas. Cada uma é
humanas (Bakhtin, 1992), penetrando nos usada de acordo com aspectos discursivos que
mais ínfimos espaços sociais. Assim, a lingua- lhe são próprios.
gem tem um papel marcante na constituição A questão, entretanto, é complicada porque, do
de nossas vidas. A linguagem oral em que as ponto de vista social, as variedades não têm o
crianças e os adolescentes se expressam está mesmo valor: uma variedade da língua é con-
impregnada de marcas de seus grupos sociais de siderada “a certa, a melhor” e, com base nela,
origem, valores e conhecimentos. Logo, seus avaliam-se outras que, ligadas a grupos sociais
modos de falar são legítimos e fazem parte de populares, são consideradas negativamente.
seu repertório cultural, de vida – são modos Do ponto de vista lingüístico, essa avaliação é
de ler a realidade. É a partir desses modos de equivocada. O que acontece é que se avaliam as
falar/modos de ser que o trabalho pedagógico variedades tendo como parâmetro os aspectos
deve ser organizado, de forma que tenha sen- discursivos da variedade eleita como padrão.
tido para os estudantes. Analisando-se essa “eleição” do ponto de vista
A língua oral não é falada de forma homo- histórico e político, muita coisa se esclarece.

90 gênea pela população brasileira. Pessoas de

36082-Ensino Fundamental de 9 an90 90 14/08/07 19:03


Numa sociedade tão desigual como a brasi- da racionalidade humana. As crianças de
leira, a língua também é um grande marcador todos os lugares do mundo, de todas as
social. A variedade de prestígio – a chamada culturas, de todas as classes sociais rea-
língua padrão ou norma culta – se superpõe às lizam isso de um e meio a três anos de
outras variedades. É preciso deixar claro, no
idade. Isso é uma prova de inteligência.
entanto, que nem mesmo os falantes de uma
Toda criança aprende uma língua, e
mesma variedade da língua a falam de forma
homogênea – podemos dizer que há variação não fala um amontoado de sons. (grifo
dentro da variação. Esse é um ponto que me- do autor)
rece muita atenção na escola para que não
se neguem as marcas de identidade cultural O letramento como horizonte
das crianças e dos adolescentes. para a organização do trabalho
pedagógico, a relação língua oral-
É no processo de interlocução que as crian- língua escrita e a aprendizagem
ças e os adolescentes se constituem da escrita
como produtores de textos orais.
Acertando e errando, ou me- A tendência da língua oral é ir-se
Não se pode afastando da linguagem escrita,
lhor, acertando e tentando
esperar que uma vez que essa última é al-
acertar, as crianças vão
buscando regularidades na todas as crianças terada de forma muito lenta,
língua, ao depreenderem aprendam tudo o enquanto a primeira está em
que lhes é falado, permanente mudança. Embora
suas normas. Assim, uma
seja natural que as crianças,
criança é capaz de falar ao mesmo tempo. no começo da aprendizagem,
“fazi”, em vez de “fiz”, ou “di”,
busquem estabelecer referências
em vez de “deu”, e também usar
entre a fala (que conhecem) e a escri-
“desvestir”, para expressar “tirar a
ta (que querem conhecer), é importante ir
roupa”, porque conhece “tampar/destam-
mostrando às crianças que há vários modos de
par”, “abotoar/desabotoar”, entre outras.
falar, mas só há um modo de escrever, do ponto
A criança e o jovem recriam a linguagem de vista ortográfico. Assim, por exemplo, as
verbal oral falada à sua volta como forma de seguintes palavras podem ser faladas como está
participação na sociedade. A linguagem é escrito (ainda que de modo grosseiro), ao lado
recriada por meio dessa mesma participação da palavra convencionalmente escrita:
– os outros, isto é, os seus interlocutores, têm MALDADE > maudadi, maudadji, mardadi,
um papel muito importante no processo da madadi, maldadji, mardade
criança e do jovem, mas quem refaz a lingua- MESMO > mesmu, mermu, meijmo, mezmo,
gem é a criança, é o jovem. É o seu trabalho, memu, mezmu
agindo com a linguagem e sobre a linguagem,
Aprender a escrever sem medo de “errar” é im-
que os torna seres falantes e participantes no
portante. Os tropeços fazem parte de qualquer
universo social.
processo de aprendizagem. Isso não quer dizer
Cagliari (1985, p. 52) afirma que que a professora não deva mostrar às crianças
os problemas e os equívocos observados, le-
Aprender a falar é, sem dúvida, a tarefa
vando-as a compreender as motivações dos
mais complexa que o homem realiza na
problemas e equívocos encontrados. Pelo
sua vida. É a manifestação mais elevada 91

36082-Ensino Fundamental de 9 an91 91 14/08/07 19:03


contrário, o professor deve apresentar as Consideramos, então, que todo professor, de
dificuldades da escrita e conversar sobre elas. qualquer nível de ensino, é um professor de
Como afirma Abaurre (1985), ninguém pode linguagem.
errar o que não sabe. Não se pode esperar que Dessa forma, o(a) professor(a) que trabalha
todas as crianças aprendam tudo o que lhes é com os conteúdos de história, de biologia, de
falado, ao mesmo tempo. Não. As crianças têm matemática, ou de outra área qualquer, precisa
ritmos diferentes e modos diferentes de apreen- pensar-se como professor(a) de linguagem – é
der o conhecimento. Por isso, é importante principalmente com a linguagem verbal que as
abordar as mesmas questões muitas vezes, e de relações de ensino-aprendizagem acontecem,
maneiras diferentes, em momentos diferentes, por meio de diálogos, exposições orais, ativida-
com recursos diferentes. des de leitura e de escrita, análise de imagens,
É esperado que as crianças passem um longo de quadros, gráficos e problemas, entre outras
tempo cometendo “erros” ortográficos (mesmo atividades. Todos somos responsáveis pelo
escribas proficientes têm dúvidas...), antes de trabalho com a linguagem, seja na primeira
estabilizarem o conhecimento das conven- série/ano escolar ou nas últimas séries/anos do
ções da língua escrita. Mais do que isso: é ensino fundamental.
preciso que esse tempo seja permitido, Pensar na organização da escola em
para que elas possam descobrir as função de crianças das séries/anos
possibilidades, as convenções e iniciais do ensino fundamental,
as artimanhas do sistema alfa- Todo professor, com ênfase nas crianças de seis
bético-ortográfico. As escritas anos, envolve concebê-las no
de qualquer nível
de textos espontâneos pelas sentido da inserção no mundo
crianças são uma grande fonte de ensino, é um
letrado. Esse mundo é cons-
de informação sobre o que elas professor de lin- truído com base nos valores da
sabem e sobre os conteúdos que guagem. escrita nas práticas e relações
precisam ser trabalhados para que sociais, embora nem sempre esteja
aprofundem cada vez mais a análise e presente materialmente.
o conhecimento da língua.
As crianças e os adolescentes de zonas urbanas
Na escola aprendemos novos modos de falar, de modo geral têm grande contato com esse
de ler a realidade, quando conhecemos outras mundo, tendo em vista que as cidades são
formas de viver, falar e se comportar; apren- marcadas pela escrita de vários modos, desde
demos conteúdos das diferentes disciplinas, placas de muitos tipos e tamanhos até graffitis
como história, ciências, geografia, mate- nos muros e paredes, passando por nomes de
mática, filosofia, entre outras; entramos em estabelecimentos comerciais, trajetos de ôni-
contato com a literatura; conhecemos outras bus, invólucros e embalagens várias, e mesmo
expressões da arte, artes cênicas e plásticas, roupas que ganham inscrições e mensagens
artes ligadas ao movimento e ao ritmo, como também variadas. As crianças de áreas rurais,
a dança e a música. São diferentes modos de por sua vez, podem ter um afastamento maior
ler, mostrar e falar da realidade – precisamos da linguagem escrita, pelas peculiaridades
penetrar neles para apreendê-los, contemplan- dessas áreas.
do-os, observando-os, conversando, ouvindo O atravessamento da linguagem escrita na vida
leituras sobre seus autores, as épocas em que das pessoas se mostra muitas vezes de modo
92 foram produzidos e como foram produzidos. sutil: pela convivência com pessoas letradas, pela

36082-Ensino Fundamental de 9 an92 92 14/08/07 19:03


valorização que a escrita possui em determinados se vai falar ou escrever, para que se alcance
grupos, fazendo parte do seu cotidiano de coesão temática, para que se construam tex-
modo trivial. tos relevantes. É importante conversar com
E quando a criança entra na escola? De que as crianças sobre o que se vai escrever, ler
conhecimentos ela precisa para escrever, para textos que contribuam para que elas possam
produzir textos com valor social? expandir seus conhecimentos sobre os temas,
provocá-las a refletir sobre os textos que vão
Pode parecer banal, mas o primeiro conheci- elaborar. Isso pode ser feito desde muito cedo,
mento necessário para que se escreva é saber com crianças muito pequenas. Drummond, na
que se utilizam letras para escrever. Nem todas epígrafe deste texto, mostra como uma pro-
as crianças sabem disso quando chegam à esco- fessora entusiasmada, desenhando e falando
la. Depois, saber que essas letras se organizam sobre diferentes cidades e lugares do mundo,
com base em convenções, de acordo com um levou o menino analfabeto do interior de
sistema de escrita de base alfabética. Aprendem Minas Gerais, de um lugarejo onde havia uma
que se escreve da esquerda para a direita praça, a escola, a igreja e a cadeia, a ter
e de cima para baixo. Aos poucos, desejo de escrever, desejo de via-
as crianças vão observando os jar escrevendo, ou de escrever
diferentes padrões de sílaba É importante viajando... Assim o menino
e outras marcas diferentes se sentiu nascendo para o
conversar com as
de letras que aparecem nos mundo: Foi aí que nasci:
textos (sinais de pontua- crianças sobre o que
nasci na sala do 3o ano.
ção, acentuação). Tudo se vai escrever, ler
É importante observar
isso precisa ser trabalha- textos que contribuam
do de várias maneiras o que nos diz Abaurre
para que elas possam (1987, p. 49), ao defender
pelo(a) professor(a) com
as crianças para que cada
expandir seus que as crianças aprendam a
vez mais seus conhecimen- conhecimentos. escrever com a própria escrita,
tos sobre a língua escrita vão explorando todas as suas possi-
crescendo. bilidades, vivenciando o conflito
entre o idiossincrático e o convencional:
Para escrever, é preciso, também, ter um co- “A leitura e a escrita podem surgir de forma
nhecimento textual: o modo como cada tipo espontânea e significativa já na pré-escola,
de texto se organiza no papel, as diferentes prescindindo da condução e treinamento rígi-
características discursivas dos diversos tipos de dos pressupostos pelo uso das cartilhas.”
texto (partes que os compõem, tempos verbais
característicos etc.), informações relevantes, Tentando ler os vários sinais da realidade,
modos de iniciá-los, de terminá-los, entre incluindo caracteres da escrita, as crianças vão
tantas outras. Com certeza, tais características se aproximando de modos de ler. Aprende-se
não são rígidas, mas há determinados padrões a ler com a leitura. Quando a criança entra na
que se vão constituindo culturalmente, uma escola, a sua leitura de mundo (Freire, 1982) já
vez que a escrita tem uma longa história social está bastante desenvolvida. Como aprender a
(Tolchinsky-Landsman, 1990). ler as letras e entre as letras, como diz o poeta
(Queirós, 2001, p. 71)?
Um outro conhecimento fundamental para
a produção de textos é o conhecimento de O espaço da sala de aula deve ser um espaço
mundo: ninguém dá o que não tem. É preciso de formação de leitores. Um espaço, portanto,
conhecer o tema, fato ou assunto sobre o qual com muitas leituras. Leituras das crianças, lei- 93

36082-Ensino Fundamental de 9 an93 93 14/08/07 21:06


turas dos professores. Leituras de livros, jornais, de outras crianças e adultos, a leitura da crian-
panfletos, músicas, poesias e do que mais se ça vai se ampliando (Kleiman, 1989): anteci-
tornar significativo. Leituras de vários autores pando significados, identificando elementos já
e com várias intenções. É com a leitura abun- mais familiares e suas relações, perguntando
dante da escrita do mundo que aprendemos a aos colegas e aos professores, enfim, criando
ler (Barbosa, 1990). estratégias de leitura que lhe vão permitindo
arriscar mais e melhor. É preciso ter espaço
Mas como ler sem saber ler? É no contato
para arriscar, em conseqüência, é preciso ter
com materiais escritos e com a mediação de
espaço, não só para acertar, mas para expor
um leitor mais experiente que a criança vai
hipóteses, dúvidas – espaço para discutir pos-
buscando compreender o sentido do que está
escrito: sibilidades de leitura que levem a criança a
pensar, interagir, discordar e concordar.
z explorando as possibilidades de signi-
ficação; Aprende-se a ler com a leitura, como foi dito,
mas os caminhos não parecem ser os mesmos
z relacionando características dos tex- para todas as crianças. Enquanto alguns alu-
tos; nos atentam mais para os elementos menores
z familiarizando-se com as letras, as palavras, (como as letras, os sons, os tipos de sílabas) e
as frases e as outras marcas que compõem as suas relações com o texto, outros já prestam
os textos escritos; mais atenção ao texto como um todo e às suas
z elaborando hipóteses sobre o que está marcas maiores (como o modo de organização
escrito a partir do que já conhece; no papel, por exemplo).

z refletindo sobre as muitas questões que Diante do exposto, o trabalho do(a)


a professora destaca como significativas professor(a) é o de proporcionar atividades e
para o aprendizado da leitura de seus questionamentos que considerem as micro-
alunos. análises, isto é, análises que tenham como
ponto de partida os elementos menores do
Foucambert (1994, p. 31) afirma ser o meio texto (letra, fonema, sílaba), e também as
uma grande contribuição para a compreensão macroanálises, ou seja, aquelas que têm
do ensino da leitura. como ponto de partida as características mais
Na fase de aprendizado, o meio deve globais do texto, tais como: o modo como
proporcionar à criança toda a ajuda o texto se organiza no papel; o tipo e a
para utilizar textos “verdadeiros” temática do texto a partir do título;
e não simplificar os textos os portadores de texto e o tipo
para adaptá-los às É preciso ter de texto a eles relacionados;
possibilidades atuais espaço para e, quando houver, as ilus-
do aprendiz. Não se arriscar, em conse- trações, as imagens. O mais
aprende primeiro a ler importante é não perder de
qüência, é preciso ter
palavras, depois frases, vista o sentido dos textos.
mais adiante textos, e,
espaço, não só para
acertar, mas para É preciso que as crianças
finalmente, textos dos tenham acesso e contato
quais se precisa. expor hipóteses, intenso com diferentes textos
Aos poucos, com intervenções dúvidas. para que possam explorá-los,
significativas do(a) professor(a) e perguntando sobre eles, tentando
94

36082-Ensino Fundamental de 9 an94 94 14/08/07 21:06


adivinhar seus conteúdos, observando sua e de planejamentos. É imprescindível que
organização e suas marcas, para que possam todos se sintam à vontade e tenham espaços
elaborar saberes sobre as suas características e para manifestar seus gostos e desgostos, suas
ampliando seus conhecimentos de mundo. É alegrias e contrariedades, suas possibilidades
preciso ler muito para as crianças (não só para e limites, seus sim e seus não. Se as cartilhas
aquelas das séries/anos iniciais), para que elas e os livros didáticos forem convidados para
aprendam sobre a língua escrita e possam a sala de aula, que seja como material auxi-
estabelecer diferenças entre as modalidades liar da turma – a direção da organização do
oral e escrita. Quando a criança aprende a trabalho pedagógico é dos professores, em
escrever, forçosamente, analisa a linguagem conjunto com os alunos e a comunidade
verbal, o que a leva a ampliar, também, os escolar.
conhecimentos da linguagem oral. Do mes- Para finalizar, considerando os encaminha-
mo modo, é preciso conversar muito com as mentos e as questões apresentadas, em fun-
crianças: sobre as intenções de quem escreve, ção da organização do trabalho pedagógico
para que e para quem se escreve, sobre os no ensino fundamental, destacamos que as
conhecimentos construídos e em construção. ações desenvolvidas na educação infantil,
É preciso, enfim, reafirmar incessantemente pela ênfase na oralidade e em outras formas de
a condição das crianças como produtoras de expressão, por meio da participação ativa das
sentido e, logo, como autoras e leitoras. crianças em atividades interativas e lúdicas,
Do ponto de vista do método de trabalho, podem ser um bom caminho para orientar os
se queremos trabalhar no sentido de uma processos de ensino-aprendizagem ao longo
sociedade democrática, é relevante a criação do ensino fundamental – a escola precisa ser
de espaços pedagógicos em que tanto o(a) séria, mas não precisa ser sisuda, como dizia
professor(a) quanto os estudantes possam Paulo Freire.
elaborar propostas de atividades, de projetos

95

36082-Ensino Fundamental de 9 an95 95 14/08/07 21:06


Referências Bibliográficas

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TOLCHINSKY-LANDSMAN, L. Lo práctico, lo científico y lo literario: tres componentes en la
noción de ‘alfabetismo’, 1990. (mimeo)

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36082-Ensino Fundamental de 9 an96 96 14/08/07 19:03


AVALIAÇÃO E APRENDIZAGEM NA
ESCOLA: A PRÁTICA PEDAGÓGICA
COMO EIXO DA REFLEXÃO
Telma Ferraz Leal1
Eliana Borges Correia de Albuquerque2
Artur Gomes de Morais3

O medo de amar é o medo de ser


De a todo momento escolher
Com acerto e precisão
A melhor direção
..................................
O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever
Recusar o poder

O medo de amar é o medo de ser livre.

Beto Guedes e Fernando Brant

A escola e a avaliação eles aprendam tudo o que é importante, mas

A
pode possibilitar que eles se apropriem de dife-
prender com prazer, aprender brin rentes conhecimentos gerados pela sociedade.
cando, brincar aprendendo, aprender De fato, não é simples selecionar o que ensi-
a aprender, aprender a crescer: a esco- nar no ensino fundamental, mas precisamos
la é, sim, espaço de aprendizagem. Mas o que as refletir sobre quais saberes poderão ser mais
crianças e os jovens aprendem na escola? relevantes para o convívio diário dos meninos
Sem dúvida, aprendem conceitos, aprendem e meninas que freqüentam nossas escolas e
sobre a natureza e a sociedade. A escola dificil- para a sua inserção cada vez mais plena nessa
mente conseguirá propiciar situações para que sociedade letrada, pois eles têm o direito de

1
Doutora em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Professora Adjunta do Centro de Educação
da UFPE.
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Professora Adjunta do Centro de Educação da
UFPE.
3
Doutor em Psicologia pela Universidad de Barcelona; Professor Adjunto do Centro de Educação da UFPE.
97

36082-Ensino Fundamental de 9 an97 97 14/08/07 19:03


aprender os conteúdos das diferentes áreas de que também podem ser identificadas em
conhecimento que lhes assegurem cidadania diferentes áreas ou capacidades: capacida-
no convívio dentro e fora da escola. des cognitivas e lingüísticas, motoras, de
Assim, é fundamental que cada professor se equilíbrio pessoal, de inserção social e de
relação interpessoal.
sinta desafiado a repensar o tempo pedagógico,
analisando se ensina o que é de direito para Esse pressuposto vem sendo explicitado muito
os estudantes e se a seleção de conteúdos, ca- freqüentemente no meio educacional. Mas
pacidades e habilidades é de fato importante podemos perguntar: em que medida, de fato,
naquele momento, considerando que esses isso vem sendo considerado no cotidiano da
estudantes são crianças ou adolescentes que sala de aula?
apresentam características singulares dessas Muitas vezes, o professor investe suficiente-
etapas de desenvolvimento. mente na dimensão cognitiva do desenvol-
Reconhecemos a necessidade da circulação de vimento e não dedica atenção à dimensão
informações e conhecimentos, mas não quere- afetiva. Outras vezes, faz o inverso: cuida
mos que as crianças e os jovens que freqüentam da criança com carinho e atenção, mas sem
nossas escolas aprendam conceitos ou teorias planejar adequadamente como vai ajudá-la a
científicas desarticuladas das funções sociais. progredir na aprendizagem para alcançar as
Queremos que eles pensem sobre a sociedade, metas que devem ser atingidas do ponto de
interajam para transformá-la e construam vista cognitivo.
identidades pessoais e sociais, vivendo a in- Por isso, Solé (2004, p. 53) reitera que
fância e a adolescência de modo pleno.
não se trata de compartimentos estanques;
O professor, portanto, como defendem Santos à medida que meninos e meninas se mos-
e Paraíso (1996, p. 37), precisa atentar para o tram mais competentes na área cognitiva,
fato de que “o currículo constrói identidades suas possibilidades de inserir-se socialmente
e subjetividades: junto com os conteúdos das aumentam, bem como as relações inter-
disciplinas escolares; e também adquirem-se pessoais que podem estabelecer e tudo
na escola percepções, disposições e valores isso muda a maneira como vêem a si
que orientam os comportamentos e estruturam mesmos.
personalidades”. Ou seja, quando ocupamos
Por outro lado, se eles adquirem mais seguran-
esse espaço social – escola –, lidamos com seres
ça nas relações, perdem o medo de errar, se
em desenvolvimento que estão em processo lançam mais e, conseqüentemente, aprendem
de construção de identidades, que aprendem mais.
sobre a sociedade, sobre os outros e sobre si
próprios. Assim, propomos que cada professor, ao pla-
nejar as situações didáticas, reflita sobre os
E como essa tomada de consciência pode-
estudantes, considerando o desenvolvimento
ria modificar a prática pedagógica de cada
integral deles, contemplando as características
professor?
culturais dos grupos a que pertencem e as ca-
Pensando sobre essa questão, Solé (2004, p. racterísticas individuais, tanto no que se refere
53) ressalta a dimensão integradora da edu- aos modos como interagem na escola, quanto
cação. Ela nos lembra que às bagagens de saberes de que dispõem. Caso
no processo de desenvolvimento ocorrem determinada criança esteja com dificuldade
mudanças que afetam essa globalidade e de inserir-se no grupo-classe, é papel do
98

36082-Ensino Fundamental de 9 an98 98 14/08/07 19:03


professor planejar estratégias para que ela Enfim, na escola, é preciso ter objetivos de
supere tal dificuldade; caso algum estudante diferentes dimensões que ajudem os estudan-
esteja com auto-estima baixa e, portanto, tes a participar de modo autônomo, crítico e
demonstre medo de expor seus sentimentos e ousado na sociedade. Para tal, a seleção do que
conhecimentos, é preciso também pensar em ensinar precisa contemplar e priorizar objetos
como favorecer o desenvolvimento dele. que os ajudem a desenvolver capacidades nessa
Em síntese, como nos diz Solé (2004, p. 53), direção.
“o desenvolvimento afeta todas as capacidades Santos e Paraíso (1996, p. 38-39), a esse
humanas e todas devem ser levadas em conta respeito, alertam que “o currículo deve dar
durante a elaboração de um projeto educati- voz às culturas que foram sistematicamente
vo”, principalmente se nesse projeto educativo excluídas pela escola, como a cultura indígena,
o professor busca intervir na formação cidadã a cultura negra, a cultura infanto-juvenil, a
dos estudantes. cultura rural, a cultura da classe trabalhadora
e todas as manifestações das chamadas culturas
E o que significa, para o professor, intervir na
negadas”. Desse modo, o professor pode ajudar
formação cidadã das crianças e adolescentes?
as crianças e os jovens a entender os processos
Concebemos que significa pensar em como
de exclusão e a valorizar sua própria história,
ajudá-los a interagir na sociedade de modo
o que pode ter impactos no aumento da auto-
confiante e crítico; implica fazer com que
estima e da confiança em si próprios.
eles tomem consciência das contradições
sociais e desenvolvam valores para a É nessa mesma linha de pensamento que
construção de uma sociedade justa, Silva (2003, p.10) aponta que
igualitária e democrática; implica o espaço educativo se transfor-
fazer com que eles adquiram ma em ambiente de superação
Tradicionalmente,
autoconfiança, reconhecendo de desafios pedagógicos que
que suas histórias estão inse- as práticas de avalia- dinamiza e significa a apren-
ridas na história dos grupos ção desenvolvidas na dizagem, que passa a ser com-
sociais dos quais participam; escola têm se consti- preendida como construção
significa instrumentalizá-los tuído em práticas de de conhecimentos e desenvol-
para que tenham acesso a uma exclusão. vimento de competências em
ampla gama de situações sociais vista da formação cidadã.
e entendam os processos históricos E como pode o professor superar os
que os excluem de outras situações e desafios pedagógicos? Para superar dificul-
possam intervir nessa realidade; implica ajudá- dades, é necessário avaliar sistematicamente o
los a dominar os instrumentos de participação ensino e a aprendizagem. Tradicionalmente,
nessas diferentes situações, como, por exem- no entanto, as práticas de avaliação desenvol-
plo, ler e escrever com autonomia; significa vidas na escola têm se constituído em práticas
ajudá-los a se apropriar dos conhecimentos de exclusão: avalia-se para medir a aprendiza-
construídos pela humanidade; implica possi- gem dos estudantes e classificá-los em aptos ou
bilitar que eles exerçam o direito de vivenciar não aptos a prosseguir os estudos. Para que não
as experiências próprias da faixa etária a que tenhamos essa prática excludente, é preciso
pertencem, como, por exemplo, brincar e que os professores reconheçam a necessidade
interagir de modo lúdico. de avaliar com diferentes finalidades:
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z conhecer as crianças e os adolescentes, z se o estudante está se engajando no
considerando as características da in- processo educativo e, em caso negativo,
fância e da adolescência e o contexto quais são os motivos para o não-engaja-
extra-escolar; mento;
z conhecê-los em atuação nos tempos e z se o estudante está realizando as tarefas
espaços da escola, identificando as estra- propostas e, em caso negativo, quais são
tégias que usam para atender às deman- os motivos para a não-realização;
das escolares e, assim, alterar, quando z se o(a) professor(a) está adotando boas
necessário, as condições nas quais é estratégias didáticas e, em caso negativo,
realizado o trabalho pedagógico; quais são os motivos para a não-ado-
z conhecer e potencializar as suas identi- ção;
dades; z se o(a) professor(a) utiliza recursos di-
z conhecer e acompanhar o seu desenvol- dáticos adequados e, em caso negativo,
vimento; quais são os motivos para a não-utiliza-
ção;
z identificar os conhecimentos prévios dos
estudantes, nas diferentes áreas do co- z se ele(a) mantém boa relação ou não
nhecimento e trabalhar a partir deles; com os meninos e meninas e os motivos
para a manutenção dessas relações de
z identificar os avanços e encorajá-los a aprendizagem;
continuar construindo conhecimentos
nas diferentes áreas do conhecimento e z se a escola dispõe de espaço adequado, se
desenvolvendo capacidades; administra apropriadamente os conflitos
e, em caso negativo, quais são os motivos
z conhecer as hipóteses e concepções para a sua não-administração;
deles sobre os objetos de ensino nas dife-
rentes áreas do conhecimento e levá-los z se a família garante a freqüência escolar
a refletir sobre elas; da criança ou dos jovens, se os incentiva
a participar das atividades escolares e,
z conhecer as dificuldades e planejar ati- em caso negativo, quais são os motivos
vidades que os ajudem a superá-las; para o não-incentivo;
z verificar se eles aprenderam o que foi z se a escola garante aos estudantes e a
ensinado e decidir se é preciso retomar suas famílias o direito de se informar e
os conteúdos; discutir sobre as metas de cada etapa de
z saber se as estratégias de ensino estão estudos, sobre os avanços e dificuldades
sendo eficientes e modificá-las quando reveladas no dia-a-dia.
necessário. Nessa perspectiva, os resultados do não-
Diferentemente do que muitos professores atendimento das metas escolares esperadas
vivenciaram como estudantes ou em seu pro- em determinado período do tempo são vistos
cesso de formação docente, é preciso que, em como decorrentes de diferentes fatores sobre os
suas práticas de ensino, elaborem diferentes quais é necessário refletir. A responsabilidade,
estratégias e oportunidades de aprendizagem e então, de tomar as decisões para a melhoria do
avaliem se estão sendo adequadas. Assim, não ensino, passa a ser de toda a comunidade. Ou
apenas o estudante é avaliado, mas o trabalho seja, o baixo rendimento do estudante deve ser
do professor e a escola. É necessário avaliar: analisado e as estratégias para que ele aprenda
100

36082-Ensino Fundamental de 9 an100 100 14/08/07 19:03


devem ser pensadas pelo professor, juntamente gem e de que a escola não deve se ater apenas
com a direção da escola, a coordenação peda- aos aspectos cognitivos do desenvolvimento,
gógica e a família. Pode-se, então, mudar as veremos que a reprovação tem impactos ne-
estratégias didáticas; possibilitar atendimento gativos, pois provoca, muitas vezes, a evasão
individualizado; garantir a presença do estu- escolar e a baixa auto-estima, o que dificulta o
dante em sala de aula, no caso dos faltosos; próprio processo de aprendizagem posterior.
além de outras estratégias, como a de propor-
Com esse princípio de respeito, no entanto,
cionar maior tempo para que a aprendizagem
não estamos defendendo que devamos esperar
ocorra, tema que abordaremos a seguir.
que o estudante aprenda sozinho, “quando vier
A ampliação do ensino a consegui-lo”, mas sim criar condições propí-
fundamental para nove anos e a cias de aprendizagem e reconhecer quando ele
questão do tempo escolar: alguns está em vias de consolidar os conhecimentos
cuidados a ter em conta esperados ou quando não está conseguindo
caminhar nessa direção, no período previsto.
A ampliação do ensino fundamental para nove Estabelecer metas claras a ser alcançadas é,
anos representa um avanço importantíssimo portanto, um requisito básico para ensinar e
na busca de inclusão e êxito das crianças das para avaliar, conforme discutiremos a seguir.
camadas populares em nossos sistemas escola-
res. Ao iniciarem o ensino fundamental um Avaliando: a definição de metas,
ano antes, aqueles estudantes passam a ter a observação e o registro no
mais oportunidades para cedo começarem a processo de ensino
se apropriar de uma série de conhecimentos, e aprendizagem
entre os quais tem um lugar especial o domínio
da escrita alfabética e das práticas letradas de Concordando com o princípio do atendi-
ler-compreender e produzir textos. mento à diversidade, Silva (2003, p.11)
No entanto, é preciso planejar e chama a atenção para o fato de que
avaliar bem aquilo que estamos a avaliação, numa perspectiva
ensinando e o que as crian- É preciso não formativa reguladora, deve
ças e os adolescentes estão perder tempo, não reconhecer as diferentes
aprendendo desde o início da deixar para os anos trajetórias de vida dos estu-
escolarização. É preciso não dantes e, para isso, é preci-
seguintes o que
perder tempo, não deixar so flexibilizar os objetivos,
para os anos seguintes o que devemos assegurar
os conteúdos, as formas de
devemos assegurar desde a desde a entrada das ensinar e de avaliar; em ou-
entrada das crianças, aos seis crianças, aos seis tras palavras, contextualizar
anos, na escola. anos, na escola. e recriar o currículo. É neces-
E o que fazer com os que não atin- sário dominar o que se ensina
girem as metas estabelecidas? Muitos e saber qual é a relevância social e
professores, preocupados com a progressão cognitiva do ensinado para definir o que vai
das crianças e jovens, defendem que é melhor se tornar material a ser avaliado.
que eles repitam o ano do que progridam sem A mudança das práticas de avaliação é então
conseguir acompanhar os colegas de sala. acompanhada por uma transformação do
A partir de uma concepção de que devemos ensino, da gestão da aula, do cuidado com
assegurar a todos a possibilidade de aprendiza- as crianças e os adolescentes em dificuldade. 101

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Para que isto ocorra, existe um ponto de tivas quanto aquelas programadas para indiví-
partida fundamental. Como menciona Leal duos ou grupos de estudantes que ainda não as
(2003, p. 20), a seleção consciente do que alcançaram (ou que estão muito avançados) e
devemos ensinar merecem, portanto, um atendimento diferen-
ciado em relação ao conjunto da turma.
é o primeiro passo a ser dado para a cons-
trução de uma aprendizagem significativa A fim de que as informações observadas não
na escola. Em decorrência dessa tomada se dispersem ou sejam esquecidas e para que
de posição em relação ao que é realmente tenhamos melhores condições de refletir sobre
importante, é que podemos organizar nosso o ensino e a aprendizagem, necessitamos pro-
tempo na sala de aula e definir o que iremos ceder ao registro periódico da situação de cada
avaliar e as formas que adotaremos para estudante em relação aos objetivos traçados
avaliar. nos diferentes eixos de ensino.
Na busca de sermos justos e eficientes como Empregando instrumentos variados, as prá-
educadores, precisamos garantir a coerência ticas avaliativas mais defendidas atualmente
entre as metas que planejamos, o que ensi- compartilham esse ponto: o registro escrito de
namos e o que avaliamos. A clareza sobre o informações mais qualitativas sobre o que as
que vamos ensinar permitirá, em cada etapa crianças e os adolescentes estão aprendendo.
ou nível de ensino, delimitar as expectativas As formas de registro qualitativo escrito per-
de aprendizagem, das quais dependem tanto mitem que
nossos critérios de avaliação quanto o nível z os professores comparem os saberes alcan-
de exigência. çados em diferentes momentos da trajetória
Portanto, faz-se necessário definir um perfil vivenciada;
de saída de cada etapa de ensino e assegurar z os professores acompanhem coletivamente,
esforços para compreender os processos de de forma compartilhada, os progressos dos
construção de conhecimentos das crianças e estudantes com quem trabalham a cada
adolescentes. Essa complexa tarefa pressupõe ano;
uma atitude permanente de observação e
registro. Sim, independentemente dos instru- z os estudantes realizem auto-avaliação,
mentos utilizados, a avaliação (quando não se refletindo, dessa forma, sobre os próprios
limita a produzir notas ou conceitos para fins de conhecimentos e sobre suas estratégias de
aprovação-reprovação ou certificação de estudos) aprendizagem, de modo que possam rede-
constitui sempre processo contínuo de observa- finir os modos de estudar e de se apropriar
ção dos avanços, das descobertas, das hipóteses dos saberes;
em construção e das dificuldades demonstradas z as famílias acompanhem sistematicamente
pelos meninos e meninas na escola. os estudantes, podendo, assim, dar suges-
Nesse processo, realizamos um diagnóstico tões à escola sobre como ajudar as crianças
do que os estudantes já sabem, ao iniciarmos e os adolescentes e discutir suas próprias
uma etapa de ensino, e dos conhecimentos que estratégias para auxiliá-los;
vão construindo ao longo do período. Morais z os coordenadores pedagógicos (assistentes
(2005) afirma que o mapeamento dos saberes pedagógicos, equipe técnica) conheçam o
já construídos dá ao docente “um retrato” da que vem sendo ensinado/aprendido pelos
situação de cada estudante, permitindo-lhe estudantes e possam planejar os processos
ajustar o ensino e planejar tanto metas cole- formativos dos professores.
102

36082-Ensino Fundamental de 9 an102 102 14/08/07 19:03


A diversificação dos instrumentos avaliati- Para ajudar as crianças e os adolescentes nessa
vos, por sua vez, viabiliza um maior número tomada de consciência de suas conquistas,
e variedade de informações sobre dificuldades e possibilidades, além do
o trabalho docente e sobre os próprio diálogo (com o profes-
percursos de aprendizagem, sor e os colegas), precisamos
assim como uma possibili- A diversificação nos valer de recursos que
dade de reflexão acerca de dos instrumentos documentem, que mate-
como os conhecimentos avaliativos, por sua rializem a sua trajetória.
estão sendo concebidos Como dito, os portfolios,
pelas crianças e ado-
vez, viabiliza um maior que vêm, nos últimos
lescentes. Entender a número e variedade anos, sendo utilizados
lógica utilizada pelos de informações sobre por um número cada
estudantes é um pri- o trabalho docente e vez maior de professores,
meiro passo para saber sobre os percursos têm sido um dos meios de
como intervir e ajudá-los de aprendizagem. concretizar tais práticas (cf.
a se aproximar dos concei- Hernández, 1998). Mas o que
tos que devem ser apropriados é um portfolio?
por eles. Hernández (2000, p. 166) define port-
O uso de portfolios, por exemplo, pode ser folio como sendo
útil para que os estudantes, sob orientação um continente de diferentes tipos de docu-
dos professores, possam analisar suas próprias mentos (anotações pessoais, experiências
produções, refletindo sobre os conteúdos de aula, trabalhos pontuais, controles de
aprendidos e sobre o que falta aprender, ou aprendizagem, conexões com outros temas
seja, possam visualizar seus próprios percursos fora da escola, representações visuais, etc.)
e explicitar para os professores suas estratégias que proporciona evidências dos conheci-
de aprendizagem e suas concepções sobre os mentos que foram sendo construídos, as
objetos de ensino. estratégias utilizadas para aprender e a dis-
Tal prática é especialmente relevante por posição de quem o elabora para continuar
propiciar a idéia de que não cabe apenas ao aprendendo.
professor avaliar o processo de aprendizagem Ferraz (1998, p. 50) também se refere ao
e de ensino. Tal concepção é contrária às
portfolio como esse conjunto de documentos
orientações dadas em uma perspectiva tradi-
que auxiliam tanto os estudantes quanto os
cional, com seus fins excludentes de classificar
professores e familiares a acompanhar o pro-
e selecionar estudantes aptos e não-aptos, que
cesso de aprendizagem. Para ela, o portfolio
sempre foi promotora de heteronomia: como
só o professor julgava os produtos do estudante, compreende todo o processo de arquiva-
esse último introjetava a idéia de que era inca- mento e organização de registros elabora-
paz de avaliar o que fazia, pois só o adulto-pro- dos pelos alunos, construídos ao longo do
fessor sabia o certo. Se queremos que crianças ano letivo: textos, desenhos, relatórios ou
e adolescentes sejam cada vez mais autônomos,
outros materiais produzidos por eles e que
precisamos promover, no cotidiano, situações
permitam acompanhar suas dificuldades e
em que os estudantes reflitam, eles próprios,
sobre seus saberes e atitudes, vivenciando uma avanços na matéria. Periodicamente, ele
avaliação contínua e formativa da trajetória [o professor] discute com cada estudante
de sua aprendizagem. sobre os registros feitos. O portfolio, que
103

36082-Ensino Fundamental de 9 an103 103 14/08/07 19:03


pode ser apresentado numa pasta, tem Assim, em cada página, que corresponde a
ainda uma vantagem: a de servir como um cada estudante, os professores encontram
elo significativo entre o professor, o aluno espaços, com títulos referentes aos principais
e seus pais. aspectos a ser avaliados, para fazerem as ano-
tações, com indicação da data da observação
Vemos, assim, que a materialidade dos portfolios
e do instrumento utilizado para analisar o que
permite não só ao professor, mas, sobretudo,
está sendo foco da avaliação.
ao estudante (e sua família), comparar o que
se sabia de início com o que foi se construindo Por meio dessa visualização, o professor pode
ao longo de determinada etapa escolar. Como acompanhar cada estudante e refletir sobre
se pode inferir, para se prestar à finalidade de quais estratégias didáticas estão sendo boas
auto-avaliação pelo estudante, a confecção e quais não estão ajudando no processo de
desse tipo de recurso precisa contar com a par- aprendizagem. Pode pensar, também, em
ticipação dele na periódica seleção, registro de estratégias para organizar agrupamentos de
comentários e reflexão sobre o que conseguiu estudantes para trabalhos diversificados e em
aprender. alternativas ou tarefas para acompanhamento
individual, quando for necessário.
Ao procederem à seleção das produções que
constarão no portfolio, tanto os estudantes Para delimitar o que registrar, no entanto, é
quanto os professores precisam revisitar as fundamental, a partir de objetivos relevantes,
situações em que os trabalhos foram produzidos definir as metas prioritárias e construir instru-
e retomar os conceitos trabalhados. O portfolio mentos de avaliação que permitam ao estudante
é, portanto, um facilitador da reconstrução e evidenciar o que pensa sobre o que está sendo
reelaboração, por parte de cada estudante, de aprendido. No próximo tópico, os instrumentos
seu processo de aprendizagem ao longo de um de avaliação serão foco de debate.
período de ensino. Assim, a relevância não
Instrumentos de avaliação:
está no portfolio em si, mas no que o estudante avaliar produtos ou refletir sobre
aprendeu ao construí-lo, ou seja, ele constitui os processos e percursos de
um meio para se atingir um fim. Dessa forma, aprendizagem?
é importante pensar que não basta selecionar,
ordenar evidências de aprendizagens e colo- Como obter as informações de que neces-
cá-las num formato para serem apresentadas, sitamos para acompanhar os percursos dos
mas refletir sobre o que foi aprendido e sobre estudantes? Como apreender os modos como
as estratégias usadas para aprender. eles representam os conceitos? Como saber
o que pensam sobre o que ensinamos para
Os diários de classe ampliados também são muito
pensarmos nas possibilidades pedagógicas que
valiosos para o acompanhamento do processo
assegurariam a qualidade do ensino-aprendi-
ensino-aprendizagem. Nessa forma de registro
zagem? Como proceder para que os estudantes
qualitativa, caracterizada pela presença, nos
evidenciem seus avanços e suas dificuldades?
diários de classe, de espaços para anotações
Como analisar as respostas que eles dão, bus-
sobre os estudantes, é fundamental que os
cando apreender a lógica utilizada por eles na
professores e equipe pedagógica reflitam sobre
realização das tarefas propostas?
o que deve ser priorizado em cada etapa de en-
sino e planejem como organizar as anotações Os instrumentos utilizados podem ser variados,
referentes aos percursos de aprendizagem das mas, em nossa perspectiva, precisam diag-
crianças e adolescentes. nosticar sistematicamente a construção de
104 saberes específicos, capacidades, habilidades,

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além de aspectos ligados ao desenvolvimento sobre o que entenderam. No caso das crianças
pessoal e social. em fase de aprendizagem do sistema alfabéti-
Em relação à apropriação dos conheci- co, podemos, também, pedir que escrevam
mentos, não é suficiente sabermos palavras, mostrando as relações en-
se os estudantes dominam ou tre as partes escritas e as orais;
não determinado conheci- entre muitas outras atividades
mento ou se desenvolveram Não é suficiente possíveis.
ou não determinada capa- sabermos se os A partir da análise desses
cidade. É preciso enten- estudantes dominam materiais, podemos fazer
der o que sabem sobre o ou não determinado os registros de acompa-
que ensinamos, como eles nhamento. Se pensar-
conhecimento ou se
estão pensando, o que já mos nas competências
aprenderam e o que falta desenvolveram ou
de leitura e de produção
aprender. Essa mudança de não determinada de textos que devem ser
postura é o que diferencia os capacidade. construídas no primeiro ano
professores que olham apenas o da escolarização do ensino fun-
produto da aprendizagem (respos- damental, poderemos, por exemplo,
tas finais dadas pelos estudantes) e os registrar se cada estudante compreende
que analisam os processos (as estratégias usadas textos lidos pela professora, extraindo as infor-
para enfrentar os desafios). mações principais (quem, o quê, quando, onde,
Nessa perspectiva, os instrumentos usados, por quê etc.); compreende textos mais longos
além de diagnosticarem, servem para fazer o lidos pela professora, elaborando inferências e
professor repensar sua prática, ou seja, podem apreendendo o sentido global do texto; lê tex-
ter uma dimensão formativa do docente, prin- tos curtos com autonomia, podendo extrair in-
cipalmente se ocorrem momentos coletivos de formações principais; demonstra interesse em
discussão sobre os trabalhos dos estudantes. ler, em buscar consultar livros e outros suportes
textuais; elabora textos que serão registrados
Para diagnosticar os avanços, assim como as pela professora, organizando as informações e
lacunas na aprendizagem, podemos nos valer estabelecendo relações entre partes do texto,
tanto das produções escritas e orais diárias dos em atendimento a diferentes finalidades e
estudantes (os textos e escritas de palavras destinatários; escreve textos curtos dos gêneros
que produzem a cada dia na sala de aula; o que que foram explorados nas aulas...
comentam, escrevem ou lêem ao participarem
das atividades na classe) quanto de instrumen- Essa forma de avaliar se distancia, em muito,
tos específicos (tarefas, fichas, etc.) que nos for- das que priorizam o registro de quantidade
neçam dados mais controlados e sistemáticos de erros que os estudantes cometem quando
sobre o domínio dos saberes e conteúdos das escrevem textos; ou das práticas em que são
diferentes áreas de conhecimento a que se feitas as contagens de quantidade de questões
referem os objetivos e as metas de ensino. que conseguem responder após a leitura de um
texto; ou mesmo das centradas nas anotações
Nas tarefas ou fichas usadas para avaliar as
de como os estudantes lêem em voz alta, com
capacidades na área de língua portuguesa,
ênfase apenas na decodificação e na entonação.
podemos, por exemplo, pedir que os estudan-
tes escrevam textos (indicando, obviamente, Se mudarmos a área de conhecimento, podemos,
finalidades e destinatários); podemos entregar também, encontrar exemplos que diferenciam as
textos para que tentem ler e depois conversar propostas em que os professores simplesmente 105

36082-Ensino Fundamental de 9 an105 105 14/08/07 19:03


assinalam o que está certo e errado daquelas em estudantes de maneira que ele possa ajustar o
que os professores tentam entender os percur- ensino a eles oferecido. É necessário, porém,
sos de aprendizagem e, assim, refletir sobre os não perdermos de vista o papel da auto-ava-
processos de aprendizagem. liação do professor.
Na área de matemática, por exemplo, temos Para atuarmos em qualquer esfera social, pre-
como um dos objetivos o trabalho com classi- cisamos, como já dissemos, planejar nossas
ficações.4 Ou seja, temos como uma das metas ações de modo que encontremos as melhores
levar os estudantes a aprenderem a classificar estratégias para atingir nossos alvos e atender
e a refletir sobre critérios de classificação. às metas a que nos propomos. Para que melho-
Essa seleção de conteúdo está fundamentada remos nossas estratégias de ação e consigamos
na idéia de que cotidianamente classificamos cada vez mais conquistas, precisamos continu-
eventos e fenômenos da natureza e da socieda- amente avaliar se tomamos as decisões certas,
de. Freqüentemente lemos tabelas e gráficos, se usamos os instrumentos mais adequados, se
em que os dados são classificados e agrupados conduzimos as situações da melhor maneira
para comparações e tomadas de decisão im- possível.
portantes em diferentes esferas sociais, como Assim também acontece com os professores,
a economia, por exemplo. para melhorarmos nossa prática pedagógica,
Ao avaliarmos os estudantes em relação a precisamos avaliar sempre se estamos sele-
esse aspecto, podemos registrar que tipos cionando adequadamente as prioridades, se
de classificação são capazes de estabelecer: estamos usando os recursos mais adequados,
classificação a partir de um critério único se estamos desenvolvendo as melhores estra-
(ex. ser menino ou menina), classificação tégias, enfim, precisamos nos auto-avaliar.
a partir de uma combinação de critérios A auto-avaliação, então, precisa fazer parte do
(ser menino ou menina, da 2a ou 3a série), cotidiano escolar, não apenas do estudante,
classificação com negação de uma categoria mas do professor, do coordenador pedagógico
(meninos e meninas, excluindo os que não e de todos que estão envolvidos no processo
gostam de jogar futebol), entre outras; se eles de ensino-aprendizagem.
conseguem descobrir os critérios de classi-
ficação usados em diferentes situações (ao Avaliando para melhorar a
analisarem reportagens, quadros e tabelas, por aprendizagem: mais algumas idéias
exemplo); se eles são capazes de comparar e
equalizar coleções... Algumas redes de ensino vêm adotando mo-
dalidades de registros escritos mais qualita-
Para chegarmos a esse registro, não podemos tivos, tornando-os instrumentos primordiais
usar apenas instrumentos de múltipla escolha. É no acompanhamento da aprendizagem e na
preciso planejar situações em que os estudantes tomada de decisões para o avanço qualitativo
explicitem como chegaram a determinados re- das aprendizagens dos estudantes. Se, do ponto
sultados e possam expor as estratégias adotadas de vista oficial, tais registros significam um
para resolver problemas de classificação. grande avanço, é preciso ter cuidado em não
Falamos até aqui de instrumentos utilizados transformá-los em tarefa burocrática. Como
pelo professor para, ele próprio, diagnosticar bem expuseram Oliveira e Morais (2005),
e registrar os percursos de aprendizagem dos estudos já demonstraram a necessidade de os

4
Exemplo adaptado de uma ficha de acompanhamento de estudantes da Rede Municipal de Ensino de Camaragibe/PE, elaborada
106 por Gilda Lisboa Guimarães.

36082-Ensino Fundamental de 9 an106 106 14/08/07 19:03


professores terem oportunidades de discutir conteúdos formulados geralmente de modo
continuamente os objetivos e os instrumentos muito “amplo” nos documentos curriculares
de avaliação que passaram a usar, a fim de se ou planos de curso. Só com esse nível de
apropriarem daqueles novos recursos e serem, clareza e concretude podemos fazer o registro
de fato, ajudados a reorganizar sua tarefa de avaliativo ao longo das semanas em que se dá o
ensino ao empregá-los. ensino-aprendizagem, de forma que possamos
Para que não haja um descompasso entre o corrigir-realimentar o processo de ensino e não
registrado e o vivido/priorizado em sala de perder as informações que detectamos sobre os
aula, insistimos na necessidade de garantir meninos e as meninas no dia-a-dia.
alguns cuidados aparentemente óbvios, mas
Finalmente, e nunca é demais lembrar que,
nem sempre cumpridos. Em primeiro lugar,
recordemos, deve-se ter clareza sobre o que para que o estudante e sua família tenham voz,
é necessário que os estudantes aprendam devem participar efetivamente do processo
em cada etapa escolar, o que constitui um de avaliação. Necessitamos garantir que as
direito deles. É preciso “não deixar o tempo famílias conheçam as expectativas da escola
passar”, mas sim monitorar, continuamente, em relação às crianças e aos adolescentes em
os progressos e as lacunas demonstrados pelos cada unidade e série (ou ano) e acompanhem
estudantes. Assim, poderemos ajustar a forma a trajetória percorrida, podendo se posicionar
de ensinar, em lugar de esperar o fim do perí- junto à professora, à turma e à escola. Se o
odo para, já sem ter muito por fazer, constatar estudante e sua família sabem aonde a escola
se as crianças e os adolescentes aprenderam quer chegar, se estão envolvidos no dia-a-dia
ou não o que foi estabelecido. de que são os principais beneficiários, poderão
Em segundo lugar, para que tenhamos cla- participar com mais investimento e autonomia
reza sobre o que ensinar e avaliar, necessita- na busca do sucesso nessa empreitada que é o
mos “traduzir” em objetivos observáveis os aprender.

107

36082-Ensino Fundamental de 9 an107 107 14/08/07 19:03


Referências Bibliográficas

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108

36082-Ensino Fundamental de 9 an108 108 14/08/07 19:03


MODALIDADES ORGANIZATIVAS DO
TRABALHO PEDAGÓGICO:
UMA POSSIBILIDADE
Alfredina Nery1

Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã;
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros se cruzem
os fios do sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
.......................................

João Cabral de Melo Neto

O
s fins da educação, os objetivos pe- professore(a)s. O que desenvolvemos aqui são
dagógicos e os conhecimentos a ser processos de organização do trabalho pedagó-
trabalhados no ensino fundamental, gico. Portanto, os exemplos são apenas referên-
especialmente com a criança de seis anos, cias em que se destacam quatro modalidades de
são amplamente discutidos nos outros textos organização dos conteúdos de trabalho com
desta publicação. Neles há explicitação de as áreas do conhecimento – referenciadas na
determinados pressupostos, atitudes, práticas
e formas de organizar o trabalho pedagógico.
O presente texto objetiva articular algumas
concepções e sugestões de práticas dos demais
textos, na tentativa de sinalizar possibilidades
cotidianas de trabalho.
Este texto não tem a intenção de propor
atividades que devem ser seguidas pelo(a)s
(Joseph Russafa)

1
Formada em Letras e Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo – Professora univer-
sitária, formadora e consultora pedagógica na área de linguagem/ língua/leitura. 109

36082-Ensino Fundamental de 9 an109 109 14/08/07 19:03


obra Ler e escrever na escola: o real, o possível e o por exemplo: o adulto e a criança; o professor
necessário, de Delia Lerner –, nem sempre com e o estudante; o chefe e o subalterno; o pai e o
as mesmas denominações e/ou ações indicadas: filho; o médico e o paciente. Evidentemente,
atividade permanente, seqüência didática, pro- essas relações desiguais são reflexos de questões
jeto e atividade de sistematização. sociais mais amplas.
Este texto parte de uma concepção de lingua- Enfim, a linguagem não é apenas comunicação
gem como interação, o que possibilita articular ou suporte de pensamento, é, principalmente,
as várias áreas do conhecimento, pois conside- interação entre sujeitos; é lugar de negocia-
ra o ser humano um ser de linguagem, uma vez ção de sentidos, de ideologia, de conflito, e
que esta constitui o sujeito em seu contexto. as condições de produção de um texto (para
A imagem da página anterior é uma boa ana- quê, o quê, onde, quem, com quem, quando,
logia do que consideramos linguagem. como) constituem seus sentidos, para além de
Na comparação, o novelo pode ser entendido sua matéria formal – palavras, linhas, cores,
como o repertório de mundo, lingüístico e formas, símbolos.
textual dos interlocutores, numa dada situa- A linguagem é constitutiva do sujeito, ou seja,
ção de linguagem. O tecido sendo tricotado faz parte do processo de identidade pessoal e
pode ser a materialização do conceito social de cada pessoa e, por isso, a escola
de “texto” que, na sua origem, está precisa considerá-la na formação de
relacionado à idéia de tessitura, de pessoas que sejam capazes de com-
Linguagem
fios que compõem o tecido. E os preender mais e melhor o mundo,
sinais semicurvos, nas extremida- e poder têm inclusive transformando-o. O
des das duas agulhas, lembram andado juntos estudo das linguagens, na escola,
sinais gráficos das histórias em na história da é, ainda, fundamental tanto para
quadrinhos, usados para indicar humanidade. as aprendizagens dos conteúdos
movimento no desenho, o que escolares, quanto para a ampliação
também dá a idéia de que um texto é da participação cidadã do estudante
negociação de sentidos entre os sujeitos na sociedade.
da situação comunicativa. É com esse pressuposto que o presente texto
Por fim, podemos entender que o ponto de procura articular suas sugestões didáticas às
intersecção entre as duas agulhas pode indicar discussões dos demais textos, considerando
tanto contato dos interlocutores como lugar de
z a singularidade da infância, na direção de
disputa, uma vez que lembram também duas
fazer a “entrada” da criança de seis anos
espadas em luta, como que sinalizando que há
uma “arena” das palavras, no jogo social, confir- no ensino fundamental ser um ganho para
mando as relações entre linguagem e poder. as demais e não o contrário;
Linguagem e poder têm andado juntos na z o brincar como “um modo de ser e estar
história da humanidade. Ao mesmo tempo no mundo”, levando em conta a função
em que a palavra aproxima as pessoas, ela pode humanizadora da cultura e sua contribuição
também afastá-las, pois estão em jogo relações para a formação da criança;
de domínio. Muitas vezes a relação desigual
entre as pessoas é traduzida pelo fato de que z as linguagens verbais, artísticas e científicas
apenas uma pode usar a palavra ou apenas a pa- como articuladoras de uma prática multi-
lavra de uma delas é aquela que “vale”, como, disciplinar, num contexto de letramento;
110

36082-Ensino Fundamental de 9 an110 110 14/08/07 19:03


z o texto (nas várias linguagens), a partir coletivamente, a partir do que toda a escola
do que os estudantes já conhecem, como pensa e realiza em seu projeto pedagógico.
usuários da língua, mesmo aqueles que O planejamento da escola contempla, assim,
ainda não têm autonomia para decifrar o desde os critérios de organização das crianças
escrito; em classes ou turmas, a definição de objetivos
z as relações entre letramento e alfabetiza- por série ou ano, bem como o planejamento
ção, para que se garanta que a criança se do tempo, espaço e materiais considerados nas
alfabetize numa perspectiva letrada; diferentes atividades e seus modos de organi-
z a aprendizagem dos conhecimentos das zação: hora de sala de aula, brincadeiras livres,
áreas das ciências sociais, das ciências hora da refeição, saídas didáticas, atividades
naturais e das linguagens, relativos aos permanentes, seqüências didáticas, atividades
anos/séries do ensino fundamental, como de sistematização, projetos etc.
possibilitadores da ampliação das referên- Um outro aspecto, muitas vezes negligenciado,
cias de mundo da criança; é a participação dos pais/ comunidade no pla-
z a constituição de espaços coletivos de orga- nejamento escolar. Não se pode esquecer que
nização do trabalho pedagógico, o que inclui são suas histórias, suas profissões, seus modos
a decisão sobre normas, limites, horários, de entender e agir no mundo que constituem
distribuições de tarefas etc. a identidade das crianças, nossos estudantes
na escola.
Com o objetivo de contextualizar suas propos-
tas, o texto inicia-se com uma breve reflexão E mais: se entendemos que o currículo escolar
sobre o planejamento como um princípio e é construção da identidade do estudante e es-
uma prática deflagradora de todo o trabalho paço de conflito dos interesses da sociedade, o
na escola e na sala de aula, num movimento planejamento precisa ser compreendido como
contínuo e interdependente em que se processo coletivo e como ferramenta de diálogo
planeja, se registra e se avalia. Em em que se considere a participação
seguida, o texto arrola algumas também dos estudantes no trabalho
possibilidades de trabalho, por O currículo a ser constituído, bem como da
meio das modalidades de or- comunidade escolar.
escolar é constru-
ganização de conteúdos, pro- ção da identidade O(a) professor(a) planeja
curando articulá-las também seu curso, levando em conta
do estudante e
às contribuições dos demais o plano/projeto da escola e
textos. Levanta ainda algu- espaço de conflito as crianças concretas de sua
mas possibilidades de trabalho dos interesses da turma: seus conhecimentos,
com a formação continuada de sociedade. interesses, necessidades. Consi-
professores. dera ainda as condições reais de seu
trabalho, sua trajetória profissional, bem
O planejamento como os objetivos pedagógicos para os estudan-
Por entender que a realidade precisa ser ob- tes dos anos iniciais do ensino fundamental.
servada, analisada, comparada e reinserida no Em se tratando de planejamento, sabemos que
todo, tendo em vista o processo, as contradi- uma questão fundamental a ser enfrentada no
ções e as aproximações sucessivas, o planeja- trabalho cotidiano diz respeito ao tempo, que
mento pedagógico do(a) professor(a) começa, é sempre escasso, por isso, há necessidade de
111

36082-Ensino Fundamental de 9 an111 111 14/08/07 19:03


qualificá-lo didaticamente. Nesse sentido, o a oportunidade de conhecer diferentes manei-
tempo deve ser organizado de forma flexível, ras de ler, de brincar, de produzir textos, de
possibilitando que se retomem perspectivas fazer arte etc. Tenham, ainda, a oportunidade
e aspectos dos conhecimentos tratados em de falar sobre o lido/vivido com outros, numa
diferentes situações didáticas. Outro aspecto verdadeira “comunidade”.
é o fato de as pessoas aprenderem de formas
diferentes, porque têm tempos também dife- 2 - Sugestões
rentes de aprendizagem. Variar, então, a forma Você sabia? – momento em que se discutem as-
de organizar o trabalho e seu tempo didático suntos/temas de interesse das crianças. “Como
pode criar oportunidades diferenciadas para
viviam os dinossauros?” “Por que a água do
cada estudante, o que pode representar um
mar é salgada?” “Como as crianças indígenas
ganho significativo na direção da formação de
brincam?”. Cada estudante ou grupo pode se
todos, sem excluir nenhum estudante.
encarregar de tentar descobrir respostas para
As modalidades de organização as perguntas. O professor também pode trazer,
do trabalho pedagógico para esse momento, suas observações sobre o
que mais mobiliza sua turma, em termos de
As atividades discutidas a seguir levam em curiosidade científica. É hora de trazer con-
conta algumas possibilidades de integração/arti- teúdos das outras áreas curriculares: história,
culação entre as áreas do conhecimento, não só geografia, ciências, matemática, educação físi-
como processo de trabalho do(a) professor(a), ca, como objeto de leitura e discussão.
na sala de aula, como da própria escola, como Notícia da hora – momento reservado às notí-
coletividade. Selecionamos quatro modali- cias que mais chamaram a atenção das crianças
dades que podem contribuir bastante para a na semana. Hora de exercitar o relato oral
organização do tempo pedagógico: atividade da criança que, por sua vez, vai aprendendo,
permanente, seqüências didáticas, projetos e cada vez mais, a fazê-lo, fazendo. Momento
atividades de sistematização. organizado para também o professor selecionar
Ressalte-se, já de início que, no texto Avaliação notícias que não mobilizaram as crianças, mas
e aprendizagem na escola: a prática pedagógica que podem ser discutidas em sala, na tentativa
como eixo da reflexão, há um instrumento suge- de ampliar as referências do grupo- classe.
rido, denominado diários de classe ampliados. Nossa semana foi assim... momento em que
Acreditamos que as quatro modalidades, a se retoma, de forma sucinta, o trabalho desen-
seguir discutidas, podem constar dos referidos volvido e se auxiliam as crianças no relato e na
diários, como forma de avaliação e acompa- síntese do que aprenderam; em que a memória
nhamento do processo dos estudantes, com de um pode/deve ser complementada com a
ênfase tanto no engajamento de cada criança fala do outro; em que o professor faz uma sín-
da turma, quanto em suas aprendizagens con- tese escrita na lousa ou em cópias no papel ou
ceituais mais específicas. no retroprojetor. Enfim, é hora de sistematizar,
um pouco mais, as aprendizagens da semana:
Atividade permanente o que sabíamos? O que aprendemos? O que
queremos aprender mais?
1 - O que é
Vamos brincar? – momento em que se “brinca
Trabalho regular, diário, semanal ou quinzenal por brincar”, em pequenos grupos, meninas
que objetiva uma familiaridade maior com um com meninos, só meninas, só meninos, em
gênero textual, um assunto/tema de uma área duplas, em trios, sozinhos. É hora de o(a)
112 curricular, de modo que os estudantes tenham professor(a) garantir a brincadeira, organi-

36082-Ensino Fundamental de 9 an112 112 14/08/07 19:03


zando, com as crianças, tempos, espaços e seus laços com a escola e com as crianças. É a
materiais para esse fim. É hora de observar as família compartilhando seus saberes.
crianças nesse “importante fazer”. É hora de
Descobri na Internet – para as crianças que
registrar essas observações para que possam
têm acesso em casa ou na comunidade à rede
ajudar o(a) professor(a) a planejar outras ati-
vidades, a partir de um maior conhecimento mundial de computadores, é possível reservar
sobre a turma, sobre cada criança. um momento para as descobertas que reali-
zam, a partir dessa ferramenta de informação.
Fazendo arte – momento reservado para as Devagar, o(a) professor(a) pode ajudá-las a
crianças conhecerem um artista específico selecionar informações e a ter uma visão mais
(músico, poeta, pintor, escultor etc.), sua obra, crítica sobre o que circula na Internet.
sua vida. Pode ser hora ainda de “fazer à moda
de...”, em que as crianças realizam releituras Leitura diária feita pelo(a) professor(a)
de artistas e obras. Pode também ser momento – momento em que se lê para as crianças.
de autoria de cada criança, por meio de sua É momento de o leitor experiente ajudar a
expressão verbal, plástica, sonora. ampliar o repertório dos leitores iniciantes. É
Cantando e se encantando – momento em possível, por exemplo, ler uma história longa
que se privilegiam as músicas que as crianças em capítulos, como se liam os folhetins, como
conhecem e gostam de cantar, sozinhas, todas se acompanha uma novela na TV, mas tam-
juntas. É hora também de ouvir músicas de bém se pode ler histórias curtas, como fábu-
estilos e compositores variados, como forma las, crônicas etc. Ou ler poemas, com muita
de ampliação de repertório e gosto musical. expressividade, enfatizando aqueles cuja
sonoridade das palavras, cujo jogo verbal são
No mundo da arte – momento em que se
organizam idas dos estudantes a exposições, as tônicas da construção poética. É possível
apresentações de filmes, peças teatrais, grupos ler ainda o quadro de um pintor: suas formas,
musicais. Para isso, planejar com as crianças cores, linhas.
toda a atividade, fazendo o roteiro da saída, Roda semanal de leitura – com as possibilida-
o que e como observar. Na volta, avaliar a des referidas e outras ainda, como, por exem-
atividade, ouvindo o que as crianças sentiram plo, quando as crianças selecionam, de própria
e pensaram a respeito e organizando registros, escolha, em casa, na biblioteca (de classe, da
com blocões, cadernos coletivos ou murais. escola ou da cidade), livros/textos/gibis para
Comunidade, muito prazer! – momento em ler em dias e horários predeterminados. Podem
que se convidam artistas da região ou profissio- depois conversar sobre o que leram para seus
nais especializados (bombeiros, eletricistas, en- colegas. São leitores influenciando leitores.
genheiros, professores, repentistas, contadores São leitores partilhando leituras.
de histórias etc.) para irem à escola e fazerem
uma apresentação/palestra/conversa. O evento
demanda ação das crianças junto com o(a) OLHO VIVO
professor(a): elaborar o cronograma, selecionar
É possível planejar uma atividade diária ou
as pessoas, fazer o convite, organizar a apresen-
semanal de leitura cuja finalidade seja fazer o
tação da pessoa, avaliar a atividade etc. estudante conhecer melhor um determinado
A família também ensina... momento em que gênero de texto. Escolhido o gênero textual,
se convidam mãe, pai, avô, avó, tio, tia para determinar por quanto tempo e como se vai
contar histórias, fazer uma receita culinária, lê-lo, em situações em que:
contar como se brincava em sua época, can- z o(a) professor(a) leia com a turma, de
tar com as crianças. É a família enriquecendo forma compartilhada; 113

36082-Ensino Fundamental de 9 an113 113 14/08/07 19:03


Seqüência didática
z a criança, individualmente, tenha
autonomia de leitura. Nesse caso, 1 - O que é
o(a) professor(a) pode também ler,
neste momento, uma vez que ele é Sem que haja um produto, como nos proje-
um importante modelo de leitor para tos, as seqüências didáticas pressupõem um
o estudante — é possível explicitar, trabalho pedagógico organizado em uma
inclusive, aos(às) menino(a)s por quais
determinada seqüência, durante um determi-
razões todos lerão, inclusive ele/ela;
nado período estruturado pelo(a) professor(a),
z os estudantes lêem em dupla, nego- criando-se, assim, uma modalidade de apren-
ciando sentidos. dizagem mais orgânica. Os planos de aula, em
geral, seguem essa organização didática.
Mas é preciso tomar cuidado! Entendemos
a leitura, nessa modalidade de organização A seqüência didática permite, por exemplo,
didática, como uma atividade em si, na que se leiam textos relacionados a um mesmo
direção de formar leitores, por isso o im- tema, de um mesmo autor, de um mesmo gê-
portante é o convívio com os textos. Não é nero; ou ainda que se escolha uma brincadeira
ler para ... dramatizar, resumir, responder e se aprenda sua origem e como se brinca; ou
perguntas sobre o lido, fazer um desenho também que se organizem atividades de arte
do que se leu. É ler por ler. É ler para ampliar para conhecer mais as várias expressões artís-
o repertório textual. Ou seja, a ênfase aqui ticas, como o teatro, a pintura, a música etc.;
é no processo de leitura e não no produto; ou que se estudem conteúdos das várias áreas
assim, a avaliação desse trabalho toma do conhecimento do ensino fundamental, de
outro caráter. Assim, priorizamos duas su- forma interdisciplinar.
gestões de avaliação:
2 - Sugestões
1 - elaboração de uma “Ficha de leitores”,
com dados sobre as leituras feitas. Em dias, Lendo Fábula
previamente marcados, comentam-se com Objetivo:trabalhar com as estratégias de
a turma as fichas, instigando comentários leitura, no sentido de a criança ir tomando
gerais sobre os assuntos lidos e, ainda, se consciência de que o processo de ler prevê
quiser, os próprios processos de leitura dos seleção, antecipação, inferência e verificação
estudantes (como tem sido a atividade per- de aspectos do texto que se lê.
manente? têm gostado? têm aproveitado?
de que forma? etc.);
O urso e as abelhas

2 – ao término de um tempo determi-


Um urso topou com uma árvore caída
nado (mês? bimestre? semestre?), o(a)
que servia de depósito de mel para um
professor(a), com as crianças, avalia o
enxame de abelhas. Começou a farejar
trabalho realizado. Assim também o faz
o tronco quando uma das abelhas do
com seus pares professores. Então, a escola
enxame voltou do campo de trevos.
avalia o processo e todos decidem sobre
Adivinhando o que ele queria, deu
a continuidade da atividade e eventuais
uma picada daquelas no urso e depois
alterações/ampliações etc.
desa-pareceu no buraco do tronco.
O urso ficou louco de raiva e se pôs
a arranhar o tronco com as garras na
esperança de destruir o ninho. A única
114

36082-Ensino Fundamental de 9 an114 114 14/08/07 19:03


coisa que conseguiu foi fazer o enxame contos de fadas ou outras histórias tradicionais
inteiro sair atrás dele. O urso fugiu a e não, exatamente, fábulas. Essa é apenas uma
toda a velocidade e só se salvou porque boa oportunidade de os leitores se aproxi-
mergulhou de cabeça num lago. marem do gênero textual “fábula” – afinal, a
Moral da história: Mais vale suportar um só fe- classificação dos gêneros textuais também não
rimento em silêncio que perder o controle e acabar é tão tranqüila, mesmo entre os especialistas.
todo machucado (Fábulas de Esopo/compilação: 3 – Em relação ao autor, conte às crianças
Russel Ash e Berbard Higton; tradução de quem foi Esopo: um escravo que teria vivido
Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das na Grécia, no século V a.C., considerado o
Letrinhas, 1994) maior divulgador de fábulas. No entanto, não
se sabe nem se ele realmente existiu. Pode ser
Desenvolvimento do trabalho que algumas crianças se lembrem de Monteiro
Os três momentos de trabalho, a seguir, repre- Lobato, que também escreveu suas versões de
sentam um modo de ler diferente, por exemplo, algumas fábulas. Incentive-as para que falem
do que foi proposto na atividade permanente. a respeito.
Agora se trata de fazer uma espécie de “mode- 4 – Em seguida, leia os títulos de algumas
lagem” das estratégias que um leitor proficiente fábulas presentes no livro, perguntando se
faz para compreender o que lê. Um bom co- as crianças conhecem algumas delas. Seria
meço é acomodar as crianças de forma que se interessante ouvir algumas dessas histórias
sintam confortáveis para a leitura. contadas pelas crianças.
Momento A - antes da leitura Se esse momento, em que se explicitam os
conhecimentos dos estudantes, for rico em dis-
Atividades cujo objetivo é trazer o repertório cussão, as crianças possivelmente estarão mais
do leitor (seus conhecimentos prévios) para a motivadas, inclusive, para prosseguirem com
compreensão textual, discutindo os elementos a leitura. Se você registrar as reflexões feitas,
contextualizadores do texto: autor, portador, em forma de cartaz, por exemplo, poderão, no
título, sumário, capas, assunto/tema, ilustra- momento C, discutir as hipóteses levantadas, o
ções. que é fundamental para o processo de leitura:
1 – Mostre a capa e quarta-capa do livro em fazer antecipações iniciais que se vão ou não
que está publicada a fábula, discutindo suas confirmando ao longo da leitura.
ilustrações (ou então use outro livro de fábulas,
em que há essa fábula, mesmo em outra versão, Momento B – durante a leitura
ou outra fábula ainda...). Mostre também as Atividades cuja finalidade é apresentar alguns
ilustrações internas. Provavelmente, as crian- objetivos orientadores do ato de ler, por meio
ças já conseguirão relacioná-las a histórias de um levantamento de aspectos que auxiliem
de seu repertório. Pergunte, a partir dessas a construção dos sentidos do texto: o tema, o
primeiras indicações, se sabem o que se vai gênero textual em suas funções e caracterís-
ler, nesse momento. ticas, os recursos expressivos utilizados pelo
2 – Quando ler o título do livro, “Fábulas de autor. Dessa forma, você estabelece com os
Esopo”, é bem possível que muitas crianças estudantes alguns objetivos para antecipar
explicitem que conhecem fábulas sim. Peça, aspectos importantes do texto, por meio de
então, que algumas contem algumas histórias um mapa textual que os ajude na compreensão
que conheçam. Não há problema se forem global do que vão ler.
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1 – Antes de realizar a leitura da fábula, em também sobre os comportamentos humanos
voz alta, para as crianças, peça que prestem em determinadas situações. As crianças co-
atenção nhecem algum filme em que essas situações
também são apresentadas? Como foi isso? Essa
- em quem participa da história e como
discussão vai deixando claro para os estudantes
agem;
uma das características da fábula como gênero
- nos três momentos da narrativa; textual.
- no ensinamento presente na fábula. 4 – Converse sobre os três momentos da
2 – Leia, expressivamente, a história. história: a ação do urso procurando mel; a
picada da abelha e a reação do urso; o ataque
Momento C – depois da leitura maciço das abelhas. Sabemos que o enredo
de uma narrativa ficcional tradicional articu-
Atividades cujos objetivos são ampliar as refe-
la-se em torno de uma situação inicial, uma
rências culturais dos leitores, especialmente os
complicação/desequilíbrio e um desfecho.
conteúdos das várias áreas do conhecimento
Evidentemente que essa nomenclatura não
implicadas no texto, refletindo sobre seus
precisa ser explicitada para as crianças, mas
aspectos polêmicos e, ainda, discutir as pers-
provavelmente, ao conhecer mais essas nar-
pectivas do narrador e do leitor. É também
momento de ensinar o estudante a fazer pará- rativas, eles irão se apropriando da concepção
frases (orais ou escritas) do que leu e produzir de que esses elementos fazem parte do gênero
textos em outras linguagens (desenho, pintura, textual.
dramatização etc.); 5 – Faça com as crianças, oralmente, alguns
1 – Discuta as hipóteses das crianças levanta- exercícios de substituição de certas palavras ou
das no momento A: confirmaram-se? Total- expressões do texto, para que percebam certos
mente? Parcialmente? Não se confirmaram? recursos lingüísticos usados pelo autor:
Por quê? Veja que não é reduzir ao “acertou a) “O urso começou a farejar o tronco”.
ou errou”, mas valorizar os conhecimentos Que outra palavra poderia ser usada?
dos leitores. Cheirar? Qual a diferença entre “chei-
2 – Converse com as crianças sobre as perso- rar” e “farejar”? Parece que “farejar” é
nagens da história: urso e abelhas. Pergunte se mais próprio de bicho, de animal.
sabem qual é uma das comidas prediletas dos b) “A abelha deu uma picada daquelas no
ursos, para que percebam que esse é o motivo urso”. Como seria outra forma de dizer
inicial da discórdia entre o urso e a abelha isso? A abelha deu uma enorme picada
que o picou primeiro. Aproveite para retomar no urso? A abelha deu uma picada muito
o título da fábula, o qual confirma o tema da grande no urso? Outras possibilidades?
história. Se as crianças se lembrarem de outras
fábulas, vão perceber que, em geral, muitas c) “O urso ficou louco de raiva”. Como as
delas têm como título o nome dos animais crianças diriam isso, com outras pala-
que são personagens: “A lebre e a tartaruga”, vras? O urso ficou muito bravo mesmo?
“O leão e o rato”, “O burro e o cão”, “O galo O urso ficou com muita raiva? Outras
e a raposa” etc. possibilidades?
3 – Discuta como a abelha agiu para defender 6 – Proponha uma questão para as crianças:
sua moradia e como o urso agiu sob o coman- se houvesse um diálogo na fábula entre o urso e
116 do da raiva. Problematize a questão, falando a abelha, como poderia ser ele? Essa é uma boa

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oportunidade de discutir as formas de diálogo 12 – Organize com as crianças uma maquete
das narrativas e, se quiser, até mesmo a dife- da floresta onde teria acontecido a história do
rença entre um diálogo oral e um escrito. urso e das abelhas. Solicite que, primeiramen-
7 – Faça uma lista de títulos de fábulas que te, as crianças falem a respeito. Depois, anote
as crianças conhecem, salientando quem aspectos que devem ser considerados numa
são os personagens e que comportamentos descrição mais minuciosa desse espaço. Não
humanos representam. Sabemos que a fábula se esquecer de que a “floresta”, nas histórias
é uma narrativa curta, que faz uma crítica a tradicionais, que tanto encanta as crianças,
certos comportamentos humanos por meio de tem toda uma magia que aflora nossa imagi-
personagens que são animais. Nela há sempre nação, nossas sensações e até mesmo nossos
uma moral, que pode vir explícita no texto medos. Assim, a maquete poderia contemplar,
ou não. de alguma forma, as representações sobre esse
espaço tão especial.
8 – Leia de novo a moral da fábula “O urso e
as abelhas” e peça que as crianças comentem- Brincadeiras de ontem e de hoje:
na: concordam com ela? Por quê? Discordam? outra seqüência didática
Por quê? Já viveram alguma situação parecida?
Objetivo:compreender o brincar como ação
Conhecem alguém que viveu? Como foi? Faça
humana fundamental para o desenvolvimento
uma lista de provérbios que os estudantes
da pessoa e dos grupos sociais, em diferentes
conhecem, explicando que os provérbios são
épocas e espaços.
frases prontas que vieram das fábulas e acaba-
ram por ficar independentes das histórias. Desenvolvimento do trabalho
9 – Peça que as crianças façam paráfrases orais
1 – Comece perguntando quais são as brin-
da fábula. Lembre-se de que esse momento é
cadeiras preferidas das crianças. Faça uma
para recontar com as próprias palavras, sem fu-
relação dos nomes das brincadeiras citadas,
gir do texto. Um leitor pode ajudar o outro.
em um cartaz, e guarde para uma discussão
10 – Peça que as crianças imitem a cena em posterior.
que o urso corre para o lago, com as abelhas
2 – Reserve dias, horários e materiais (se for
atacando-o. A expressão corporal é uma im-
portante linguagem humana, especialmente o caso) para as crianças vivenciarem as brin-
na infância. Aproveitem o momento para cadeiras mais citadas.
se divertir com as diferentes maneiras por 3 – Durante as brincadeiras – das quais você
meio das quais as crianças representam o urso pode participar ou não – registre como as
em seu desespero para se safar do ataque das crianças se organizam para brincar; quem fica
abelhas. de fora e por quê; quais as negociações mais
11 – Solicite, depois, que os estudantes dese- freqüentes entre elas; como vai a sociabilidade
nhem esse mesmo momento. É enriquecedor da turma etc. Procure analisar esse momento a
que as crianças possam se expressar a partir fim de que sejam incorporadas as contradições
de várias e diferentes linguagens. Em seguida, e as tensões sempre presentes nas relações hu-
se tiver a edição indicada, mostre a ilustração manas. Ou dito de outra forma: tomar cuidado
da fábula no livro em que há exatamente esse para não ser moralista e “pregar sermão”, na
episódio. Conversem a respeito, especialmente direção de um “bom” comportamento das
sobre as diferentes possibilidades de ilustrar crianças, de modo que simplifique o que é
uma mesma cena. complexo.
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Veja o que diz a respeito um trecho do Novamente, veja que há uma diferença entre
texto O brincar como um modo de ser e estar o que se propõe aqui e a atividade permanente,
no mundo. anteriormente explicitada. Na atividade per-
Compartilhando brincadeiras com as crian- manente, é “brincar por brincar”. É “brincar
ças, sendo cúmplices, parceiros, apoian- como experiência de cultura”, mesmo consi-
do-as, respeitando-as e contribuindo para derando que o espaço escolar é um contexto
ampliar seu repertório. Observando-as específico que também constrói suas relações
para melhor conhecê-las, compreendendo com as crianças, diferentemente da rua, da
seus universos e referências culturais, casa etc.
seus modos próprios de sentir, pensar e 4. b – Uma outra maneira de trabalhar o “de-
agir, suas formas de se relacionar com os pois da brincadeira” é solicitar que as crianças
outros. Percebendo as alianças, amizades, façam colagens, pinturas, modelagens que
hierarquias e relações de poder entre pares. representem o que viveram, o que experi-
Estabelecendo pontes, com base nessas mentaram, o que sentiram quando estavam
observações, entre o que se aprende no brin- brincando.
car e em outras atividades, fornecendo para
as crianças a possibilidade de enriquecerem- 5. a – Solicite que a turma pesquise – em casa,
se e enriquecerem-nas. Centrando a ação na biblioteca da escola/da cidade, na Internet,
pedagógica no diálogo com as crianças e os com familiares e amigos – livros que tratem de
adolescentes, trocando saberes e experiên- brincadeiras de crianças. Marque um dia para
cias, trazendo a dimensão da imaginação que todos tragam suas contribuições e sociali-
e da criação para a prática cotidiana de zem uns com os outros. Converse a respeito das
ensinar e aprender. brincadeiras pesquisadas e compare-as com as
da lista feita no item 1 desta seqüência.
Enfim, é preciso deixar que as crianças e os
adolescentes brinquem, é preciso aprender 5. b – Se possível, mostre às crianças uma
com eles a rir, a inverter a ordem, a repre- reprodução do famoso quadro de Bruegel
sentar, a imitar, a sonhar e a imaginar. “Brincadeiras de rapazes”, que foi pintado
E, no encontro com eles, incorporando a em 1560 e está em um museu de Viena, na
dimensão humana do brincar, da poesia e Áustria. É uma aldeia medieval, pequena
da arte, construir o percurso da ampliação e antiga, em que há muitos brinquedos
e da afirmação de conhecimentos sobre o e brincadeiras. Veja, então, se sua turma
mundo. Dessa forma, abriremos o cami- reconhece algumas delas: pula-sela? Roda
nho para que nós, adultos e crianças, nos arco? Cambalhota? Quais mais?
reconheçamos como sujeitos e atores sociais 5. c – Se possível, mostre também reproduções
plenos, fazedores da nossa história e do
de telas de Portinari, como “Jogos infantis”
mundo que nos cerca.
(1945), “Brincadeiras infantis” (1942), “Me-
4. a – Quando terminarem de brincar e de ninos soltando pipas” (1943), “Menino com
conversar a respeito do que se passou, é mo- pião” (1947), “Futebol” (1935) cujos temas
mento de ouvir as crianças: o que fizeram, são a infância e o brincar. Discuta formas,
como se sentiram, o que tiveram que negociar imagens, cores usadas pelo artista.
com o outro etc. Lembre-se de que o comen-
Obs.: há um livro muito interessante, cha-
tário é um gênero textual que prevê uma certa
mado Brinquedos e Brincadeiras, de Nereide
explicação (sobre um fato, um texto escrito,
um filme etc.) e a opinião de quem comenta. Schiaro Santa Rosa (Editora Moderna, 2001),
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que traz muitas reproduções de pinturas e es- poderia ser, por exemplo, “Brincadeiras
culturas de artistas brasileiros e estrangeiros de sempre: as brincadeiras preferidas da
sobre o tema. Vale a pena conhecer! turma.....”. Mas agora é outra história. O
trabalho pode ser um projeto de produ-
6 – Peça que os estudantes pesquisem a res- ção de livro. Essa escolha passa, é lógico,
peito das brincadeiras dos pais, avós, tios, pri- por todo um procedimento de escrita que
mos mais velhos, em seus tempos de criança. pressupõe um planejamento: para que se
Solicite que gravem, escrevam ou peçam para vai escrever, quem é o leitor previsto para
o livro, o que e como escrever. Prevê ain-
alguém escrever as regras de como se brincava da versões do mesmo texto até se chegar
cada uma das brincadeiras. à versão final para que as regras estejam
bem explicadas tendo em vista o leitor. E,
7 – Em dia e hora, previamente marcados, finalmente, pensar no dia de lançamen-
organize a turma em pequenos grupos para to do livro, junto à comunidade escolar.
que contem uns para os outros a respeito das Lembrar que todo esse trabalho deve en-
brincadeiras pesquisadas. volver as crianças integralmente, tanto na
elaboração das regras das brincadeiras que
8 – Solicite que cada grupo explique para o constarão da publicação e na confecção
grande grupo uma ou duas brincadeiras, entre do objeto “livro” – capas, página de rosto,
todas as trazidas pelas crianças, em momento dedicatória, prefácio, sumário, ilustrações
–, quanto na organização do lançamento
reservado especialmente para isso. do livro: convites aos familiares, às ou-
9 – Proceda, junto com as crianças, a uma tras turmas da escola, à imprensa local; o
seleção das “brincadeiras de antigamente”, papel do “mestre de cerimônia” que faz
a abertura do evento e explica todos os
entre aquelas que foram apresentadas. Apro- momentos etc.
veite para categorizar as brincadeiras trazidas,
com alguns critérios, como brincadeiras com
o corpo, brincadeiras com bola/sem bola, brin- Projeto
cadeiras de meninas/meninos/ambos (e outros
critérios estabelecidos por você e sua turma). 1 - O que é
Façam depois uma votação das brincadeiras já
Essa modalidade de organização do trabalho
conhecidas e experimentadas pelas crianças,
pedagógico prevê um produto final cujo plane-
usando, para a contagem dos votos, gráficos e
jamento tem objetivos claros, dimensionamento
tabelas. Essa é uma boa oportunidade para tra-
do tempo, divisão de tarefas e, por fim, a avalia-
balhar a linguagem gráfica da matemática.
ção final em função do que se pretendia. Tudo
10 – Organize espaço, tempo e materiais para isso feito de forma compartilhada e com cada
que as crianças brinquem as “brincadeiras de estudante tendo autonomia pessoal e responsa-
antigamente”. Se possível, convide familiares bilidade coletiva para o bom desenvolvimento
dos estudantes para esse momento. Cada fa- do projeto.
miliar pode ficar em um pequeno grupo para
O projeto é um trabalho articulado em que as
também brincar.
crianças usam de forma interativa as quatro
atividades lingüísticas básicas — falar/ouvir,
escrever/ler— , a partir de muitos e variados
OLHO VIVO gêneros textuais, nas várias áreas do conheci-
É possível proceder a um processo de es- mento, tendo em vista uma situação didática que
colha das brincadeiras, pelas crianças, para pode ser mais significativa para elas. Marcamos
que se elabore uma coletânea, cujo título com um asterisco (*) alguns gêneros textuais 119

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que serão mais detalhadamente trabalhados - as comidas típicas;
na modalidade “Atividade de sistematização”. - o teatro (ou grupos de teatro mesmo sem
Ressalte-se que isso poderia ter sido feito tam- sede física)
bém nas outras modalidades organizativas,
uma vez que a atividade de sistematização é - o artesanato local;
entendida como uma “parada” para estudar - os artistas da região: poetas, cantadores,
mais, para enfatizar e sistematizar conheci- contadores de histórias, repentistas,
mentos das crianças relativos a temas/assuntos, pintores etc.;
gêneros textuais, aquisição da base alfabética,
- as atrações turísticas (toda cidade as
convenções da escrita etc.
tem, mesmo que seus moradores, muitas
2 - Sugestões vezes, não saibam ou não percebam esse
potencial...).
Projeto: Nossa cidade, nossa casa
3 – Auxilie os grupos com a sua pesquisa e
Produto:uma mostra que expresse a cultura também peça para que as crianças pesquisem
e a produção artística do bairro, da cidade com familiares, amigos e moradores mais
ou do município em que a escola se localiza. antigos seus conhecimentos sobre a cultura
O acervo pode ser verbal (oral e/ou escrito), local e até mesmo se há disponibilidade de
imagético (fotografias, colagens, desenhos objetos que possam ser emprestados para a
etc.), fílmico (gravações em fitas de vídeo). mostra cultural/acervo. Um gênero textual
Pode ser também uma exposição de obras da para esse momento pode ser a entrevista oral
cultura local: esculturas, quadros, peças de ou escrita (*).
tecido, utensílios variados etc.
4 – Proporcione ainda visitas a locais da ci-
Objetivo: propiciar que o estudante conheça dade que possam contribuir para a pesquisa
mais o lugar em que vive, percebendo-se como das crianças, como a sede da prefeitura, o
parte dele. jornal da região etc. Para essa saída da escola,
Desenvolvimento do trabalho é possível elaborar com as crianças uma carta-
requerimento (*) para reservar/marcar a ida a
1 – Discuta com os estudantes o projeto: obje- esses lugares.
tivos, etapas, necessidade de envolvimento de
5 – Enfatize bastante com os estudantes a
todos, responsabilidade de cada um e produto
questão das mudanças históricas havidas entre
final. Discuta o projeto com os pais/comunida-
o “antigamente” e o “hoje”. Organize com
de no sentido de ter a adesão deles em relação à
eles um cartaz em que possam ir registrando
finalidade desse trabalho, assim como possíveis
as contribuições das pesquisas, ao longo do
contribuições.
desenvolvimento do projeto, na direção de
2 – Organize as crianças em grupos para que compreenderem um importante conceito
cada um faça uma pesquisa. As categorias que se refere às permanências e mudanças do
poderiam ser, por exemplo: contexto histórico e geográfico.
- a breve história da cidade;
- o museu;
OLHO VIVO
- a biblioteca;
A partir do século XX, são considerados
- os grupos de dança;
fontes históricas vários registros como mú-
120 - os grupos musicais; sicas, mapas, gráficos, pinturas, gravuras,

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fotografias, ferramentas, utensílios, festas, Projeto: Nossa rotina, nossas aprendiza-
rituais, edificações, literatura oral e escrita gens
etc. Nesse sentido, os estudantes podem
enriquecer suas pesquisas com um farto Produtos:dada a especificidade desse projeto
material, entendendo, inclusive, não só – trabalhar as rotinas escolares –, podemos
que são parte da história que está sendo pensar em vários produtos finais possíveis.
construída, como também podem viver o Sugerimos que os registros escritos de deter-
papel do historiador, quando investigam e minadas ações sejam considerados produtos
encontram documentação histórica, a partir finais: listas (*), agenda, quadros e tabelas,
dessas fontes variadas. regulamento, arquivos temáticos, cartas, co-
leções, portfolios.
6 – Ajude os estudantes nos planos de trabalho
para que possam ter autonomia de trabalho e Objetivo:conhecer mais as rotinas escolares
cumprir o cronograma estabelecido. Defina como organizadoras das ações cotidianas e
com eles quais os dias da semana serão reser- todo seu potencial de aprendizagem, não
vados para o projeto, quanto tempo o projeto somente em relação à leitura, à escrita e aos
vai durar, que grupo vai fazer o quê, para quê, conteúdos específicos das áreas curriculares,
onde, como e quando. mas também no que diz respeito às relações
7 – Ao longo do desenvolvimento do projeto, interpessoais, aos valores, às normas, às atitu-
marque as datas em que discutirão os anda- des e aos procedimentos.
mentos das pesquisas, os registros (orais ou
escritos) do que as crianças estão aprendendo Desenvolvimento do trabalho
com o trabalho, o trabalho em cada grupo, bem
como os produtos finais: painel fotográfico? 1 – Discuta com os estudantes o projeto: ob-
Audição de músicas, declamadores, contado- jetivos, necessidade de envolvimento de todos,
res de histórias? Apresentação de dança e/ou responsabilidade de cada um e produtos finais.
de teatro? Exposição de objetos culturais? Discuta o projeto com os pais/comunidade, no
Feira de comidas típicas? Enfim, são muitas as sentido de ter a adesão deles em relação à fi-
possibilidades... nalidade desse trabalho , assim como possíveis
8 – Os produtos finais podem ser apresentados contribuições.
tanto num mesmo dia, previamente estabe- 2 – Solicite que as crianças fiquem atentas ao
lecido, quanto em dias diferentes, também que fazem na escola e ao que pode ser tema de
acordados em consonância com os estudantes
trabalho do projeto, como, por exemplo:
e a comunidade.
- listas para saber quem são os presentes
e faltosos, os horários, o cardápio da
merenda, a divisão de tarefas/responsa-
OLHO VIVO bilidades de cada um, os livros do acervo
É bom lembrar que um projeto pode de- da classe, os brinquedos do cantinho da
mandar outros projetos para ampliação brincadeira etc.;
de alguns aspectos. Um projeto comporta, - agenda para comunicar os endereços das
assim, uma grande flexibilidade no seu crianças, os materiais que serão usados
desenvolvimento, a depender dos nossos em determinados dias ou atividades, os
objetivos, dos interesses e necessidades recados para os pais etc.;
das crianças e, por fim, do envolvimento
- quadros e tabelas para organizar dados
de todos. 121
de forma visual – leituras realizadas na

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atividade permanente, tarefas realizadas falta aprender, ou seja, possam visualizar
e pendências, planos de trabalho, dados seus próprios percursos e explicitar para
de outros projetos ou das seqüências os professores suas estratégias de aprendi-
didáticas etc.; zagem e suas concepções sobre os objetos
de ensino.
- regulamento para registrar e divulgar
normas de comportamento, regras de Tal prática é especialmente relevante por
convivência discutidas com a turma propiciar a idéia de que não cabe apenas ao
etc.; professor avaliar o processo de aprendiza-
gem e de ensino. Tal concepção é contrária
- arquivos temáticos para organizar estu-
às orientações dadas em uma perspectiva
dos/pesquisas feitas sobre temas/assuntos
tradicional, com seus fins excludentes de
relativos às áreas curriculares, como,
classificar e selecionar estudantes aptos e
por exemplo, “A vida dos sapos”, “O
não-aptos, que sempre foi promotora de
corpo cresce”, “A Terra e o Universo”,
heteronomia: como só o professor é quem
“A cidade grande e a cidade pequena”,
julgava os produtos do estudante, este intro-
“Os contos de fadas”, “A Amazônia”,
jetava a idéia de que era incapaz de avaliar
“A televisão” etc.;
o que fazia, que só o adulto-professor sabia
- cartas para que os estudantes se comu- o certo. Se queremos formar crianças e
niquem com outras turmas, relatando o adolescentes que venham a ser cada vez
que estão aprendendo; mais autônomos, precisamos promover, no
cotidiano, situações em que os estudantes
- coleções para coletar e organizar “obje-
reflitam, eles próprios, sobre seus saberes
tos” (tampinhas, figurinhas...), “gêneros
e atitudes, vivenciando uma avaliação
textuais” (poemas, fábulas, contos de
contínua e formativa da trajetória de sua
assombração...). Essa última categoriza-
aprendizagem.
ção pode ser objeto de comunicação oral
dos alunos, em dias e horários marcados, 3 – Organizar os recursos, como impressora,
com antecedência. Dessa forma, as crian- xerox, mimeógrafo, papel carbono para re-
ças aprendem a se comunicar oralmente, produção de textos (quando for necessário) e
com mais propriedade, a partir de uma materiais diversos para os diferentes momentos
situação real, com interlocutores reais e e produtos finais do projeto, como: papéis/fo-
a partir de uma preparação prévia; lhas de tamanhos diferentes, lápis, canetas
coloridas, caixas de papelão de tamanhos
- portfolios para registrar e avaliar as ati-
diferentes, cola etc.
vidades feitas, o que se aprendeu, o que
mais se quer/ se deve aprender. Veja o 4 – Trabalhar, por exemplo, com os diferentes
que dizem, a respeito, os autores do tex- gêneros textuais e seus portadores/suportes,
to Avaliação e aprendizagem na escola: a nas atividades de sistematização, como for-
prática pedagógica como eixo da reflexão. ma de fazer uma espécie de zoom em cada um,
considerando que a produção de textos acon-
O uso de portfolios, por exemplo, pode tecerá em situações reais, para interlocutores
ser útil para fazer com que os estudantes, concretos, de forma coerente com a concepção
sob orientação dos professores, possam de linguagem como interação.
analisar suas próprias produções, refletindo
sobre os conteúdos aprendidos e sobre o que
122

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Projeto: Água – minha vida/nossa vida - os rios Tigres e Eufrates, que ficam às mar-
gens do Rio Nilo e foram fundamentais
Produto:cartazes temáticos do projeto (*). Es-
para a civilização egípcia antiga;
colha com as crianças e a direção/coordenação
da escola um lugar específico em que serão - o rio São Francisco, no Brasil, e seu papel
afixados os cartazes produzidos ao longo do para as populações ribeirinhas;
projeto. Peça que os estudantes elaborem uma - as nações indígenas e sua proximidade
legenda que explique que, naquele espaço, aos cursos de água;
sempre haverá cartazes temáticos como forma
- o(s) rio(s) da região em que vivem os
de ir registrando as descobertas realizadas ao
estudantes e seu significado para a popu-
longo do projeto.
lação.
Objetivo:refletir sobre as relações entre a hu-
3. a – Faça mais cartazes sobre o projeto,
manidade e a água, no sentido da preservação
enfatizando, nesse momento, as relações “hu-
ambiental e da sobrevivência humana, bem
manidade/homem” já referidas e outras que
como produzir sínteses a respeito das investi-
considerarem importantes.
gações das crianças.
4 – Faça você, professor(a), uma pesquisa so-
Desenvolvimento do trabalho bre poetas, pintores, músicos e outros artistas
que tenham tematizado a água em suas obras
1 – Discuta com os estudantes o projeto: ob-
(incluindo a falta dela). Traga para a turma o
jetivo, necessidade de envolvimento de todos,
que for possível mostrar dessa pesquisa. Essa
responsabilidade de cada um e produto final.
é uma boa oportunidade de conversar a res-
Discuta o projeto com os pais/comunidade,
peito dos simbolismos ligados à relação entre
no sentido de ter a adesão deles em relação à
a humanidade e a água: os artistas, com sua
finalidade desse trabalho, assim como possíveis
sensibilidade, captam questões primordiais
contribuições.
que afetam a todos.
2 – Com o objetivo de os estudantes falarem
Veja, como ilustração dessa idéia, um trecho
espontaneamente sobre o assunto, inicie a
de um belo poema de Manoel de Barros, nosso
reflexão conversando com eles sobre os pro-
poeta pantaneiro:
blemas relativos, por exemplo,
Águas
- à escassez da água no planeta e em certas Desde o começo dos tempos águas e
regiões;
chão se amam.
- aos efeitos da poluição sobre as fontes de Eles se entram amorosamente
água; E se fecundam.
- ao consumo exagerado em algumas regi- Nascem formas rudimentares de seres
ões; e
de plantas
- ao desperdício na nossa higiene e limpeza.
Filhos dessa fecundação.
2. a – Faça com as crianças cartazes sobre Nascem peixes para habitar os rios
esses temas levantados e afixem no lugar já E nascem pássaros para habitar as
reservado para isso. árvores.
3 – Para ampliar essa primeira reflexão, peça Águas ainda ajudam na formação das
que as crianças pesquisem a respeito da relação conchas e dos caranguejos.
do homem com a água, no que se refere ao de- As águas são a epifania da Natureza.
senvolvimento da agricultura e do comércio, Agora penso nas águas do Pantanal
123
como, por exemplo: Nos nossos rios infantis

36082-Ensino Fundamental de 9 an123 123 14/08/07 19:03


Que ainda procuram declives para pelos vários setores da escola? Como os
correr. funcionários usam a água? E os alunos?
[...] 7 – Em dias, previamente, marcados, as crian-
(poema escrito para a Empresa de ças trazem até onde conseguiram pesquisar,
Saneamento do Governo do Estado comparam suas investigações e vão construin-
de Mato Grosso do Sul – Sanesul) do respostas para o tema do projeto. Essas
5 – A partir das reflexões anteriores e procu- respostas vão sendo divulgadas nos cartazes.
rando aproximar mais as crianças da respon- 8 – No fim do projeto, cujo tempo foi determi-
sabilidade individual em relação à preservação nado por vocês, elaborar uma grande síntese,
da água no planeta, é possível discutir uma
em forma de colagens, por exemplo, e divulgá-
situação-problema que será foco da inves-
la para a escola e a comunidade.
tigação das crianças como, por exemplo: de
que forma o lugar em que vivo cuida da água do Atividades de sistematização
planeta? Não precisa ser exatamente essa a
questão. Faça com os estudantes uma relação 1 - O que é
de questões que sejam mais próximas do con-
texto em que eles vivem e selecionem uma São atividades destinadas à sistematização de
para o trabalho. conhecimentos das crianças ao fixarem conte-
6 – Escolhido o tema do projeto, iniciem údos que estão sendo trabalhados. Em relação à
a investigação e seus registros em cartazes. alfabetização, são os conteúdos relativos à base
Supondo que a questão seja a explicitada no alfabética da língua ou ainda às convenções
item anterior, é possível organizar as crianças da escrita ou aos conhecimentos textuais. Em
para diferentes pesquisas: outras áreas curriculares, podem ser conteúdos
que ajudem a compreender ou trabalhar outros
- o uso da água na região ou município: que
rios abastecem a cidade? Há um órgão assuntos/temas, como as misturas de cores
municipal de saneamento básico? Há como geradoras de outras cores, a diversidade
Organizações Não-Governamentais do mundo animal para compreender as rela-
(ONGs) que trabalham com a questão? ções interdependentes da vida no planeta, o
O que pensam os moradores sobre o conhecimento de aspectos do corpo humano
abastecimento de água na cidade? Essas como forma de cuidar melhor da própria saúde
podem ser algumas fontes de pesqui- etc. Lembrar ainda que as atividades de siste-
sa... matização podem ser lúdicas, como os jogos.
- o uso da água na família dos estudantes: há
2 - Sugestões
água encanada na casa? Como a água é
usada na família? É possível ainda fazer A - Oficina de produção de textos (para os
pesquisa de medição, com conta de água projetos, por exemplo)
e também com vasilhas para saber com
Em que se selecionam alguns gêneros textuais,
quantos copos de água, por exemplo, se
para que meninas e meninos escrevam, tendo
lava uma louça do almoço...
em vista um projeto e, portanto, uma determi-
- o uso da água na escola: qual é a capaci- nada finalidade e um determinado leitor: as
dade dos reservatórios/caixas de água crianças da mesma classe, de outra classe, de ou-
124 que há na escola? Como é o uso da água tra escola ou, ainda, os pais e a comunidade.

36082-Ensino Fundamental de 9 an124 124 14/08/07 19:03


O que importa é reservar momentos, pre- Organização do texto
viamente acordados com o grupo, em que se A entrevista, nesse projeto, pode ter duas fina-
decida, coletivamente, para quê, para quem, lidades: ser um instrumento de coleta de dados
o quê e como escrever. para o projeto, tendo um caráter “interno” a
Para isso, é necessário também que as crianças ele; ser um texto a ser publicado, no sentido
tenham modelos/referências de textos e assuntos/ de ser divulgado também na mostra cultural.
temas sobre os quais vão escrever. E mais, que No primeiro caso, as respostas vão ser tra-
se viva a escrita como um processo: planejan- balhadas para alimentar o tema do projeto.
do a produção em função do projeto; fazendo No segundo, a produção deve ser trabalhada,
várias versões até a versão final; discutindo a partir da idéia de que muitos vão ler (por
possibilidades melhores ou mais eficazes de ex- exemplo, numa pequena publicação, talvez,
pressão de certas palavras, enunciados, idéias, com o título “Nossos entrevistados”) ou ouvir
tendo em vista o leitor do texto. (se for entrevista gravada para ser ouvida na
mostra pelos interessados, o que requer uma
a) Dois gêneros textuais para o projeto qualidade de audição).
“Nossa cidade, nossa casa” A linguagem
A entrevista (oral ou escrita) Como se trata de uma situação formal de tex-
Quanto à situação de produção do texto to em que há assimetria entre entrevistado e
entrevistador, essa é uma boa oportunidade
Crianças pesquisando, para um projeto da de as crianças exercitarem uma “linguagem
escola, a cultura local, por meio de seus mo- de domingo”, ou seja, falar de forma mais cui-
radores, representantes legais, governantes; dada, procurando não usar gíria, escolhendo
produtos finais a ser divulgados para a escola melhor as expressões que vai usar. Essa questão
e comunidade (Elementos da situação: quem/ também deve ser objeto de discussão com os
para quem, com que finalidade e lugar de cir- estudantes. Sabemos que, mesmo com os pe-
culação da produção). quenos, isso é possível, pois também na vida,
não só na linguagem, eles vivem situações
Escolher as pessoas que serão entrevistadas,
formais ou informais.
entrar em contato, marcando hora e local da
entrevista. Prepará-la, fazendo uma lista de Carta-requerimento
perguntas ou pauta para o diálogo. Também Quanto à situação de produção do texto
reservar um espaço para o entrevistado falar
A mesma do gênero textual anterior. E mais:
livremente, sem pergunta específica. Anotar escolher as instituições e pessoas para quem
ou gravar as respostas. serão endereçadas as cartas, pesquisando no-
Roteiro para a realização da entrevista mes e cargos, endereço completo e, por fim,
subscrevendo o envelope, com destinatário e
Explicação do entrevistador sobre o projeto e
remetente.
suas finalidades para o entrevistado conhecer o
contexto de sua contribuição; dados do entrevis- Organização do texto da carta
tado (nome completo, idade, tempo na cidade, Ler cartas variadas, especialmente as cartas
profissão etc.); o que conhece sobre a cultura pessoais, para distingui-las da carta-requeri-
local e como participa dela; quais contribuições mento, que é mais formal e argumentativa,
pensa ser possível oferecer ao projeto. porque é para um adulto “não-familiar” e é ne- 125

36082-Ensino Fundamental de 9 an125 125 14/08/07 19:03


cessário convencê-lo a aceitar a demanda feita Organização do texto
pelos autores da carta. A diagramação da carta Identificação da necessidade da lista cujos
é um modelo fechado, em que constam: data; critérios e disposição gráfica (vertical? hori-
expressão de polidez, como “Prezado”, “Ilus- zontal?) são discutidos com as crianças, bem
tríssimo”, “Caro”, mais nome do destinatário como o título da lista que representa a unidade
e cargo; corpo da carta; fórmula de despedida temática do texto.
e assinatura/nome do(s) remetente(s).
A linguagem
A linguagem
Seleção de objetos, nomes de pessoas, ingre-
Como se trata de uma situação formal de texto, dientes (a depender do que trata a lista). E
a linguagem deve ser trabalhada, tendo em vis- ainda seus quantitativos como, por exemplo, o
ta vocabulário específico, polidez e segurança acervo da classe — 6 livros de fábulas, 8 gibis,
na argumentação. As várias questões lingüís- 4 livros com imagens etc. (em diagramação
ticas para uma produção textual precisam ser horizontal ou em diagramação vertical):
discutidas/ensinadas para as crianças: - 6 livros de fábulas;
- Podemos tratar a pessoa de você? Por - 8 gibis;
quê?
- 4 livros com imagens etc.
- Quais palavras serão usadas para conven-
cer a pessoa da necessidade de permitir a c) Um suporte de texto para o Projeto:
ida dos estudantes aos locais de pesquisa/ “Água: minha vida/nossa vida”
estudo? É conveniente dizer “nós exigi- Cartaz
mos”? Que diferença há quando dizemos
Quanto à situação de produção do texto
“solicitamos”, “pedimos”?
O cartaz, socialmente, é usado para divulgar
- Como vamos explicar o projeto para o eventos: festas, exposições, espetáculos etc. Na
destinatário da carta? Vamos contar tudo? escola, o cartaz é usado também para registrar
É possível fazê-lo numa carta? Como va- e divulgar estudos/descobertas dos estudan-
mos sintetizar a explicação, sem perder a tes. Em ambos os casos, há a necessidade de
essência do projeto? ser bem compreendido pelos leitores e bem
trabalhada sua finalidade. No caso do projeto
Enfim, são muitas as possibilidades de reflexão
acima referido, ele prevê diversos “cartazes te-
sobre a linguagem que se usa para escrever máticos” que divulgarão as várias descobertas
ou falar, tendo em vista a situação de comu- das crianças.
nicação...
Organização do texto
b) Um gênero textual para o projeto Analisar cartazes variados, selecionados
“Nossa rotina, nossas aprendizagens” pelo(a) professor(a) e pelos alunos, atentando
Lista para suas condições de produção e suas carac-
terísticas. As produções podem ser feitas em
Quanto à situação de produção do texto duplas, em forma de primeira versão e, depois
Crianças e professor(a) vivendo o cotidiano revisadas, coletivamente, para elaboração de
de trabalho na sala de aula, necessitando or- uma segunda versão, levando em conta tanto
ganizar dados. o sistema de escrita e suas convenções, quanto
a organização do gênero textual.
126

36082-Ensino Fundamental de 9 an126 126 14/08/07 19:03


A linguagem científicos, jogos teatrais com ênfase no uso
As várias questões lingüísticas para a produção da linguagem verbal e gestual”, que também
textual de um cartaz precisam ser discutidas/ constituem atividades de sistematização.
ensinadas para as crianças:
Algumas considerações ainda
- necessidade de a informação ser sintética,
para poder ser lida, rapidamente, por um Como o princípio maior que regeu a elaboração
leitor transeunte; deste texto é que “todo professor é professor de
linguagem”, espera-se que as questões do ler/
- palavras e expressões argumentativas
escrever e do falar/ouvir tenham sido compre-
para convencer o leitor a se interessar
pelo tema do cartaz ; endidas, em relação a todas as áreas do conhe-
cimento do ensino fundamental — ciências
- expressões chamativas para atrair a sociais, ciências naturais e as linguagens —,
atenção do leitor; na perspectiva de que os conteúdos estejam
- diagramação/tamanho e tipo de letra articulados a partir do eixo da linguagem.
que sejam legíveis a distância;
Esclareça-se também que as modalidades de
- presença ou não de ilustrações. organização do trabalho pedagógico sugeridas
B - Jogos para alfabetização ou outras áreas não se restringem ao trabalho com as crianças
de seis anos, por isso podem estar presentes em
Podemos considerar atividades de sistematiza-
todo o ensino fundamental e outros segmentos,
ção, como foi sugerido no texto Letramento e
a partir dos mesmos princípios, na perspectiva
alfabetização: pensando a prática pedagógica:
de aprofundar e sistematizar determinados
- atividades com palavras significativas; conteúdos ou trazer outros tantos considerados
- brincadeiras com a língua – músicas, relevantes pelo grupo, pela escola e/ou sistema
cantigas de roda, parlendas, poemas, de ensino ao qual essa está vinculada.
quadrinhas, adivinhas, palavras cruza- Outro aspecto do trabalho com as modalidades
das, adedonha etc.;
organizativas é a sua extrema flexibilidade, a
- “três tipos de jogos: (1) os que contem- depender dos objetivos e necessidades do(a)
plam atividades de análise fonológica professor(a), da turma, da escola. É possível
sem fazer correspondência com a es- escolher uma modalidade para uma determi-
crita; (2) os que levam a refletir sobre nada área do conhecimento, outra para um
os princípios do sistema alfabético, gênero textual ou outra ainda para um certo
ajudando os estudantes a pensar sobre as tema/assunto, durante um tempo fixado e isso
correspondências grafofônicas (isto é, as se alterar, num outro momento. É possível
relações letra-som); (3) os que ajudam trabalhar com as quatro modalidades para
a sistematizar essas correspondências
um mesmo tema/assunto ou área ou gênero.
grafofônicas.” Evidentemente, não se trata de mudar de uma
No texto O brincar como um modo de ser e estar modalidade para outra, como forma simples-
no mundo, há sugestões de atividades lúdicas mente de variar, mas sim de o(a) professor(a)
como recursos pedagógicos: “bingos, enigmas, ir pesquisando as potencialidades dessas práti-
palavras cruzadas para trabalhar conhecimen- cas, no que se refere à realidade de seu trabalho
tos de leitura e escrita, jogos matemáticos pedagógico e ao tempo de aprendizagem de
envolvendo conceitos de número, jogos de cada estudante, em particular, e da turma,
perguntas e respostas sobre conhecimentos em geral.
127

36082-Ensino Fundamental de 9 an127 127 14/08/07 19:03


As sugestões feitas são apenas possibilidades No que se refere à linguagem, os programas
que não substituem as intenções e ações do(a) em vídeo e os filmes articulam texto escrito,
professor(a) em seus conhecimentos e sua falado, som e imagens, e esse entrecruza-
atitude investigativa em relação aos estudantes, mento de linguagens pode ser objeto de
uma vez que é ele(a) quem conhece sua turma, reflexão na formação, uma vez que a leitura
observa-a, registra suas descobertas e debate-as de várias linguagens é essencial na sociedade
com seus pares, também educadores. em que vivemos. Saber ver uma imagem, um
Enfim, as possibilidades de trabalho foram filme é tão necessário quanto aprender a ler
sugeridas neste e nos demais textos, sem perder e a escrever. “...as imagens, assim como as
de vista que as decisões finais quem toma é palavras são as matérias de que somos feitos”
sempre o(a) professor(a), o que, sem dúvida, (Manguel, 2001).
será potencializado se ele(a) o fizer, junto O uso desse material pode ser uma boa opor-
com seus pares, num permanente processo de tunidade de trabalho coletivo. Os próprios
aprender e de ensinar, coletivamente. Nosso professores/professoras de uma mesma escola
propósito foi contribuir com nossas reflexões, ou ainda de escolas diferentes, numa mesma
estudos e práticas, tal qual um artesão que tece Diretoria de Ensino ou Secretaria de Educa-
seu trabalho, no diálogo com outros profissio- ção, podem elaborar pequenas resenhas e/ou
nais. Bem-vindos à roda! roteiros de discussão, com os filmes e vídeos
aqui apresentados. Esse material produzido
Algumas possibilidades para a pode fazer parte do acervo da biblioteca ou
formação continuada videoteca das escolas.
Tendo em vista uma concepção de formação Novamente, enfatizamos que apresentaremos
continuada de professor que tem na prática sugestões de trabalho com vídeos e filmes, en-
docente o seu foco de reflexão e de ação, as tendendo-as como processos de ensino, sempre
sugestões a seguir podem ser desenvolvidas, contextualizados, sempre inacabados, e não
tanto em situações de formação dos profes- exemplos únicos e definitivos para serem
sores na própria escola, em horário coletivo seguidos.
– em que os educadores discutem suas práticas
– quanto em formação orientada pelo sistema Sugestões de filmes comerciais
de ensino local. Para isso, é necessário que se com temáticas que interessam a
constitua um acervo de formação, não só com educadores e programas educativos
esses materiais, mas também com outros que específicos dos Programas
possam contribuir para essa finalidade. “Proinfantil” e “Letra Viva”
Como o material Letra Viva é videográfico, há
Filmes relacionados a “infância e cultura”
de se pensar na especificidade dessa lingua-
gem, bem como formas de abordá-la, em situ- 1 - A hora da estrela – direção: Suzana Amaral
ação de formação continuada de docentes. – 1985
O trabalho com vídeos pedagógicos pressupõe 2 - Adeus meninos – direção: Louis Malle
debater seus objetivos, conteúdos, metodo- – 1987
logia e linguagem específica, o que demanda
3 - Anna dos 6 aos 18 – direção: Nikita Mi-
preparação prévia, para que se possa antecipar khalkov – 1979
questões, levantar temas e estabelecer rela-
ções entre o programa e a formação. 4 - Kiriku e a feiticeira – direção: Michel Ocelot
128 – 1998

36082-Ensino Fundamental de 9 an128 128 14/08/07 19:03


5 - Linéia no jardim de Monet – direção: Chris- 8 - Sociedade dos poetas mortos – direção: Peter
tina Bjork e Lena Anderson – 1992 Way – 1989
6 - Quando tudo começa – direção: Bertrand 9 - Abril despedaçado – direção: Walter Salles
Tavernier – 1999 – 2001
7 - Coleção Crianças Criativas – Vídeos 10 - Jardim secreto – direção: Agnieszka
Multirio: Holland – 1993
z Shakespeare: histórias animadas
11 - Dá um sorriso pra titia – direção: Diane
Produção: S4C / BBC / Soyufilm /
Paterson
Christmas Film
z Um sonho de criança 12 - Haroldo vira gigante – direção: Crokett
Título original: A child´s dream Johnson
Direção: Danièle Roy
13 - Estatuto do futuro – CECIP – 1997
z Viva a diferença

Título original: Different is beautiful 14 - O lobo que virou bolo – Realização:


Direção: Anne Bramard-Blagny CINDEDI
z O que é isso?
15 - Promessas de um novo mundo – Direção:
Título original: What is that?
Direção: Ulpu Tolonen B. Z. Goldberg, Justine Shapiro e Carlos Bo-
z O mundo encantado de Richard Scarry
lado – 2001
Título original: The Busy World of Ri- 16 - Um ambiente para a infância – Realização:
chard Scarry CINDEDI
Direção: Greg Bailey e Pascal Morelli
17 - Vídeos do acervo da Central de Produções
Filmes relacionados a crianças, adultos UFRGS/FACED/Porto Alegre:
e à gestão da educação para a infância
z no 401 - Do Brique ao Brincar e apren-
1 - A classe operária vai ao paraíso – direção: der
Eliso Petri – Itália – 1971
z no 421 - Caixas temáticas
2 - A invenção da infância – direção: Liliana
Sulzbach – Brasil – 2000 Vídeos relacionados aos “Contextos de
3 - O garoto – direção: Charles Chaplin – Es- aprendizagem e trabalho docente”
tados Unidos – 1921
1 - Vídeos Multrio:
4 - Tempos modernos – direção: Charles Cha-
z Matilda
plin – Estados Unidos – 1936
Produção: Czech Television / ANIMA
5 - Cinema Paradiso – direção: Giuseppe Tor- s.r.o.
natore – Itália – 1989 Direção: Josef Lamka
6 - O carteiro e o poeta – direção: Michael z As crianças perguntam
Radford – Itália – 1994 Produção: Brown Bag Films
7 - O nome da rosa – direção: Jean-Jacques Direção: Darragh O. Connell
Annaud, baseado em livro homônimo de z Os Multoches
Umberto Eco – 1999 Produção: France 2 / B. Productions
Direção: Joanne Marie Ciano
129

36082-Ensino Fundamental de 9 an129 129 14/08/07 19:03


z E se eu fosse um bicho? equipe no trabalho, sempre às voltas com um
Produção: Télé Images Nature sentimento de impotência diante da realidade
Direção: Frédéric Lepage e Eric Gonzalez das crianças e da escola como um todo.
z Maçã verde A vida pessoal do diretor Daniel entrelaça-se
Título original: Green animations com seu trabalho na escola, em função das
z Grupo dos cinco crianças e suas famílias. É comovente acom-
Produção: ABC Natural History Unit panhar a luta de Daniel, das professoras e da
Direção: Nick Hilligoss pediatra que insistem e se envolvem com as
questões de cada criança.
z O divertido mundo dos bichos
Produção: Alizé Productions Alguns episódios demonstram que, também
Direção: Robi Engler na França, a Educação sofre com os males
que afetam a sociedade contemporânea em
Resenha crítica: uma possibilidade todo mundo: desemprego, pobreza, desajustes
familiares, governantes ineptos, instituições
Fazer uma resenha é sintetizar propriedades
com novos papéis etc.
de um objeto/ acontecimento/texto/obra cul-
tural, levantando seus aspectos relevantes. A Roteiro de discussão: outra
finalidade da resenha “dirige” sua elaboração: possibilidade
para quem é? onde será publicada?
O(s) elaborador(es) dos roteiros pode(m)
A resenha crítica traz apreciações, julga- levar em conta os três momentos já referidos
mentos de quem a elaborou sobre as idéias neste texto em relação às estratégias de leitu-
do autor, o valor da obra, além de um resumo ra. Vamos exemplificar também com o filme
que apresente os pontos essenciais da obra “Quando tudo começa”.
resenhada.
Veja um exemplo que elaboramos com o filme Momento A – antes do filme
“Quando tudo começa”. Levantar alguns dos indicadores e conheci-
mentos prévios dos/das professores/professoras
que contribuam para a compreensão do que se
QUANDO TUDO COMEÇA
vai assistir:
Gênero: drama. 1 – Direção/produção/data ou outros indicadores
Direção: Bertrand Tavernier. importantes:
Filme francês, 117 minutos, colorido, produ- - o diretor Bertrand Tavernier é francês cujas
zido em 1999, recebeu Prêmio da Crítica do críticas cinematográficas foram publicadas
Festival de Berlim nesse mesmo ano. nos famosos “Cahiers du Cinema” e também
foi assistente de Godard, o famoso diretor do
O filme é considerado um semidocumentário, cinema francês;
porque é baseado em histórias reais de pro-
fessores de uma escola pública de uma região - o filme recebeu o Prêmio da Crítica no Fes-
da França, com crianças de educação infantil tival de Berlim, em 1999.
cujos pais vivem uma situação de miséria e 2 – Gênero do filme: semidocumentário, pois
desemprego. Tavernier recria histórias reais que ouviu de
professoras francesas, no interior da França,
O filme, sensível e realista, apresenta uma sé-
em suas dificuldades, numa “nova” França,
130 rie de situações enfrentadas pelo diretor e sua
com altos índices de desemprego.

36082-Ensino Fundamental de 9 an130 130 22/08/07 00:58


3 – Assunto/tema: inclui seus problemas e dificuldades/ o
- discutir o título do filme, para levantar hipó- diretor que vai até a casa de uma das
teses sobre seu tema. O que esperam encontrar crianças para ajudar etc.
numa película com esse nome? z A escola como instituição na França: o fato
4 – Levantamento dos objetivos de leitura/de de ser uma escola pública e cooperativa/
análise do que se vai assistir, relacionados a a inspetoria/ a promoção funcional do
seguir, no momento B. diretor por meio de nota/ a relação entre
a escola e a saúde/ a escola e a assistên-
Momento B – durante o filme cia social/ a reunião do diretor com as
professoras/ o depoimento da professora
Em que os/as professores/professoras assistem mais velha sobre as diferenças entre a
à película, cujo foco está nos objetivos esta- escola “ de antes” e a atual escola na
belecidos no momento anterior: França etc.
1 - A relação entre “escola e família”; z As práticas pedagógicas da escola: o diretor
2 - A escola como instituição na França; participa das atividades pedagógicas
com as crianças/ as crianças cantam e
3 - As práticas pedagógicas da escola;
gesticulam/ a língua oral é objeto de en-
4 - O papel do diretor da escola. sino e aprendizagem/ o diretor conversa
É possível organizar o grupo que assiste ao fil- com a professora que puxou o cabelo de
me, de forma que cada um preste mais atenção um menino.
em um objetivo acima explicitado, anotando
z O papel do diretor da escola:sua função pe-
aspectos, para depois poder alimentar a dis-
cussão, no momento C. É desejável que o dagógica/ os vários afazeres na escola/o
assistir ao filme tenha algumas pausas, em que carinho com as crianças/ a participação
se retorne a fita em algum episódio ou que se nas instâncias superiores/ sua relação
repitam certos momentos, pois a finalidade de com as famílias etc.
uma atividade como essa é sempre educativa 3 – A forma como o roteiro do filme vai
e não recreativa apenas. “costurando” a vida do diretor da escola e seu
Momento C – depois do filme trabalho: Daniel é apresentado como pessoa
e não apenas como profissional/ o diretor tem
1 – Refletir sobre as expectativas que tinham, a uma vida modesta com a mulher e o filho
partir do título e outros indicadores discutidos dela/ a origem do diretor também é popular:
no momento A. seu pai era mineiro/ sua vida profissional é
2 – Conversar sobre cada objetivo de análise fonte de inspiração para escrever e expressar
do momento B, a partir das anotações feitas suas dúvidas, angústias, sonhos/ sua dedicação
pelo grupo: intensa ao trabalho etc.
z A relação entre “escola e família”: de 4 – As semelhanças e diferenças entre a re-
que forma os problemas financeiros das alidade pedagógica mostrada no filme e a do
famílias afetam as crianças na escola/ Brasil:
o problema de criança que sofre maus - semelhanças: problemas de infra-estrutura da
tratos/ a falta de aula prejudica as mães, escola/ uma professora mais velha tem nostalgia
pois precisam trabalhar/ a mãe que mata da educação de antigamente/escola depredada/
os filhos e se suicida/ a porta da escola
o pai caminhoneiro leva o caminhão para as
como lugar de conversa das famílias, que 131
crianças conhecerem/reuniões burocráticas

36082-Ensino Fundamental de 9 an131 131 22/08/07 00:58


que não ajudam/ reuniões pedagógicas para pertoriar outros procedimentos, constituindo
tratar das questões das crianças/trabalho com seu aprendizado, também tendo em vista o
a oralidade da criança/ser ou não sindicaliza- fazer do outro.
do/ festa na escola/ solidariedade das colegas Objetivo: refletir sobre práticas de leitura/es-
e diretor, quando a professora deixa de ir à crita e de diferentes linguagens
escola por alguns dias devido à morte da aluna
Laetitia/a comunidade ajuda na festa; Organização do programa:são dez programas em
que professoras de educação infantil e ensino
- diferenças: escola pública e cooperativa, com fundamental, em contexto de formação conti-
espaço físico mais adequado, o que nem sempre nuada, enfocam suas práticas pedagógicas, ten-
evidencia-se na realidade brasileira/ inspetor do como pano de fundo cenas de sala de aula,
assiste à aula do diretor/ atividades pedagógicas com professoras e estudantes, em situações de
do diretor/ a pediatra faz trabalho com a esco- aprendizagem/ensino que são referências para
la/promoção do diretor por meio de nota. a discussão do grupo de formação.
5- Conversar sobre a atividade final do filme: Títulos dos programas:
crianças organizando a festa com o diretor, sua
mulher e filho, professoras, comunidade. As 1. Junto se aprende melhor
crianças se divertem muito preparando a festa, 2. Leitura também é coisa de criança
especialmente no trabalho com as tintas.
3. Infância, cultura e educação
6- Discutir ainda a linguagem cinematográfica
do filme: 4. Saberes que produzem saberes
- a paisagem francesa, compondo uma espécie 5. Para ser cidadão da cultura letrada
de quadros de pintura, sempre num clima frio,
6. Escrita também é coisa de criança
europeu;
7. O planejamento da prática pedagógica
- músicas leves de fundo;
- as cenas com as crianças: olhos, sorrisos, vozes 8. Planejamento: uma atividade é só uma
compondo o universo infantil e encantando atividade
o espectador. 9. Para aprender a escrever
7- E se os/as professores/professoras do grupo 10. Crianças: protagonistas da produção
fizessem um filme sobre ensino/educação: que cultural
tema escolheriam? Que roteiro inicial fariam?
Contar com alguém que entende mais do Temas: diversidade cultural, avaliação dos
assunto poderia ajudar bastante... Bom traba- saberes das crianças, planejamento, interação
lho!!! Bom filme!!! e trabalho em colaboração, propostas de pro-
dução e leitura das crianças, produções infantis
PROGRAMA LETRA VIVA de diferentes tipos
Acervo do Letra Viva: programas de vídeo Resenha crítica: uma possibilidade
propostos a partir de cenas que contemplam
as reflexões de um grupo de professoras da Programa: “Saberes que produzem saberes”
educação infantil e ensino fundamental, o
Duração: 30’ e 53’
que constitui um importante instrumento de
formação, por meio do qual o(a) professor(a) Conteúdos: o que sabem e pensam as crianças;
pode ampliar suas estratégias didáticas, ao re- como comunicam seus saberes; as propostas
132

36082-Ensino Fundamental de 9 an132 132 14/08/07 19:03


pedagógicas para ampliar os seus conheci- Roteiro de discussão: outra possibilidade
mentos.
Programa: “Saberes que produzem saberes”
O programa selecionado é o segundo episó-
Objetivo: refletir sobre os processos de traba-
dio da série “Letra Viva” cujos temas são os
lho pedagógico, levando em conta um material
saberes das crianças sobre a escrita e quais
videográfico.
intervenções pedagógicas são importantes
para que se possa ampliar os conhecimentos Desenvolvimento do trabalho
dos estudantes a respeito.
Um bom encaminhamento para trabalhar
O programa apresenta (como nos demais) um com os programas da Série “Letra Viva” pode
grupo de professoras de educação infantil e ser organizar os/as professores/professoras em
ensino fundamental, em situação de formação grupos, para que cada um se responsabilize por
continuada, discutindo suas práticas pedagó- assistir a um programa da série, preparando
gicas. Assim, não é apenas “o que discutem” a discussão para os demais, por exemplo, por
que é importante, mas “para quê” e “como” o meio de um roteiro, como estamos procuran-
fazem. A situação de formação retratada pode do fazê-lo aqui.
ser também objeto de nossas reflexões: a “hori-
zontalidade” da conversa das cinco professoras, Um aspecto importante do trabalho com
ou seja, todas têm voz, sem que haja uma hie- vídeos pedagógicos é a forma de abordá-los,
rarquia rígida de coordenação. Outro aspecto uma vez que não são filmes comerciais aos
é a escolha de mostrar “cenas de aprendizagem quais assistimos no cinema ou até mesmo em
explícita”, como objeto de estudo do grupo, casa. A abordagem, necessariamente, será
com elas mesmas e suas crianças, em situações preparada, a partir da seleção de aspectos,
na escola, ou outras educadoras cujas práticas temas ou cenas em que se pára a fita, para que
também acabam por recomendar. o grupo em formação possa discutir, de forma
mais aprofundada, no momento, ou até mesmo
As professoras refletem sobre seu trabalho demandando mais pesquisas e estudos, em
de forma clara, objetiva e firme, admitindo ocasiões futuras.
até mesmo equívocos do passado, como, por
exemplo, etiquetar portas, janelas, armários Quanto ao programa “Saberes que produzem
com seus nomes, acreditando que, assim, es- saberes”.
tavam ajudando as crianças a terem contato 1 – Começar discutindo o título do programa,
com a escrita, desconsiderando, porém, os usos levantando, entre outras questões: que saberes
sociais da escrita ou a língua fora dos muros podem ser esses? Como um saber pode produ-
da escola. zir outro? Professor(a) ensina estudante e o
O foco da investigação pedagógica é também inverso também é verdadeiro?
muito enfatizado, para que o(a) professor(a) 2 – Analisar a relação entre a música de
possa, cada vez mais, saber olhar, saber com- Sandra Perez e Luiz Tati “Já sabe” que abre
preender o que realizam as crianças. Nesse sen- o programa e o tema do programa. Analisar
tido, o programa investe na idéia de processo também os aspectos não verbais dessa abertura:
do educador que aprende com sua turma, com crianças brincando, cantando, conversando,
sua prática e com seus pares. lendo, desenhando.

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3 – Refletir sobre os três grandes temas do - investigação em situações formais ou no
programa: cotidiano. A necessidade de o registro exercer
várias funções: síntese, inferência, desenvol-
a) o que as crianças sabem e pensam vimento da prática docente (objeto de outro
sobre a escrita. Algumas cenas que programa da série);
explicitam esses saberes:
- o apresentador do programa fala que o con-
- criança lê as regras da brincadeira do “Pula texto cultural, os pais e as brincadeiras das
elástico”; crianças sinalizam seus saberes diferentes;
- professora escrevendo na lousa a reprodução - uma das professoras do grupo explicita que é
das crianças, a partir de um conto lido e co- necessário saber o que sabem as crianças para
nhecido delas; se poder agir sobre isso;
- um livro produzido em um projeto com a - professoras do grupo mostram seus registros
turma de uma das professoras do grupo de sobre o que sabem as crianças, por exemplo,
formação, em que há a integração de várias um registro em forma de uma ficha que traz
linguagens, a partir das propostas de um dados socioeconômicos das crianças e suas
“Projeto”; aprendizagens;
- professora faz leitura compartilhada com as - o comentário de uma professora da Universi-
crianças; dade Federal de Rondônia sobre a necessidade
- as escritas de crianças da turma de uma das de investigação do(a) professor(a);
professoras do grupo de formação, mostradas - apresentador finaliza, defendendo que a
em vídeo e analisadas por elas. investigação é fundamental e isso pode ser
feito por meio de uma observação cuidadosa,
b) como as crianças comunicam seus análises e registros sistemáticos.
saberes sobre a escrita. Algumas
cenas: 4 – Analisar mais detalhadamente a cena
em que uma das professoras do grupo mos-
- criança lê a própria produção; tra, em vídeo, as produções escritas de sua
- quando a criança fala também demonstra o turma e a evolução de algumas crianças. Seu
que sabe sobre a escrita/leitura; trabalho explicita a necessidade de articular a
aprendizagem do sistema de escrita e a apren-
- criança escreve diferentes textos: lista, repro- dizagem da linguagem que se escreve (textos
dução de história, piada etc. e gêneros), especialmente por meio de textos
memorizados:
c) o papel de investigação do(a)
professor(a) sobre o que as crianças - a parlenda “Hoje é domingo”; listas de títulos
sabem, para que as propostas de Contos de Fadas, de animais, de doces da
pedagógicas sejam mais produtivas. história “João e Maria”; piadas.
Algumas cenas: a) Qual é a atitude da professora diante
- a fala de uma das professoras do grupo em que dessas escritas?
enfatiza que, para investigar o que sabem as b) Como ela as interpreta?
crianças, o(a) professor(a) precisa saber antes c) Como ela explicita alguns avanços de
quais são os seus próprios saberes (daí o título algumas crianças?
do programa); 5 – Para concluir esse momento de trabalho,
- como e para que se usa a escrita fora da es- relacionar esse programa aos demais como for-
cola, ou seja, seus usos sociais e não apenas ma de compreender a série como um todo.
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escolares;

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