1) Giorgio Agamben discute o conceito de "fim do poema" e como o último verso de um poema não é realmente um verso devido à impossibilidade de enjambement.
2) Ele explica como poetas parecem conscientes de que o fim do poema implica uma "crise de versos" que ameaça a consistência do poema.
3) Muitas vezes, o último verso de um poema parece "arruinar-se" ou "perder o fôlego", indicando a relevância estrutural do evento do fim do po
1) Giorgio Agamben discute o conceito de "fim do poema" e como o último verso de um poema não é realmente um verso devido à impossibilidade de enjambement.
2) Ele explica como poetas parecem conscientes de que o fim do poema implica uma "crise de versos" que ameaça a consistência do poema.
3) Muitas vezes, o último verso de um poema parece "arruinar-se" ou "perder o fôlego", indicando a relevância estrutural do evento do fim do po
1) Giorgio Agamben discute o conceito de "fim do poema" e como o último verso de um poema não é realmente um verso devido à impossibilidade de enjambement.
2) Ele explica como poetas parecem conscientes de que o fim do poema implica uma "crise de versos" que ameaça a consistência do poema.
3) Muitas vezes, o último verso de um poema parece "arruinar-se" ou "perder o fôlego", indicando a relevância estrutural do evento do fim do po
oFIM DO POEMA Meu propsito, que se encontra resumido no ttulo que o leitor tem diante dos olhos, definir um instituto potico que at agora permanece semidentidade: ofimdo poema. Devo, para tanto, partir de uma tese que, sem ser trivial, parece-me todavia evidente, asaber, que apoesia no vive se- no na tenso eno contraste (e, portanto, tambm na possvel interferncia) entre osomeosentido, entre asrie semitica e asrie semntica. Isso quer dizer que tentarei precisar, em al- guns aspectos tcnicos, a definio de Valry, que J akobson glosa nos seus estudos de potica: "Le pome, hsitation prolongue entre leson et lesens". O que uma hesitao, se atolhemos de qualquer dimenso psicolgica? A conscincia da importncia dessa oposio entre a segmentao mtrica easemntica levou alguns estudiosos a enunciarem atese (por mimcompartilhada) deque apossibili- dade do enjambement constitui onico critrio quepermite dis- tinguir apoesia da prosa. Pois o que oenjambement seno a oposio entre um limite mtrico e um limite sinttico, uma pausa prosdica euma pausa semntica? Portanto, ser chama- do potico odiscurso no qual essaoposio for, pelo menos vir- tualmente, possvel, eprosaico aquele no qual no puder haver lugar para ela. Os autores medievais parecem ter perfeita conscincia do eminente valor dessa oposio, ainda que tenha sido necess- rio esperar at Nicol Tibino (sculo XIV) para uma definio precisa do enjambement: Multociens enim accidit quod, finita consonantia, adhuc sensus oratonis non est finitus. 1 Todos osinstitutos dapoesia participam dessa no-coinci- "iafinedeI poema". In:. GiorgoAgamben. Categorie ital.iane. Sludi di poexs. Venezia:Marsilio, 1996, p. 113-119; texto originalmente apresentado no colquio em homenagem a R. Dragonetti realizado na Universidade de Genebra, em 10de novembro de 1995. O tradutor agradece aajuda eos comentrios de Eduardo Sterzi eMaria Betnia Amoroso. 142 A G O S T O 2002 dncia, desse cisma entre somesentido: earima no menos do queacesura. Poisoquearimaseno odescolamento entre um evento semitico (arepetio deumsom) eumevento semnti- co, que induz amente arequerer uma analogia de sentido l onde nada pode encontrar almdeuma homofonia? Overso oser que reside nesse cisma, ser feito demurs et paliz, como queria Brunetto Latini, outre de suspens, segundo as palavras de Mallarm. E o poema um organismo que se funda sobre apercepo delimites eterminaes, quedefinem- semjamais coincidir completamente equase emoposta diver- gncia - unidades sonoras (ougrficas) eunidades semnticas. Dante mostrou-se perfeitamente consciente disso, pois, ao definir acano atravs deseus elementos constitutivos, no De vulgari Eloquentia (U, ix), ope acantio como unidade de sen- tido (sententia) s stantiae, como unidades puramente mtri- cas: Et circa hoc sciendum est quo hoc vocabulum [stantia] per solius artis respectum inventum est, videlicet ut in quo tota cantionis ars esset contenta, illud diceretur stantia, hoc est mansio capax sive receptaculum totius artis. Nam quemadmodum cantio est gremium totius sententiae, sic stantia totam artem ingremiat; nec licet aliquid artis sequentibus adrogare, sed solam artem antecedentis inuere.? Assim, ele concebe a estrutura da can- o como fundada sobre a relao entre uma unidade global essencialmente semntica ("seio de todo o sentido") e unida- des essencialmente mtricas ("recolhe no seuseio toda aarte"). Umaprimeira conseqncia dessa situao dopoema numa disjuno essencial entre somesentido (marcada pela possibi- lidade do enjambement) a importncia decisiva do fim do verso. Podemos contar as slabas e os acentos, verificar as sinalefas eascesuras, classificar anomalias eregularidades: mas overso , emqualquer caso, uma unidade que encontra o seu principium individuationis somente no fim, que sedefine s no ponto emque finda. Emoutro trabalho, propus dar onome de versurc - do termo latino que indica o ponto no qual o arado faz avolta, ao final do sulco - aesse trao essencial do verso, que, talvez mesmo por ser to evidente, permaneceu inominado eritre os modernos. Os tratados medievais, contudo, no dei- xam de assinalar sua relevncia. O livro quarto do Laborintus registra, assim, afinalis terminatio entre os elementos essenci- ais do verso, junto a membrorum distinctio e sillabarum C AC TO 1 143 144 numeratio. E o autor daArs de Mnaco no confunde ofimdo verso (que chama depausatio) comarima, mas antes odefine como sua fonte ou como a condio da sua possibilidade: est autem pausatio fons consonantiae.' Somente nesta perspectiva possvel compreender osingu- lar prestgio, nalricaprovenal estilnovstica, daquela institui- o potica especialssima que a rima no-relacionada [irrelata], que asLeys denominam rim'estrampa eDante clavis. 4 Searima assinalava um antagonismo entre somesentido em virtude dano-correspondncia entre umahomofonia euma sig- nificao, aqui a rima, faltando onde era esperada, deixa as duas sries por umtimo interferirem numa aparncia decoin- cidncia. Digoaparncia, j que, severdade que oseio da arte parece aqui romper oseuencerramento mtrico, acenando para o seio do sentido, arima no-relacionada remete porm aum rhyme-fellow na estrofe seguinte, eportanto no faz mais que deslocar aestrutura mtrica para um nvel metaestrfico. Por isso, nas mos deArnaut, elasedesenvolve quase que natural- mente como palavra-rima, aengendrar oadmirvel mecanismo da sextina. Pois a palavra-rima sobretudo um ponto de indeterminabilidade entre um elemento por excelncia assemntico (a homofonia) eum elemento por excelncia se- mntico (a palavra). A sextina a forma potica que eleva a rima no-relacionada ao estatuto de supremo cnone composicional eprocura, por assimdizer, incorporar oelemen- to do somno prprio seio do sentido. Mas devo agora enfrentar otema anunciado etentar defi- nir essaprtica no coberta pelos estudos demtrica epotica: o fimdo poema, como ltima estrutura formal perceptvel de umtexto potico. Existempesquisas sobre os incipit da poesia (ainda que talvez emquantidade ainda insuficiente), mas as investigaes sobre os finais faltam quase de todo. Vimoscomo opoema tenazmente sedemora esesustmna tenso eno contraste entre osomeosentido, entre asriemtri- ca e asrie sinttica. Mas o que acontece no ponto em que o poema finda? Evidentemente, aoposio entre umlimitemtri- co e um limite semntico j no possvel, aqui, de maneira nenhuma: oque sed, semdiscusso, pelo simples fato deque no ltimo verso de umpoema o enjambement no pensvel. Simples, decerto, mas que, no obstante, implica uma conseq- A G O S T O 2002 ncia no menos embaraosa do que necessria. Seoverso se define precisamente atravs da possibilidade do enjambement, segue-se da que oltimo verso deumpoema no umverso. Quer dizer isto que oltimo verso setransfunde emprosa? Deixemos por enquanto estapergunta semresposta. Noentanto, gostaria de pelo menos ressaltar o significado novssi~o que adquire, nesta perspectiva, o No sai que s'es de Raimbaut d'Aurenga. Aqui o fimde cada estrofe - e sobretudo o desse inclassificvel poema, como umtodo - diferente dainespera- da irrupo da prosa - marcando, in extremis, a epifa~ia no contingente de uma indeterminao entre prosa epoesia. Derepente seesclarece antima necessidade de institutos poticos como atornada ou ocommiato, que p~ecen: destina- dos unicamente anotificar eat mesmo enunciar ofimdo po- ema como seeste necessitasse deles, como seofimimplicasse par; o poema uma catstrofe e uma perda de identidade to irreparvel aponto derequerer adisposio demeios mtricos esemnticos bastante particulares. No aqui o lugar para fazer o inventrio desses meios nem para encaminhar uma fenomenologia do fimdo poema (penso, por exemplo, na inteno particular com que Dante marca o fimde todos os cnticos da Commedia comapalavra stelle ["estrelas"], ou nas rimas que intervm nos versos bran- cos das canes de Leopardi, afimde evidenciar o fimda e~- trofe oudo canto). Oessencial que ospoetas parecem consci- entes de que existe a, para o poema, algo como uma crise decisiva, uma verdadeira eestrita crise devers, na qual est em jogo sua prpria consistncia. .' Da oaspecto freqentemente pobre, quase abjeto dofimdo poema. Proust observou certavez, apropsito dosltimos versos das poesias dasFleurs du mal, queopoema parece bruscamente arruinar-se eperder oflego (il tourne court - escreve ele- tom- be presque plat [... ] il semble malgr tout qu'il y ait l quelque chose d'court, un manque de souffle). Pensemos em Andromaque, uma composio to vigorosa eherica, que ter- mina comoverso: Aux captifs, aux vaincus, bien d'autres encor. Sobre outro poema baudelairiano, Benjamin observou que C A C T O 1 145 146 ele "se interrompe bruscamente, d a impresso, duplamente surpreendente para um soneto, de algo fragmentrio". O de- sarranjo do ltimo verso umindcio da relevncia estrutural eno contingente que tem, na economia potica, oevento que denominei "fimdo poema". Como seopoema, enquanto estru- a:~aformal, ~o pudesse, no devesse findar, como seapossi- blh?ade d? fiml~efosseradicalmente subtrada, j que impli- cana esseimpossvel potico que acoincidncia exata desom esentido. Noponto emque osomest prestes aarruinar-se no abismo do sentido, opoema procura uma sada suspendendo por assim dizer, oprprio fim, numa declarao de estado de emergncia potica. luz destas reflexes que eu gostaria deexaminar, ago- ra, uma passagem doDevulgari Eloquentia emque Dante pare- ce colocar, pelo menos implicitamente, o problema do fimda poesia. A passagem se encontra no livro 11,no qual o poeta trata ~a.disp.osi~das rimas na cano (11,xiii, 7-8). Depois dedefinir anma nao-relacionada (que algum props denomi- nar clavis), reza otexto: pulcerrime tamen sehabent ultimorum carminum desitientiae, si cum rithmo in silentium cadunt ("belssimas so as terminaes dos ltimos versos se caem C?:na.srimas, n~silncio"). O que essa queda do ~oema n~ silncio? Oque euma beleza que cai? E oque resta do poema depois da sua runa? Se apoesia no vive seno na inexaurvel tenso entre a srie semitica easrie semntica, oque acontece no momen- to do fim, quando aoposio das duas sries no mais poss- vel? Teramos a, finalmente, um ponto de coincidncia, no qual o poema, enquanto "seio de todo o sentido", ajusta as contas comseu elemento mtrico para transitar definitivamen- te para aprosa? Asbodas msticas do some do sentido pode- riam, ento, ter lugar. Ou, pelo contrrio, osomeosentido estariam agora para sempre separados, sem contato possvel, cada um perpetua- mente emsua parte, como os dois sexos na poesia de Vigny? Neste caso, opoema no deixaria detrs desi umespao vazio no qual verdadeiramente, segundo as palavras de Mallarrn. rien n 'aura eu lieu que le lieu. ' Tudo se complica com o fato de no haver no poema, a pretexto deexatido, duas sries ouduas linhas defuga empa- ralelo, mas s uma, percorrida ao mesmo tempo pela corrente semntica epela corrente semitica; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que amechan potica se aplica to obstinada- mente amanter. (Osomeosentido no so duas substncias, mas duas intensidades, dois tnoi danica substncia lingsti- ca). E o poema como o catchon da epstola de Paulo aos Tessalonicenses (lI, 2, 7-8): algoquefreiaeretarda oadvento do Messias, portanto daquele que, cumprindo otempo dapoesia e unificando osdois ones, destruiria amquina potica precipi- tando-a no silncio. Masqual seria ofimdessa conspirao teo- lgica sobre alinguagem? Por que tanta obstinao emmanter a qualquer custo um contraste capaz de garantir o espao do poema s ao preo de lhe negar qualquer possibilidade de um acordo durvel entre osomeosentido? Releiamos agora o que escreve Dante sobre o modo mais belo de finalizar um poema, l onde os ltimos versos caem, rimados, no silncio. Sabe-se que se trata, para ele, quase de uma regra. Pensemos, por exemplo, natornada dapedrosa Cosi nel mio parlar voglio esser aspro. Oprimeiro verso termina com uma rimatotalmente no-relacionada, quecoincide (certamente no por acaso) comapalavra que nomeia ainteno suprema do poeta: donna ["mulher"]. Essa rima no-relacionada, que parece antecipar um ponto de coincidncia entre somesenti- do, seguida de quatro versos ligados dois a dois pela rima que atradio mtrica italiana define como "baciata":" Canzon, vattene dritto aquella donna che rn'ha ferito il core eche m'invola quello ond'io ho pi gola, edalle per 10 cor d'una saetta; ch bell'onor s'acquista in far vendetta." Tudo transcorre como se o verso que, ao fimdo poema, irreparavelmente se arruinava no sentido se ligasse estreita- mente ao seu rhyme-fellow, e assim optasse por se precipitar comele no silncio. Isto significaria que opoema cai marcando mais uma vez a oposio entre o semitico e o semntico, assim como o som parece para sempre consignado ao som e o sentido entregue ao sentido. A dupla intensidade que anima alngua no seapla- A G O S T O 2002 C A C T O 1 141 148 canuma compreenso ltima, mas se abisma, por assimdizer, nosilncio numa queda semfim. Destemodo opoema desvela o escopo dasuaorgulhosa estratgia: que alngua consiga no fim comunicar elaprpria, semrestar no dita naquilo que diz. (Wittgenstein escreveu certa vez que "a filosofia deve-se apena~ propriamente poet-Ia" [Philosophie diirfte man eigentlicli nur dichten]. Talvez a prosa filosfica, ao fazer-se como se o som e o sentido coincidissem no seu discurso se arrisque a decair na banalidade, se arrisque portanto a faltar comopensamento. Quanto poesia, pode-se dizer, ao contr- rio, que est ameaada por umexcesso de tenso ede pensa- ~ento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein, que a "a poe- SIadeve-se apenas propriamente filosof-Ia"). NOTAS 1 "Com efeito, muitas vezes ocorre que, finda a consonncia, o sentido da orao ainda no chegou ao fim" [N. do T.). 2 "/\ esse respeito, deve-se saber que tal vocbulo [stantia: estncia, estrofe) foi inventado to somente pela arte, de modo que aquilo que contivesse toda a arte da cano se denominasse estncia, ou seja, manso ou abrigo com capacidade para toda a arte. Assimcomo acano o seio de todo o sentido, aestncia recolhe no seu seio toda a arte; aquelas que vmemseqncia no se podem arrogar nenhuma arte, devendo revestir-se com a mesma arte da antecedente" [N. do T.). 3 "a pausa afonte da consonncia" [N. do T.]. 4 Agamben chama de rima irrelata ("rima no-relacionada") a terminao de verso sem rima correspondente na mesma estrofe. uma denominao abrangente que engloba diferentes casos de rimas que, em portugus, so conhecidas como "isoladas", "dissolutas", "diferidas" ou "retardadas". V. Mello Nbrega. Rima e poesia. Rio de J aneiro: INL/MEC, 1965, p. 355-356; e Augusto de Campos. Mais provenais. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 32 [N. do T). 5 Literalmente, "beijada"; a rima que em portugus se diz "emparelhada" [N. do T.]. 6 Na traduo de Haroldo de Campos: "Cano, parte certeira quela dama / que me feriu no peito eque me anula / onde eu ponho mais gula, / vara-lhe o corao feito uma lana: / alto prmio se colhe na vingana"; H. de Campos. Pedra e luz na poesia de Dante. RiodeJ aneiro: Imago, Col. Lazuli, 1998, p. 61 [N. do T.) A G O S T O 2002 C A C T O 1 149