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Arte e Animação Cultural:

Diálogos e Desafios a partir do Espetáculo Jogo Coreográfico

RESUMO
Palavras-chave: dança, cultura, jogo coreográfico
O presente trabalho pretende levantar reflexões sobre as possibilidades de
relacionamento entre público e obra artística, ora desenvolvendo considerações sobre a
natureza interativa do espetáculo Jogo Coreográfico e sua possibilidade de promover
modelos alternativos e dinâmicos de intervenção cultural, ora examinando de que
maneira tal prática artística pode ser apreendida enquanto expressão de um saber
coletivo e, por conseqüência, como meio de construção para alternativas de resolução de
problemas sociais. Resultado de vivências tanto práticas quanto teóricas do pesquisador
com o objeto em questão, o estudo propõe reflexões sobre a possibilidade da Arte, e
mais precisamente o processo de criação e produção em dança, assimilar na
contemporaneidade o conteúdo de uma Pedagogia Social, e por fim, associar-se a
elementos estruturais da Animação Cultural.

1. INTRODUÇÃO

A pesquisa proposta neste trabalho busca investigar as relações construídas entre


público e obra artística na produção, elaboração e representação de conteúdos à cena
contemporânea, examinando traços compositivos que fundamentem a construção da
obra Jogo Coreográfico tais como o descentramento do espaço cênico, a introdução do
acaso no fazer artístico, a não dependência estabelecida entre música e movimento, a
autonomia do olhar na apreensão da obra; propomo-nos, porém, simultaneamente, a
promover um estudo acerca dos arranjos simbólicos, elementos estruturais, que se
articulam à concepção do espetáculo, desenvolvendo discussões e análises acerca de
seus valores e interferências no empreendimento criativo, situando-nos, desse modo, na
fronteira entre propostas coreográficas e abordagens conceituais e associando-nos,
assim, ao discurso e conteúdo da Animação Cultural.
A recomposição destas redes densas de significações e interações que tramam a
complexa unidade do processo de criação artística faz-nos apreender a relevância de um
estudo pautado no fenômeno dialógico dos elementos sensíveis e técnicos para o

1
levantamento de apontamentos que se desdobrem para além dos limites de um debate
que se circunscreva ou detenha a descrição de processos criativos; exortando-nos, não
ao estabelecimento de testemunhos que resgatem experiências, mas, sobretudo, a um
caráter de imersão, pautado na análise do ato coreográfico, que possibilite-nos o
encontro com a idéia de cientificidade e sua aplicação em nossas propostas de estudo;
ensejando-nos a elaboração “de uma crítica radical dos valores dominantes na sociedade
moderna e uma proposta de transformação do próprio princípio de avaliação de onde
derivam os valores”. (MACHADO, 1985: 14).
Com isso, todavia, não pretendemos instituir em nossas observações
procedimentos cristalizados e baseados em padrões de investigação que busquem
formas uniformes de elaboração do conhecimento, validadas em conceitos, métodos e
técnicas fundamentais à reprodução; procuramos, sim, instaurar a possibilidade concreta
de analisarmos a realidade a qual integramos – enquanto intérpretes criadores do Projeto
Jogo Coreográfico – sem que tal ordem de saberes nos escape a objetivação1,
examinando, deste modo, nossas práticas em dança como um conjunto que relaciona
significado à realização, ciência à arte; onde, decerto “a arte não só é reabilitada por sua
força afirmativa da vida como também é escolhida como modelo capaz de impregnar o
próprio conhecimento com a dimensão do trágico”. (MACHADO, 1985: 51).
Adotando, portanto, a cientificidade “como uma idéia reguladora de alta
abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos”2, estabelecemos
processos cruzados e encontros possíveis entre a razão científica e o pensamento
artístico, desmistificando antigos dilemas fomentadores de oposição e contrariedades
entre o mundo social e o universo técnico.
A pesquisa, assim, aproxima-nos de um processo de familiarização entre ciência
e arte, avizinhando-nos da produção de uma reflexividade mais consistente nos
procedimentos de análise de obras artísticas e revelando-nos, à medida que nos
possibilita reconhecer a parcialidade e provisoriedade constantes em todo ato de
investigação, a idéia de que a “totalidade de qualquer objeto de estudo é uma construção
do pesquisador, definida em termos do que lhe parece mais útil para responder ao seu
problema de pesquisa”3, o que nos faz perceber ser irreal a pretensão que determinadas

1
Pierre Bourdieu denomina objetivação o esforço controlado de conter a subjetividade, porém ao aplicar
a palavra esforço ele nos propõe a presença constante do sujeito em todas as operações intelectuais e sua
ampla influência nos limites da pesquisa e delimitação do objeto de estudo interessando-lhe, portanto,
menos a nulidade do homem e mais o caráter de cientificidade da obra.
2
MINAYO, 2004: 12.
3
GOLDENBERG, 2003: 51.

2
investigações sustentam de descrever e descobrir a relevância teórica de todo o universo
pesquisado. Por isso, partimos, aqui, da perspectiva de que o trabalho proposto não
abarca, de maneira alguma, o complexo de questões e problematizações disponíveis em
nosso setor de pesquisa, tampouco liquida ou extingue todo o arcabouço metodológico e
linhas de investigação possíveis a um melhor e mais amplo entendimento do espetáculo
Jogo Coreográfico; entretanto, conquanto limitado, é a luz deste representativo nicho de
pensamento que nos propomos a contribuir com a elaboração e o desenvolvimento das
formas de organização do pensamento nos círculos do fazer coreográfico, dispondo-nos
a examinar o processo relacional entre espectador e espetáculo e a avaliar a repercussão4
de cada um dos fatores que estruturam a obra Jogo Coreográfico, seus elementos
simbólicos e dimensões compositivas, na produção de conteúdos à cena contemporânea
e promoção de discursos no âmbito social.

2. A ARTE COMO REPRESENTAÇÃO CULTURAL

Após uma breve análise da relevância do caráter atribuído ao relacionamento


fundado entre público e composição coreográfica para produção de conteúdos à obra
artística e a apresentação de nossos propósitos investigativos – para melhor
identificarmos os aspectos promotores e organizacionais da pesquisa em questão –
optamos, neste momento, em examinar a estrutura que trama o vínculo entre arte e
cultura, propondo, sobretudo, conciliações a estas esferas no âmbito social.
Aí, percebemos que cada cultura possui uma lógica particular estruturada sobre
um conjunto de bens simbólicos que possibilita aos seus integrantes o compartilhamento
de ideais, hábitos, costumes e ações, viabilizando, desse modo, a participação e
integração de seus indivíduos na organização social e facilitando-nos o entendimento de
que toda sociedade humana se edifica através de processos que possibilitam aos homens
identificarem-se e reconhecerem-se pela utilização de materiais culturais comuns.
Donde depreendemos que o:
Modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os
diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são (...)
produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma
determinada cultura. (LARAIA, 2006: 68).
No entanto, este conjunto de práticas e bens que estrutura a cultura não está
cristalizado ou se estabiliza em padrões comportamentais hermeticamente fechados, e
4
Bachelard (1978: 187-8) propõe a este termo uma significação propositora, ou seja, construtora de
imagens poéticas; em seus estudos a repercussão pressupõe atividade e constante participação.

3
sim se caracteriza por um movimento constante de (trans)formação, que nos faculta
apreender a dinamicidade da cultura e a participação dos indivíduos na construção e
reformulação de seus domínios. Neste contexto, a cultura é examinada como uma
produção dependente de quem a faz, o agente humano; e este nasce, transforma-se e
morre o que torna inviável a compreensão de que os seus modos de produção possam
permanecer preservados e estacionados no espaço-tempo. Por sua vez, o homem torna-
se resultado do meio cultural em que foi socializado, caracterizando-se como herdeiro
de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e as experiências
adquiridas pelas gerações anteriores, o que garante à cultura a produção e o
desenvolvimento da Humanidade.
Neste diálogo entre produto e produção – como elementos transitórios e em
deslocamento – observamos uma relação diferenciada entre o ser e sua rede de
significações, que integra-nos, ou ao menos aproxima-nos, da compreensão de que as
realizações humanas – individuais ou coletivas – são desenvolvidas e desenvolvem um
espaço cada vez mais carregado de informações e experiências. Daí, estabelece-se a
necessidade de reflexionarmos as representações culturais, tais como as religiões, a
moralidade, as ciências, a tecnologia, as artes, o comércio, o senso comum, entre outras,
enquanto texturas de idéias, ações e realizações que instaurem uma contigüidade
intelectual orgânica entre si, ou seja, como campos de fronteiras dúcteis e maleáveis que
facilitem e predisponham-se ao estabelecimento de diálogos interdisciplinares e, por
conseguinte, ao enriquecimento dos saberes e fazeres, nas formas de organização do
conhecimento.
Isso não significa, é claro, que religião, ciência, alta tecnologia, tecnologia do
cotidiano, ciências sociais, ciências naturais, crença e magia sejam tudo a
mesma coisa. O que a nova sociologia do conhecimento faz, ao explicitar a
base comum de todas essas formas de conhecimento e estruturação da
realidade, é criar as condições para que suas diferenças e semelhanças
apareçam com clareza, livres das mistificações e impostações com que cada
qual trata de se defender das demais. (SCHWARTZMAN, 1997: 77).

Neste sentido, conseguimos analisar a Arte de uma maneira mais ampla e aberta;
apreendendo-a não como um elemento autônomo, mas como subsistema pertencente a
um sistema maior, a cultura, e em relação com os demais segmentos sociais. É certo que
em quase todo o mundo, surgiram pessoas capazes de chegar à conclusão de que falar
sobre a Arte em termos técnicos seria o suficiente para entendê-la; nas sociedades,
porém, em que outros tipos de discurso (cujos termos e conceitos derivam de interesses
culturais que a Arte pode servir, refletir, desafiar e descrever, mas não, por si só, criar)

4
se congregam ao redor da Arte para conectar suas energias especificas à dinâmica geral
da experiência humana, percebemos a promoção de alianças, entre a Arte e os outros
setores da sociedade, que se mostram integras por oportunizarem um maior
entendimento às representações artísticas, induzindo-nos a possibilidade de associação
com o que ela (a Arte) tem de mais significante: o homem.
Afinal,
... os meios através dos quais a arte se expressa e o sentimento pela vida que
os estimula são inseparáveis. Assim como não podemos considerar a
linguagem como uma lista de variações sintáticas, ou o mito como um
conjunto de transformações estruturais, tampouco podemos entender objetos
estéticos como um mero encadeamento de formas puras. 5

Assim, apreendemos que o que o indivíduo é pode estar tão envolvido com onde
ele está, quem ele é e no que ele acredita que se torna inseparável dele; esta
indissolubilidade permite-nos analisar as práticas artísticas como propostas,
possibilidades ou potências de Animação Cultural que renovam perspectivas e
engendram processos de integração, ativação e participação entre sujeitos. Neste
ínterim, apesar de a questão fatídica, que frequentemente se levanta nos Estudos em
Artes sobre como associar as representações artísticas ao ser humano que se instala no
cenário da contemporaneidade já estar solucionada (à medida que compreendemos e
localizamos a Arte como um segmento da teia de significações que produz e é
produzida pelos homens) surge à Luz do Pensamento Profundo, uma nova questão que
nos convida a diferentes divagações e a busca de arejados esclarecimentos no vasto e
problemático campo das Artes, ei-la: “Como uma representação artística (em nosso caso
específico, a dança) pode induzir os membros de determinada sociedade a refletirem
sobre suas ações dentro de determinado contexto cultural e induzi-los a produção de
bens simbólicos?”
Certamente, pensar em uma Arte que induza a concepção de bens e provoque a
criação, é denunciar “o processo de dominação ora explícita, ora escamoteada ao qual
tem estado submetida toda a civilização ocidental desde os seus primórdios” 6, é pensar,
simultaneamente, em uma Arte que adquira a responsabilidade de “transgredir” o atual
estado das coisas, promovendo a experiência como ferramenta indispensável ao
processo de fruição de suas representações, à medida que sabemos viver – o que
complica ainda mais a questão – em uma sociedade que produz grande proporção de
patrimônios simbólicos para as massas, criticada por favorecer a construção de

5
GEERTZ, 2006: 148.
6
DUARTE, 1997: 13.

5
unanimidades à medida que estimula o consumo acrítico; acusada de fomentar a
homogeneidade que gera, por conseqüência, a automação, de desenvolver funções
meramente conservadoras, de não oportunizar espaços que sirvam de estímulos à
formação de seres reflexivos; censurada por encorajar uma visão e postura passiva cuja
base é o desestímulo ao esforço pessoal, por não produzir ideais libertários e
conscientes o que favorece a manutenção de preconceitos, mitos, estereótipos, etc.
Assim sendo, para a promoção deste estudo torna-se imperioso a escolha de uma
obra artística que viabilize provocações no âmago criador de seus espectadores,
tornando-se propositora da produção ativa e consciente em dança; tal prática de escolha
desenvolve-se, aqui, amparada pela familiaridade com o espetáculo em questão: o Jogo
Coreográfico, concebido e dirigido por Ligia Tourinho, cujo objetivo consiste em
exercitar o fenômeno da coreografia – o ato de coreografar e ser coreografado. A seguir,
pois, propomo-nos a examinar a estrutura do espetáculo e suas conciliações a idéia da
Animação Cultural, analisando, sobretudo, o papel em trânsito dos artistas-cidadãos
envolvidos na confecção da obra.

Ilustração 1: Intervenção e Produção do Conteúdo Coreográfico

3. JOGO COREOGRÁFICO E ANIMAÇÃO CULTURAL

6
Em primeiro lugar acredito ser fundamental esclarecer o que é o jogo
coreográfico. Ele é um jogo para se exercitar o fenômeno da coreografia – o
ato de coreografar e ser coreografado. Exige o mínimo de três jogadores,
podendo ser realizado por pequenos grupos ou um grande grupo. Não existe
um limite máximo de participantes, apenas um limite mínimo. Este limite
mínimo sintetiza as três funções do jogo, são elas: Jogador coreógrafo – a
função do jogador coreógrafo é de orquestrar e determinar as funções e
objetivos do(s) jogador(es) intérprete(s). Jogador intérprete – a partir das
indicações do jogador coreógrafo o intérprete cria sua dança dialogando com
os demais colegas. Jogador público: Tem a função de receptor de informação
e de após o exercício retornar suas impressões aos demais colegas.
(TOURINHO, 2006: 81).

O Jogo Coreográfico compõem-se de três tipos de jogadores: Jogador


Coreógrafo, concebe e determina a ação dos jogadores intérpretes; Jogador Intérprete,
realiza as indicações dos jogadores coreógrafos; Jogador Público, visualiza as
montagens coreográficas, apreendendo o processo de produção e criação em dança.
Estes jogadores funcionam como recursos indispensáveis a concepção coreográfica,
todavia, além do material humano a mecânica do Jogo demanda outras ferramentas, tais
como: uma mesa de som repleta de Cds e dois microfones, elementos que possibilitam
aos jogadores coreógrafos estabelecerem suas construções artísticas.
Em geral, o espetáculo inicia-se no saguão do teatro (ou em outros locais
alternativos) com intérpretes e público reunidos formando um grande círculo (de mãos
dadas); na ocasião, um dos intérpretes propõe uma oração típica do teatro e pede a todos
que a repitam - “Eu seguro minha mão na tua, para que possamos fazer juntos, aquilo
que eu não posso fazer sozinho”, este mesmo intérprete, após a articulação destas
palavras informa que vai passar uma mensagem que deve percorrer o círculo sendo
endereçada ao indivíduo do lado (de um a um), a sentença é: “Eu preciso de você”; daí,
todos penetram o espaço cênico, os jogadores intérpretes se direcionam ao palco e o
jogador público se encaminha para as poltronas ou assentos. Neste momento, os
intérpretes apresentam seus nomes e números (cada um dos bailarinos é identificado por
seus nomes e números inseridos em seus uniformes7 ou em material gráfico presente
sobre a mesa de som), tornando-se identificáveis a todos, e em seguida, fornecem as
regras do Jogo: os jogadores intérpretes podem realizar estruturas como andar, pausar e
desenhar livremente pelo espaço, entrar e sair de cena, realizar ações simples, executar
suas coreografias particulares (pequenas partituras coreográficas), imitarem-se uns aos
outros, entre outras coisas; tais regras são conteúdos estruturais que possibilitam mais
tarde a interação direta dos espectadores com a obra proposta. Só então, quando todas as
regras são colocadas, o jogador público pode se tornar jogador coreógrafo, utilizando o
7
No espetáculo Jogo Coreográfico, o termo uniforme é utilizado para substituir a idéia de figurino.

7
microfone para indicar suas necessidades coreográficas e utilizando o som e diversidade
musical em prol de sua composição. Os jogadores intérpretes cuja movimentação tem
como suporte a improvisação e experimentação traçam em suas práticas gestuais o
contato com o inusitado e imprevisível, estabelecendo aí, a indigência de “que o saber
se acompanhe de um igual esquecimento do saber. (...) um ato difícil de superação do
conhecimento. (...) uma (...) espécie de começo puro que faz de sua criação um,
exercício de liberdade” (Lescure apud BACHELARD, 1979: 194). Como a estrutura
do Jogo possui dois microfones, para jogar basta se posicionar a frente do microfone
vazio, esta é a deixa para que o jogador coreógrafo atuante finalize seu jogo e transfira a
vez a um novo jogador.
Aí, percebemos que o caráter da produção artística instaura um estado de
polivocalidade que além de orientar outros produtores em suas construções, dispõe
ferramentas de composição, cuja elaboração se faz “melhor quanto mais conduz
consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de
transformar em colaboradores os leitores ou espectadores”. (BENJAMIM, 1994: 132).
Há uma pausa, o primeiro tempo é finalizado e após um intervalo de,
aproximadamente, cinco minutos dá-se início ao segundo tempo do Jogo Coreográfico.
Nesta fase, os jogadores intérpretes podem utilizar objetos na construção das
coreografias; como no primeiro tempo, os bailarinos iniciam a jogatina8 e depois
formulam convite para o jogador público se transformar em jogador coreógrafo; nova
pausa e, inesperadamente, o jogador público é convidado desta vez a exercer a função
de intérprete, bastando para tal vestir uma das camisetas de reservas apresentadas. O
Jogo finaliza com a participação dos espectadores nos três estágios possíveis a produção
em dança.
Essa relação construída pela performance coreográfica e expandida em três
direções que se cruzam sugere-nos a metáfora de um espaço polifuncional; metáfora
esta, imediatamente, confirmada pelo trânsito e agitação que percebemos e que
“reforçam a tridimensionalidade e eliminam uma separação clara entre público e área do
atuante”. (COHEN, 2004: 59).
A obra coreográfica promove, pois, um deslocamento entre sujeito e objeto da
contemplação ou realização, fundindo e confundindo as relações entre artista e público
em um cenário de intervenção que estabelece interação e novos conteúdos estruturais à
8
Termo utilizado pelos intérpretes para designarem suas práticas de criação no espetáculo Jogo
Coreográfico.

8
composição cênica. Instala-se uma linguagem de experimentação que rompe com o
formalismo e a narrativa e oportuniza a confluência de elementos cênicos cujas bases
favorecem o acaso, o evento e convida o espectador a participação.
O conceito de jogo aplicado à composição coreográfica é, portanto, mais que
uma metodologia, é uma propriedade da arte com aplicação direta à representação. Por
ser uma forma óbvia de expressão humana – presente desde os primeiros meses de
nascimento – o jogo, cobre uma ampla variedade de atividades físicas e processos
mentais. Espontâneo e autogerado é fim em si mesmo e constitui uma relação de “puro
prazer” por não precisar ter um aspecto funcional.
Filosoficamente, como conceitua Huizinga o jogo se caracteriza por ser “uma
atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterioriza a vida
habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogado de maneira
intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse
material, com geral não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de
limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas
regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se
de segredos e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por
meio de disfarces ou outros meios semelhantes. (TOURINHO, 2006: 82).

O jogo é o potencial da manifestação artística, cujo:


... impulso lúdico torna-se artístico quando é iluminado por uma crescente
participação no consciente social, e por um senso do valor comum das coisas,
quando em outras palavras ele se torna consciente de seu poder de modelar
semelhanças que terão valor para outros olhos ou ouvidos trazendo
reconhecimento e renome. (READ, 2001: 129).

Desse modo, mais do que uma aplicação artística, o conceito de jogo e seu uso
em um espetáculo de dança contribuem para formular uma parceria viva e ativa entre o
espectador, a dramaturgia, a cena e seus demais agentes e elementos. Ai, o espetáculo e
suas partes, historicamente desintegradas, coadunam-se para assumir uma importante
proposta de intervenção cultural, uma Pedagogia Social.
O Jogo Coreográfico consiste em um desenvolvimento constante da
desintegração de conceitos formais da Arte, pelo questionamento da natureza da obra
artística e pela busca de uma forma de contato não contemplativo; a possibilidade
prática de ação e realização do espectador, agora participante, que não somente pode
entrar no interior da peça, mas gerá-la é a negação do artista como criador, mas sua
localização como propositor de práticas. Assim, o espetáculo tem a necessidade de gerar
e “improvisar uma ação de tal maneira que o público passe a participar como ator dessa
ação. A ação pretende alcançar a integração do público, e então o público, na sua
condição de público desaparece. E a finalidade (...) é (...): conscientizar o público e
discutir a situação social”. (BORNHEIM, 1983: 54).

9
O espectador torna-se aí o co-participe do fazer, enriquecendo a pratica de
proposição em dança, cuja própria elaboração inconclusa demonstra o desejo e a
necessidade do outro e, com isso, a valoração da alteridade. O espetáculo passa a ser
considerado como espaço de convívio, espaço para viver onde o fenômeno da criação é
aprendido como trânsito que não se restringe a determinada(s) individualidade(s), mas
como processo acessível a todos através do quadro de experiências propostas pelo
exercício da ação.
Aí, percebemos que as representações artísticas podem, como ações culturais,
veicular valores úteis ao desenvolvimento da sociedade. Provocando nos espectadores o
desejo ativo e consciencioso de integração à produção de bens simbólicos, o espetáculo
Jogo Coreográfico desloca a representação do âmbito de material produzido para as
massas para o âmbito de criação pelas massas tornando-se um ato de celebração
criadora.
Funcionando como limiar do fenômeno de transformação dos conteúdos
artísticos, que não há de ocorrer de modo abrupto, o Jogo oferece-nos a saída mais útil
para o desenvolvimento do panorama de dança na contemporaneidade: o cruzamento de
uma arte de entretenimento a uma arte de proposta.
O espetáculo, portanto, não se limita à produção cênica, ele se estende (de várias
maneiras) a fim de provocar reflexões sobre o fazer artístico, as relações que se
estruturam entre público e obra, as estratégias de fortalecimento do espaço criativo em
dança, as possibilidades de interação entre os variados grupos que reúnem-se na
apreciação de um espetáculo, a intervenção necessária ao aprimoramento dos
indivíduos, o mister de uma formação de público mais consciente e integrada aos
homens e suas necessidades; enfim, o Jogo serve para pensar sobre o que produzimos e
consumimos.
Defendendo não só o acesso de todos à Arte, como também o papel ativo de
todos na produção coreográfica, ele possibilita um caráter ordinário à dança, trazendo-a
para o domínio das pessoas comuns, sem elitismo. O artista passa a ser menos o autor
dos textos coreográficos e mais aquele que propõe a ação coletiva, buscando o
complemento da produção artística na contribuição dinâmica do espectador, agora
participador.
Buscando contribuir a compreensão de significados e contextos culturais mais
aprofundados e a resolução de problemas sociais, tais como a apatia, a passividade, a
cultura de ociosidade e estagnação contemplativa, o espetáculo visa provocar

10
questionamentos e, com isso, contribuir na edificação de uma sociedade mais ativa,
solidária e justa; desse modo, o Jogo Coreográfico reconquista criativamente nos
espaços de discussão sobre Artes Cênicas o interesse pelo público (no sentido mais
amplo da palavra), atribuindo a sua produção, distribuição e consumo um valor
cognitivo, útil para pensar e atuar na vida social.

4. CONSIDERAÇÕES (POR AGORA) FINAIS

A pesquisa apresentada neste trabalho busca refletir, mas, sobretudo, estimular a


produção em Artes como processo responsável pelo estreitamento de laços entre os
agentes humanos, estimulando e contribuindo para a transformação da cena em um
espaço verdadeiramente democrático e favorecendo a edificação de um ambiente de
promoção social, tanto na recepção, quanto na produção de bens simbólicos e na
elaboração de discursos; por isso, na pesquisa proposta procuramos analisar os vínculos
estabelecidos entre a arte e a cultura avançando qualitatitavamente nas discussões,
provocações e práticas em dança.
Certamente, sob as condições vigentes se faz “inoportuno e insensato esperar ou
exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se
destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa”9; no entanto,
persistimos na tarefa engendrada, acreditando no potencial transformador e
desmistificador do homem, da arte e da Vida e, mormente, validando os aspectos da
Animação Cultural em nossas formas de ver e construir o mundo.
A guisa de conclusão, portanto, podemos depreender que a Animação Cultural
ao perceber a necessidade de equilíbrio entre o consumo e as formas de produção e
participação social nos possibilita fomentar em nossas práticas a humanização plena do
indivíduo promovendo-o a agente e não somente paciente do processo social;
favorecendo-nos, aqui, na construção de aproximações entre o Jogo Coreográfico e as
perspectivas culturais iniciando e reconhecendo diálogos e desafios possíveis para a
mobilização e construção de uma arte feita menos para os agrupamentos humanos e
mais pelos homens.
Apreendendo a participação ativa de todos os agentes da obra e construção
coreográfica como fundamento do espetáculo em questão, assumimos o caráter da

9
ADORNO, 1995: 121.

11
experimentação em todas as instâncias da cena como instigação às nossas possibilidades
de dialogo com o inusitado, a alteridade e o incomum, exercitando e excitando “a busca
de novas formas de encarar a realidade social, direta ou indiretamente oferecidas a
novas linguagens culturais”10 e apreendemos que ao provocarmos reflexões nos
indivíduos, de maneira a aguçar estratégias de fortalecimento dos espaços fundamentais
à coletividade criativa, somos nós, sobretudo, os primeiros beneficiados.
Desse modo, percebemos que o trabalho não termina aqui, novas elucubrações
hão de advir potencializar o conteúdo de nossas práticas artísticas ao processo de
promoção dos sujeitos a partir das experiências e arcabouços da Animação Cultural;
estejamos, pois, abertos ao diálogo, mas também aos desafios que surgirão ante o
quadro de nossas realizações, reclamando-nos presença, atividade e, mormente,
contribuições no âmbito social.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W.. Indústria Cultural e Sociedade. Petrópolis: Paz e Terra,


1995.
BACHELARD, Gaston. “A Poética do Espaço”. In.: Gaston Bachelard. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção: Os Pensadores).
BENJAMIN,Walter.Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre a Literatura
e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, v.1).
BORNHEIM, Gerd. “Os Caminhos da Representação”. In.: Arte e Filosofia.
Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: FUNARTE/ Instituto Nacional de Artes
Plásticas, 1983. (Cadernos de Textos 4).
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2004.
DUARTE, Rodrigo. Adornos: Nove Ensaios sobre o Filósofo Frankfurtiano.
Belo Horizonte: UFMG, 1997.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 2006.
GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.

10
MELO, 2003: 52.

12
MACHADO, Roberto. Nietzche e a Verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
MELO, Victor de Andrade de. Introdução ao Lazer. Barueri: Manole, 2003.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa Social. Petrópolis: Vozes,
2004.
READ, Herbert. A Educação pela Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SCHWARTZMAN, Simon. A Redescoberta da Cultura. São Paulo: EDUSP,
1997.
TOURINHO, Ligia Lousada. Jogo Coreográfico – Pressupostos e Fundamentos.
IN.: Conhecendo e Reconhecendo a Dança na UFRJ. Rio de Janeiro, 2006, p. 81-2.

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