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SAUDE E EQUILIBRIO Sobre a Origem e a Natureza da Misica... a Propésito da Musicoterapia Masica Ex Nnihilo “Te is mot easy 10 determine the nature of ‘music or why anyone should have a knowledge of it"(Aristételes 1) hist6ria da mtisica imerge na Ais do Homem. Nao ha ertezas sobre a sua origem e seré muito dificil descobrir 0 porque da sua génese. Em termos concretos, que se sabe dos primérdios da n sa actividade musical provém essen- cialmente de alguma iconografia que sobreviveu a milhares de anos, e as pinturas rupestes na gruta de “Les Trois Fréres 2”, consideradas co- mo © mais antigo testemunho da nossa histéria musical 3 e que pai cem evidenciar que o Homem pré- -histérico j4 usava os sons de forma intencional Ainda do perfodo paleolitico tam- bém se conhecem instrumentos de sopro, feitos de osso, e.g. a Flauta en- contrada na Eslovénia (em 1995 4), que se calcula datar de aproximada- mente 45 000 anos atrés. Contudo, a importéncia da figura de ‘Les Trois Freres" € particularmente significa- tiva, porque, ao mesmo tempo que parece retratar um instrumento de corda, o arco musical também mos- tra uma associagéo da miisica (no caso, execucdo instrumental) ¢ a danca com uma situagdo conotada com aspectos transcendentes, ritua- listas e magicos A Masica, a Magia, 0 Divino @ 0 Cosmos “Para el hombre y las culturas primit: vas, la misica noes un arte: es un poder cuya fuerza la ubica en el origen mismo del mundo.” (Rerazz0 5), Esta perspectiva encontra-se igualmente nas obras, ou fragmentos de obras, que nos chegaram da anti guidade, nas quais a musica aparece, frequentemente, associada a uma crigem divina, aos mitos, a uma ideia de sobrenatural ou ainda aos elemen- tos césmicos. Seguem-se alguns exemplos: na China, considerava-se que 05 principios da musica seriam os mesmos do eterno sagrado, huang chung, expresso que tanto se referia ao tom fundamental da miisica chi- nesa como, no sentido simbdlico, a autoridade divina; na fndia, segundo a tradicdo, o proprio Brahma ensinou o canto ao profeta Narada e este, por sua vez, transmitiu-o ao resto dos homens; no Egipto, antes do ano de 4000 a.C., a miisica também era re- corrente nos ritos, cerim6nias religio- sas e militares, festas etc. Para os egipcios, o Deus Thoth teria criado o mundo através de sons 6, Os babil6- nios e os gregos relacionavam 0 som ‘com o cosmos através de uma concep- Go matemética das vibragbes actisti- cas, representadas numericamente € expressas também na astrologia: “Los pitagéricos concibieron la escala musical como un elemento estructural dentro del cosmos. Ademds, el firma ‘mento se reflejaba como una especie de armonta — la ‘armonta de las esferas’ yel espado tonal se obtenia por medio de una sola cuerda tensada (monocordia) de manera que reflejase esa armonia,” (Robertson ¢ Stevens 7) E neste contexto que Platéo (¢.428/27 aC. - 347 a.C,), que consi derava a astronomia e a miisica como ciéncias irmas, “tal como afir- mam 0s pitag6ricos” 8, refere o som provocado pelo movimento dos pla- netas, acompanhado pelo canto das deusas Laquesis, Cloto e Atropos 9 que Aristoteles (c.384 aC. -322aC), em A Metafisica, escteve, citando 98 pitagoricos, que: “todo o céu é harmonia e ntimero” 10. A Harmonia das Esferas e a Teoria do Ethos As ideias de uma alma do mundo (anima mundi, tal como Plato a des- creve em © Timew 1) ou de uma harmonia das esferas, macrocésmica, actuante € com efeitos no Homem (microcosmos), tem como percurso- ras (no Ambito da cultura ocidental) os trabalhos dos fil6sofos e pensado- res pré-socraticos. Nestes, destaca-se naturalmente o vulto de PitAgoras (€.570 - 500 a.C.), a quem se atribui a descoberta da express4o numérica dos intervalos da escala musical, definidos, ent, como relagdes pro- pporcionais que se encontram no Cosmos, na natureza e na alma dos homens bons #2. Nesta perspectiva, 3s harmonias (modos 13), constitufdas por telagSes intervalares proporcio- his as do cosmos, corresponderiam caracterfsticas comportamentais ass so pessondliaaae- expect Estes principios, desenvolvidos pelos Pitagéricos dos séculos seguintes, conizaram a célebre teoria do thos, baseada nas ideias de que: a midsica de uma nacSo expressa 0 cardcter do seu povo '4; os sons, decorrentes das vibragbes de cada planeta, influenciam 0 comporta- mento humano. Para Damon de ‘Atenas, mestre de mtisica ateniense do século V a.C,, que se dedicou as relagées entre a ética ea miisica, tanto era verdade que a boa miisica criava almas boas, como o inverso: *(..) deve terse cuidado com a mudanga para um novo género ‘musical, que pode por tudo em risco. que nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade, como Damon afirma e eu creio® (Platéo, A Repiblica, 424b-c). Tanto Platao como Aristételes “mostraram apreensio acerca dos efei- tos de determinados tipos de harmo- ‘nas, pelo que se detiveram de forma pormenorizada na anilise do tipo de -miisica ~modos, ritmos einstrumen- tos — que poderiam ser permitidos numa civilizacgo ideal, Em Repiibica, Platdo estabelece diferencas entre virios tipos de harmonias e seus efei- tos e define os tipos de miisica que deveriam ser permitidos numa civil zacao ideal. No volume V de A Pol tiea, Arist6teles associa estados anf- micos tais como dor ou embriaguez, ‘entre outros, aos diversos modos da rmifsica grega, ie. pressupondo que cada ritmo, cada som ou escala tetiam o seu éthos 18 respectivo, Em resume, atentando nos pres- supostos da teoria do éthos, i., na ideia que a miisica pode afectar 0 ‘cardcter e que 0s diferentes tipos de harmonia (modos) tém sobre ele efeitos diferentes, encontramos a cesséncia das ideias que preconizam a actual musicoterapia, facies beecicia atlcaped A relagéo da miisica com a medi- cina também é longinqua. Remonta, provavelmente, & civilizagdo egfpcia @ origem dos primeiros escritos sobre a ac¢ao da miisica no corpo hhumano: 03 papiros médicos desco- bertos pelo antropélogo inglés Flan- dres Petrie, em Kahum (1899), de c. 1500 a.C., mencionam a influéncia benéfica da mésica na fertilidade da mulher 16, Também sio referencias importantes as lendas da mitologia sgrega (¢ outros relatos) que enume- ram epis6dios sobre o poder calman- te e terapéutico da miisica: Homero afirma que Aquiles foi encontrado na sua tenda tocando ém uma magnifi- ca lira e expurgando a sua célera 17, Orfeu, que aprendeu a arte com 0 proprio Apolo, deus da mtisica e da ‘medicina, ao “tanger a sua lira melo- diosa, arrastava as arvores e conduzia ‘0s animais selvagens da floresta” 18, Empédocles (482-430a.C.) “era capaz de apaziguar paixdes (...) foi o que a um joven furioso, cantando vversos da Odisseia” *. Os Pitagori- os e os Coribantes usavam a mitsi- ca para expulsar os agentes causado- tes da doenca e restabelecer a har- | monia entre corpo e alma 20 ¢ Demécrito (c.460 - 370 a.C.) susten- tava que muitas doengas poderiam ser curadas através de sons melodio- sos de uma flauta 24. No primeiro século d.C. 0 médico ‘grego Asclepfades de Bitinia (c. 124 - =40 aC.) empregava a miisica para acalmar a excitagao dos alienados 22 € usava a trompete para curar a cié- tica. Esta tradicao perdurou até & era cristé'- e.g. Galeno (131 - 201 aC.), também médico, acreditava que a misica tinha 0 poder de combater a depressdo e os estados de tristeza 28. ‘No Antigo Testamento atribut- am-se a miisica poderes idénticos: “Todas as vezes que o espirito de | Deus 0 acometia, David tomava a lira e tocava; ent Saul se acalmava, sentia-se melhor e 0 mau espirito © deixava’ (Biblia de Jerusalém, Samuel 16, 28). Jana Idade Média, em De_Ins- titutione musica, Boécio (480 - 524), que também se ocupou da influén- cia da miisica sobre os estados vio- lentos, refere curas efectuadas por Pitdgoras, a um alcoblico, e por Em- pédocles,'a um louco, € como os pitag6ricos induziam o sono através de melodias doces 24. Na verdade, este tipo de relato encontra-se com abundancia a0 longo da histéria: Benenzon cita fontes medievais, tanto arabes como judias, ‘onde se narra com frequéncia como se cha- mavam os miisicos para aliviar as ores dos enfermos no hospital” 25. No século XV, 0 musicégrafo fla- mengo Tinctoris (1445 - 1511) afir- ‘maya que um dos objectivos da mi- sica seria 0 de curar as doencas 26 ‘Ainda nesta época, salienta-se 0 tra- balho de Marsflio Ficino (1433 - 99) que, de forma pioneira, preconizou a musicoterapia activa 20. prescrever que: “O homem melancélico execu- tard, ¢&s vezes inventard ele mesmo, os ares musicais (...) ele cantaré ¢ tangerd a lira’ 27. Nesta Optica, a miisica deixaria de ser uma medi- cacfo externa e passaria a fazer parte do processo terapeutico. Em 1584, 0 naturalista italiano Giambattista della Porta (1537 - 1615) escrevia, na sua obra Magiae natu- ralis 28, que 0 som advindo de ins- trumentos musicais feitos da mesma madeira de plantas medici- nais produzia os mesmos efeitos terapeuticos: “as plantas de madeira de dlamo, por exemplo, seriam efica- zes contra as dores de cidtica, as de ‘madeira de heléboro contra as enfer- midades nervosas, enquanto que os instrumentos feitos com fibra da planta de ricino provocariam efeitos urgativos” 28, Athanasius Kircher (€.1602 -1680), no século XVII, reco- mendava 0 uso terapéutico da miisi- a, depois de ter experimentado em si 0s seus efeitos. Na sua perspectiva: “The sound has an attractive proper- ty; it draves out disease, which streams cut to encounter the musical wave, and the two, blending together disappear in space” (Blavatsky, 1877: 215). Finalmente, no século XVIII, | em 1729, aparece o texto mais an- tigo (conhecido) sobre miisica e ‘Verto 2006 BIOSOFIA 47 medicina 30, de Richard Browne, Depois, ea partir de 1880, com o ad- vento da experimentacéo psicofisiolé- gica, ocorreu uma maior aproximaco. entre a neurologia ea psiquiatria, sur- gindo uma possibilidade de funda- menta, de forma cientifica, o uso te- rapéutico da_miisica com’ base nos efeitos neurofisiolégicos produzidos. O Século XX e a Emergéncia da Musicoterapia Nao obstante a atenco em torno dos efeitos curativos da misica, 0 advento da Musicoterapia é recente 3, E 86 no século XX que se institui como ciéncia e passa a ser considerada na sua realidade pluridisciplinar 32 ¢ pluridimensional, i., como discipli- na de cardcter cientifico, pressupon- do um corpo te6rico. préprio mas também assumidamente interrela- cionado com outras éreas, tais como a arte, a medicina, a psicologia e a reeducacao. “Como ciéncia, a musicoterapia é recente, tendo acelerado o seu desen- volvimento apés a 2° Guerra Mun- dial, em hospitais para reabilitagio dos feridos de guerra, nos Estados Unidos. Desde entio, @ pesquisa da relagdo som/ser humano, tanto na sua dindmica normal, como no seu uso terapéutico, tém crescido ano a ano” (APEMESP 33), Na primeira metade do. século XX, até cerca de 1945/50, dio-se pas- sos fundamentais nos campos da investigagdo experimental, ao desen- volverem-se estudos sobre diversas populacées, nomeadamente, esquizo- frénicos, adolescentes, idosos, bem 48 BIOSOPIA veto 2005 ‘como doentes com problemas cardio vasculares ou cancerigenos, entre ‘outros #4. A partir de 1950, so cria- das associagdes em. varios palses: a National Association for Music Therapy (1950), nos E.U.A., a Society for Music Therapy and Remedial Music (1958), actual British Society for Music Therapy, entre outras, que pressupdem a ctiagio de estatutos ¢ cédigos deon- tologicos. Em Portugal, a Associaco Porusguesa de Musicorerapia foi criada em 1996, ano em que a Comissao de Pritica Clinica da Federagio Mundial de Musicoterapia apresentou a se- guinte definicéo: “Musicoterapia € a utilizacéo da rsica e/ou dos seus elementos mu- sicais (som, ritmo, melodia e harmo- nia) por um musicoterapeuta quali- ficado, com um cliente ou um grupo, num processo planificado com o objectivo de facilitar e promover a ‘comunicacao, a relacio, a aprendiza- gem, a mobilidade, a expresséo, a Organizacdo e outros objectivos tera- péuticos ‘importantes, que vio a0 encontro das suas necessidades fisi- ‘as, emocionais, mentais, sociais ou cognitivas. A Musicoterapia tem por objectivo desenvolver potenciais e/ou testaurar fungdes do individuo, a fim de melhorar a sua organizacio intrapessoal e/ou interpessoal e, em consequéncia, adquirir uma melhor qualidade de’ vida, através de pre- vencio, reabilitacao ou tratamento” (Comisséo de Pratica Clinica da Fe- deragéo Mundial de Musicoterapia, 1996) Em Fortugal, a Musicoterapiaini- ciou o seu desenvolvimento na déca- da de 60, altura em que um grupo de educadores, psicélogos e- médicos comegaram a interessar-se pela utili- zacio terapéutica da musica e artes em geral. De entre este grupo, desta- ca-se Arquimedes Santos, 0 pioneiro do movimento portugués da *Edu- cago pela Arte". Igualmente rele- vante neste esforgo, que culminou no advento do Curso de Musicotera- pia da Madeira 35 (orientado pela Dr Jacqueline Verdeau-Paiillés) e na fundagéo da jé referida Associagdo Portuguesa de Musicoterapia, foi 0 contributo da Associagao Portuguesa de Educagao Musical (APEM), a que yomoveu o intercdmbio entre pro- sionais. portugueses ¢ intemnacio- nais, No cémputo internacional, e na perspectiva de Aldridge 36, as silti- mas décadas do século passado foram frutiferas, uma vez que @ ‘Musicoterapia passou a enquadrar 8 quantitativos © qualita vos, funcamentais, na sua perspect va, para uma aproximacao clinica desta natureza, que envolve os pos da ciéncia e da arte. Do mesmo modo, os métodos de investigacao utilizados para o estudo de caso também ecorem a metodologas de outras disciplinas, e.g. medicina, psi- cologiae sociologa, Assim, os proce. dimentos protocolares contemplam a andlise do exame clinico, da anam- nese, dos dados do inquérito social, da observacao directa, dos testes psi- col6gicos cléssicos e, s6 entao, 0 estudo da personalidade musical (idemidade Sonora (1S. 37)), que se infere através de testes proprios: (eg, 0 Bilan Psicomusical de Verdeaw- -Paillés). A aquisicao destas infor- macées permitird ao terapeuta deci- dirsobre a colocagéo (ou nao) de um Projecto musicoterapéutico e definir modalidades de aplicagéo das Técni- cas Psicomusicais (IP), termo que refere o conjunto de estratégias uti- lizadas em Musicoterapia, Técnicas Psicomusicais Entre as Técnicas Psicomusicais, ‘hé uma subdivisdo conceptual entre técnicas receptivas, activas, € associa- das ou mistas 38, Note-se, porém, que entre as técnicas receptivas e as técni- cas activas ndo hé uma divisio es- tanque, dado que, num processo de recepcao musical, hé actividade orgi- nica e psicoldgica implicita, assim ‘como, na producéo ou actividade musical, também hé, obviamente, receptividade sonora e/ou musical, ‘De modo geral, as Técnicas Fsico- musicais Receptivas (LPR.) permi- tem a estimulacéo da afectividade, © apaziguamento de angistias ¢ a ctiago de um espaco sonoro protec- tor. Tém interesse: a) de diagnéstico, através da aplicagio do Bilan Psico: musical, andlise das relagbes e posi- cionamento do sujeito com a misi- cae da sua Idemidade Sonora; b) terapéutico, através da escuta afecti- va, montagens terapéuticas, retrato musical, técnicas de activacéo, técni- cas projectivas, entre outras. A sua forma de aplicacdo é varidvel, ie, podem constituir-se em sess6es indi- Viduais ou de grupo, sob diversas formas, por exemplo: a) técnicas de

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