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Universidade Anhanguera - UNIDERP

Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Cursos de Especialização TeleVirtuais

Disciplina

Metodologia da Pesquisa Jurídica

AULA 2

A construção da pesquisa jurídica


Thiago Acca
Mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

O desenvolvimento de uma pesquisa jurídica depende muito do pesquisador. Não existe uma “receita de
bolo” a ser seguida por todos que permitirá transformar necessariamente uma série de textos (legislação,
doutrina e jurisprudência) em um bom trabalho. Como dizem Booth, Colomb e William “não existe fórmula
pronta para orientar todas as pesquisas: você terá de gastar algum tempo pesquisando e lendo, até
descobrir onde está e para onde vai” (A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 35).

Apesar dessa realidade, é importante que o pesquisador tenha em vista os tipos de trabalhos jurídicos,
independentemente do tema, que podem se propor a realizar. O texto de Christian Courtis nos oferece um
panorama das possibilidades que têm o pesquisador ao fazer um trabalho acadêmico.

Gostaria de destacar um desses tipos de trabalho aventados por Courtis: a análise de jurisprudência. Ainda
não é muito comum no Brasil, embora esse quadro esteja mudando [veja, por exemplo, SCABIN, Flávia;
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros,
2006], trabalhos que tenham como objeto de estudo a jurisprudência. Normalmente as decisões judiciais
são incorporadas nos trabalhos para ilustrar um ponto ou para fortalecer o argumento exposto no texto
pelo pesquisador. No entanto, é possível pesquisar a jurisprudência de modo mais sistemático.

Um exemplo de como isso pode ser praticamente feito encontra-se no artigo publicado pelo prof. José
Reinaldo de Lima Lopes denominado Os tribunais e os direitos sociais no Brasil – saúde e educação: um
estudo de caso revisitado [esse artigo foi publicado no seguinte livro: LOPES, José Reinaldo de Lima.
Direitos sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006]. Aqui o autor escolhe vários critérios para
delimitar sua pesquisa jurisprudencial como, por exemplo, limitar sua pesquisa ao Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo (TJSP) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como ao tipo de ação que lhe
parecia mais relevante, no caso, a ação civil pública. Determinados os critérios o autor encontrou alguns
acórdãos a serem analisados. A partir da leitura desse material o autor sistematizou os argumentos dos
desembargadores e ministros e apontou seus problemas.

O texto de Courtis pode parecer um pouco árduo inicialmente devido aos conceitos usados e a discussão
sobre o que é doutrina e quais são suas funções. No entanto, passado esse momento “nebuloso” o texto é
construído com o intuito de propor, de modo muito prático, sugestões de como os trabalhos jurídicos
podem ser desenvolvidos.
É importante deixar claro que os textos escolhidos para compor este material didático não são pontos de
chegada para o conhecimento. Um dos motivos pelos quais os textos foram escolhidos é justamente a sua
qualidade como um meio para propiciar o debate, e não para trazer verdades absolutas, sobre
ACCA
metodologia. Dessa forma, no transcorrer do texto, por meio de notas de rodapé, identificadas como ,
faço comentários para estabelecer um diálogo triangular entre alunos, os textos de Leitura Obrigatória e o
autor deste material didático.

Há também notas de rodapé explicativas que pretendem não só esclarecer alguns pontos do texto, como
também trazer mais informações para os alunos sobre determinado tópico.

LEITURA OBRIGATÓRIA 1

O JOGO DOS JURISTAS: ENSAIO DE CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA DOGMÁTICA


Christian Courtis

Professor de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UBA (Universidade de


Buenos Aires), professor de Direito Constitucional do Mestrado da Universidade de
Palermo. Coordenador do Programa de Clínicas Jurídicas de Interesse Público na
Argentina. Foi Diretor do Programa de Econômicos, Sociais e Culturais da Comissão
Internacional de Juristas em Genebra.

Tradução: Thiago Acca


Mestre em direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este artigo:

COURTIS, Christian. O jogo dos Juristas: ensaio de caracterização da pesquisa


dogmática. Disponível em: http://66.102.1.104/scholar?hl=pt-
BR&lr=&q=cache:nJl-
VyHPqPIJ:derecho.itam.mx/facultad/materiales/prof%2520asig/Jorge%2520
Azaola/seminario%2520de%2520invest%2520jur/courtis-dogmatica
.doc+christian+courtis+el+juego+de+los+juristas. Trad. Thiago Acca. Material
da 2ª aula da Disciplina Metodologia da Pesquisa Jurídica, ministrada nos
Cursos de Especialização TeleVirtuais da Universidade Anhanguera-UNIDERP
| REDE LFG.

A maior parte da investigação e das publicações produzidas no campo do direito corresponde à


chamada dogmática jurídica, doutrina ou “ciência do direito”. Essa disciplina – ou, em outras palavras, essa
perspectiva, aplicada sobre distintos objetos normativos, como as normas constitucionais, civis, penais,
administrativas, trabalhistas, internacionais, as decisões judiciais... – é a principal fonte de socialização dos
futuros juristas na linguagem do direito, e a principal fonte bibliográfica de consulta de vários operadores
da prática do direito – advogados, juízes, legisladores, administradores – para sustentar ou justificar suas
decisões. O texto abaixo é uma simples tentativa de caracterizar algumas das tarefas realizadas pela
dogmática jurídica. Essa caracterização permitirá – espero – visualizar com maior clareza os diferentes

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pontos de vista assumidos pelo dogmático frente a seu objeto de estudo e formular algumas sugestões
metodológicas para realização de trabalhos de pesquisa nesse campo.

1. A dogmática como disciplina intelectual

Em que consiste a tarefa dogmática do ponto de vista intelectual? Com quais outras atividades
intelectuais é comparável? Talvez uma primeira aproximação deveria ter a cautela de assinalar que sob o
rótulo “dogmática”, ou “dogmática jurídica”, os juristas fazem muitas coisas distintas que nem sempre
correspondem a um único modelo conceitual. Assim, sobre a base de uma mesma monografia, manual ou
tratado qualquer que seja o ramo do direito, pode-se encontrar genealogias históricas de normas,
pretensões de descrição sistemática de um conjunto normativo, comparações entre conjuntos normativos
vigentes e normas do passado ou normas estrangeiras, pretensões de solução de problemas interpretativos
e de aplicação, comentários de sentenças judiciais, críticas a um conjunto normativo e propostas de
modificação, entre muitas outras coisas. Abordarei algumas dessas distintas realizações em separado.

Em todo caso, creio que é possível assinalar alguma característica geral de todas estas distintas
tarefas: sua orientação fundamentalmente prática (ver Atienza, 1993a, 246). A dogmática se propõe a
estudar o ordenamento jurídico para conhecê-lo, transmitir esse conhecimento, operá-lo, otimizá-lo,
melhorá-lo. Essa orientação prática impõe, desde o início, algumas advertências sobre as tensões que
caracterizam o trabalho dogmático.

As diversas manifestações do objeto do trabalho dogmático – normas, decisões judiciais, projetos


de normas que se pretende introduzir no ordenamento jurídico – revestem a forma de enunciados
discursivos, cujo sentido não é óbvio, tampouco compreensível por meio de algum tipo de intuição inata a
todo intérprete. Por serem expressos em termos lingüísticos, e por se integrarem em um conjunto maior de
enunciados similares, a determinação do sentido desses enunciados se depara – ao menos – com os
seguintes problemas:

a) Problemas de indeterminação lingüística, tal como têm sido formulados pelo enfoque
analítico característico de Hart e Carrió, que nesse ponto resulta compatível com as idéias de Kelsen. Por
um lado, o fato de que as proposições jurídicas façam uso das linguagens naturais, valendo-se muito pouco
da redefinição técnica, faz com que as proposições jurídicas tragam todas as imperfeições dessas
linguagens: vagueza, ambigüidade, carga emotiva, textura aberta, etc. Por outro lado, o fato de que a
legislação empregue expressamente conceitos reguladores ou normativos – entre os que se incluem os
chamados “conceitos jurídicos indeterminados” – cujo alcance somente pode ser concretizado a partir de
valorações sociais: são exemplo as noções de “moral pública e bons costumes”, “bom pai de família”, “boa
fé”, “regras da arte ou da profissão”, etc.

b) Problemas de caráter lógico, como o da inconsistência, caráter incompleto e redundância


das normas, também alvo temático da corrente analítica;

c) Problemas relacionados com o fato – discutido extensamente a partir das abordagens de


Ronald Dworkin (1984, 72-83) e Robert Alexy – de que o ordenamento jurídico é composto, além de
normas ou regras em sentido estrito, por padrões tais como princípios e diretrizes, cuja função difere das
regras em sentido estrito. Como se sabe, caracteriza-se os princípios como mandamentos de otimização,
posto que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível (Alexy, 1993, 86). Princípios e
diretrizes também formam parte do direito positivo, e sua caracterização também como normas jurídicas
trazem problemas adicionais ao intérprete no que diz respeito à interpretação. Entre esses problemas

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poderíamos apontar o da coexistência de princípios ideologicamente distintos dentro de um mesmo setor
do ordenamento jurídicoACCA.

d) Problemas – relacionados com os mencionados no ponto anterior – de determinação dos


valores e dos fins de um conjunto normativo, necessários para estabelecer seu sentido e seu alcance (ver
Atienza y Ruiz Manero, 1996, 130-142; Aguiló Regla, 2000, 140-144). A identificação de valores e fins,
especialmente quando não são explícitos, não é uma operação mecânica nem óbvia, e se depara com
dificuldades tais como a existência de tensões entre distintos valores e fins simultaneamente consagrados
por um conjunto normativo, a necessidade de adotar algum modelo conceitual que permite raciocinar a
partir de valores e fins e a necessidade de ponderação ou estabelecimento do peso respectivo de valores e
fins em caso de conflito.

e) Problemas derivados da estrutura hierárquica e escalonada da ordem jurídica, já que a


aplicabilidade de uma norma a um caso está sujeita ao exame de sua compatibilidade formal e substancial
e, portanto, a identificação mesma da norma que rege o caso pode depender de sua comparação com a
norma de nível superior. Ainda que esse seja um tópico clássico na teoria do direito – basta recordarmos a
polêmica iniciada a partir da noção de “norma alternativa” proposta por Kelsen -, a importância desta
questão aumentou a partir da consolidação do constitucionalismo e da criação de mecanismos de controle
de constitucionalidade. Ferrajoli enfatizou duas formas de não cumprimento dos limites e vínculos que a
constituição impõe ao legislador: as antinomias, que consistem em violações a um limite formal ou
substancial na constituição – uma violação da constituição que o legislador não deve cometer -, e as
lacunas, que consistem no não cumprimento de uma ordem dirigida pela constituição ao legislador – isto é,
na omissão daquilo que o legislador está obrigado a fazer. No caso de muitos países da América Latina, essa
questão tem uma especial magnitude, dada a enorme ampliação dos limites e obrigações impostos ao
legislador a partir da constitucionalização de um número importante de pactos de direitos humanos e da
outorga supralegal a outros tratados e disposições. Na Europa o problema se manifestou principalmente
em relação à necessidade de harmonizar os ordenamentos jurídicos nacionais com as normas comunitárias.

f) Problemas que advém do fato – importantíssimo para o advogado, mas muitas vezes
colocado de lado pelos filósofos do direito – de que o conjunto de normas com que opera os intérpretes e
aplicadores do sistema jurídico não se limita ao sancionado pelos poderes com faculdade legislativa ou
regulamentar, mas que também está integrado pelas interpretações jurisprudenciais dessas regras – de
modo que o “conteúdo do direito positivo” está composto, para qualquer um que queira pesquisar a
regulação normativa de um caso, não apenas pela regra “crua” ditada pelo legislador, mas também pelo
conjunto de decisões judiciais que interpretam o alcance da regra. Nesse sentido, o “direito positivo”
também está formado por um conjunto nem sempre coerente de casos jurisprudenciais.

ACCA
Para a compreensão deste texto não é necessário conhecer o debate sobre a diferenciação das normas jurídicas
em dois grupos denominados princípios e regras. De qualquer forma gostaria de esclarecer minimamente esse
debate. Há três correntes teóricas distintas a respeito da discussão sobre princípios e regras. Uma primeira corrente
nega que haja dois grupos diferentes de normas jurídicas. Uma segunda corrente afirma que os princípios são mais
genéricos e relevantes do que as regras. Uma terceira corrente, mencionada por Courtis neste texto, sustenta que
princípios e regras possuem uma diferença qualitativa e não somente de grau. Nessa linha estão autores como Alexy e
Dworkin. Segundo Alexy “o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que algo
seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por
conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e
pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende das possibilidades fáticas, mas também das
possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as
regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer
exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo
que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção
qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio”. ALEXY, Robert. Teoria dos
direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90-91.
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Todos esses fatores, ademais, potencializam-se mutuamente. Por exemplo, as normas
constitucionais possuem problemas de indeterminação lingüística, ou de inconsistência, ou contém
conceitos jurídicos indeterminados: quando ela é comparada com uma norma inferior, os problemas de
indeterminação ou inconsistência podem afetar qualquer das duas normas. A combinação de diferentes
interpretações possíveis de cada norma pode redundar na postulação da existência ou inexistência de
antinomias, lacunas, etc. O mesmo ocorre com os princípios, que podem estar contidos na Constituição, ou
na legislação inferior e que também possuem problemas de indeterminação lingüística. Conjuntos
normativos de todos esses níveis de estrutura hierárquica do ordenamento jurídico podem consagrar
valores e fins que se encontram em tensão. E o mesmo ocorre com as sentenças judiciais. As combinações
desses problemas podem se multiplicar extensamente.

Quais são as conseqüências dessa série de problemas sobre o caráter da atividade dogmática?
Creio que a questão central pode ser apresentada como se segue: se a dogmática se limitar a uma tarefa
puramente teórica, descritiva ou cognoscitiva de seu objeto diante de quaisquer desses problemas – que
em última instância se devem ao caráter convencional e imperfeito do direito, potencializado por seu
caráter coletivo, não uniforme e temporalmente disperso de sua criação – seu papel deveria cingir-se a
identificar o problema em questão, sem oferecer critério algum para sua solução. Como se sabe, esse era o
modelo de ciência jurídica sustentado por Hans Kelsen, que em grande medida possuía uma epistemologia
construída a imagem e semelhança das ciências naturais. No entanto, semelhante modelo é inútil em
termos práticos: quando um operador do direito se vê diante de um problema interpretativo, não se
pretende que apenas aponte para a existência deste problema – isso, presumivelmente, já se notou – mas
se quer que o jurista ofereça critérios para resolvê-lo. A dogmática cumpriu historicamente essas duas
tarefas de forma conjunta: descrever o objeto do qual pretende dar conta e prescrever soluções para
superar problemas de interpretação e aplicação.

Desse duplo caráter se derivam algumas particularidades. Primeiro, as soluções propostas são
vistas como derivadas ou inferidas do conjunto normativo interpretado, contudo, por sua vez, essas
soluções agem sobre o objeto de conhecimento, ao fixar posição sobre as soluções interpretativas
consideradas adequadas e por fim descartar outras reconstruções alternativas. Muitos autores
caracterizam essa tarefa como “criadora” e apontam que têm o efeito de reformular o conjunto de normas
que são objeto de interpretação. Rigorosamente, essa tarefa de “configuração” do objeto de interpretação
não apenas se realiza quando se discute a solução de problemas interpretativos particulares: a descrição e
sistematização de um conjunto normativo são habitualmente filtradas pelo emprego de “teorias” e
“categorias” de origem dogmática.

Segundo, a seleção de soluções adequadas a problemas interpretativos – e, em última instância, a


“descrição” do que o dogmático considera direito positivo – levam necessariamente a opções valorativas: a
pretensão de neutralidade e o recurso a supostas garantias de objetividade – como a apelação ao modelo
do “legislador racional” – escondem habitualmente o ponto de vista político-axiológico do intérprete. A
dogmática contemporânea se caracterizou por um gradual reconhecimento do mundo axiológico a partir
do qual se realiza tanto a reconstrução do ordenamento normativo como a proposta de soluções
interpretativas em casos problemáticos. Ademais, a orientação político-axiológica do dogmático se
manifesta de forma clara quando realiza propostas de modificação do ordenamento jurídico. Nesses casos,
seja a proposta de modificar para reforçar a realização de valores presentes no ordenamento vigente, seja
a proposta que pretenda eliminar – e eventualmente substituir – normas vigentes por recusar os valores
que encarnam, é quase inevitável que o doutrinador torne aparente sua própria escala valorativa.

Tanto as diferentes percepções acerca da natureza dos problemas interpretativos como a


divergência axiológica fazem da dogmática um discurso polêmico. O conteúdo do direito positivo, mais que
um conjunto unívoco e estável de significados fixos, é o resultado de um processo incessante de atribuição
de sentido a normas e princípios, seleção de regras e compreensão desses sentidos para ajustar a regra ao
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caso, e uma multiplicidade de outras operações intelectuais nas quais desempenham fatores valorativos.
Diante de cada “problema”, diante de cada oportunidade que resulta necessário atribuir sentido a uma
regra para aplicá-la, podem se articular várias soluções alternativas, motivadas por distintas diretrizes
interpretativas. A tarefa fundamental da dogmática é a de antever esses problemas, estas instâncias nas
quais a atribuição de sentido resulte controvertida, e oferecer uma solução razoável, uma reconstrução
possível a partir de outras peças do quebra-cabeça que considere relevantes – normas de distintas
hierarquias, princípios, decisões jurisprudenciais anteriores. O procedimento argumentativo da dogmática
mais refinada auxilia, ademais, à reconstrução de alternativas e à discussão dos motivos que levam a
descartar essas alternativas e preferir a solução proposta. A própria noção de problema – que é a que
articula em geral a elaboração dogmática – supõe algum grau de indeterminação no conteúdo das normas,
ou bem o desejo de desafiar o significado que impôs uma comunidade dogmática ou uma decisão de
autoridade. As obras que se dedicam simplesmente a repetir as soluções já impostas na comunidade
dogmática ou na jurisprudência são em geral consideradas “manuais” ou “obras de divulgação”, porém
raramente possuem algum valor intelectual do ponto de vista do trabalho dogmático.

Como se pode ver, a reconstrução de um conjunto de normas do ordenamento jurídico, a


proposta de soluções para casos problemáticos e a sugestão de modificações normativas se elaboram
habitualmente contra alternativas possíveis – formuladas realmente por outro polemista ou imaginadas
pelo mesmo autor. No entanto, nem toda discussão dogmática se resolve automaticamente em uma
discussão sobre valores – e menos ainda sobre valores extranormativos. A discussão desenvolve-se no
plano axiológico somente quando o autor dogmático considera que não é possível tratar o problema na
esfera semântica, lógica ou sistemática, porque – abordada a questão a partir destes pontos de vista –
seguem sendo plausíveis várias reconstruções ou soluções alternativas. É possível descartar uma solução
por indicar um uso absurdo das palavras a interpretar ou por ser claramente contraditória com o
significado aceito de alguma norma relevante, ou incoerente com outras soluções aceitas, é pouco provável
que um jurista pretenda fundar sua refutação valendo-se da análise axiológica. Por outro lado, dada a
relativa plasticidade dos problemas jurídicos, não é raro que, enquanto um autor acha que solucionou uma
questão no plano lógico ou lingüístico, outro vê nessa mesma questão um problema valorativo. Os
argumentos considerados relevantes em um plano são minimizados em outro, e isto freqüentemente
resulta na sensação de um diálogo truncado. Isso se deve em grande medida aos complexos problemas de
indeterminação do conteúdo do direito positivo: dependendo da determinação da construção de seu ponto
de partida, dependendo se se considera uma premissa – a identificação e o significado das normas sobre as
quais se pretende trabalhar – como incontroversa ou passível de discussão, a determinação desses pontos
qualificarão a natureza do problema e oferecerá sua solução.

A discussão dogmática de maior riqueza se produz quando as soluções alternativas se confrontam


conscientemente no plano axiológico. No entanto, são realmente excepcionais os casos nos quais um
debate dogmático se resolve em uma discussão filosófica ou moral extrajurídica – por exemplo, a partir da
própria concepção filosófica ou política do autor. As discussões axiológicas mais comuns pretendem fundar
a qualidade de uma solução dogmática em sua maior consistência com valores normativos, isto é, por
valores consagrados (ou vistos como consagrados) pelo sistema jurídico. De qualquer forma, dada a
generalidade e indeterminação dos habituais “valores superiores” do sistema jurídico – justiça, igualdade,
dignidade, segurança – à medida que o plano da argumentação se faz mais abstrato, a interpretação do
sentido desses valores se aproxima bastante da expressão da visão política, moral ou filosófica de quem a
realiza. Existe, entretanto, um grande espaço para a argumentação axiológica a partir de valores
normativos com caráter mais vagoACCA – em geral, aqueles “princípios” que justificação a regulação de
alguma área do direito. As construções dogmáticas mais refinadas são aquelas capazes de mostrar que a
solução proposta para resolver um caso problemático provém da melhor reconstrução do sistema jurídico

ACCA
O autor refere-se aqui a normas como o art. 1º, III. Essa norma dispõe que a República Federativa do Brasil tem
como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Esta expressão proporciona diversos debates morais e
políticos sobre o que ela significa abrindo, assim, espaço para que argumentos axiológicos adentrem ao direito.
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fundada na interpretação dos valores consagrados pelo sistema. O jurista dogmático sugere soluções a
partir da geração de modelos teóricos compatíveis com uma interpretação possível dos valores do sistema.
Assim, os debates dogmáticos mais ricos são aqueles conscientes de que, por trás de uma discussão sobre
soluções alternativas para um caso problemático, existe uma discussão axiológico-política entre modos
distintos de entender quais são esses valores – e nos quais, por fim, argumenta-se nesse plano (ver Peña
González, 1993, 23-25).

Gostaria, para terminar essa caracterização introdutória, fazer outro comentário, dessa vez
relacionado com o que chamarei questões de escala. Sob a denominação de dogmática se abrigam peças
conceitualmente tão diversas como comentários a uma sentença judicial e tratados de um ramo inteiro do
direito. É possível englobar obras de aparência tão distinta sob uma mesma denominação? A diferença
entre os diversos tipos de construções intelectuais que se consideram típicas da disciplina dogmática – o
comentário de uma sentença ou conjunto de sentenças, a análise de uma lei recentemente sancionada, a
sistematização do material referido a uma instituição jurídica, ou ao tratamento jurídico de um tema
determinado, a elaboração de um esquema conceitual que abarque um ramo inteiro do direito – não está
dado pelo ponto de vista empregado, senão pelo alcance do objeto escolhido. Esse pode variar de uma
única norma, ou de sua aplicação a um suposto particular – é o caso do comentário de uma sentença
judicial – até a totalidade de um ramo do direito – é o caso dos clássicos tratados de direito civil, penal,
administrativo, etc. –, e inclui múltiplas possibilidades intermediárias. A escolha do alcance do objeto
corresponde a decisão convencional do investigador, e deverá ser funcional a seus propósito prático. Dessa
seleção se derivam algumas conseqüências ligadas, justamente, à noção de escala: quanto mais extenso
seja o conjunto normativo escolhido como objeto, maior será o grau de generalidade e menor o detalhe
com o qual pode ser tratado, ou maior deverá ser a extensão do trabalho se se pretende abordá-lo
minuciosamente – do mesmo modo que, de acordo com a escala dos mapas, se pode representar uma
maior superfície no mesmo espaço, a custo de um menor nível de detalhe, ou se se pretende manter um
certo grau de detalhe, é necessário aumentar o tamanho do mapa.

2. As distintas tarefas desempenhadas pela dogmática

O dito até aqui leva-nos a distinguir ao menos três tarefas desempenhadas pela dogmática, e uma
variante relativa ao tipo de enunciado que adota como objeto:

a) Uma tarefa expositiva, ordenadora, sistematizadora, dedicada a descrever um conjunto de


normas do direito positivo cujo conteúdo é apresentado com não problemático. Carlos Peña a caracteriza
como “uma função cognoscitiva de descrever o direito vigente, ordenando-o em termos mais econômicos e
simples que aqueles com que aparece em sua formulação original” (Peña González, 1993, 26). Uma das
funções que cumpre essa tarefa de sistematização é a de facilitar o estudo e a transmissão do
conhecimento do direito positivo – ou seja, uma função pedagógica ou heurística.

Convém recordar, no entanto, as questões de escala assinaladas antes: o trabalho de


sistematização pode se limitar a uma ou umas poucas normas, ou abarcar um conjunto normativo mais
extenso. Quando a tarefa de descrição e sistematização recai sobre um conjunto normativo relativamente
extenso, a descrição vai acompanhada habitualmente de um trabalho de classificação, reordenamento,
indução de “princípios”, elaboração de “categorias” e, nos casos de maior desenvolvimento teórico,
formulação das denominadas “teorias”. É interessante ressaltar que as obras que se limitam a mera
descrição ou glosa do conteúdo das normas selecionadas – é o caso, por exemplo, das leis ou códigos
comentados – são consideradas peças de menor valor intelectual: a dogmática parece avançar quando o
jurista leva adiante uma tarefa de avaliação e síntese, e oferece uma reconstrução que permite explicar a
estrutura e o sentido do conjunto normativo do qual pretende dar conta.

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A manifestação mais complexa dessa tarefa de sistematização proporciona as denominadas
“teorias” ou “teorias jurídicas”. Construções teóricas tais como as chamadas “teoria do delito”, “teoria
geral dos atos e fatos jurídicos”, “teoria da responsabilidade civil”, “teoria dos atos administrativos”, “teoria
geral das nulidades”, “teoria geral do processo”, etc., constituem modelos ou generalizações, guiadas pela
pretensão de ordenar, dar unidade e coerência e explicar o sentido de um conjunto normativo amplo,
referido a um tema ou problema comum. Essas “teorias” permitem transmitir o conhecimento do direito,
geram categorias e classificações para operá-lo e elaboram critérios interpretativos para superar problemas
de aplicação. Seu sucesso se traduz em sua influência tanto no plano das decisões judiciais quanto na
criação e modificações de normas de direito positivo.

b) Uma tarefa cuja orientação pretende ser descritiva, no sentido de postular como plausível
uma interpretação determinada do conteúdo do direito positivo, mas também tem um componente
prescritivo ou normativo, já que assinala razões para induzir o aplicador a preferir essa interpretação sobre
outras. Essa tarefa – também chamarei de lege lataACCA, para manter o termo tradicional – se caracteriza
por identificar problemas interpretativos no direito positivo vigente, e se propõe a construir soluções
adequadas que se pretendem racionalmente extraídas desse direito.

Se recordarmos o complexo quadro descrito no item anterior, cabe assinalar que os juristas
dogmáticos mais competentes esclarecem como realizaram sua reconstrução, que é uma entre outras, do
conteúdo do direito positivo, mostrando argumentos ou motivos que favoreçam sua reconstrução
particular frente a outras reconstruções rivais ou alternativas. Esse trabalho, longe de consistir em uma
tarefa de descrição mecânica, implica uma grande série de problemas, que inclui, entre outros: i)
problemas de determinação semântica do sentido dos termos das normas ou princípios que se pretendem
aplicáveis; ii) problemas de determinação teleológica e axiológica (por exemplo, a discussão acerca dos fins
das normas e dos valores que elas consagram); iii) problemas de compatibilidade sistemática (por exemplo,
a determinação dos alcances da coexistência de dois institutos que respondem a justificações opostas); iv)
problemas de reconstrução histórica (por exemplo, a determinação do sentido originário de uma norma ou
instituição); v) problemas lógicos (por exemplo, a solução de inconsistências normativas).

Uma das tarefas mais freqüentemente desenvolvidas pelos dogmáticos se vincula à necessidade
de propor soluções particulares para casos considerados problemáticos e, nesse sentido, a dogmática
pretende constituir-se em guia intelectual para o eventual aplicador do direito positivo –
paradigmaticamente, o juiz – para que ele tenha condições de solucionar determinado caso. Para tanto, o
jurista deve assumir como ponto de partida o direito positivo vigente – o que pretende é oferecer um guia
de solução de casos particulares a partir do conteúdo do direito positivo. Isso não significa que a
construção de hipóteses dogmáticas resulte unívoca, mecânica ou rotineira: ainda partindo da premissa da
aceitação do direito positivo vigente, as possibilidades de construção de soluções diversas – se se leva em
conta todos os problemas de indeterminação do conteúdo do direito positivo recordados no item anterior
– são muitas vezes exageradamente amplas.

c) Uma tarefa cuja orientação pretende ser crítico-prescritiva, e não descritiva. Nessa
hipótese, que denominaremos de lege ferendaACCA, o intérprete aceita que a solução que propõe para a
regulação ou decisão de um caso não pode ser derivada do direito positivo, e nesse sentido postula que a
melhor solução implica não a interpretação, mas sim a modificação do direito positivo vigente. Ao
desenvolver essa atividade o jurista deve reconhecer que a evidência semântica, lógica, teleológica,
histórica, etc., impede-o considerar que a solução que postula pode se derivar do conteúdo do direito
positivo vigente, e por isso ele o critica e defende sua alteração, a partir de uma solução proposta por ele
mesmo. Em geral, essa função é dirigida ao legislador, ainda que – como se explicará nos próximos

ACCA
Da lei criada, vigente, positiva.
ACCA
Da lei a ser criada.
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parágrafos – também possa ser dirigida aos juízes. O sentido dessa função é propor o abandono da regra
vigente e sua alteração por uma nova, ou o acréscimo de uma nova regra.

A inclusão dessa tarefa no campo da dogmática poderia ser passível de crítica, na medida em que
o próprio nome de “dogmática” está inspirado na noção de dogma. A origem do termo é a consideração do
direito positivo, o direito posto pelo legislador, como o equivalente a um dogma religioso, isto é, com um
ponto de partida não discutível – Niklas Luhmann (1983, 27) denomina essa particularidade, esse traço
“inegabilidade dos pontos de partida”. Na medida em que as propostas de lege ferenda consistem
justamente em dessacralizar o ponto de partida (o direito posto), colocá-lo em dúvida e propor sua
modificação, poderia se dizer que estaria fora da atividade dogmática, e que talvez seriam classificadas
mais adequadamente sob o tipo de estudo que Theodor Viehweg chama cético ou livre investigação
jurídica, ou o que Manuel Atienza denomina, mais propriamente, “ciência da legislação” ou “teoria da
legislação”.

Creio, contudo, haja boas razões para se manter o tipo de estudos dirigidos a defender propostas
de lege ferenda dentro do campo da dogmática. O primeiro é que no próprio campo da dogmática não
existe uma divisão fundamental de tarefas entre os que realizam um trabalho de sistematização ou
comentários de lege lata, e os que formulam propostas de lege ferenda. As propostas de lege ferenda se
incluem nas mesmas obras nas quais se desenvolvem o resto dos esforços da dogmática, sem que os
juristas sintam que estão realizando tarefas incompatíveis ou desconectadas entre si. O segundo, que
talvez logre explicar essa percepção por parte dos juristas de todos os ramos do direito, é que afirmar que
as propostas de lege ferenda não abandonam o ponto de vista interno, tampouco refutam a totalidade da
ordem jurídica. A formulação de propostas de mudança normativa supõe exatamente o contrário: a
aceitação global do ordenamento jurídico e – ainda mais – a aceitação dos mecanismos do direito para
regular a vida social. Quem formula propostas de lege ferenda pretende influir sobre o legislador, ou sobre
quem tenha poder de modificação das normas sob crítica. Essa crítica se dirige unicamente a uma norma
ou um conjunto de normas pontuais: o que se persegue é a melhora, a otimização global do ordenamento
jurídico. O pressuposto conceitual abraçado pelos juristas que realiza enunciados de lege ferenda é o da
possibilidade de aperfeiçoamento do ordenamento jurídico, e seu marco teórico não difere do de outras
tarefas desempenhadas pela dogmática.

d) Até aqui foquei a caracterização da dogmática em sua relação com as normas jurídicas.
Entretanto, a atividade dogmática não se limita ao “trato direto” com as normas jurídicas: parte de seu
trabalho consiste também na sistematização, comentário e crítica de sentenças judiciais. A distinção se
refere, portanto ao objeto de conhecimento ou elaboração, não à tarefa ou ponto de vista empregado.

Em relação a esse ponto, cabe afirmar que com respeito às sentenças judiciais, poderia se
reproduzir um esquema de análise similar ao proposto antes, já que os juristas abordam a análise
jurisprudencial por meio de diferentes pontos de vista.

Por um lado, podem cumprir uma tarefa eminentemente descritiva, de sistematização de


sentenças de um mesmo tribunal ou sobre uma mesma questão – no sentido basicamente similar a tarefa
de sistematização de normas, ainda que nesse caso adotando como objeto as decisões judiciais.

Uma segunda tarefa possível é a da determinação do alcance das sentenças para casos futuros:
essa tarefa pode denominar-se de sententia lata, e consiste em assumir com premissa a sentença analisada
e projetar suas conseqüências, em especial imaginando seu impacto sobre hipóteses distintas.

Uma terceira tarefa consiste na crítica das sentenças comentadas, dirigidas a provocar uma
modificação da linha jurisprudencial. Trata-se de recomendações dirigidas principalmente aos mesmos
juízes que adotarão uma decisão para que revoguem, em casos futuros, o critério adotado no caso
criticado: ou seja, de recomendações de sententia ferenda.

9
Por último, o comentário jurisprudencial pode constituir uma estratégia para demonstrar a
inadequação ou injustiça de uma norma. Nesses casos, o comentador não nega que a sentença analisada
seja uma aplicação justificada da norma vigente, mas destaca as conseqüências indesejáveis da aplicação
da norma, ilustradas a partir do conjunto de decisões adotado pelos juízes. De modo que o sentido do
comentário da sentença é sugerir uma modificação normativa: isto é, trata-se de um argumento para
sustentar uma recomendação de lege ferenda.

Também no caso de comentários jurisprudenciais é importante ter em consideração questões de


escala, relativas à extensão do objeto de análise escolhido: são freqüentes os trabalhos dogmáticos que se
centram no comentário de uma única sentença; outros trabalhos decidem comentar uma série de decisões
judiciais vinculadas tematicamente; alguns outros, dão conta da totalidade de decisões de um tribunal
sobre uma área ou problema determinado. O maior número de casos comentados em um mesmo trabalho
impõe que a análise seja mais detalhada, ou – se se pretende cultivar um certo nível de detalhe – maior
deve ser a extensão do produto acadêmico.

Resta dizer que mesmo distinguindo essas tarefas realizadas pela dogmática – sistematização,
proposta de soluções de lege lata, sugestões de lege ferenda, comentário de jurisprudência – o certo é que
é freqüente que todas elas apareçam combinadas, apareçam juntas nas importantes obras de doutrina.
Obras tais como tratados ou monografias que pretendem esgotar o referido material em relação a algum
instituto jurídico assumem muitas dessas tarefas simultaneamente: a partir do marco de sistematização do
conjunto normativo escolhido, identificam problemas interpretativos e oferecem soluções frente a esses
problemas; criticam o conteúdo das normas vigentes e propõem alterações normativas; descrevem e
comentam criticamente os casos judiciais relevantes decididos sobre a matéria em questão. Creio, no
entanto, que pode se afirmar que em toda obra dogmática há uma tarefa ou ponto de vista predominante,
que pode ser complementadas pelas demais abordagens. Essa afirmação me leva – voltado já a oferecer o
que poderia denominar-se parte propositiva desse trabalho – a sugerir, como ponto de partida de quem
encara uma tarefa de investigação dogmática no campo do direito, a definição que será o ponto de vista
predominante de seu trabalho. A falta de definição deste ponto de vista tem como conseqüência uma certa
confusão e perda de unidade conceitual do trabalho realizado: não são raras as monografias, trabalhos de
conclusão de curso ou teses jurídicas que mais parecem uma colagem, uma coleção de fragmentos cujo
único ponto em comum é se referir parcialmente ao mesmo tema.

No restante deste artigo me dedicarei a fazer algumas sugestões metodológicas vinculadas a cada
uma das tarefas dogmáticas que identifiquei nos parágrafos anteriores.

3. A pesquisa sistematizadora

Como disse antes, a orientação principal da tarefa de sistematização é descritiva. Essa tarefa não
se limita a mera síntese ou paráfrase das normas de direito positivo, mas sim se constrói
fundamentalmente por meio da elaboração de teorias, princípios, classificações ou distinções e categorias,
por meio das quais o doutrinador pretende dar conta do conteúdo e do sentido do conjunto normativo
analisado, proporciona um marco interpretativo a partir do qual deriva soluções para casos de
indeterminação e proporciona um esquema heurístico que permita a transmissão do conhecimento das
normas em questão. Não se trata de uma tarefa de repetição mecânica do conteúdo das normas que são
objeto de sistematização: a seleção de normas, a atribuição de sentido a essas normas, a proposta de
critérios classificatórios, a formulação de relações entre normas e conjuntos normativos e a indução de
princípios explicativos que dêem coerência ao conjunto escolhido são operações que levam a uma
atividade propositiva por parte do jurista.

A utilidade da tarefa de sistematização consiste em fazer compreensível um conjunto normativo,


a partir de um esforço de síntese de suas características fundamentais, de explicação de seu sentido e dos
10
princípios que o governam, e de análise das relações entre suas partes componentes, e entre o conjunto
examinado e outros conjuntos normativos relevantes. Daí a importância da dogmática para orientação
sistematizadora como ferramenta de ensino do direito. As obras de sistematização de conjuntos
normativos também cumprem um papel prático, relacionado com a aplicação do direito: oferecem um
marco conceitual que permite operar com normas jurídicas, facilitam ao advogado e ao juiz a compreensão
de setores do ordenamento jurídico com os quais não estão familiarizados, dão conta de novidades e
modificações legislativas, etc.

O ponto crucial da investigação sistematizadora é o da seleção do conjunto normativo sobre o


qual se pretende trabalhar. A seleção depende do interesse do pesquisador, e suporá um recorte
convencional do ordenamento jurídico. No entanto, por mais convencional que seja essa escolha, nem todo
o recorte do ordenamento jurídico oferece material plausível de sistematização útil ou relevante.
Selecionar as normas do ordenamento jurídico espanhol ou mexicano ou argentino cujo enunciado comece
pela letra “F” seria absurdo. Parte da habilidade do pesquisador diz respeito ao funcionamento do que se
poderia denominar – para usar uma expressão cara à teoria hermenêutica – mecanismo de “pré-
compreensão”: a capacidade de descobrir uma certa unidade de sentido em um conjunto normativo
determinado. Em muitos casos, essa unidade vem dada pela própria forma em que o legislador estruturou
um conjunto normativo: uma lei inteira, um capítulo ou um título de um código, um regulamento.
Entretanto, o panorama normativo que se enfrenta normalmente está longe de ser tão simples: é comum
que quem tenha que atribuir unidade a um conjunto de normas dispersas, ou reordenar normas localizadas
em diferentes setores do ordenamento jurídico, seja o próprio jurista dogmático. Fenômenos como o da
chamada “descodificação”, ou perda de racionalidade jurídico-formal do ordenamento jurídico, impõem ao
jurista uma tarefa de reconstrução unitária de peças normativas disseminadas, ou melhor – em sentido
inverso – ao isolamento de algumas normas selecionadas de um conjunto normativo maior. A dogmática
costuma denominar um conjunto normativo que possui certa unidade de sentido com “figura”, “instituto”
ou “instituição” (cf. Cossío, D., 2001, 355-356). Volto a chamar a atenção para que se leve em consideração
as questões de escala a que fiz menção anteriormente: o universo abarcado pode variar desde uma ou
algumas poucas normas (por exemplo, as normas que regulam a liberdade provisória), até um ramo inteiro
do direito (por exemplo, o direito processual penal completo). Umas poucas normas podem ser material
insuficiente para levar a cabo uma sistematização significativa; a intenção de abarcar uma grande parte do
ordenamento jurídico pode fazer que um trabalho seja excessivamente genérico ou trivial, ou ainda
interminável.

Selecionado o universo normativo sobre o qual se trabalhará, a primeira pergunta que


habitualmente o jurista se formula diz respeito aos fins desse fragmento de direito positivo e aos valores
que consagra – ou seja, uma certa explicação sobre o sentido desse conjunto normativo. Uma das formas
em que se responde a essa pergunta consiste em induzir – no caso de não estarem anunciados
expressamente – ou assinalar – em caso de estarem expressos – os princípios que o regem. Dado que os
conjuntos normativos se encontram relacionados a um conjunto maior de normas, outra das formas de
responder a pergunta acerca dos fins e valores é a de indicar quais são os princípios de hierarquia superior
que regulamenta ou especifica, ou quais são os princípios constitucionais ou infraconstitucionais que o
governam. Assim, por exemplo, se diz que as normas que disciplinam a responsabilidade civil são uma
manifestação específica do princípio alterum non laedereACCA, que proíbe causar dano aos demais e impõe a
obrigação de reparar plenamente o prejuízo. No direito argentino, por sua vez, o princípio se sustentou
constitucionalmente no denominado princípio de reserva que dispõe que ninguém pode ser obrigado a
fazer o que a lei não manda, nem privado do que ela não proíbe.

Uma vez determinados os valores e fins consagrados por um conjunto normativo, a tarefa de
sistematização costuma levar a cabo uma descrição dos componentes desse conjunto normativo. A partir
da unidade conceitual denominada “instituto” ou “instituição”, a dogmática efetua habitualmente uma

ACCA
Não prejudicar alguém.
11
classificação dos enunciados jurídicos do conjunto sob análise: atribui-lhes significado, identifica categorias
e definições, descreve o conteúdo deôntico de normas de regulação – proibições, obrigações, permissões –
dá conta da existência de normas de competência ou normas que conferem poderes, classifica esses
enunciados com base em distinções, etc. A tarefa dogmática pode se valer da análise formal ou estrutural
dos enunciados jurídicos, mas se caracteriza por se interessar principalmente pelo conteúdo desses
enunciados (Bobbio, 1990, 182).

Além de descrever isoladamente seus componentes, considerar um conjunto normativo como um


sistema parcial supõe estabelecer as relações mútuas entre esses distintos enunciados jurídicos: determinar
seu alcance e interferência mútua, detectar problemas lógicos, identificar as normas ou padrões chave na
estrutura desse conjunto. A indagação da relação mútua entre enunciados jurídicos auxilia, por exemplo, o
uso do esquema regra/exceções. Se a tarefa de sistematização pretende uma apresentação “em termos
mais econômicos e simples” do conjunto normativo escolhido, é necessário um certo esforço de
hierarquização da importância de seus componentes, capaz de distinguir suas características principais das
secundárias. Sem realizar operações de abstração, seleção e hierarquização, a sistematização se converte
em mera exposição ou repetição do conteúdo das normas postas pelo legislador: não haveria quase
nenhuma utilidade para tal exercício. Não é raro que um leitor medianamente informado tenha a sensação
de haver sido enganado quando olha com cuidado o texto de uma “lei comentada” e percebe que o único
esforço feito por quem se apresenta como autor foi o de repetir o conteúdo das disposições comentadas
com outras palavras.

Como meio de esclarecer as particularidades do conjunto normativo escolhido, a dogmática


costuma recorrer-se, ademais, ao recurso de relacionar esse conjunto normativo, ou alguns de seus
componentes, com os de outro conjunto normativo cujas semelhanças e diferenças permitam entender o
sentido da regulação estudada: se trata da comparação de institutos. Essa elaboração ocorre sobre dois
eixos: o destaque de semelhanças – de conteúdos, estruturas e funções comuns – e de contrastes entre o
conjunto normativo que é objeto de sistematização e aquele com o qual se compara. A relevância da
comparação proposta será em função de sua capacidade de facilitar a compreensão do sentido próprio do
conjunto normativo sistematizado, a partir das semelhanças e contrastes com o conjunto normativo
escolhido como meio de comparação. Assim, por exemplo, os processualistas costumam comparar a
caducidade com a prescrição, dado o pano de fundo comum de se levar em consideração os efeitos do
tempo sobre o processo; em matéria de processo penal, a dogmática compara a liberdade provisória, a
condenação de execução condicional e a liberdade condicional, por importar as três figuras em benefícios
vinculados com a liberdade frente ao exercício do poder penal do Estado, e condições para sua concessão e
manutenção; os constitucionalistas comparam direitos fundamentais e garantias institucionais, por ambos
estabelecerem mandados e proibições sobre os poderes políticos, etc.

Em síntese, um bom trabalho de sistematização deveria: a) selecionar um conjunto normativo


com certa unidade de sentido; b) determinar os fins e valores que consagra, por meio da indução de
princípios que captem seu sentido; c) identificar, descrever e hierarquizar os elementos que compõem esse
conjunto normativo; d) descrever as relações entre esses componentes; por fim, e) apontar semelhanças e
contrastes com outros conjuntos normativos relevantes.

4. A pesquisa de lege lata

A pesquisa destinada a oferecer soluções de lege lata tem com ponto de partida a identificação
de um problema de interpretação de uma ou várias normas do ordenamento jurídico vigente. Identificado
o problema interpretativo, esse tipo de investigação se dirige a esclarecer a natureza desse problema,
discutir alternativas interpretativas e oferecer a que – a juízo de quem realiza o trabalho de investigação –
constitui a melhor solução possível. Como disse antes, esse tipo de investigação reúne componentes
descritivos e prescritivos. A identificação de um problema de interpretação implica a descrição de uma
12
indeterminação do direito positivo – de um enunciado ou um caso contido no direito positivo suscetível de
ser interpretado em vários sentidos. A proposta interpretativa do autor também supõe um aspecto
descritivo: o autor deve demonstrar que a solução que propõe está contida ou pode derivar-se do
ordenamento positivo. No entanto, o característico dessa tarefa da dogmática é que não se circunscreve à
descrição das alternativas interpretativas possíveis no caso de indeterminação do direito, mas sim avança
um passo mais além, mediando a favor de uma solução que se considera melhor – mais justa, mais
adequada, mais razoável – que as alternativas rivais. Se o direito positivo é passível de múltiplas
reconstruções, os dogmáticos pretendem descrever uma interpretação derivável do direito positivo, mas
está claro que também prescrevem sua adoção – paradigmaticamente, pelo juiz que decide a aplicação da
norma controvertida a um caso concreto. Um modelo de dogmática puramente descritivo – tal como o que
Kelsen propunha: descrever as alternativas semânticas de interpretação sem interceder por nenhuma –
nunca existiu na história, isso porque não é possível a partir de tal noção kelseniana oferecer um guia para
a solução de casos concretos (Helin, 1997, 200).

Essas características proporcionam à pesquisa dogmática de lege lata uma certa estrutura. O
primeiro passo é a formulação do problema interpretativo: há pouco interesse em relação a uma pesquisa
que verse sobre um caso incontroverso. Cito vários problemas interpretativos que foram formulados
recentemente tanto no direito mexicano quanto no argentino: Pode o presidente mexicano vetar o ato de
aprovação do orçamento aprovado pela Câmara dos Deputados? Podem as pessoas jurídicas formular
pedidos com base na idéia de dano moral? Pode a Corte Suprema argentina ordenar a uma província
ajustar suas leis y a organização de seu sistema penitenciário a padrões mínimos fixados pela Constituição,
pelas normas internacionais de direitos humanos e as leis federais? É constitucionalmente obrigatória, ou
apenas permitida, a tipificação penal do aborto no direito argentino?

Um segundo passo possível, que permite esclarecer o tipo de dificuldade interpretativa


formulada, relaciona-se com a necessidade de discutir a natureza da indeterminação em questão. Onde se
encontra tal indeterminação? Trata-se de um problema lógico? Trata-se de um problema relacionado com
a estrutura escalonada do ordenamento jurídico – por exemplo, um problema de inconstitucionalidade, ou
de antinomia entre uma norma legal e uma de regulamentação? Trata-se de um problema de conflito de
princípios aplicáveis ao caso?

Um terceiro passo consiste na apresentação das alternativas de solução do caso controvertido. Se


o problema é suscetível de várias respostas, o pesquisador pode fazer uma apresentação do leque de
respostas possíveis – ou ao menos das mais relevantes. Não é raro que a iniciativa de encarar uma
investigação de lege lata se deva ao desacordo com uma solução interpretativa já construída por outro
jurista: nesse caso, a apresentação da alternativa que o investigador criticará costuma ser a transcrição
dessa opinião alheia. Os dogmáticos costumam denominar – com um certo exagero – “teorias” as distintas
posições sobre um problema interpretativo, ou a articulação das razões que justificam adotar uma posição
ante um problema interpretativo. Assim, é comum encontrar que a exposição da várias soluções
interpretativas em jogo sejam apresentadas como a “teoria ampla”, a “teoria restrita”, a “teoria
intermediária” ou a “teoria eclética”. Isso significa que sobre o problema interpretativo houve posições
dogmáticas divergentes e relativamente articuladas. As discussões interpretativas que grande parte da
dogmática se dedica com prazer, ocorrem justamente a partir da afirmação por parte dos debatedores de
que a solução que cada um propõe surge da interpretação do direito positivo.

O quarto e último passo desse tipo de pesquisa deve se centrar na demonstração de por que a
alternativa que se propõe é melhor que qualquer outra alternativa. Como disse antes, o discurso dogmático
é um discurso polêmico: constrói-se contra outras alternativas interpretativas possíveis. A tarefa que o
dogmático enfrenta é a de oferecer uma solução ao problema tratado a partir do que entende que seja a
melhor reconstrução possível permitida para o material jurídico que contém a disposição. Dada a variedade
de problemas normativos (indeterminação lingüística, lacuna, contradição normativa, ambigüidade
axiológica), os métodos por meio dos quais se leva a cabo a tarefa de reconstrução são também variados.

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Um movimento inicial comum nessa etapa é a demonstração de que a solução proposta não se opõe ao
significado aceito das normas que se consideram relevantes, ou ao menos a alguns de seus possíveis
significados. Ir mais além significa dar razões que fundamentem a vinculação da solução proposta com o
direito positivo cuja vigência se toma com premissa – razões lógicas, lingüísticas, sistemáticas, históricas,
teleológicas, axiológicas. Avançar mais ainda supõe oferecer razões que justifiquem porque a solução
proposta é melhor do que as outras soluções rivais. Em síntese, demonstrar que a solução proposta pode
derivar do direito positivo que se adota como premissa, e que é melhor que outras.

5. A pesquisa de lege ferenda

Sob esse rótulo considero as pesquisas dedicadas à proposta de reformas ou modificações do


direito positivo. A motivação desse tipo de pesquisa é a insatisfação do jurista com uma regulação vigente
no direito positivo – ou com a ausência de regulação de um determinado caso. A pesquisa de lege ferenda
volta-se para fazer a crítica da solução normativa vigente e a defender sua alteração, emenda ou
complementação por outra norma ainda não vigente, proposta pelo pesquisador. A proposta de solução
está destinada, paradigmaticamente, a convencer que há necessidade de sua adoção pelo legislador, ou a
autoridade que tenha poder de modificar ou complementar a norma criticada. Quanto ao caráter dos
enunciados desse tipo de pesquisa, a parte crítica pode conter enunciados descritivos – por exemplo, a
descrição de problemas lingüísticos ou lógicos da norma cuja alteração se pretenda, ou de dados empíricos
que demonstrem sua ineficácia ou o registro de efeitos inesperados de sua aplicação – e enunciados
valorativos – tipicamente, a crítica de uma norma por considerá-la injusta ou inaceitável com relação a
certos valores. A parte propositiva expressa as valorações próprias do jurista e tem caráter prescritivo.

De modo que nesse tipo de pesquisa mostra-se relevante: primeiro, a identificação do universo
normativo que se pretende criticar e cuja modificação se defende. Novamente, é necessário levar em conta
aqui razões de escala: a seleção de um universo normativo muito extenso – o Código Civil inteiro, por
exemplo – dará provavelmente como resultado críticas excessivamente genéricas e propostas de
modificação normativa vagas e pouco úteis. Inversamente, a seleção de um universo normativo muito
restrito – uma oração redigida de modo equivocado em um artigo de lei, por exemplo – pode levar a
propostas triviais ou de pouco interesse teórico e prático.

Segundo, a crítica das normas questionadas. As razões que justificam a crítica de uma norma são
variadas e podem responder – como disse antes – a diversos tipos de racionalidade. Assim, por exemplo, a
crítica que um jurista formula às normas vigentes pode estar relacionada com problemas de racionalidade
comunicativa ou lingüística – obscuridade, vagueza, etc - ; a problemas de racionalidade pragmática – sua
incapacidade de motivar a conduta dos destinatários - ; a problemas de racionalidade teleológica – o não
cumprimento dos fins a que se propunha alcançar - ; a problemas de racionalidade ética – sua
incompatibilidade com certos valores normativos ou extra-normativos, ou a uma combinação deles.

Exemplifico com um tema debatido faz alguns anos no México, que é o da necessidade de
modificar a Lei de AmparoACCA. Entre as críticas apontadas encontram-se: o caráter excessivamente restrito
da ação de amparo em matéria de legitimação ativa (exige-se que haja um direito subjetivo em jogo) e
passiva (somente contra atos de autoridades públicas), de efeitos (somente cabe a ação quando o remédio
exigido seja de caráter individual); e o caráter excessivamente amplo que adquiriu seu objeto (por via da
alegação de que deve estar em jogo a segurança jurídica e a efetividade da tutela judicial, são tratadas
como questões constitucionais problemas de fatos, prova e interpretação da lei local). Isso levou, por um
lado, a deixar sem tutela judicial direitos e bens constitucionalmente protegidos (como os direitos sociais,

ACCA
O juízo de amparo no México é o equivalente ao mandado de segurança no Brasil. Os meios de proteção judicial
dos direitos fundamentais contra o Poder Executivo no México são limitados. Há muitos requisitos para que o
Judiciário dê seguimento ao juízo de amparo o que, como conseqüência, dificulta a sua eficiência.
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direito ambiental e outras formas de lesão coletiva a direitos); e por outro, a uma sobrecarga excessiva da
jurisdição federal, onde se solucionam os pleitos ordinários da jurisdição local, com grande gasto de tempo
e recursos, e mediante uma complicação desnecessária dos processos. Parece, então, que a crítica à Lei de
Amparo vigente evidencia defeitos de racionalidade técnico-jurídica (já que gera disfunções entre o direito
local e o direito federal, e é refratária à proteção de certos direitos e bens) e defeitos de racionalidade
teleológica (na medida em que não atinge adequadamente a finalidade de tutelar direitos e bens de
hierarquia constitucional).

Terceiro, a formulação da proposta normativa cuja introdução se defende. As alternativas são


várias: entre outras variantes, pode se tratar de uma proposta de derrogação; da substituição completa da
norma criticada por outra; da introdução de uma ou várias modificações na norma criticada; ou da
proposta de introdução de uma norma nova que complemente a anterior – é o caso das propostas de
normas destinadas a suprir lacunas ou a regulamentar uma norma que precise ser especificada para efeitos
de sua aplicação ou implementação. Desse outro ponto de vista – o do grau de especificação da norma
projetada – a proposta pode consistir na formulação detalhada do texto normativo que se defende – caso
em que a pesquisa de lege ferenda costuma incluir um anexo com a redação de um anteprojeto – ou, de
modo mais genérico, com o simples apontamento das bases ou lineamentos sugeridos para uma futura
regulamentação.

6. A pesquisa jurisprudencial

Como já havia dito, a diferença que traço entre os três tipos de pesquisa a que me referi antes, e a
pesquisa sobre jurisprudência, consiste em que enquanto nos casos anteriores o objeto de pesquisa eram
normas jurídicas criadas pelo legislador, nesse caso o objeto de pesquisa são sentenças judiciais. Assumida
essa distinção, volto a dizer que as três orientações de pesquisa sobre normas jurídicas que analisei até
agora – sistematização, sugestão de interpretação a partir das normas vigentes, sugestão de modificação
das normas vigentes - podem também se aplicar ao caso da pesquisa que escolha das sentenças judiciais
como objeto. As sugestões feitas para os três tipos de investigação analisados antes valem também, com as
particularidades do caso, para a pesquisa sobre jurisprudência. Para evitar estender-me muito, tratarei
essas distintas orientações aplicadas às sentenças judiciais em uma só parte.

Qualquer que seja a orientação que se pretenda dar, a pesquisa jurisprudencial deve partir de
escolher a decisão ou o conjunto de decisões judiciais que se pretende analisar. Determinar a relevância da
sentença ou do conjunto de sentenças escolhidas é responsabilidade de quem propõe a pesquisa. Os
critérios para decidir o conjunto de sentença a analisar são vários: típicos exemplos desses critérios são a
unidade temática (“Novidades jurisprudenciais em matéria trabalhista”), a aplicação ou interpretação nas
sentenças escolhidas de uma mesma norma ou instituição ou de normas ou instituições relacionadas (o
direito à saúde perante os tribunais), o recorte temporal (“a jurisprudência da Suprema Corte 2002-2003),
ou o caráter recente das normas aplicadas pelas sentenças, ou o fato de que se trate de suas primeiras
aplicações (“Primeiras aplicações jurisprudenciais da nova lei de falências”...), o tipo de argumento ou
raciocínio utilizado (“A analogia nas sentenças do Tribunal de Cassação), etc. Também aqui cabe recordar a
importância das questões de escala: a pesquisa sobre jurisprudência pode variar desde uma única sentença
analisada até o levantamento de toda a jurisprudência produzida sobre uma norma, sobre alguma matéria
por um tribunal, ou em um lapso de tempo determinado. Se há pouco interesse sobre a sentença
escolhida, é possível que se trata de material insuficiente para produzir uma pesquisa que valha a pena. Se
se escolhe como objeto de pesquisa um número exagerado de sentenças, é possível que a análise de cada
uma seja muito superficial ou que a extensão do trabalho o torne impraticável.

Cabe, no entanto, assinalar algumas diferenças em relação à pesquisa sobre normas, que
projetam algum critério para escolher a sentença ou o conjunto de sentenças sobre as quais se pretenda
trabalhar. Várias dessas diferenças são conseqüência de que uma mesma norma é suscetível de aplicações
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potencialmente infinitas e de que os tribunais têm competência para aplicar uma grande quantidade de
normas. De modo que, embora a pesquisa sobre normas se caracterize por uma certa unidade sistemática,
que provém do recorte unitário que faz o dogmático de um conjunto normativo, a pesquisa sobre as
sentenças – em especial quando se analisa um grande número delas – tende à dispersão, já que a seleção
do conjunto de sentenças está determinado pela particularidade das diversas circunstâncias fáticas sobre
as quais as normas foram aplicadas ou pelas aplicações de diversos tipos de normas por parte dos tribunais.
A análise de sentenças é, valendo-me de uma noção gráfica, uma análise de fragmentos. Vejamos, então,
alguns critérios que sejam necessário ter em conta para que a seleção de sentenças a analisar apresente
alguma utilidade.

Primeiro, as sentenças constituem aplicações de normas que contém um caso genérico a casos
individuais. Decidida a aplicação de uma norma a um caso individual – ou, dito de outra maneira, decidido
que o caso individual se subsume no caso genérico contido na norma – a mesma norma se aplicará a todos
os casos individuais que compartilhem das mesmas características ou propriedades relevantes do caso já
decidido – a chamada ratio decidendi será a mesma em todos esses casos. Essa idéia dá uma pauta de que
tipo de casos apresentam algum interesse para a descrição ou sistematização: se trata daqueles casos que a
subsunção do caso individual ao caso genérico apresente alguma novidade ou particularidade. Os casos que
articulam pela primeira vez uma ratio decidendi, ou introduzem alguma novidade relevante na subsunção
de um caso individual em um caso genérico, costumam denominar-se leading case (“caso pioneiro” ou
“caso guia”). Sistematizar casos que contenham a mesma ratio decidendi, e que somente se diferenciam
pela presença de características ou propriedades irrelevantes (como o nome das partes ou o lugar dos
fatos, etc) tem muito pouco interesse teórico ou prático.

Segundo, dada a potencial heterogeneidade das sentenças que prolata um tribunal convém deixar
explícito o critério de seleção utilizado. O caráter fragmentário das situações de fato provenientes da
mesma norma ou das aplicações de distintas normas pelos mesmos tribunais requer do pesquisador algum
esforço de fundamentação desse critério de seleção, cuja pretensão é a de fornecer ao conjunto mais ou
menos variado de situações de fato e de normas aplicadas algum tipo de unidade. Do contrário, corre-se o
risco de analisar conjuntamente peras e bananas.

Escolhida a sentença ou o conjunto de sentenças sobre as quais se trabalhará, minha sugestão é a


de definir a orientação que se quer dar ao trabalho de pesquisa. A pergunta é: qual é a intenção
predominante para a análise dessas decisões judiciais? Dentro do que já disse, parece-me que as respostas
mais importantes a essa pergunta são as seguintes: a) descrevê-las e sistematizá-las; b) extrair delas
algumas conseqüências que sirvam para predizer decisões judiciais futuras; c) criticar as soluções adotadas
e sugerir a interpretação que deveriam ter adotado os juízes e que deveriam adotar em casos semelhantes
no futuro; d) sugerir que, dados seus resultados, a norma aplicada deveria ser alterada. Certamente, como
já havia dito, é possível que um trabalho de pesquisa sobre a jurisprudência faça tudo isso
simultaneamente. Minha sugestão, entretanto, para que o trabalho tenha um foco claro é escolher a
resposta que tenha maior peso a fim de delimitar e ordenar o sentido da pesquisa. Comentarei brevemente
a estrutura dos trabalhos a que cada uma dessas respostas daria origem.

A primeira resposta guiará um trabalho de descrição e sistematização da ou das decisões judiciais


escolhidas como objeto de pesquisa. Trata-se do equivalente, em matéria de pesquisa jurisprudencial, da
sistematização das normas jurídicas. O propósito que guia esse tipo de pesquisa é o de informar ao leitor
acerca dos precedentes judiciais relevantes gerados em relação ao critério de seleção escolhido: critérios
típicos a esse respeito são uma área temática determinada, uma mesma norma, direito ou “instituição”
jurídica, um mesmo tribunal ou foro, ou uma combinação deles. Além de uma utilidade pedagógica, esse
tipo de trabalho cumpre com uma importante função prática: oferecer ao advogado litigante, ao promotor
de justiça ou aos próprios juízes um panorama dos novos precedentes jurisprudenciais produzidos pelos
tribunais, para assim levá-los em consideração como guia para o exercício da própria prática jurídica. Creio
também que esse tipo de trabalho cumpre um papel útil ao selecionar e expor os critérios de decisão dos
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tribunais, cujo conhecimento e difusão são praticamente a única forma de fiscalização cidadã da atividade
dos juízes.

Sem prejuízo fazer referência aqui, com as devidas adaptações, às sugestões feitas em matéria de
sistematização de normas, gostaria de acrescentar uma observação em relação a essa orientação descritiva
quando se trata de sentenças. Dar conta cabalmente de uma sentença supõe, ao menos: a) descrever
sucintamente a situação de fato que foi dada como provada; b) descrever a norma ou as normas
consideradas aplicáveis a esses fatos e a interpretação que a elas deu o tribunal; c) descrever os
argumentos dados para justificar essa interpretação; d) descrever a resolução adotada. Esse esquema
básico pode ser completado com informação e análise suplementar: maior informação sobre os fatos,
dados sobre as partes, tipo de ação, argumentos das partes, prova oferecida e produzida, evolução
processual do caso, eficácia da sentença, etc. Minha sugestão é que, adotado um esquema de análise de
sentenças, o mesmo se aplique consistentemente ao conjunto de decisões judiciais selecionadas.

Como já disse antes, é fato que os tribunais nem sempre decidem coerentemente: parte da tarefa
prescritiva consiste em assinalar a existência de contradições entre critérios decisórios, ou bem destacar as
distinções feitas pelos juízes para decidir de maneira diversa em casos aparentemente semelhantes.

A segunda resposta dá lugar a um tipo de trabalho sobre sentenças que denomino orientação de
sententia lata. A formulação de enunciados de sententia lata parte da descrição de uma ou mais sentenças
– e, nesse sentido, está vinculada com a sistematização de sentenças, com a qual geralmente se interliga.
No entanto, como no caso da pesquisa de lege lata, a pesquisa de sententia lata identifica problemas
interpretativos na ou nas sentenças analisadas, e se propõe a esclarecer seu sentido e projetar suas
conseqüências para casos futuros, de modo que sirva como guia a aplicadores, advogados e juízes. Nesse
sentido, ao passo que a sistematização se limita a dar conta ou informar acerca das decisões comentadas, a
pesquisa de sententia lata costuma discutir mais detalhadamente o conteúdo da ou das sentenças sob
análise, na medida em que se detectou nelas um problema de interpretação ou se vislumbram
conseqüências relevantes para os casos futuros.

De modo que o que caracteriza essa orientação é a identificação de problemas interpretativos


sobre uma ou várias decisões judiciais e a tarefa de determinação de suas conseqüências para novas
hipóteses. Se na pesquisa de lege lata o ponto de partida é o fato dado da norma posta pelo legislador, aqui
o ponto de partida é o fato dado da decisão judicial analisada. As questões em debate são seu significado e
suas conseqüências. Para isso, como no caso da pesquisa de lege lata, é necessário descrever o problema
interpretativo relevante, assinalar algumas interpretações rivais possíveis e interceder por uma dessas
interpretações, justificando essa determinação.

O mesmo pode se dizer do apontamento de conseqüências da decisão analisada para casos


futuros: parte-se da sentença, esclarece-se o critério decisório e formulam-se hipóteses de aplicação desse
critério decisório a novos casos, advertindo sobre suas possíveis derivações para a aplicação de outras
normas ou frente a circunstâncias relacionadas.

Quando se analisam várias decisões contraditórias ou aparentemente contraditórias, a pesquisa


de sententia lata não se esgota no mero apontamento do conflito: sua tarefa é a de oferecer critérios que
permitam superá-lo ou privilegiar uma linha de interpretação em relação a outra.

A terceira resposta gera o que chama investigação de sententia ferenda. Diferentementedo caso
anterior, no qual se parte da aceitação da sentença, nesse caso o que ocorre é que o jurista não aceita que
a sentença seja uma derivação justificada do direito aplicável, isto é, considera que a decisão judicial foi
equivocada e que deve ser corrigida nos casos futuros – ou seja, não se “adere” à solução judicial. Nesse
sentido, existe um certo paralelo com a orientação de lege ferenda da pesquisa sobre normas: em ambos
os casos o dogmático deve aceitar o fato de que uma autoridade com poder normativo – o legislador em
17
um caso, o juiz em outro – colocou um dado com significado jurídico no mundo – uma norma, uma
sentença – mas, pelas razões que se dedicará a explicar em seu trabalho, considera que o sentido desses
dados são equivocados, e recomenda à autoridade com poder normativo que corrija esse erro e adote a
solução que ele, o pesquisador, propõe.

Nesse caso, o jurista discorre contra a decisão judicial comentada: parte da acepção do direito
vigente como critério para solucionar a situação examinada na sentença, mas critica a seleção de normas, a
interpretação, o enquadramento dos fatos ou as razões do tribunal. Esse tipo de pesquisa adota, então, a
forma de uma polêmica contra a ou as sentenças comentadas. Seu produto é uma recomendação dirigida a
futuros aplicadores do direito em situações similares, para que revertam o estabelecido na sentença
criticada e adotem a sugestão interpretativa feita pelo crítico.

Aqui, os passos a se levar em consideração são os seguintes. Primeiro, a descrição da sentença ou


do ponto da sentença que se pretende discutir. Segundo, a crítica à decisão apontando quais foram os
erros de apreciação que cometeu: se selecionou mal as normas aplicáveis ao caso, se interpretou
equivocadamente a norma aplicável, se subsumiu equivocadamente o caso individual ao caso genérico da
norma aplicável, se a motivação da decisão é equivocada, etc. Por último, a formulação e defesa da solução
alternativa proposta pelo jurista, destinada a motivar os juízes em casos futuros.

A última resposta se traduz em trabalhos de orientação de lege ferenda. Aqui, a análise de uma ou
várias sentenças judiciais é usada como argumento para demonstrar a necessidade de introduzir uma
modificação no direito vigente. A diferença em relação à hipótese anterior é que nesta o jurista não discute
que a solução judicial seja uma derivação acertada do direito vigente ao caso, pelo contrário, aceita que a
sentença constitui uma aplicação justificada das normas que governam o caso. No entanto, o que o
dogmático não aceita nesse caso é a justiça ou adequação do resultado dessa aplicação, a partir de
parâmetros valorativos que assume como padrões de comparação. Trata-se de um exemplo de raciocínio
de estrutura silogística: a) da norma A se deriva o resultado X; b) X é injusto ou inadequado; c) A é injusta
ou inadequada. A derivação prática do silogismo é que, seja para evitar resultados como X, seja pela sua
própria injustiça ou inadequação, A deve ser modificada. Por isso, esse tipo de orientação funciona como
base de uma proposta de lege ferenda, no sentido já analisado no item anterior.

Os passos que deveria conter uma pesquisa desse tipo são os seguintes. Primeiro, a descrição da
solução judicial sob análise, como exemplo de aplicação da norma que se pretende criticar.

Segundo – dado que o propósito último do trabalho é o de colocar em evidência a injustiça da


norma aplicada – a descrição da norma utilizada para resolver o caso.

Terceiro, a crítica da solução judicial a partir de parâmetros de valoração propostos por quem leva
a cabo a crítica. Como disse antes, seguindo Manuel Atienza, dadas as diferentes concepções de
racionalidade aplicáveis a uma norma – e, nesse caso, a uma solução judicial derivada da norma – esses
parâmetros podem ser diversos: a inadequação comunicativa ou lingüística (um exemplo disso é a
indeterminação do conteúdo da norma, que leva praticamente a concretizá-lo ex post facto, em detrimento
dos valores de previsibilidade e segurança jurídica), a inadequação sistemática ou técnico-jurídica (que leva
os juízes a soluções incompatíveis com o equilíbrio de um determinado sistema normativo), a inadequação
pragmática (por exemplo, quando os juízes impõem sanções nos casos em que as normas determinam
obrigações irrazoáveis aos seus destinatários), a inadequação teleológica (ou seja, quando as
conseqüências da aplicação da norma são contrários a seus fins declarados) ou sua injustiça ou
inadequação ética ou axiológica (ou seja, quando a solução judicial afeta ou lesa os valores normativos ou
extra-normativos). A crítica da solução judicial funciona, então, como crítica da norma da qual deriva a
sentença como um exemplo particular.

Por último, como as recomendações de lege ferenda estão destinadas a propor a derrogação,
modificação ou substituição da norma criticada, o trabalho pode concluir sugerindo a alteração normativa,
18
sustentando que ao adotar-se essa alteração já não mais ocorrerão sentenças indesejáveis como a
analisada.

[...]

7. Considerações finais

Para concluir esse trabalho, bastaria enfatizar algumas das sugestões mais importantes que fiz.

Uma boa pesquisa dogmática requer uma definição clara do objeto sobre o qual se pretende
trabalhar – normas, decisões judiciais – e sobre a questão que guiará o trabalho sobre esse objeto –
necessidade de sistematização, problema de interpretação, necessidade de alteração da legislação ou da
jurisprudência.

Definidos o objeto e a orientação do trabalho, é necessário decidir quais serão os materiais


relevantes ou úteis para se debruçar e que tipo de análise lançará luzes sobre a questão que se propõe.

A finalidade prática da dogmática recomenda que o produto final do trabalho seja uma proposta
específica ante a questão colocada – um esquema de sistematização, uma resposta concreta ante um
problema interpretativo, uma proposta de modificação normativa, uma recomendação de alteração de
rumo da jurisprudência, etc.

Deixo para o final [deste artigo] os aspectos formais – e secundários – de um trabalho de pesquisa
dogmática. Grande parte da literatura que se agrupa sob o rótulo de “metodologia da pesquisa jurídica” em
espanhol se dedica quase exclusivamente a esse tema, deixando de lado as questões de que tratei nesse
artigo. Bastaria dizer que são simplesmente recomendações dedicadas a facilitar a leitura de um trabalho
acadêmico. É útil que o trabalho comece com uma introdução, por meio da qual se exponha
resumidamente o objeto e a questão ou pergunta que o trabalho suscitou e a síntese dos temas das
diversas partes que compõem a pesquisa. Nos trabalhos de alguma extensão – monografias ou teses – é
também conveniente agregar um capítulo metodológico, onde se justifique mais detidamente a escolha do
objeto e a questão colocada sobre esse objeto, onde se explique quais as fontes recorridas e a metodologia
utilizada para resolver a questão engendrada. O que segue é o desenvolvimento do trabalho, de acordo
com o plano traçado no capítulo metodológico, se houver. Para concluir o trabalho, é importante elaborar
um capítulo de conclusões, no qual se reconstruam as questões e respostas centrais da pesquisa. Por
último, pode se agregar a bibliografia utilizada e documentos anexos a que o trabalho remete ou se refira.
O sistema de citação utilizado – seja qual for – deve ser consistente.

O esclarecimento do objeto e das perguntas que guiam um trabalho dogmático, o apontamento


do método e dos materiais utilizados e a ordem na apresentação não constituem uma garantia da
qualidade da investigação. Tudo isso pode ser feito a contento e, no entanto, se falta imaginação e a
qualidade da argumentação utilizada é fraca, o trabalho e as teses nele contidas podem ser insatisfatórios.

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22
Universidade Anhanguera - UNIDERP
Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – REDE LFG

Cursos de Especialização TeleVirtuais

Disciplina

Metodologia da Pesquisa Jurídica

AULA 2

A argumentação no trabalho jurídico


Thiago Acca
Mestre em direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Um trabalho científico deve tentar convencer seus leitores de que a posição defendida nele é a mais
correta. Como convencer os leitores? E como sustentar a hipótese de um trabalho? Esses problemas
ganham ainda mais relevância, pois se entende que no direito é possível justificar qualquer posição
imaginável. Tudo dependeria, então, do poder retórico do autor do trabalho e não da qualidade da
fundamentação de uma afirmação. A argumentação jurídica, portanto, não se basearia em fundamentos
racionais, mas apenas em técnicas retóricas de persuasão. Não entendo assim. Isso porque, se por um
lado, não é possível no direito chegar a uma resposta exata com nas matemáticas, por outro, não se aceita
racionalmente qualquer tipo de argumento.

O texto de Welber Barral foi escolhido para mostrar como alguns tipos de argumento não podem ser
aceitos. Assim, conclui-se que nem toda argumentação faz sentido.

É importante deixar claro que os textos escolhidos para compor este material didático não são pontos de
chegada para o conhecimento. Um dos motivos pelos quais os textos foram escolhidos é justamente a sua
qualidade como um meio para propiciar o debate, e não para trazer verdades absolutas, sobre
metodologia. Dessa forma, no transcorrer do texto, por meio de notas de rodapé, faço comentários para
estabelecer um diálogo triangular entre alunos, os textos e o autor deste material didático.

Há também notas de rodapé explicativas que pretendem não só esclarecer alguns pontos do texto, como
também trazer mais informações para os alunos sobre determinado tópico.

LEITURA OBRIGATÓRIA 2
Como citar este artigo:

BARRAL, Welber Oliveira. Metodologia da pesquisa jurídica. 3. Ed. Belo


Horizonte: Del Rey, 2007, p. 130-134. Material da 2ª aula da Disciplina
23
Metodologia da Pesquisa Jurídica, ministrada nos Cursos de Especialização
TeleVirtuais da Universidade Anhanguera-UNIDERP | REDE LFG.

“Ao elaborar um trabalho científico, o pesquisador construirá uma argumentação, que deverá ser
embasada no raciocínio construído ao longo do texto. A argumentação científica difere do argumento
técnico (uma petição, exemplo) no sentido de que o pesquisador deve seguir padrões mais rígidos para
evitar falácias da argumentação e também deverá refutar as oposições a sua argumentação. Nesse sentido,
o documento científico deve ser claro, acessível para a audiência pretendida, e ordenado em suas idéias.
Ao elaborar sua argumentação, a principal tarefa do pesquisador será fugir das falácias que são comuns na
linguagem técnica e na linguagem coloquial.

A identificação e refutação das falácias é normalmente estudada em Lógica. No meio jurídico, as


falácias mais comuns são:

a) Falácia da autoridade (ou magister dixit):

Certamente, é a falácia mais comum no meio jurídico. Ocorre quando uma afirmação é baseada
acrítica e unicamente na opinião de uma autoridade. Na pesquisa científica, há autores e não
autoridades. Repita-se: citar uma obra demonstra o que aquele autor disse, mas não a pertinência
nem a veracidade do que foi afirmado.

O mesmo pode ser dito de decisões jurisprudenciais, e aqui é necessária uma diferenciação entre a
tarefa do pesquisador e a tarefa do operador jurídico. Quando apresenta uma apelação, o
advogado cita decisões de tribunais superiores. Além de apresentar um argumento de autoridade,
ele também está apresentando um argumento técnico: ‘se esse Tribunal não decidir como
interessa a meu cliente, poderei reverter essa decisão nos tribunais superiores’. Não se discute aqui
a pertinência científica da decisão dos tribunais superiores, apenas o posicionamento favorável ao
cliente.

Na pesquisa científica, a abordagem é evidentemente distinta. Citar uma súmula do STF prova a
existência do posicionamento jurisprudencial naquele sentido, mas não a correção científica desse
posicionamento. O trabalho científico inclusive pode ter por objeto justamente uma crítica a esse
posicionamento do STF.

Assim, o que se espera do pesquisador é o diálogo com suas fontes secundárias, a revisão crítica de
conceitos de posicionamento, e não a macaquice subserviente a supostas autoridadesACCA.

ACCA
No direito muitas verdades são construídas não sobre uma boa fundamentação, mas sim sobre autoridades. Essas
autoridades ganham respeito pelos títulos que possuem e pelas posições que ocupam e não pela qualidade científica
de seus trabalhos. Seu “capital intelectual”, seu “poder acadêmico” origina-se, portanto, de fonte alheia a acadêmica.
Presenciei em várias oportunidades a não possibilidade de diálogo entre um aluno e um professor decano não porque
a crítica do aluno não fazia sentido, mas porque ele era um simples aluno (sem título e sem ocupar posições
profissionais relevantes). Essa falácia da autoridade, infelizmente, ainda ocupa muitos trabalhos jurídicos. Vejam uma
outra opinião crítica a esse respeito: “O prestígio permite empregar o denominado argumento de autoridade. Quem o
utiliza procura justificar certa opinião não por meio de argumentos de conteúdo, mas invocando o prestígio de um
doutrinador. O raciocínio é o seguinte: já que o professor X é um dos maiores penalistas, as posições que ele sustenta
devem estar certas (...) o argumento de autoridade não tem valor metodológico. É um expediente retórico que
esconde a incapacidade de justificar uma opinião pelo seu conteúdo. Quem não pode convencer os demais do caráter
correto de sua opinião tenta intimidá-los com a referência a autoridades. No estudo do direito, como em qualquer
outra atividade de pesquisa, interessam os argumentos de fundo e não a pessoa que os utilizou. Se uma opinião for
convincente, não ganha nada pelo fato de ter sido sustentada por Rui Barbosa. Da mesma forma, aquilo que está
errado não deixa de sê-lo porque Rui Barbosa o sustentou!” (grifei) (DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao
estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 222-223). A grande fraqueza do argumento de
autoridade é a sua regra de veracidade: Professor X é importante (tem títulos, etc), portanto, seu argumento jurídico é
24
b) Falácia da força (argumentum ad baculum):

Aqui, uma parte não discute a veracidade de uma opinião, mas ameaça destruir o emissor com seu
poder.

c) Falácia da ignorância (argumentum ad ignorantiam):

O emissor argumenta que algo é o verdadeiro porque ninguém provou sua falsidade, ou que algo é
falso porque ninguém provou sua veracidade. A falácia está justamente no fato de que quem alega
é que deve provarACCA.

d) Falácia da popularidade (argumentum as populum):

Aqui, o emissor apela para a opinião popular para fundamentar uma determinada conclusão.
Exemplo: ‘a música sertaneja é de bom gosto porque é a preferida pelo povo’ (Bem, em Roma o
povo adorava ver cristãos serem deglutidos por leões).

e) Falácia de piedade (argumentum ad misericordiam):

O emissor apela para o sentido emocional do destinatário, malgrado os fatos apresentados. No


meio jurídico, é muito comum no tribunal do júri e entre alunos com prazo para entregar
monografia.

f) Falácia da causação:

Pretender que o fato é conseqüência de um outro, sem demonstrar a relação causal (‘quando as
mulheres não votavam, havia menos corrupção no Congresso’).

g) Falácia do acidente:

Generalizar uma afirmação a partir de um fato isolado (‘todo empregado quer trabalhar menos,
como é o caso do nosso zelador’).

h) Falsa dicotomia:

Dividir o posicionamento em apenas duas alternativas antagônicas (‘ou você apóia a reforma do
judiciário ou quer favorecer o crime organizado’).

i) Ataques ao emissor (argumentum ad hominem);

Aqui, não se discute a pertinência do argumento, e sim o caráter de seu emissor (‘esta acusação de
corrupção não pode ser levada a sério, porque o acusador é um péssimo pai de família’).

j) Falácia de retribuição (tu quoque):

Desmerecer o argumento porque o emissor também praticou a ação questionada (‘o Ministro quer
aumentar a idade de aposentadoria, mas ele também se aposentou jovem’).

k) Falácia do jogador:

correto. Um argumento é correto ou não independentemente de seu emissor. O pesquisador da área jurídica deve se
atentar para esse ponto. Não há argumento mais correto, porque o emissor é famoso. O argumento sustenta-se pela
sua fundamentação e não por quem o emitiu.
ACCA
Um argumento jurídico não é correto apenas porque não foi contrariado até o momento. Seria como dizer: “os
seres extraterrestres não existem já que ninguém conseguiu provar sua existência”. Não há como refutar tampouco
afirmar que seres de outros planetas existem já que há evidências que fundamentem uma hipótese ou outra.
25
Acreditar que se ocorreu pouco no passado, deverá ocorrer mais no futuro, ou vice-versa (‘a
companhia aérea BAM será segura na próxima década, pois teve treze acidentes nos últimos anos,
e cada companhia aérea tem em média dois acidentes por década’)

l) Falácia do pragmatismo:

Afirmar que algo é verdadeiro em razão de suas conseqüências (‘este tributo é constitucional, pois
caso contrário haverá déficit na balança comercial’).

m) Falsa analogia:

Comparar dois termos que não têm a mesma substância. Um caso especial de falsa analogia se
refere ao uso da palavra ‘direito’ que é um conceito análogo, que pode significar norma, justiça,
ciência, o fato social ou direito subjetivo. Daí não ser pertinente contestar uma argumentação
normativa utilizando-se, por exemplo, do direito como justiça.

Exemplo: ‘Deputado, Vossa Excelência acha direito seu salário equivaler a cem salários mínimos?’
[direito com justiça] – ‘sim, meu querido eleitor, é direito porque acumulei qüinqüênios, biênios e
férias-prêmio’ [direito como direito subjetivo]”.

26
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Disciplina

Metodologia da Pesquisa Jurídica

AULA 2

LEITURA OBRIGATÓRIA 3

Trabalhando sobre o material


Thiago Acca
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.

Como citar este artigo:

ACCA, Thiago. Trabalhando sobre o material. Material da 2ª aula da


Disciplina Metodologia da Pesquisa Jurídica, ministrada nos Curso de
Especialização TeleVirtuais da Universidade Anhanguera-UNIDERP | REDE
LFG.

Em geral o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa acadêmica envolve a aquisição de um


grande volume de fontes. Essas fontes, no campo jurídico, são na maior parte das vezes artigos de revista,
livros, jurisprudência e legislação. É normal que o pesquisador sinta-se inseguro e um pouco perdido sobre
o que fazer diante de tanto “papel”. Se, por um lado, cada pesquisador desenvolve seu próprio método de
estudo (e, dessa forma, pode-se afirmar que não há uma regra a ser seguida por todos na organização de
seus estudos). Por outro, acho possível ajudá-los formulando algumas dicas e chamando atenção para
alguns pontos que me parecem importantes.

É preciso ressaltar que a organização do material a ser utilizado como base para o trabalho é
essencial. Muitos pesquisadores vão com o passar do tempo simplesmente empilhando uma série de
cópias de artigos, legislação e jurisprudência. No entanto, quando precisa de um determinado texto não
sabe mais onde está. E perde, sem qualquer exagero, horas procurando um único texto. Deve-se tentar ao
máximo minimizar desperdiçar o tempo com tarefas “inúteis”. Por isso, é importante que se organize o
material em pastas ou de alguma outra forma a fim de que facilite o acesso aos textos.
27
Outro desconforto dos pesquisadores diz respeito à leitura, compreensão e fichamento do
material base para o trabalho a ser escrito. Em primeiro lugar, não leia os textos apressadamente,
principalmente aqueles que são essenciais para o desenvolvimento da pesquisa. Por exemplo, um trabalho
que se proponha a discutir o conceito de direitos fundamentais em Luigi Ferrajoli deve, no mínimo, ler
muito bem as obras desse autor. Certamente enfrentar tal tema sem conhecer profundamente as obras de
Ferrajoli redundará em um trabalho de pouca qualidade. Em segundo lugar, faça fichamentos, pelo menos,
de alguns textos que entenda mais difíceis e mais relevantes para o trabalho (trouxe dois exemplos de
fichamento abaixo). Em terceiro lugar, anote nos textos, grife, faça setas, enfim, estude realmente os
textos, pois isso facilitará no momento da elaboração da escrita do trabalho. Esses destaques a serem feitos
sobre os textos são ainda mais facilitados com os programas de computador editores de texto como o
Word. Esses programas possuem várias funções como gravar a própria voz, sublinhar textos, colori-los,
abrir caixas de texto para fazer comentários, etc.

Fichamentos

Pode-se fazer diversos tipos de ficha. Eco, por exemplo, fala em fichas temáticas, por autores, de
citação, de trabalho e de leitura1. Como disse antes não há regras fixas de qual é a melhor forma de
elaborar os fichamentos, pois isso dependerá do método de estudo de cada pesquisador. O que posso dizer
é que é preciso tomar cuidado tanto com a desorganização, mas ao mesmo tempo também se debe evitar
uma complexidade desnecessária e exagerada diante da tarefa que o pesquisador deve realizar. A
“burocratização” do estudo pode ao invés de ajudar, dificultar o trabalho do pesquisador.

Abaixo trago dois fichamentos que tiveram como base os textos de Luciano Oliveira e Christian
Courtis. Esses fichamentoS foram elaborados com o objetivo de deixar claro quais foram os principais
argumentos expostos pelos autores em seus textos. Assim, posso, depois de algum tempo, voltar aos textos
sem ter de lê-los novamente.

Nos quadros abaixo (Dicas) faço algumas observações sobre a construção dos fichamentos.

FICHAMENTO DO MATERIAL DE LEITURA OBRIGATÓRIA 1 DA AULA 2,


REALIZADO PELO PROF. THIAGO ACCA:

COURTIS, Christian. El juego de los juristas. Ensayo de caracterización de la investigación dogmática.


Disponível em
http://66.102.1.104/scholar?hl=pt-BR&lr=&q=cache:nJl-VyHPqPIJ:derecho.itam.mx/facul
tad/materiales/prof%2520asig/Jorge%2520Azaola/seminario%2520de%2520invest%2520ju r/courtis-
dogmatica .doc+christian+courtis+el+juego+de+los+juristas
Transcreva todos os elementos de identificação da obra fichada. Habitue-se a colocar todos os elementos mesmo,
ou seja, inclusive qual é a edição, quais as páginas que foram objeto de fichamento, etc. Esse pode ser visto como
um conselho menor, mas não é. Imagine que você poderá querer voltar ao texto original, mas sem seus dados
Dica 1 completos você poderá não saber mais qual texto fichou exatamente. Se a obra for de biblioteca transcreva em sua
ficha qual é a sua localização. Assim, se precisar recuperar a obra na biblioteca já terá facilmente a referência de
entrada.

1
Veja Umberto Eco. Como se faz uma tese. 19ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 87-111.
28
Meu comentário: excelente leitura para se ter uma boa idéia das possibilidades de se fazer um trabalho acadêmico.
Courtis é bastante preciso ao dar os passos que devem ser seguidos para a elaboração de um trabalho acadêmico.
Acho que isso pode ajudar muito aos alunos, pois lhes darão um procedimento seguido.

Não tenha receio de fazer comentários em seu fichamento. Critique passagens, escreva suas impressões sobre o
texto. Não confie demasiadamente em sua memória. Vi excelentes pesquisadores esquecer-se de suas idéias e não
poderem recuperá-las, pois eles não as tinham anotado em algum lugar.

Dica 2 Outro ponto relevante são os destaques feitos no fichamento. Valendo-se ou não o computador para fazer os
fichamentos use e abuse das cores, dos grifos e de outras formas de destaque na medida em que isso facilitar sua
leitura em momento posterior.

Deixe claro para você mesmo quais são as passagens do texto e quais são seus comentários.

1. Pretensões do autor
Evite elaborar seu fichamento com um texto corrido. Enumere as passagens de acordo com seus critérios já que isso
Dica 3 poderá ajudá-lo a retomar as principais idéias do texto a partir de uma simples “passada de olhos” pelo fichamento.
Só de olhar o título dos itens 2 e 4 (abaixo) eu sei que o autor discutirá o que é a dogmática e suas tarefas.

- qual a perspectiva da qual o autor se vale para formular uma metodologia? Dogmática. Outras são
possíveis, embora Courtis não diga quais são.
- Ele pretende caracterizar algumas das tarefas cumpridas pela dogmática, pois isso permitirá (a)
visualizar com maior clareza os diferentes pontos de vista assumidos pelo dogmático frente ao seu objeto
de estudo; (b) formular algumas sugestões metodológicas para realizar trabalhos de investigação neste
campo disciplinar.

2. O que é dogmática?

- muitas coisas podem ser chamadas de dogmática (a) história das normas; (b) descrição sistemática de
um conjunto normativo; (c) solução de problemas interpretativos; (d) comentários de jurisprudência; (e)
proposta de modificação de um conjunto normativo. É possível agregar todos essas “atividades” dentro de
um único conceito de dogmática? Courtis entende que sim, pois todos esses pontos podem ter uma
orientação fundamentalmente prática (característica geral de todas essas distintas tarefas). “A dogmática
se propõe a estudar o ordenamento jurídico para conhecê-lo, transmitir esse conhecimento, operá-lo,
otimizá-lo, melhorá-lo”.
- Courtis se preocupa em dizer que a dogmática não é mera descrição dos ordenamentos (a) a repetição
das soluções propostas pela dogmática ou pela jurisprudência não tem muita valoração intelectual; (b) a
mera descrição tem menor valor intelectual; (c) inutilidade de uma lei comentada que apenas reescreve
com outras palavras o que já está na lei.
- Os textos jurídicos não oferecem soluções nítidas para todos os casos. O ordenamento não tem um
sentido unívoco, pelo contrário, são as operações intelectuais que atribuem sentido às normas. A
dogmática adianta os problemas surgidos do ordenamento e propõe soluções.
- Moral e dogmática. Deve-se discutir os valores consagrados pelo sistema e não extra-normativos.
- Aponta uma função importante da dogmática de fiscalização da dogmática sobre a jurisprudência

3. Questões de escala - obras muito diversas como Tratados ou comentários a uma decisão podem ser
considerados trabalhos dogmáticos, mas isso influenciará no grau de aprofundamento do tema.

4. As quatro tarefas dogmáticas


4.1 SISTEMATIZAR

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 facilitar o estudo e a transmissão do conhecimento (pedagógico)
 não é a mera repetição do ordenamento
 essa sistematização auxiliar tanto em decisões judiciais quanto na criação e modificação do direito
 Exemplo: função social da propriedade (art. 170, III; art. 186; art. 185; art. 184). A propriedade
produtiva pode ser desapropriada?

Ao elaborar seu fichamento pense em exemplos próprios para ilustrar o pensamento do autor ou mesmo como o
Dica 4 texto lido poderia auxiliá-lo em sua pesquisa.

4.2 PRESCREVER (lege lata)


 Identifica problemas interpretativos para oferecer razões para preferirmos uma interpretação em
detrimento de outra
 Propõe soluções para os casos difíceis. A dogmática, portanto, pretende ser um guia intelectual
para o eventual aplicador do direito positivo.
 Exemplo: direito à moradia (art. 6º)

4.3 CRITICAR O SISTEMA JURÍDICO (lege ferenda)


 postula uma solução que implica não uma interpretação, mas a modificação do direito positivo
vigente
 como considerar essa tarefa como dogmática se se deve pressupor a força obrigatória do sistema
jurídico? Em primeiro lugar, essas tarefas dogmáticas ocorrem juntas. Não há uma divisão estanque.
Em segundo lugar, o jurista não abandona o ponto de vista interno, nem rechaça a totalidade do
ordenamento. Pelo contrário, supõe a aceitação dos mecanismos de direito para regular a vida social.

4.4 ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA


 pode ser (a) sistematização; (b) sententia lata consistem em assumir como premissa a sentença
analisada e projetar suas conseqüências; (c) crítica da sentença; (d) uso da jurisprudência para mostrar
a necessidade de uma modificação normativa

5. SISTEMATIZAÇÃO

 (a) selecionar um conjunto normativo; (b) determinar os fins e os valores que consagra; (c)
identificar, descrever e hierarquizar os elementos que compõem esse conjunto normativo; (d)
descrever a relação entre esse componentes; (e) assinalar semelhanças e contratastes com outros
conjuntos normativos relevantes.

6. INTERPRETAÇÃO

 (a) determinar um problema interpretativo; (b) discutir a natureza da indeterminação; (c)


apresentação das soluções alternativas ao caso controvertido; (d) justificação (importante)

7. MODIFICAÇÃO DO ORDENAMENTO

 (a) identificar o universo normativo; (b) crítica das normas questionadas; (c) formular uma proposta
normativa

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FICHAMENTO DO MATERIAL DE LEITURA OBRIGATÓRIA 1 DA AULA 1,
REALIZADO PELO PROF. THIAGO ACCA

OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi! A pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em direito.
Disponível em
http://www.esmape.com.br/downloads/Luciano_Oliveira_Nao_fale_do_codigo_de_Hamurabi.rtf

• Partes do texto: o texto, nas palavras do próprio autor, tem dois momentos
(a) crítico - identificação e análise de vários defeitos na produção acadêmica da pós-graduação em direito;
(b) propositivo – dá sugestões de como se fazer uma “pesquisa sócio-jurídica”

• Motivo do título: muitos trabalhos entendem que o seu tema de estudo já estava lá no famoso Código
de Hamurábi

1. Os problemas da pesquisa em direito no Brasil

1.1 “Parecerismo” – utilização do método do parecer em trabalhos científicos

Meu comentário: há um livro sobre metodologia de pesquisa que contêm transcrições de um debate ocorrido aqui
na Gv. Nesse livro, há uma discussão sobre o uso do método do parecer nas pesquisas jurídicas

Anote outras obras que se relacionam ao tema que está fichando. Aqui, por exemplo, lembrei-me de que há um livro
Dica 5 que discute o mesmo problema do parecerismo.
- o trabalho acadêmico não visa defender uma tese a qualquer custo.
- O parecer está preocupado com os interesses de seu cliente, já o pesquisador com a verdade
- Método do parecer: recolhe tudo o que há a seu favor e nada contra. No entanto, um trabalho
acadêmico deve sopesar as várias posições.

1.2 Manualismo – uso excessivo de manuais e de seus métodos


- insistência em explicar conceitos já amplamente sabidos

Meu comentário: o aluno com receio de que não consiga escrever um número de páginas razoável começa a
“enrolar”
Meu comentário: não é só estilo do manual que é criticável, mas também seu uso indiscriminado. Como diz o Virgílio
a pesquisa deve dar bases aos manuais e não o contrário. No Brasil, as pessoas utilizam muitos manuais para fazer
sua pesquisa em detrimento de monografias e artigos

1.3 Reverencialismo – utilização desmedida de argumentos de autoridade

Meu comentário: por aqui há um apego demasiado as formalidades. Os títulos valem por si mesmos. Os professores
não são analisados pelos seus discursos, mas sim pelo título que possuem
- Há uma contaminação do estilo adotado no foro

31
1.4 Falta de tempo
- como os alunos, em geral, não se dedicam exclusivamente à pesquisa (fazem parte da burocracia
judiciária) não conseguem (a) fazer pesquisa bibliográfica; (b) ir atrás de casos práticos

1.5 Sincretismo metodológico – citação de autores completamente distintos em um certo tema


- geralmente os alunos não possuem um arsenal teórico de outras áreas para lhe dar com ela
Meu comentário: uma preocupação dos alunos é com a interdisciplinariedade e a tentativa de não se isolar do
mundo, mas isso acaba levando a uma grande confusão
- Inserem-se em dissertações e teses capítulos inteiros sobre a visão da sociologia, história, filosofia, etc.,
sem qualquer consistência

1.5.1 Incursões históricas


- a maioria dos trabalhos não dispensam a chamada “evolução histórica” e com freqüência começam
pelo Código de Hamurábi  esse não é um problema apenas brasileiro, segundo Miaille, ocorre também
na França
- exemplos: (a) justiça tributária – os egípcios já intuíam todos os princípios de justiça tributária
- problemas dessa abordagem: (a) adota a tese evolucionista da história já a bastante tempo em desuso
pelos historiadores (TA “o Savigny também achava que os institutos tinham um embrião em um passado
longínquo”). O jurista adota esse viés evolucionista sem consciência do que está fazendo. (b) afinal para
que serve numa dissertação trazer essas considerações? (c) universalismo a-histórico as idéias se destacam
pouco a pouco de seu contexto geográfico e histórico para se tornarem universais

1.5.2 Incursões sociológicas


- NÃO existe A sociologia “entendida como um acervo pacífico e consolidado de saber contendo, para
cada aspecto da realidade, uma visão”
- Há, na verdade, uma série de autores como Marx, Durkheim, Weber. “Não existe, assim, uma visão
unívoca da sociologia sobre a propriedade, o crime, a administração – o que quer que seja” (p. 14)
- “o que normalmente existe, aí, é uma incorporação acrítica dos mais diversos – e às vezes disparatados
– autores, como se sociólogos, filósofos, historiadores, etc., fossem bens fungíveis numa prateleira de saber
universal”
- Foucault x Beccaria (a citação obrigatória de certos autores em determinados temas leva a um
disparate intelectual)
- A citação desses autores não necessariamente esclarece o argumento que se quer defender

Outros problemas: Oliveira entende que há uma série de outros problemas, mas não os aborda de modo
mais detido.
(a) não se sabe como pesquisar;
(b) falta de tempo
(c) temas amplos
(d) escassas referências a casos práticos

2. A pesquisa sócio-jurídica

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- “por ela se designa uma pesquisa de natureza sociológica, de base empírica, tendo o direito por objeto”
- os alunos são incapazes de formular um problema (não dá para falar genericamente da justiça social) –
Rawls trabalhou com esse tema durante uma vida
- mapa para um trabalho de pesquisa (a) definição do problema de pesquisa; (b) “estado da arte”  o que
já se falou sobre o tema; (c) sua posição sobre o problema; (d) dados

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