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Senhora dos afogados
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Senhora dos afogados

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Uma das peças mais polêmicas e provocantes de Nelson Rodrigues, Senhora dos afogados conta a trágica história da família Drummond, que vê suas mulheres morrerem afogadas no mar. Escrita em 1947, a peça foi interditada pela censura e só chegou aos palcos em 1954, causando incômodo na plateia, o que explica por que seu autor a caracterizava como "teatro desagradável" — aquele tipo de peça que sempre instiga e perturba o espectador.Com uma habilidade genial para ironizar e satirizar os desvios comportamentais da sociedade, Nelson Rodrigues criou um teatro único e universal que vem atravessando décadas com a mesma vitalidade. Para celebrar o centenário do dramaturgo, a Editora Nova Fronteira relança suas 17 peças, uma obra essencial que inaugurou e consolidou o modernismo no teatro brasileiro.
LanguagePortuguês
Release dateApr 29, 2013
ISBN9788520935279
Senhora dos afogados

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    Senhora dos afogados - Nelson Rodrigues

    PERSONAGENS

    misael

    d. eduarda

    vizinhos

    avó

    noivo

    moema

    vendedor de pentes

    sabiá

    paulo

    dona

    mulheres

    PRIMEIRO ATO

    Primeiro quadro

    (Superposição de dois ambientes: casa dos Drummond e café do cais. Na casa dos Drummond, mãe, d. Eduarda, e filha, Moema. D. Eduarda ainda formosa, apesar de alguns cabelos grisalhos, casta e severa no seu luto fechado. Moema também de luto — e sem pintura como d. Eduarda. Ambas de uma palidez quase sobrenatural. Mãe e filha estão em pé, rígidas, hieráticas. Nenhuma semelhança especial entre as duas. Mas os seus movimentos de mãos coincidem muito; e isso as exaspera. Esta coincidência será uma das constantes da peça. A avó, d. Marianinha, anda de um lado para outro, numa excitação de doente. É a doida da família. Nas paredes, retratos a óleo dos antepassados. Em cena, também, os vizinhos. São figuras espectrais. Um farol remoto cria, na família, a obsessão da sombra e da luz. Há também um personagem invisível: o mar próximo e profético, que parece estar sempre chamando os Drummond, sobretudo as suas mulheres. Moema tem um rosto taciturno, inescrutável, de máscara.)

    d. eduarda

    (rígida) — Sempre tive um pressentimento horrível...

    vizinho

    (subserviente) — Pois não.

    d. eduarda

    — Alguma coisa me dizia que Clarinha morreria cedo... Foi sempre assim, fraquinha...

    vizinho

    — Sempre.

    d. eduarda

    — ...os pulsos finos e transparentes. Com 15 anos, não tinha quase cadeiras, uns quadris de menina, e os seios só agora estavam nascendo...

    vizinha

    (senhora gorda, amabilíssima) — Sua filha era boa demais para este mundo.

    vizinho

    — Educadíssima.

    vizinho

    (lírico) — Tinha um arzinho meigo e os lábios quase brancos.

    d. eduarda

    (sem ouvir ninguém) — Parecia ter febre em redor dos olhos e nos cabelos... A febre subia para os cabelos... E um pudor!... Quando esteve doente e o médico quis auscultar... a sua resistência... Foi um custo para descer a alcinha da combinação!

    vizinho

    — Imagino.

    (A avó, que parara para ouvir a nora, intervém, com uma tensão de possessa.)

    avó

    (para os vizinhos) — Mas não é só Clarinha... Pudor têm todas as mulheres da família...

    d. eduarda

    (num breve protesto) — Os vizinhos não precisam saber.

    avó

    — Precisam, sim!... (para os vizinhos) Na nossa família, as mulheres se envergonham do próprio parto, acham o parto uma coisa imoral — imoralíssima...

    (Os vizinhos ouvem a indiscrição com deslumbramento.)

    d. eduarda

    — Eu falava do pudor de Clarinha, que era uma menina... (muda de tom e com espanto) Eu vivia dizendo para mim mesma — Essa menina vai morrer, essa menina vai morrer... Não sei como, mas vai...

    vizinha

    (amável) — A senhora adivinhou, d. Eduarda!

    moema

    (cruel) — Eu também adivinhei...

    vizinho

    (ávido) — Ah, sim?

    moema

    — Também sabia que Clarinha ia morrer. (numa euforia) Tinha certeza!

    d. eduarda

    (sem olhar a filha) — Mas você nunca me disse nada.

    moema

    (cortante) — A senhora também não disse! (terminante) A mim não disse, nunca!

    d. eduarda

    (baixando a voz) — Disse a seu pai.

    moema

    (agressiva) — Mas a mim, não! (quase meiga) E Clarinha também sabia que ia morrer... Esperava a morte... E se admirava que a morte custasse tanto!

    d. eduarda

    (elevando a voz, mas ainda em seu desespero contido) — Mas não adivinhei que minha filha morresse assim... Pensei que uma doença, que uma febre a levasse, e não o suicídio...

    moema

    (brusca e definitiva) — Não foi suicídio!

    (Pausa das duas. Novamente os espectrais vizinhos iniciam um cochicho.)

    vizinho

    — Mas foi suicídio ou não foi?

    vizinho

    — Foi, sim.

    vizinho

    — Não foi.

    vizinho

    — A menina se matou.

    vizinho

    — Que o quê!

    vizinho

    — Dou-lhe a minha palavra!

    (Mudam de atitude os vizinhos e vêm, solícitos, ouvir d. Eduarda e Moema.)

    d. eduarda

    — Desculpem... Eu me enganei...

    moema

    — A senhora parece louca!

    d. eduarda

    (desorientada) — Eu disse suicídio, disse?

    vizinhos

    — Disse. A senhora disse.

    moema

    (vingativa) — Está ouvindo?

    d. eduarda

    (desesperada) — Foi sem querer... Eu não sei nada. Quem sabe é Moema.

    moema

    (altiva) — Na nossa família ninguém se mata...

    (A avó intervém outra vez. Avança para os vizinhos que, juntos, recuam, amedrontados.)

    avó

    — Minha neta Clarinha não se matou... Foi o mar... Aquele ali... (indica na direção da plateia) Sempre ele...

    vizinhos

    (espantados e em conjunto) — O mar!

    avó

    — Não gosta de nós. Quer levar toda a família, principalmente as mulheres. (num sopro de voz) Basta ser uma Drummond, que ele quer logo afogar. (recua diante do mar implacável) Um mar que não devolve os corpos e onde os mortos não boiam! (violenta, acusadora) Foi o mar que chamou Clarinha, (meiga, sem transição) chamou, chamou... (possessa, de novo, e para os vizinhos que recuam) Tirem esse mar daí, depressa! (estendendo as mãos para os vizinhos) Tirem, antes que seja tarde! Antes que ele acabe com todas as mulheres da família!

    vizinhos

    (em conjunto) — Primeiro Dora, depois Clarinha!

    vizinho

    (solista, para um e outro) — Já duas afogadas na família!

    avó

    — Depois das mulheres, será a vez dos homens...

    vizinho

    (solista) — Acredito!

    avó

    — E depois de não existir mais a família — a casa! (olha em torno, as paredes, os móveis, a escada, o teto) Então, o mar virá aqui, levará a casa, os retratos, os espelhos!

    (Num súbito desespero, unindo as mãos.)

    avó

    — Eu sei! Os mortos me disseram... Os mortos da família...

    d. eduarda

    (aproximando-se da velha, e não sem medo) — Vamos, avó.

    avó

    — Não gosto de quem seja mulher... Não me toque!...

    d. eduarda

    (num apelo) — Sou Eduarda, tua nora!

    avó

    (ressentida) — Sei, não precisavas dizer... És esposa de meu filho Misael...

    d. eduarda

    (dolorosa) — Sou.

    avó

    (vingativa) — Mas não te pareces com as outras mulheres da família... És estrangeira...

    d. eduarda

    — Sou.

    avó

    — Eu, (indica o próprio peito) eu quando era moça e bonita, como és agora, eu tinha vergonha de mim mesma... Tinha vergonha de tudo que era mulher em mim. (rápida e acusadora) E tu? tens vergonha? de teu próprio corpo, tens?... Ou despes teu busto diante do espelho para namorá-lo? Responde!

    d. eduarda

    (numa súplica) — Moema, faz calar tua avó! Ela só atende a ti!

    moema

    — Não!

    avó

    (com medo) — Tu sonhas com a minha morte...

    d. eduarda

    — Não, avó! Juro que não!...

    avó

    — Não deixe, Moema, não deixe...

    moema

    (com certa doçura) — Não há perigo, avó, não deixarei...

    avó

    (apontando para d. Eduarda) — Quer-me envenenar... Pôr veneno na água que eu bebo ou no pão... (baixo, para Moema) Das mãos de tua mãe não aceitarei nada... Só de ti... Tu és mulher, mas de ti eu gosto, sempre gostei... (meiga para Moema) Fria, como as nossas

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