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Há uma bomba de efeito retardado plantada no coração da África. Ela matará mais de
22 milhões de homens, mulheres e crianças no decorrer da próxima década. O número é
200 vezes maior do que o de todas as vítimas da bomba atômica que destruiu
Hiroshima, em 1945. Ou 100 vezes o total de mortos na Guerra do Vietnã. Esse
extermínio em massa e silencioso é provocado pela AIDS. Enquanto na Europa, nos
Estados Unidos e mesmo no Brasil as campanhas de prevenção e novas drogas têm
conseguido deter a epidemia e prolongar a vida de milhares de portadores do HIV, para
os africanos contaminados praticamente não há esperança. A doença, combinada a
pobreza e falta de informação, tem provocado ali uma tragédia de proporções
inacreditáveis. A própria agência das Nações Unidas para AIDS, Unaids, já considera
inevitável nos próximos dez anos a morte de todas as pessoas hoje portadoras do vírus
no continente. Isso significa que a AIDS vai produzir na África um estrago de
proporções semelhantes às da Peste Negra, que no século XIV dizimou cerca de 25
milhões de pessoas, um terço da população da Europa na época.
Desde o começo da epidemia de AIDS, no início dos anos 80, já morreram 11,5 milhões
de pessoas vítimas da doença na África meridional, número quase igual ao da população
da cidade de São Paulo. Só no ano passado foram 2 milhões de mortos, com a média de
5.500 funerais a cada dia. No Zimbábue, país que junto com Botsuana tem as mais altas
taxas de contaminação do mundo, 25% de todos os adultos estão infectados pelo vírus.
Ali, entre a população analfabeta, a AIDS é conhecida como "iyoyo", ou "aquela coisa"
- uma doença misteriosa associada a definhamento, febre e infecções, capaz de uma
devastação sem limites. Um levantamento da Divisão de Populações da ONU mostra
que, em 2005, a expectativa de vida em Zimbábue vai cair mais de um terço, de 66 para
41 anos. Em Botsuana, a situação é ainda mais dramática, com queda de 29 anos na
expectativa de vida. Os próprios especialistas da ONU ficaram chocados quando
compilaram esses números pela primeira vez, há um ano. "Achamos que as contas
estavam erradas e levamos meses checando tudo de novo", afirma Peter Piot, diretor da
Unaids.
Nem mesmo o país mais rico do continente foi poupado da matança causada pelo HIV.
Em pouco mais de uma década, a África do Sul viu brotar praticamente do nada 2,9
milhões de casos, deixando um rastro de 360.000 mortos. O país que marcou a história
da medicina ao realizar o primeiro transplante de coração, em 1967, tenta
desesperadamente conter a doença. A AIDS atinge principalmente a população negra e
pobre, e ameaça chacoalhar a economia do país. Em cada grupo de dez pessoas
contaminadas no mundo no ano passado, uma era sul-africana. Num dos maiores
centros de mineração, a cidade de Carltonville, onde mais da metade dos 88.000
trabalhadores vivem afastados da família em alojamentos coletivos, estima-se que cerca
de 25% dos adultos estejam contaminados. O índice é quase duas vezes maior que o de
outras regiões do país. Uma das razões é que ali há cerca de 500 prostitutas, a maioria
infectada. Cada vez que os mineiros voltam para junto de suas mulheres e namoradas, a
centenas de quilômetros de distância, o vírus vai junto e alonga ainda mais a corrente da
morte.
AIDS na África
De cada três infectados pela AIDS no planeta, dois vivem na África. A cada minuto,
oito novos doentes surgem no continente. Países como Zimbábue convivem com índices
de contaminação de 25% da população. Para se ter uma idéia do que isso representa, o
Brasil tem 540 mil pessoas infectadas, uma taxa de contaminação de 0,35% da
população.
Muitos africanos ignoram o que seja AIDS. Eles acham que a doença é causada apenas
pela pobreza, por bruxaria, inveja ou por maldição de espíritos antepassados. Esses
mitos aumentam o estigma em torno da AIDS, mantida em segredo por doentes e
familiares devido ao preconceito e ao isolamento a que são submetidos na comunidade.
O seminarista togolês Pierre Avonyo, que trabalhou com soropositivos em seu país de
origem, afirma que a violência sexual contra as mulheres produzida por guerrilheiros e
pelos próprios exércitos é a principal causa do aumento da incidência da AIDS. A
doença também ameaça correr as frágeis economias dos países. O Produto Interno Bruto
(PIB) da África do Sul, por exemplo, será 17% menor em 10 anos por causa de AIDS.
Empresas de vários países calculam perder entre 6% e 8% dos lucros em gastos com
funcionários contaminados, incluindo o pagamento de funerais e medicamentos básicos.
O engenheiro belga Dirk Bogaert, que prestou assistência a doentes pela organização
Médicos Sem Fronteiras em vários países da África, dá um exemplo de como a AIDS
faz parte do cotidiano das empresas: ao contratar cinco motoristas para transportar
remédios para regiões infectadas, ele afirma que um empregador precisa prever que, em
dois anos, pelo menos um funcionário vai apresentar sintomas da doença. "A AIDS
deixa de ser uma doença que a gente lê nos jornais, e passa a ser uma vivência de todo o
dia" - afirma.