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GÊNESE CÓSMICA

30-03-2008

+ Marcelo Gleiser

Gênese cósmica

MARCELO GLEISER,
é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover
(EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

A luz que nos separa da escuridão é a luz da nossa curiosidade

Em meados de março, cientistas norte-americanos revelaram


análises dos dados colhidos durante cinco anos pelo satélite WMAP
(do inglês, Wilkinson Microwave Anisotropy Probe). O satélite, em
si, é já um feito impressionante. Sua missão foi medir pequenas
flutuações de temperatura no banho de radiação que permeia o
cosmo, a chamada radiação cósmica de fundo.

Uma imagem útil é a de uma banheira cheia d'água. Mesmo que a


temperatura pareça ser a mesma em todos os lugares, um
termômetro ultra-sensível mediria variações diminutas aqui e ali. No
caso do Universo, a temperatura média é de 2,75 graus acima do
zero absoluto (na escala Celsius, 273 graus negativos), e as
flutuações medidas pelo WMAP são de centésimos de milésimos de
grau.

O WMAP, como sugere o nome, mapeou a temperatura dos céus,


registrando regiões ligeiramente mais quentes ou mais frias do que
a média. O significado dessas regiões é profundo: essencialmente,
são as impressões digitais dos processos que marcaram a infância
cósmica, dando origem às primeiras galáxias e estrelas, os fósseis
de nossas origens.

Como todo bom fóssil, esses objetos registram um passado remoto


-mais precisamente, de quando o Universo tinha apenas 400 mil
anos, uma pequena fração dos seus 13,73 bilhões atuais. A história
cósmica, a versão moderna que inclui o Big Bang, o grande evento
que marcou a origem de tudo, é hoje reconstruída com tremenda
precisão. Quando físicos e astrônomos afirmam que o Universo tem
13,73 bilhões de anos (com uma margem de erro de apenas 0,12
bilhão de anos), não estão fantasiando ou especulando. Estão
fazendo uma afirmação baseada em medidas concretas e
irrefutáveis.

Todas as culturas de que temos registro tentaram de alguma forma


tecer relatos de sua origem. Talvez os relatos mais significativos de
uma cultura sejam justamente seus mitos de criação, as narrativas
que contam como surgiram o mundo, os animais e as pessoas.
Esses mitos são sagrados, marcando a relação entre a divindade
(ou divindades) criadoras e os humanos, sua criação. Mesmo que
em algumas culturas não existam deuses criadores, as narrativas
de criação do mundo definem as forças criadoras de suas crenças.
No relato mais popular em nossa cultura, o Gênese bíblico, a força
criadora gera o mundo ao separar a luz da sombra. Passados 3.000
anos, reconstruímos esse relato, medindo as propriedades, se não
dessa primeira luz divina e sobrenatural, da radiação que de fato
preenche o cosmo.

É inevitável traçar paralelos entre o relato judaico-cristão de criação


e o modelo cosmológico do Big Bang. "Ah, está vendo? Esses
cientistas estão simplesmente redescobrindo o que a Bíblia já dizia
há milênios." Na verdade, não é nada disso. A história científica da
criação estará sempre incompleta, aprimorando-se a cada nova
descoberta. Ela independe da fé. Se hoje podemos afirmar que o
Universo tem 13,73 bilhões de anos, que as primeiras estrelas
surgiram quando ele tinha 430 milhões de anos, nós o fazemos
baseados em 400 anos de ciência.

São os dados que nos contam o que ocorreu, dados obtidos por
meio da incrível inventividade humana. Se existe algo de
semelhante entre a Bíblia e o Big Bang é que ambos estão
interessados na história da criação. E isso não é uma coincidência.
Afinal, ambos refletem a mesma curiosidade humana de voltar ao
passado, retraçando os passos que levam até as nossas origens. A
luz que nos separa da escuridão é a luz da nossa curiosidade.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth
College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe3003200806.htm

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