Você está na página 1de 2

VIDA ARTIFICIAL

22-07-2007

+ Marcelo Gleiser

Vida artificial

MARCELO GLEISER,
é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover
(EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

Temos desafios morais e éticos que há 20 anos seriam ficção

Uma das questões científicas que mais assusta e cativa o público é


a manipulação artificial dos seres vivos pelo homem. Começando
com a origem da vida, ainda inexplicada, passando pela engenharia
genética de animais e terminando com a possibilidade de prolongar
a vida – quem sabe até indefinidamente –, é impossível não se
deixar levar pelas emoções despertadas pela pesquisa nessas
áreas.

Toda semana, lemos sobre novas descobertas sensacionais em um


desses campos, e nos deparamos com desafios morais e éticos
que, vinte anos atrás, eram mais coisa de ficção científica do que de
ciência concreta. Os temores e maravilhamento vêm precisamente
dessa transposição da ficção ao real. Uma coisa é ler um livro sobre
a criação de novas formas de vida. Outra é saber que isso está
ocorrendo em laboratórios pelo mundo afora. Recentemente,
cientistas conseguiram implantar o código genético inteiro de uma
bactéria em outra de uma espécie próxima. O mais fabuloso disso
foi aquilo que ocorreu após o transplante. O micróbio que recebeu o
implante passou a exibir todas as propriedades e traços do doador,
efetivamente transformando-se nele; nas colônias resultantes, não
havia traço da identidade da bactéria original.

Os detalhes do processo são extremamente complexos. Vale


mencionar que a margem de sucesso é ainda pequena: apenas
uma bactéria em 150 mil aceitaram o novo DNA. Ademais, como as
moléculas de DNA são extremamente longas, sua manipulação é
delicada, especialmente se elas têm mais de 50 mil unidades
genéticas. No entanto, é óbvio que foi aberta uma nova porta na
manipulação artificial dos seres vivos. As possibilidades são
imensas.

Um dos próximos passos é testar se é possível transplantar material


genético preparado artificialmente e não extraído de outro ser vivo.
Hoje, cientistas já podem construir cadeias de DNA sintético com
mais de 100 mil unidades genéticas, adicionando pedaços a
pedaços como num jogo de Lego, um brinquedo de montar. Os
objetivos são variados, desde a criação de combustíveis orgânicos
até a cura de doenças. Pode-se imaginar cenários onde seres vivos
seriam projetados para cumprir as mais variadas tarefas, ou
simplesmente para satisfazer os caprichos de clientes
suficientemente ricos para criar seus híbridos de cachorro e gato,
ou de bem-te-vi e iguana. Diante de toda uma nova tecnologia, é
difícil imaginar que a criação de seres artificias não terá também
seu lado comercial.

Quanto à criação da vida no laboratório, ainda estamos longe. São


várias etapas, e as transições entre elas não são claras. Apenas,
talvez, a primeira delas seja compreendida, a passagem de matéria
inorgânica, os compostos que existiam na Terra antes da vida
-amônia, metano, gás carbônico e água- para aminoácidos, os
componentes das proteínas, parte essencial da química dos seres
vivos. Mas a organização de aminoácidos em moléculas complexas,
capazes de se reproduzir e, delas, às primeiras células, ainda
permanece obscura. Mesmo assim, esse é um desafio que,
acredito, será resolvido durante as próximas décadas. Ao menos
muito se aprenderá sobre o assunto.

A última das questões, a da mortalidade, também é, hoje, amena à


pesquisa científica. Se entendermos como as células envelhecem,
poderemos talvez desacelerar esse processo, prolongando assim a
vida. De certa forma, os avanços da medicina nos últimos cem anos
já fazem isso. Basta comparar a idade média de um adulto em 1850
com a de um adulto hoje. A nossa relação com a vida mudou muito.
E ainda mudará muito mais.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth
College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2207200701.htm

Você também pode gostar