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Criadores, Criaturas e Katamaris

Victor Canela, Leonardo Antônio de Andrade


Universidade Federal de São Carlos
Departamento de Artes e Comunicação
gasparicanela@gmail.com, landrade@ufscar.br

Resumo mão de listas do gênero “os melhores jogos de todos os


tempos”.
O presente artigo visa descrever e discutir a relevância da Este quadro começa a mudar, na medida em que a
série de jogos para PlayStation2 Katamari (Katamari chamada convergência de mídias deixa de ser encarada
Damacy, We Love Katamari) no mundo dos games, a como um fenômeno abstrato, e os jogos eletrônicos e
partir de um pensamento sobre suas escolhas estéticas e realidades virtuais passam a ser objeto de estudo de um
suas implicações políticas – tanto na relação de Katamari número crescente de pesquisadores.
com outros games narrativos quanto na relação do game Este artigo tenta apresentar um pouco da
com a sociedade. Que caminhos Katamari aponta? Quais potência criativa de uma série de games como Katamari
as potências de um vídeo-game no mundo? A conclusão Damacy e We Love Katamari (idealizados por Keita
tenta pôr em perspectiva o modo como games narrativos Takahashi) que, embora bastante incensada na
são produzidos e como podem ser avaliados. comunidade de usuários e críticos de games, permanece
obscura no meio acadêmico, onde poderiam ser lançadas
Palavras-Chave: Katamari. Potência. Sociedade. reflexões de maior fôlego sobre alguns dos rumos do
audiovisual no mundo.

Abstract
2. Imagens e Sons
This article aims at describing and discussing the
relevance of the PlayStation2 game series Katamari A premissa é bastante simples. Tem-se uma bola, a
(Katamari Damacy, We Love Katamari) in the gaming “katamari”. O jogador (e seu personagem) rola a
world, exploring its aesthetical choices and its political katamari. Usando nada além das alavancas direcionais,
implications towards other narrative games and society sua tarefa é empurrar a katamari por aí e, neste
itself. What paths does Katamari point? What are the movimento, englobar virtualmente tudo o que estiver a
powers of a video-game in the real world? The seu alcance. Quanto mais se rola pelas coisas, mais a
conclusion tries to put in perspective the manner by katamari cresce e coisas cada vez maiores ela pode
which narrative games are produced and how they can be englobar.
evaluated. Pronto. É basicamente isso. Rolar significa
englobar e englobar significa crescer. Nossas katamaris
Keywords: Katamari. Potency. Society. pequeninas no começo só podem com alfinetes, clipes de
papel, caramelos, bolas de ping-pong e outras
pequenezas. Mas elas crescem e passam a lidar com
1. Introdução coisas maiores: ursos de pelúcia, crianças, abóboras,
adultos, ursos de verdade, carros, casas, prédios,
Não obstante as gigantescas somas movimentadas por helicópteros, lulas gigantes, aviões 747, o Taj Mahal e
sua indústria, seu crescimento e consolidação como assim por diante.
importante produto audiovisual nas últimas duas décadas, Trata-se do game para PlayStation2, Katamari
sua constante presença cultural (seja através da moda, da Damacy. No papel do filho do Rei de Todo o Cosmos,
arte contemporânea, dos programas de televisão, das cabe a você, o Príncipe, com seus 5 centímetros de altura,
revistas especializadas etc), o vídeo-game ainda se repovoar o universo com os corpos celestes
encontra em posição marginal na universidade brasileira. desaparecidos num acidente (uma noite de bebedeira do
Ainda são poucos os cursos superiores voltados Rei de Todo o Cosmos). Para tanto, é preciso descer até o
para a produção e/ou crítica de jogos. Mesmo os cursos planeta Terra e catar todo tipo de treco com suas
de audiovisual, irmãos mais velhos dos cursos de games, katamaris e mandá-las em seguida para o cosmos, na
oferecem quase nenhum espaço ao estudo dos jogos forma de estrela, planeta ou satélite.
eletrônicos. As revistas especializadas se limitam a medir Atingido seu objetivo de recriar as estrelas no
quão divertido é este ou aquele jogo, não raro lançando céu, o Rei de Todo o Cosmos surpreende-se ao descobrir
uma legião de fãs no planeta Terra. Assim começa a
seqüência de Katamari Damacy, We Love Katamari. O passíveis de interação com a katamari, se não agora,
Rei resolve atender aos pedidos de seus fãs, novamente basta crescer mais um pouco.
com a ajuda de seu filho, o Príncipe. Quanto mais Desta forma, este tipo de olhar funciona como
pedidos o Príncipe atende, mais fãs (mais fases) surgem, convite a sentir o próprio corpo. Keita Takahashi não tem
até que o game está repleto de fãs. Após o término de formação em design de games. Ele vem das artes
cada fase, a katamari é dada ao Rei, que a usa para criar plásticas, da escultura, aliás. A solidez e a corporalidade
um novo planeta no cosmos. são indissociáveis do conceito por detrás do game: sente-
O impacto primeiro dos games Katamari se dá se a geometria da esfera que rolamos pelo espaço. Ela
pela profusão de cores e de formas sobre o olho do não é perfeitamente redonda, sentimos os solavancos
jogador, antes mesmo que se tenha posto as mãos nas causados pelas formas das coisas grudadas –
alavancas direcionais. Muito verde, pink, laranja, azul. A particularmente objetos longos, como canetas, pirulitos e
primeira indicação da atmosfera e do tom de Katamari é postes. As vibrações do controle do PlayStation
visual – os arcos-íris, os patos de borracha, o Papai Noel, contribuem bastante para isso. Esses solavancos, as
os pirulitos gigantes não deixam dúvida: estamos no vibrações, os sons dos objetos me fazem perguntar: o que
mundo do lúdico.1 é isso que acontece em meu corpo quando devoro as
Nos dois games, a alegre animação de abertura, coisas?
no clássico estilo japonês de animação limitada, com
suas cores vibrantes e movimentos bem marcados, realça
o tom cômico de tal modo que fica difícil não assistir a 3. Katamaris e Narrativas
ela a cada vez que se vai jogar. A música tema é a
combinação de uma melodia simples e funcional com um O cinema clássico ainda hoje insiste em criar heróis e
cantarolar despretensioso (“na-na-na-na-na-na-na-Ka-ta- vilões que se enfrentam em sucessivos espetáculos de
ma-ri-Da-ma-cy”) num belo arranjo de metais. Ao rolar a mais-do-mesmo. Sai ameaça espacial, entra terrorista
katamari pelas fases, ao invés da costumeira música de estrangeiro, sai agente secreto mulherengo, entra
preenchimento, ouvimos melodias fortes e prazerosas, arqueólogo intrépido. Manuais de roteiro oferecem uma
que sobrevivem muito bem fora do jogo, como canções trajetória padrão, com reviravoltas com hora marcada
de J-Pop ou J-Rock. O som inclusive auxilia a para acontecer e causas e efeitos artificialmente
potencializar a sensação de englobamento em Katamari: demarcados. Ismail Xavier, em seu clássico livro O
cada objeto tem um som que o representa – mesmo os Discurso Cinematográfico, explicita como trabalho
que não necessariamente emitem sons na realidade, como imagético da direção tem por uma de suas principais
chapéus, garrafas e pneus. Nenhum objeto é englobado funções criar no espectador uma identificação com o
sem ser percebido. protagonista (geralmente homem, branco e
Sobre as animações, elas permeiam ambos os heterossexual).
games, entre uma fase e outra. Em Damacy O mundo dos games – especialmente por muitas
acompanhamos a família Hoshino: o pai é astronauta, e vezes se tratar de um apêndice das franquias
foi mandado numa missão até a lua (que, depois será hollywoodianas, ao lado dos bonecos, canecas,
descoberto, não está mais lá). O filho consegue ver as brinquedos etc – herdou, em grande parte, essa busca por
katamaris rolando, ao passo que sua mãe lhe diz para uma narrativa transparente, essa janela para um outro
parar de imaginar coisas. Em We Love Katamari, as mundo de lugares bem definidos (mocinhos e bandidos,
animações contam a história do Rei, desde sua infância, principalmente). Não entrarei em detalhes quanto ao
sob a sombra de um pai autoritário, até à idade adulta, na papel do receptor em cada uma das mídias, se mais ativo
condição de Rei de Todo o Cosmos. nesta ou naquela, uma vez que em ambos os casos – nos
Entretanto, essas sub-histórias acabam não games e nos filmes narrativos – predomina sua
sendo importantes na lógica do jogo. Funcionam como identificação com o personagem principal.
um respiro entre uma fase e outra, criam um pequeno Pois bem, em Katamari, em oposição à quase
mistério. Mas não se joga para saber qual o desfecho da totalidade dos games narrativos, não há vilões – luta-se
história – eis aqui uma grande diferença para a maioria exclusivamente contra o tempo, única entidade capaz de
dos jogos narrativos. A trama, tanto em Damacy quanto impedir a bola de crescer ad infinitum. Os heróis são,
em We Love, cede lugar à brincadeira. A história pensando de maneira bastante pragmática, os
submerge e emergem as formas, as cores, os sons: em personagens que o jogador pode escolher, no caso, uns
suma, as sensações. alienígenas simpáticos: o Príncipe, filho do Rei de Todo
Em Katamari, a ação que precede o englobar é o Cosmos, e seus primos.
justamente a ação de olhar. Ou seja, aquilo que consiste Conceitualmente, ainda que isso não seja dito no
num fundamento de quase todo jogo eletrônico – o olhar jogo, o Príncipe e seus primos não são muito mais do que
como pretexto para a ação – é aqui levado à máxima avatares para o Rei – e para o jogador. A voz desses
potência, uma vez que todas as coisas que vemos são “heróis” não é ouvida, senão pelo discurso indireto do
Rei. Em We Love, é o Rei, do alto de seu trono, quem
entra em diálogo com os personagens-fãs que dão rosto
às fases (o piloto de Fórmula-1 para a fase de corrida, a “O jogo é uma atividade que se processa (...)
professora de esperanto para a fase da escola, o banhista fora da esfera da necessidade ou da utilidade
para a fase no fundo do mar etc). Os heróis são como material. O ambiente em que ele se desenrola é
arautos que cumprem a missão cósmica a eles designada, de arrebatamento ou entusiasmo, e torna-se
cabendo a eles descobrir novas fases e nelas rolar a sagrado ou festivo de acordo com a
katamari. circunstância. A ação é acompanhada por um
Cada um destes personagens é, no entanto, sentimento de exaltação e tensão, e seguida por
absolutamente único. Sua imagem no canto da tela serve um estado de alegria e distensão.”
justamente para ressaltar a singularidade de cada um dos
primos – primos efetivamente colecionáveis, na medida Pois a metalinguagem, a recusa à identificação
em que devem ser enrolados pela katamari do jogador com o protagonista e o tom cômico e colorido de
para serem habilitados. Não há primo mais rápido ou Katamari têm um propósito claro: sublinhar sua
primo mais resistente, oferecem todos a mesma despretensão e, justamente por isso, terminam por criar
jogabilidade, variam somente em sua aparência e nomes: sua potência.
Miso, em forma de caixa de sopa, L’Amour, cor-de-rosa Em We Love Katamari, o fim último do jogo
com corações vermelhos, Kinoko é um fungo etc. não é proteger a humanidade de uma ameaça nuclear, ou
Nas fases também é possível colecionar alguns resgatar a filha do presidente de terroristas de um
“presentes”, com que você pode enfeitar os personagens estranho país no Oriente. Não se trata aqui de salvar o
jogáveis. Estes presentes nada mais são que badulaques mundo, como em algum Metal Gear Solid ou genérico.
quaisquer que simplesmente deixam seu personagem As tarefas realizadas – as várias e diferentes missões em
mais “bonito”, ou engraçadinho: capacetes, pochetes, que rolam as katamaris – mudam a vida de uns poucos
cachecóis etc. Não servem para absolutamente nada. Não personagens, justamente aqueles que pedem auxílio ao
são armas que matarão mais inimigos ou dinheiro para Rei do Cosmos: os fãs do primeiro jogo (Katamari
comprar uma magia mais potente. Damacy), colocados diegeticamente no segundo.
Desta forma, Katamari oferece toda uma Estranhamente, estes fãs raramente se satisfazem – e é
pluralidade de personagens bastante singulares em essa a maneira encontrada pelo game, e pelo próprio Rei,
oposição ao clichê do protagonista durão de tantos jogos de encorajar o jogador a melhorar seus placares, a rolar
narrativos – mesmo jogos menos “adultos”, como Crash katamaris cada vez maiores (Roger Caillois chama agon
Bandicoot, Super Mario ou Sonic também reforçam o essa característica dos jogos relacionada com a superação
estereótipo de um herói bom que derrota sozinho um de obstáculos ou auto-superação).
vilão mau, de uma maneira ou de outra. Estamos aqui, afinal, no âmbito da micro-
Não cabe em Katamari pensar se são política. Em oposição ao espião solitário que muda
personagens rasos ou profundos, não é esta sua proposta, sozinho o rumo da geopolítica mundial, temos o pequeno
mas pode-se claramente perceber que é divertido príncipe que se alia a virtualmente tudo o que espaço
colecionar os primos e jogar com eles depois justamente pode lhe fornecer e, assim, oferece amigos ao cachorro
porque são únicos. Esse leque vasto de “heróis” – tristonho, ou uma fogueira ao jovem no acampamento,
associado à curta duração de cada missão – termina por ou então alunos à professora de Esperanto – micro-
implodir qualquer chance de identificação com o universos, ao fim das contas.
protagonista, isto é, aquele que rola a katamari. Alguém poderia objetar que se trata de uma
É importante que o jogador saiba diferenciar a história imperialista, na verdade – um Rei que vem ao
realidade do jogo, e isto é notado em We Love, a todo planeta Terra para alterar a ordem aqui vigente e
momento. “O primeiro jogo da série Katamari foi tão instaurar uma nova ordem. Quanto a isso, dois
bem-sucedido que resolvemos continuar”, diz o Rei de comentários podem feitos. O primeiro é que se há um
Todo o Cosmos. We Love Katamari, por se tratar de uma imperialismo em Katamari, trata-se de um imperialismo
seqüência, incorpora em sua diegese o sucesso alcançado cômico, atrapalhado. As cores, a música, o design low-
por Katamari Damacy – tanto que as fases são propostas poly dos personagens e a auto-referência não nos deixam
por personagens-fãs, que pedem ao Rei para que role a esquecer que estamos diante de um jogo. A última fase
katamari e eles se divirtam um pouco. Katamari faz de We Love Katamari mostra o pânico que traz uma bola
piadas com o mundo dos games e com a relação entre de 1,5km de diâmetro grudando coisas pelo mundo. Essa
games e o mundo – como na fase em que um velhinho tentativa de criar ordem que causa ainda mais caos é
reclama que games não servem para nada e quer rolar muito cara às comédias – desde os filmes de Buster
uma vez a katamari “só para experimentar”. É justamente Keaton, que cometia um erro e ao tentar repará-lo
essa visão funcionalista que Katamari combate: os games cometia outro e mergulhava numa sucessão terrível de
não têm a obrigação de servir para alguma coisa. Seu perseguições e situações desconfortáveis.
único compromisso a priori, como expõe Huizinga em Ao contrário de um jogo como Sim City, o Rei
seu livro Homo ludens, é com o lúdico: não trabalha pela manutenção de uma ordem. A ordem
de Sim City se pretende realista, refere-se ao mundo são próprios para a identificação por parte do
conhecido do jogador, com a diferença que criminalidade espectador/jogador.2
e desigualdade social são dados vagos, abstratos e Pois bem, se o modernismo já alcançou (e até
esquematizados, não apreendidos em sua multiplicidade abandonou...) o cinema, a literatura, as artes plásticas etc,
– e que devem ser eliminados para se chegar num ideal. quanto tempo até atingir em cheio o vídeo-game?
Já o Rei de Todo o Cosmos não trabalha pela eliminação Katamari é um caso mais ou menos isolado: os games
da diferença, e sim pela criação de novas coisas, novos narrativos, não obstante as infinitas possibilidades
planetas. Fala de um desejo de arrumar o universo, mas criativas e estéticas, continuam, em sua maioria, reféns
não leva esse desejo a sério. A ordem a que o Rei visa de um modo clássico (e talvez um pouco ultrapassado) de
não é como a asséptica e utópica ordem almejada por narrar.
Sim City (a cidade deveria ser perfeita, mas os Os heróis de Katamari, como já dito
imprevistos continuam acontecendo), mas é sim uma anteriormente, não levam sua tarefa muito a sério, ou
ordem permeada de caos. O Rei de Todo o Cosmos é um melhor, tratam-na de maneira leve: as tarefas diegéticas
pouco como o anfitrião que esconde toda a bagunça da não são a salvação do mundo, (são a criação de um
casa dentro dos armários quando os hóspedes chegam. mundo, na verdade), bem como o game não é a salvação
O segundo comentário sobre o suposto do mundo dos games.
imperialismo do Rei é este: fazendo uma leitura menos Profetiza-se constantemente todo tipo de morte
política, alguém poderia ver um jogo em que as coisas – que eu me lembre, já foram enterrados, só neste
são retiradas de seus lugares de origem e colocadas num começo de século, o cinema, a literatura, a canção e a
outro lugar. As coisas englobadas pela katamari filosofia – só para logo em seguida se eleger um novo
funcionam como matrizes para a criação de algo que vale messias, um salvador que irá renovar isso ou aquilo e
a pena. (“Oh, stardust, it’s so beautiful”, diz uma invariavelmente salvar a todos nós, consumidores.
terráquea quando vê a katamari que rolou em sua casa Katamari, o game, efetivamente não é a salvação para o
virando poeira estelar). De modo análogo a Marcel mundo dos games, mas ele nunca se propôs a isso. O
Duchamp roubando a “função essencial” do urinol ao mundo dos games não precisa ser salvo, e as linhas de
deslocá-lo para o museu e batizá-lo “A Fonte”, a fuga, os caminhos de criatividade em meio à floresta de
katamari rouba das coisas sua “função essencial” (os senso comum são muitos, e não será um único game o
trompetes são para tocar, os barcos para navegar, a responsável por nenhum tipo de renovação num a mídia
melancia para comer etc) e lhes confere uma outra tão vasta como o vídeo-game. Katamari é apenas um dos
função, em outro lugar (como funcionam as coisas no jogos que traz algum tipo de renovação. Games como
“Planeta Bagunça”, criado a partir de um quarto de Shadow of The Colossus e Pikmin também trazem
adolescente ou na “Nebulosa Te Cuida”, criada depois de propostas bastante originais. Sem mencionar as
coletar centenas de bugigangas num hospital?). possibilidades dos jogos de experiência massiva online,
E mesmo a “família real” não é posta em que ainda não foram propriamente exploradas.
nenhum tipo de patamar e pode ser encontrada nos Essa lógica pede para que se coloquem em
mapas, interagindo com as demais coisas a serem perspectiva os chamados “marcos” da historiografia dos
incorporadas pela katamari do jogador: o primo Kinoko, jogos eletrônicos narrativos, como Super Mario, DOOM,
que dança ao redor de uma fogueira com amigos Final Fantasy, Half-Life etc, uma vez que a criação não
“plebeus”, ou o primo Opeo, jogado num leito de um se dá a partir do nada – todos estes “marcos” são frutos
hospital qualquer. Se há um reino, é o reino do lúdico. O de um intenso diálogo, voluntário ou não, com os jogos
Rei não faz nenhum julgamento moral quanto aos que os precederam. Em entrevista ao site Edge Online,
pedidos dos fãs – e quando faz, é comicamente coagido Keita Takahashi faz uma pequena lista de suas
diante da chance de ver rolar mais uma vez a katamari. É referências – que incluem Playmobil, Juan Miró e o filme
o que importa, afinal de contas. Pequena Lojinha dos Horrores.3
Inclusive Katamari mostra muito bem este
processo de reciclagem e criação: na fase da katamari no
4. Conclusão gelo – em que se deve rolar uma bola de neve até fazer
uma cabeça para um boneco – um personagem-fã diz ao
Valendo-nos dos critérios enunciados por Robert Stam Rei que katamari é uma imitação do que o boneco de
em seu texto “Os Filhos de Ubu”, podemos inserir neve já fazia. Ao que o Rei responde “Imitação? Não,
Katamari numa certa tradição modernista de não uma imitação. Nós respeitamos o boneco de neve.”
representação: implode as convenções realistas de tempo Diz Deleuze: “A imitação é a propagação de um
e espaço (num espaço de poucos segundos, engloba-se fluxo [já existente]; a oposição é a binarização, a
tanto a Acrópole como a grande muralha da China); colocação dos fluxos em binaridade; a invenção é uma
utiliza-se da metalinguagem para revelar o aparato e conjugação ou uma conexão de fluxos diversos”4.
evitar a “janela para um outro mundo”; seus heróis não Takahashi – tanto em seu processo criativo quanto na
própria realidade de Katamari – põe todo um rol de
referências e afetos a serviço de algo que tem por única STAM, Robert. Os Filhos de Ubu: A Abstração e a
função trazer bons momentos e criar novas referências e Agressão do Antiilusionismo. O Espetáculo
afetos a quem estiver aberto. Com uma katamari, Interrompido – Literatura e Cinema de Desmistificação.
podemos “ter um saco onde colocamos tudo o que Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
encontramos, com a condição de que nos coloquem XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico – A
também em um saco. Achar, encontrar, roubar, ao invés Opacidade e a Transparência. Rio de Janeiro, Paz e
de regular, reconhecer e julgar”5. Quando perguntado Terra, 2005.
sobre o que precisa mudar na indústria dos games para
atrair mais pessoas criativas, Takahashi responde que “o
melhor a fazer é criar jogos que agradem a essas pessoas. GAMES
Se nós criarmos esses jogos, eles se motivarão a criar
novos jogos, e então devemos encorajar a eles e suas ABE, Masamichi; HINO, Shigefumi. Pikmin. Nintendo,
idéias.”6 2001.
E se ao jogo cabe, antes de mais nada, ser jogo, KOJIMA, Hideo. Metal Gear Solid. Konami, 1998.
talvez a academia deva fazer o que sugere Takahashi TAKAHASHI, Keita. Katamari Damacy. Namco, 2004
com sua katamari. Criar pensamento, estabelecer ______________. We Love Katamari. Namco, 2005
relações, apontar direções para os games na sociedade – UEDA, Fumito. Shadow of the Colossus. Sony, 2005.
e desta forma, levar os games para mais perto do cinema, WRIGHT, Will. Sim City. Maxis, 1989.
da literatura, da comunicação.
Pois é quase um contra-senso que os jogos
narrativos, cada vez mais pretensiosos, sejam avaliados
exclusivamente em função de sua diversão imediata, de SITES
seus gráficos “bons” (sinônimo de realista), e de suas
histórias chamadas “cinematográficas” (como se todas as http://www.gamasutra.com/features/20060525/sheffield_
histórias cinematográficas fossem necessariamente 01.shtml
interessantes). http://www.1up.com/do/feature?pager.offset=0&cId=314
Se realizado isoladamente, o estudo de um game 2234
tão original, vitalista e simples como Katamari acabará http://www.edge-
por continuar o movimento de exaltação desmedida a um online.co.uk/archives/2006/01/everybody_loves_1.php
suposto “salvador” do mundo dos games. Embora tal http://katamari.namco.com/
estudo seja pertinente (Katamari Damacy e We Love http://www.youtube.com/watch?v=y3vc-n9Gx68
Katamari, como grande parte dos games de PlayStation,
vendem algumas centenas de milhares de cópias), NOTAS
devemos manter a calma. Estamos no começo. Há ainda 1
Apresentação do game no YouTube:
muito que os (outros) games podem nos oferecer: novas http://www.youtube.com/watch?v=y3vc-n9Gx68
sensações, novos olhares sobre a realidade, novas 2
A respeito do problema da identificação em textos
reflexões políticas, novas maneiras de estar no mundo, modernos, ver STAM, Robert. Os Filhos de Ubu: A
enfim. E tudo isso sendo – antes de todo o resto – Abstração e a Agressão do Antiilusionismo. O
diversão. Espetáculo Interrompido – Literatura e Cinema de
Desmistificação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
3
http://www.edge-
Referências online.co.uk/archives/2006/01/everybody_loves_1.php
4
DELEUZE, Gilles. Micropolítica e Segmentaridade.
CAILLOIS. Roger. Les Jeux et les Hommes. Lisboa, Mil Platôs v.3. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1996.
5
Cotovia, 1990. DELEUZE, Gilles. Uma conversa, o que é, pra que
DELEUZE, Gilles. Micropolítica e Segmentaridade. Mil serve?. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998.
6
Platôs v.3. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1996.
________. Uma conversa, o que é, pra que serve?. http://www.1up.com/do/feature?pager.offset=0&cId=314
Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998. 2234
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo,
Perspectiva, 2001.

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