Você está na página 1de 182
mtd ow A\ Lai id te: 4, ILUMI/URAS ee ae “ty rae TTI Copyright © 2003: Néstor Garcia Canclini Copyright © desta edigao: Editora lluminuras Leda. Capa: Fe Enniidio A Garatuja Amarda sobre detalhe da série /mortalidades (2003), video-instalagdo, S40 Paulo-Roma, Rachel Rosalen. Revisio: Ariadne Escobar Branco DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Garcia Canclini, Néstor A globalizagio imaginada / Néstor Garcia Canclini ; radugio Sérgio Molina. — Sao Paulo : Tuminuras, 2007. Titulo original: La globalizacién imaginada Bibliografia, ISBN 85-7321-197-0 1. Antropologia cultural 2. Antropologia social 3. Cultura 4. Globalizagio 5. Politica 6, Politica cultural 7. Relagoes econdmicas internacionais I. Titulo, 07-8088 CDD-306.2 {Indices para catélogo sistemitico 1, Cultura ¢ politica : Globalizagi ‘Anteepologia cularal Soci 306.2 2007 EDITORAILUMINURASLTDA. Rua Inicio Pereira da Rocha, 389 - 05432-011 - Sao Paulo - SP - Brasil Tel: (11)3031-6161 / Fax: (11)3031-4989 iluminur@iluminuras.com.br www.iluminuras.com.br fnpice INTRODUGAO Cultura e politica nos imagindrios da globalizagao, 7 Globalizagées circulares ¢ tangenciais, 8 Primeiras questées de método, 13 I - NARRATIVAS, METAFORAS E TEORIAS Carfruto 1 Globalizar-se ou defender a identidade: como escapar dessa opgio, 19 Integrasao de cidadios ou lobby empresarial, 20 Quando Davi naé sabe onde esti Golias, 24 Modos de imaginar 0 global, 29 Espetéculos da globalizacio e melodramas da interculturalidade, 31 CapfruLo 2 A globalizacéo: objeto cultural nao-identificado, 41 Internacionalizagio, transnacionalizagao, globalizacao, 41 © que existe entre MeDonald’s e Macondo, 46 Postais para um bestifrio da globalizagio, 48 Fazer trabalho de campo sobre o México em Edimburgo, 54 Das narrativas & teoria cultural da globalizagao, 56 CarfruLo 3 Mercado ¢ interculturalidade: a América Latina entre a Europa ¢ os Estdos Unidos, 69 Migragées de ontem e de hoje, 71 Conflitos de narrativas sobre as identidades, 76 @) O binarismo maniquetsta, 79 4) O encontro intercultural, 81 ©) O fascinio distante, 82 d) As identidades incomensurdvei, 86 ¢) Americanizagio dos latinos, latinizagao dos Estados Unidos, 88 PA boa vizinbansa sob a tutela norte-americana, 92 espago cultural latino-americano e os circuitos ttansnacionais, 94 Capfruto 4 Nao sabemos como chamar os outros, 99 O multiculturalismo intraduztvel, 100 Circuitos interculturais, 109 Cidadanias multiformes, 113 Il - INTERMEZZO CaptruLo 5 Desencontros entre um antropélogo latino-americano, um sociélogo europeu ¢ uma especialista norte-americana em estudos culturais, 119 Ill - POL{TICAS PARA A INTERCULTURALIDADE CapiruLo 6 De Paris a Miami passando por Nova York, 133 Artes visuais: das vanguardas 4 arte-jato, 135 A inddstria editorial: mundial \s0 aos pedagos, 140 Indiistrias audiovisuais: vozes latinas gravadas em inglés, 144 Perdas e ganhos, 149 Cartruto 7 Capitais da cultura e cidades globais, 153 O renascimento do urbano, 154 A globalizacio das cidades na periferia, 157 Dos espagos urbanos aos circuitos mididticos, 158 Imagindrios provinciais ¢ globais, 163 Cartruto 8 Para uma agenda cultural da globalizagio, 167 Os estudos culturais quando o assombro rareia, 169 A reconstrugio cultural do espaco puiblico, 173 Estética para gourmets interculturais, 184 Do gesto interruptor as politicas de intermediagao, 188 APENDICE Para uma antropologia dos mal-entendidos (Discussao de méwdo sobre a interculturalidade), 195, Escratégias artisticas ¢ cientificas, 195 Histérias desconectadas, 198 Descobrir a multiculturalidade, 202 Rituais de um lado e do outro do gui Brpuiocraria, 215 INTRODUGAO CULTURA E POLITICA NOS IMAGINARIOS DA GLOBALIZAGAO Nao raro, lemos histérias cloqiientes em autores que nao sio os que prefeririamos citar. Faz alguns meses, li a seguinte frase de Phillippe Sollers: “Dois € dois sao seis, diz 0 tirano, Dois ¢ dois so cinco, diz o tirano moderado. O sujeito herdico que, expondo-se a todos os riscos, lembra que dois ¢ dois sio quatro, ouve dos policiais a seguinte adverténcia: ‘vocé quer que voltemos ao tempo em que dois ¢ dois eram seis?”. “Por acaso vocés querem voltar época das ditaduras ¢ das guertilhas?”, perguntam os politicos. “Ou ada hiperinflagio2”, alertam os economistas. Enquanto isso, continuamos sem saber que resultado pode ter, na nova desordem mundial, 0 empenho dos paises por se integrarem em regides para se protegerem da globalizacao: os Estados Unidos com a Europa para fazer frente ao Japao ¢ a China, os mesmos Estados Unidos com a América Latina para que os europeus nio se apropriem do mercado latino-americano: enquanto nés, latino-americanos, estabelecemos 0 livre-comércio entre os nossos paises, com os olhos postos fora da regio, pensando em atrair capitais americanos ¢ europeus. As veres, asidticos. Os Estados Unidos, com a adesio de alguns governos latino-americanos, trabalham pelo estabelecimento da Area de Livre-Comércio das Américas (ALCA) em 2005. Os quinze paises da Unido Européia vam mantendo reunides com os do Mercosul ¢ com o México — ¢, desde junho de 1999, com os demais paises atino-americanos — a fim de estabelecer um acordo de livre-comércio com alguns deles antes dessa data, apesar da resisténcia dos franceses, que veem uma ameaga na concorréncia dos produtos agricolas latino-americanos. Os Estados Unidos constantemente acusam 0 México ¢ alguns paises europeus de dumping ou protecionismo. No Mercosul, ano apés ano, os desentendimentos e a desconfianga poem em risco 0s acordos jd assinados. Livre-comércio, integragio? Novas formas de subordinagao ¢ resistencia, ou aliangas regionais? Poderiam os cidadaos criar alternativas ao que agora se impée ¢ decidir o que mais Ihes convém, sem repensar 6s vinculos interculturais? Velhas historias de rivalidades ¢ preconceitos impregnam essas conversas sobre um futuro mais imaginado que possivel. Nao é facil traduzir esses acordos em ntimeros, porque vivemos em meio a contas delirantes. Nos tiltimos vinte anos, a divida externa dos paises latino- americanos se multiplicou de quatro a seis vezes, O que podem fazer nagGes como a Argentina ¢ o México, com dividas entre US$ 120 e 160 bilhées, se, a cada ano, s6 0 pagamento dos juros consome metade ou mais do PIB? A divida dos Estados Unidos (crés vezes maior) também € impagivel. Quem pode incorporar a escala da vida cotidiana os miimeros que Ié no jornal? Pensar a politica exige imaginagao, mas essas quantias sao tao absurdas e os conflitos que provocam tio dificeis de lidar, que muitas vezes tém 0 efeito de paralisar 0 nosso imaginério. Curioso é que essa disputa de todos contra todos, em que fibricas vao falindo, empregos s4o destrufdos ¢ explodem a migragdo em massa ¢ 0s conflitos étnicos e regionais, receba o nome de globalizagio. Chama a atengio 0 fato de empresirios € politicos interpretarem a globalizagao como a convergéncia da humanidade rumo a um futuro solidario, e que até muitos criticos do processo entendam essa devasta¢do como 0 processo por meio do qual todos acabaremos homogeneizados. GLOBALIZAGOES CIRCULARES E TANGENCIAIS Apesar desses resultados duvidosos, a uniformizagao do mundo num mercado planetatio € consagrada como o tinico modo de pensar, e quem ousa insinuar que as coisas poderiam funcionar de outro modo é desqualificado como nostalgico do nacionalismo. E se alguém ainda mais ousado nao apenas questionar os beneficios da globalizacio mas também a idéia de que a unica forma de realiz-la € por meio da liberalizac¢do mercantil, esse serd acusado de saudosista de tempos anteriores 2 queda de um insuportdvel muro. Como nenhuma pessoa sehsata acredita que se possa voltar aqueles tempos, conclui- se que o capitalismo € 0 tinico modelo possivel para a interagao entre os homens a globalizacio sua etapa superior ¢ inevitavel. Neste livro queremos indagar 0 que podemos fazer diante desse futuro — promissor para alguns, perdido para outros —, nés, que nos dedicamos & cultura. Isto é, que perguntas fazem a interculturalidade ao mercado e as fronteiras & globalizacao. Trata-se de repensar como fazer arte, cultura e comunicagio nessa etapa. Por exemplo, se, ao observar a recomposigao das relages entre a Europa, os Estados Unidos e a América Latina, seria possivel entender esse processo do ponto de vista da cultura e interferir nele de maneira diferente & daqueles que o véem estritamente como intercimbio econdmico. O primeiro ponto a esclarecer é que a cultura nao é apenas o lugar onde se sabe que dois mais dois so quatro. E também a indecisa posigao em que se procura imaginar o que é poss{vel fazer com ntimeros nado muito dlaros, cuja poténcia acumulativa ¢ expressiva ainda se est tentando descobri. Hé um setor da cultura que produz conhecimentos em nome dos quais & possivel afirmar com certeza, 8 contra poderes politicos ou eclesidsticos, 0 que efetivamente di dois mais dois: trata-se do saber que possibilita entender “o real” com alguma objetividade, desenvolver tecnologias de comunicagao globalizadas, medir 0 consumo das indtistrias culturais ¢ conceber programas mididticos que ampliem 0 conhecimento em massa e criem consenso social. Outra parte da cultura, desde a modernidade, se desenvolve em fungao da insatisfagio com a desordem, ¢ as vezes com a ordem, do mundo: além de conhecer ¢ planejar, interessa transformar ¢ inovar. A tarefa de confrontar esses dois modos de entender a cultura, que op6em cientistas ¢ tecndlogos, de um lado, a humanistas ¢ artistas, do outro, mostra-se diferente em tempos globalizados. Para saber 0 que se pode conhecer e administrar, ou o que tem sentido modificar e criar, cientistas ¢ artistas tém de negociar nio sé com mecenas, politicos ou instituigées, mas também com um poder disseminado que se oculta sob 0 nome de globalizagio. Costuma-se dizer que a globalizagao atua por meio de estruturas institucionais, organismos de toda escala ¢ mercados de bens materiais ¢ simbélicos mais dificeis de identificar e controlar que no tempo em que as economias, as comunicagdes ¢ as artes operavam sempre dentro de um horizonte nacional. Hoje, Davi nao sabe onde esté Golias. Para entender essa complexidade, nés, estudiosos da criatividade, da circulacio € do consumo culturais, nos preocupamos cada ver mais em entender os dados brutos, os movimentos socioeconémicos “objetivos” que regem com novas regras os mercados cientificos ¢ artisticos, assim como nossa instével vida cotidiana. Contudo, como a globalizacio se apresenta como um objeto fugidio ¢ nio-trabalhavel, os agentes que a administram também a descrevem por meio de narragoes ¢ metiforas. Dai a necessidade de analisar, de uma perspectiva sdcio-antropolégica da cultura, tanto as estatisticas ¢ os textos conceituais como as narrativas ¢ imagens que tentam nomear seus designios. Além disso, as migragées, as fronteiras permedveis ¢ as viagens falam, em seus estranhamentos, daquilo que a globalizacao tem de fratura ¢ segregagio. Também por isso irrompem narrativas ¢ metéforas nos relatos de migrantes ¢ exilados. Tanta incerteza desestabiliza outros atores sociais que no costumavam se interessar pela cultura. Passada a euforia globalizante dos anos 80, os politicos, que nao entendem muito bem como seu trabalho esté sendo reestruturado, com os aparelhos nacionais que eles disputam controlando cada ver menos espagos da economia e da sociedade, perguntam-se o que fazer, e em que lugar fazt-lo. Empresérios desnorteados pela brusca passagem da economia produtiva para a especulativa se defrontam com questées semelhantes. Uns ¢ outros invocam a necessidade de criar uma nova cultura do trabalho, do consumo, do investimento, da publicidade ¢ da gestio dos meios informéticos ¢ de comunicasao. Ao ouvi-los, tem-se a impressio de que eles s6 se lembram da cultura como um recurso de emergéncia, como se “criar uma nova cultura” pudesse ordenar magicamente os 9 aspectos do trabalho ¢ dos investimentos que escapam 4 economia, tudo aquilo que a concorréncia nao resolve na midia nem no consumo. © apelo a construggo de uma cultura com os movimentos globalizantes pode também ser entendido como a necessidade de ordenar os conflitos entre imaginérios. Veremos 0 quanto varia 0 contetido do que cada um imagina como globalizagio: para o gerente de uma empresa transnacional, a “globalizao” abrange sobretudo 0s paises em que sua empresa atua, suas atividades ¢ a concorréncia com outras empresas; para os governantes da América Latina, cujo intercimbio comercial se concentra nos Estados Unidos, globalizacio é quase sindnimo de “americanizaga0” no discurso do Mercosul, a palavra inclui também nagGes curopéias ¢, as vezes, & associada a novas interagdes entre os paises do Cone Sul, Para uma familia mexicana ou colombiana com varios membros trabalhando nos Estados Unidos, a globalizacio remete a estreita ligacio com 0 que ocorre nesse pais onde estéo seus familiares, bem diferente do que imaginam artistas mexicanos ou colombianos, por exemplo, Salma Hayek ou Carlos Vives, que tém um amplo piiblico no mercado norte- americano. A rigor, somente uma parcela dos politicos, financistas ¢ académicos pensam, em todo 0 mundo, numa globalizacéo circular, ¢ eles nem sequer constituem uma maioria em seus campos profissionais. O resto imagina globalizagées tangenciais. A amplitude ou estreiteza dos imaginérios sobre o global evidencia a desigualdade de acesso aquilo que se conhece como economia e cultura globais. Nessa concorréncia desigual entre imaginérios, vé-se que a globalizagio é ¢ nao é aquilo que promete, Muitos globalizadores vio pelo mundo simulando a globalizacio. Contudo, nem os pobres ou marginalizados podem prescindir do global. Quando os imigrantes latino-americanos chegam ao norte do México ou ao sul dos Estados Unidos, descobrem que a empresa que os emprega é coreana ou japonesa. Além disso, muitos emigrantes tomam a decisio extrema de deixar seu pais porque “a globalizacio” fechou postos de trabalho no Peru, na Colémbia ou na América Central, ou seus efeitos — combinados com dramas locais — tornaram demasiado insegura a sociedade em que sempre viveram Um cineasta norte-americano que trabalha em Hollywood, essa “casa simbélica do sonho americano”, jf nZo tem a mesma idéia sobre a posigao de seu pais no mundo desde que soube que os esttidios da Universal foram comprados por capitais japoneses. Depois de ter pasado tantos anos pensando que o Ocidente era moderno € 0 Oriente tradicionalista, © avango japonés sobre os Estados Unidos ¢ outras regides ocidentais faz com que muitos se perguntem, com David Morley, se agora “o mundo ser lido da dircita para a esquerda, ¢ nio mais da esquerda para a dircita” (Morley e Chen, 1996: 328). A énfase que damos aos processos migratérios ¢ 4s populagées expostas a cssas mudangas aponta para a reflexdo, tanto dos movimentos de capitais, bens 10 comunicag6es como do confronto entre diferentes estilos de vida ¢ representagoes. A vertigem e a incerteza provocada pela necessidade de pensar em escala global leva ao entrincheiramento dos pafses em aliangas regionais ¢ a delimitar — nos mercados, nas sociedades ¢ em seus imagindrios — territérios ¢ circuitos que, para cada um, seriam a globalizagao palatdvel, com a qual podem lidar. Tem-se debatido a necessidade de criar novas barreiras que ponham ordem nos investimentos, ou entre as etnias, as regides ¢ 0s grupos que se misturam répido demais ou permanecem ameacadoramente isolados. Os processos de integracao supranacional poderio fazer algo neste sentido? Embora essas questdes sé tenham sido abertas no infcio dos anos 90, na U; Européia, ¢ mais recentemente no marco do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (TLC, ou NAFTA) e no Mercosul, a articulacao entre globalizagao, integracao regional ¢ culturas diversas ja se est4 tornando um assunto-chave, tanto nas agendas de estudo como nas negociagées. Como introdugio a esse tipo de andlise, abordarei no préximo capitulo trés problemas que surgiram nos anos recentes ao se tentar entender aonde a globalizacao nos leva. O primeiro é aquele que as vezes é resumido como a oposigio entre 0 global ¢ 0 local, ¢ que, no meu modo de entender, convém caracterizar como os diversos niveis de abstragio ¢ concresio cm que se reorganizam a cconomia, a politica ¢ a culcura numa época globalizada. A segunda questo, entrelagada com a anterion € se existe alguma possibilidade de reverter a sensagio de impoténcia politica em que nos mergulha a experiéncia cotidiana de que as principais decisGes sio tomadas em locais inacessiveis ¢ até de dificil identificagao. Em terceiro lugar, exploro as conseqiiéncias tedrico-metodolégicas dessas dificuldades para os estudos transdisciplinares, que podem ser resumidas nos desafios de trabalhar com os dados da economia e da politica da cultura a par das narrativas ¢ metéforas com que se imagina a globalizagao. No segundo capitulo analisarei as conseqiténcias do fato de a globalizacao ser um “objeto cultural nao-identificado”. A questo se esclarece um pouco quando se estabelece uma distingio entre “internacional”, “transnacional” e “global”. Mas a globalizagao nao é um objeto de estudo claramente delimitado, nem um paradigma cientifico nem econdmico, politico nem cultural, que possa ser postulado como modelo tinico de desenvolvimento. Devemos aceitar que existem muiltiplas narrativas sobre o que significa globalizar-se, mas, sendo seu aspecto central a intensificagio das interligagées entre sociedades, nao podemos observar a variedade dos relatos sem nos preocuparmos com a sua compatibilidade dentro de um saber relativamente universalizivel. Isso pressupde a discussio das teorias sociolégicas ¢ antropolégicas, a par do estudo das narrativas ¢ metéforas que vém sendo construidas para dar conta do que escapa as tcorias ¢ as politicas, que se oculta em suas brechas ¢ insuficiéncias. FE nos relatos ¢ imagens que aparece o que a globalizacio tem de 1 utopia ¢ o que ela nao pode integrar. Por exemplo, as diferengas entre anglo-saxdes ¢ latinos, o estranhamento das pessoas que migram ou viajam, que nio vivem onde nasceram ¢ se comunicam com outras que nao sabem quando irao rever. As metéforas servem para imaginar o diferente; as narrages ritualizadas, para ordené-lo. Em seguida, os capitulos trés e quatro procuram caracterizar a globalizagao possivel no Ocidente, feita das interagdes entre a Europa, a América Latina ¢ os Estados Unidos. Tento ver como as migragées antigas ¢ recentes configuram os modos de nos olharmos. As narrativas formadas nos intercimbios mercantis ¢ simbélicos, do século XVI até meados do XX, parecem reproduzir-se nos esteredtipos das tiltimas décadas globalizadoras: discriminagao do norte em relagao aos latino-americanos, admiragao e receio no sentido inverso. Mas a leitura pode ser mais complexa se deixarmos de ler a confrontacio entre identidades e examinarmos os processos culturais que nos aproximam ou nos afastam. As identidades parecem incompativeis, mas nem por isso os negécios ¢ os intercambios mididticos deixam de aumentar, Para entender essa defasagem entre idcologias ¢ praticas, analiso 0 modo como as politicas de cidadania trabalham com os imagindrios sobre o semelhante € o diferente na Europa, nos Estados Unidos e em trés paises da América Latina: Argentina, Brasil e México. Repasso as criticas feitas as contradigdes desses modelos em cada um dos casos, a dificuldade de concilid-los ¢, a0 mesmo tempo, a necessidade de conseguir acordos num tempo em que a globalizagio aproxima nagées distantes. Pergunto-me como construir uma esfera publica transnacional onde as concepgées culturais, ¢ suas respectivas politicas, nao sejam incomensurdveis. Quatro modelos entram em jogo: o sistema republicano europeu de direitos universais, o segregacionismo multicultural dos Estados Unidos, as integragées multiétnicas sob 0 Estado-Nacao nos paises latino- americanos, e — atravessando todos eles — a integracio multicultural propiciada pelos meios de comunicagio. No quinto capitulo proponho um intermezzo narrativo ¢ semi-ficcional. Assim como nas historias de vida se constroem personagens-sintese, tentei aqui imaginar os desencontros de um antropélogo latino-americano, um sociélogo europeu e uma especialista norte-americana em estudos culturais. Como nao é mais possivel problematizar a relagio das teorias com suas condigdes sociais de produgao vinculando-as somente & nago, 4 classe ou A universidade em que sio elaboradas, incorporo a vida cotidiana de pesquisadores que viajam e tém acesso a experiéncias transnacionais e fluxos deslocalizados de informagio. Trata-se de uma narrati construida com alguns dados biogrficos, meus ¢ de outros, mas isso pouco importa, pois a discussio sobre as cigncias sociais ¢ os estudos culturais que percorre essas paginas tem por preocupasio, mais do que saber o que é verdadeiro ou falso, oferccer uma versio verossimil dos dilemas em que hoje se move a pesquisa na drea. As varias manciras de se globalizar, ou de passar da hegemonia curopéia para a norte-americana, sao apreciadas no sexto capitulo, quando se compara 0 que ocorre nas artes ¢ na indistria cultural. A aplicagio de padrdes industriais ¢ critérios transnacionais de competéncia as artes visuais ¢ & literatura esté modificando sua producio e valoragao, emboraa maior parte das obras artisticas continue a expressar tradig6es nacionais ¢ circule somente dentro do seu pais de origem. A industria editorial esta organizada por editoras transnacionais, que agrupam seus catdlogos ca distribuigao em regides lingiifsticas. Onde a globalizacao aparece mais claramente € no mundo audiovisual: musica, cinema, televisio ¢ informatica vém sendo reordenados, por mas poucas empresas, para serem difundidos em todo o planeta. O sistema multimidia que integra parcialmente esses quatro campos oferece possibilidades inéditas de expansio transnacional até nas culturas periféricas. Mas também cria, no caso latino-americano, dependéncias maiores que as que tivemos has artes visuais, primeiro com a Franga ¢ agora com os Estados Unidos, e que as existentes em relagio 4 Espanha no mundo editorial. Além de examinar os desafios diferenciais da transnacionalizago ou da globalizagio em cada campo da cultura, explorarei as tensdes geradas entre a homogeneizagio ¢ as diferengas nas relagdes assimétricas existentes entre pafses ¢ regides. No sétimo capitulo, tratarei das cidades, porque € nelas que se imagina o global. E sobretudo nas metrépoles que se articula o local com o nacional ¢ com os movimentes globalizadores. Ao analisar os requisitos de uma cidade global ¢ como se diferenciam as do “primeiro” ¢ do “terceiro” mundo, captamos problemas- chave da dualizagio € da segregagio provocados pelos processos globais. Veremos também as oportunidades ambivalentes de renascimento urbano oferecidas pela integragdo a circuitos de comércio e consumo, de gestio e informagao transnacional. Cosmopolitismo cultural no consumo, com perda de empregos, aumento da inseguranga ¢ degradagio ambiental. Proponho no oitavo capitulo uma agenda polémica do que poderiam ser as politicas culturais em tempos globalizados. Como reconstruir 0 espaco piiblico, promover uma cidadania supranacional, comunicar bens ¢ mensagens a audiéncias dispersas em muitos paises, repensar a potencialidade das culturas nacionais ¢ das instituigdes regionais ¢ mundiais sao alguns dos desafios analisados. Discuto por que as questdes estéticas so hoje de interesse central para a politica e o que pode ser feito com essa preocupasio numa economia cultural de mercado. PRIMEIRAS QUESTOES DE METODO Ha varios problemas dificeis de resolver ao selecionar narrativas ¢ metdforas, ao interpreté-las e relacioné-las com dados puros. Irei apresentando-os, conforme a oportunidade, em varios capitulos. Mas quero tratar aqui de um que é bisico. O 13 porqué de se escolherem os fatos, relatos ¢ simbolos que aparecem neste livro sobre migrantes ¢ interculturalidade, sobre as relagoes entre a Europa, a América Latina ¢ os Estados Unidos, quando existem tantos outros. E ébvio, ao ver a quantidade de paginas deste volume, que nao pretendi escrever uma enciclopédia dos relatos e metéforas acumulados sobre esses temas. Arrolo a seguir as regras para a selegdo dos que aqui aparecem: a) Escolhi, depois de varios anos de leituras de estudos etnogréficos ¢ crénicas, de dezenas de entrevistas a informantes interculturais de varios paises, um repertério que me parecia representative do universo existente, procurando abranger, mais do que a diversidade de situagées, estruturas ¢ transformagdes emblematicas. b) Interessaram-me, sobretudo, os fatos, narrativas ¢ metéforas que condensam aspectos centrais das relagGes internacionais e os diversos modos de imaginar a globalizagio — ou suas formas equivalentes em menor escala: confrontacées ¢ acordos intemacionais ou regionais — que poem em crise as formas habituais de concebé-las. ©) Apresentei esta selegao e parte das interpretagdes aqui reunidas em conferéncias nos Estados Unidos, na América Latina (Buenos Aires, México, S40 Paulo) ¢ em congressos internacionais de latino-americanistas europeus (Ache, 1998), canadenses (Vancouver, 1997), da LASSA — Latin American Studies Association (Chicago, 1998), de estudos culturais (Pittsburgh, 1998), ¢ em congressos de antropélogos dos Estados Unidos (1996), do Mercosul (1997), da Colémbia (1997), além de um simpésio sobre fronteiras de varias regiées (Buenos Aires, 1999). Nessas reunides recolhi relatos de outras pesquisas que desafiavam minha selego, bem como criticas a minhas interpretagées. Restam neste livro alguns fragmentos, reescritos, daquelas conferéncias. Sem dtivida, tais confrontagées poderiam se multiplicar, a selegio ¢ as interpretagdes poderiam ser refinadas, refutadas ¢ contrastadas em mais cenérios, ¢ até se poderiam propor outras diferentes. E claro que a amostra oferecida nestas paginas configura apenas um arremate transitério para efetuar uma “totalizacao” argumentativa, nio-enciclopédica, a fim de que, uma vez publicada e difundida, se continue a discussio. De todo modo, hi um certo esforco por pensar em conjunto, jd que se trata de um livro ¢ ndo de uma colegao de artigos ¢ conferéncias. ‘Como se pode depreender das reunides em que parte deste trabalho foi debatido, a lista de agradecimentos a quem ajudou a pensar € repensar 0 que aqui se diz seria demasiado extensa, Muitas dessas mengées poderao ser encontradas a0 longo do texto na bibliografia citada. Quero ainda destacar, sem a pretensio de ser exaustivo, minhas conversas com Hugo Achugar, Arturo Arias, Lourdes Arizpe, Lluis Bonet, Helofsa Buarque de Holanda, Ramén de la Campa, Eduard Delgado, Anibal Ford, Juan Flores, Jean Franco, Alejandro Grimson, Fredric Jameson, Sandra Lorenzano, Mario Margulis, Jestis Martin Barbero, Daniel Mato, Walter Mignolo, Kathleen Newman, Renato Ortiz, Mary Pratt, Nelly Richard, Renato Rosaldo, Beatriz Sarlo, Amalia Signorelli, Saiil Sosnoski e George Ytidice. 14 Contribuiram para a preparaséo deste livro as condigies de pesquisa e docéncia oferecidas pela Universidad Auténoma Metropolitana de México — UAM, especialmente 0 Departamento de Antropologia, ¢ 0 didlogo com os colegas do Programa de Estudos sobre Cultura Urbana, cujos membros ¢ publicages conjuntas cito mais adiante. O apoio econémico oferccido pela UAM no ano sabittico 1996- 1997, junto com 0 que me foi proporcionado pelo Fundo para a Cultura México- Estados Unidos, facilitaram trabalhos de campo ¢ entrevistas nesse perfodo, em ambos os pafses. Para avangar em questées fronteirigas, multinacionais ¢ de politica cultural foram significativos 0s didlogos com o Rainer Enrique Hamel, Eduardo Nivén, Ana Rosas Mantecén, Tomam Ybarra Frausto, José Manuel Valenzuela ¢ Pablo Vila. O estudo das experiéncias artisticas da mostra inSITE na fronteira entre México ¢ Estados Unidos, que me permitiu elaborar boa parte do que aqui exponho sobre imagindrios globais, deve-se em grande parte as conversas com Carmen Concha ¢ Michel Krichman, coordenadores desse programa. André Dorcé ¢ Luz Maria Vargas apoiaram com eficiéncia a edigio deste livro. Em trechos posteriores, ¢ no apéndice, analisarei outras justificativas desta selecio de fatos, relatos ¢ metiforas, e apontarei mais reconhecimentos pessoais ¢ institucionais. Saltaré aos olhos, entéo, que no é um dado marginal o fato de eu ter vivido no México nos tiltimos 23 anos, como estrangeiro mais ou menos mexicanizado, que nio deixa de ser argentino, ¢ tem “compatriotas” nascidos no México e em outros paises, cuja proximidade me leva a tirar as aspas dessa palavra. Seria contraditério com as teses ¢ a metodologia deste livro desconhecer essa heterogeneidade ou pretender falat a partir de um desses lugares apenas. Por isso explicitarei em vérios momentos, usando uma expressio de Tzvetan Todorov, 0 que para mim significa “esse encontro de culturas no interior de nés mesmos” (Todorov, 1996: 23). Se € complicado situar-se na interagio entre diversos patriménios simbélicos, mais dificil ainda seria pretender estudar esses temas a partir de um tinico observatério nacional ou étnico. “O que me faz. ser eu, ¢ nao outro — escreve Amin Maalouf no inicio de seu livro Identidades assastinas —, & esse estar na fronteira entre dois paises, entre dois ou trés idiomas, entre varias tradigdes culturais” (Maalouf, 1999: 19). Assim como a cle ea tantos outros que compartilham dessa posigo intercultural, muitas vezes me fizeram esta pergunta: “mas, afinal, 0 que voce se sente no fundo?”. © autor franco-libanés diz que, durante muito tempo, essa pergunta arrancava dele um sorriso. Agora ele a considera perigosa pela hipétese de que cada pessoa ou cada grupo tem uma “verdade profunda”, uma esséncia, determinada desde 0 nascimento ou por conversio icligiosa, ¢ que alguém poderia “afirmar essa identidade” como se os compatriotas fossem mais importantes que os concidadios (que podem ser de varios paises), como se as determinagées biolégicas ¢ as lealdades infantis prevalecessem sobre as convicgses, preferéncias ¢ os gostos que a pessoa vai aprendendo de virias culturas. 15 As “pessoas fronteirigas”, diz Maalouf, podem sentir-se minoritérias © muitas vezes marginalizadas. Mas, num mundo globalizado, todos somos minoritérios, até os falantes do ingles, pelo menos quando se aceitam os muitos componentes da propria identidade ¢ tentamos nos entender sem reducionismos. Embora alguns sejam mais minoritérios do que outros. Trata-se, enfim, de pensar os paradoxos de set 20 mesmo tempo drabe € cristo, “argenmex” ou “méxico-norte-americano”, “brasiguaio” ou franco-alemao. E também as diferengas entre essas fuses — desarraigamentos. Nada que se resolva dizendo que dois ¢ dois sio isto ou aquilo, nem por decisao de um tirano nem por heroismo individual. Essas tensdes interculturais também sao, hoje, um dos mais férteis objetos de pesquisa e uma chance de construir sujeitos coletivos, politicas abertas e democraticas. México, DE, setembro de 1999 16 NARRATIVAS, METAFORAS E TEORIAS CapfruLo 1 GLOBALIZAR-SE OU DEFENDER A IDENTIDADE: COMO ESCAPAR DESSA OPCAO Quando escutamos as diversas vozes que falam da globalizagio, surgem “paradoxos”. Ao mesmo tempo em que é concebida como expansio dos mercados e, portanto, da potencialidade econdmica das sociedades, a globalizagio reduz a capacidade de acio dos Estados nacion is, dos partidos, dos sindicatos ¢ dos atores politicos cldssicos em geral. Produz maior intercimbio transnacional ¢ deixa cambaleante a seguranga que dava o fato de pertencer a uma nagao. ‘Tem-se escrito profusamente sobre a crise da politica attibuida & corrupgao ¢ perda de credibilidade dos partidos, & sua substituicao pela midia ¢ pelos tecnocratas. Quero destacar que, além disso, transferir as instincias de decisio da politica nacional para uma vaga economia transnacional esté contribuindo para reduzir os governes nacionais a simples administradores de decis6es alheias, atrofiando a imaginacio socioecondmica ¢ levando a esquecer as politicas de planejamento de longo prazo. Esse esvaziamento simbdlico material dos projetos nacionais deprime 0 interesse pela participagao na vida puiblica, Mal se consegue reativé-lo em periodos pré-eleitorais por meio de técnicas de marketing. A proximidade com 0 poder nos regimes democraticos de escala nacional se conseguia por meio de interagées entre organismos locais, regionais ¢ nacionais. As formas de representagdo entre os trés niveis nem sempre foram figis transparentes, nem contaram com uma adequada prestacéo de contas dos organismos nacionais aos cidadios. Mas as farsas ¢ as traigdes eram mais ficeis de reconhecer que nas relagées distantes que hoje se estabelecem entre 0s cidadios as entidades supranacionais. Pesquisas feitas entre as populagdes englobadas na Unio Européia, no NAFTA ¢ no Mercosul revelam que a esmagadora maioria no entende como esses organismos funcionam, 0 que eles discutem nem por que tomam as decisdes. E até muitos deputados dos parlamentos nacionais parecem nao perceber 0 que est em jogo em deliberagdes complexas, cuja informacao sé ¢ acessivel a elites politicas transnacionalizadas ou a técnicos especializados, tinicos possuidores das competéncias necessérias para “resolver” 0s problemas europeus, norte-americanos ou latino-americanos, ¢ até para estabelecer a prioridade das agendas. 19 INTEGRAGAO DE CIDADAOS OU LOBBY EMPRESARIAL 1. Como reagem as sociedades latino-americanas, que nos iiltimos cingitenta anos deslocaram a maioria de sua populagio do campo para as cidades, baseando- se no desenvolvimento industrial substitutivo e em espacos de intermediacao modernos, ao se defrontar com essa repentina reordenacao que em uma ou duas décadas desmonta essa historia de meio século? Os paises se desindustrializam, as instancias democriticas nacionais se enfraquecem, acentua-se a dependéncia econémica ¢ cultural em relagao aos centros globalizadores. Mas, ao mesmo tempo, as integragdes econdmicas ¢ os convénios de livre-comércio regionais emitem sinais de esperanga. Depois da surrada histéria de promessas sobre a “Patria Grande” e dos fracassos de tantas conferéncias intergovernamentais, encontros de presidentes, ministros da economia e da cultura, a rapidez com que esto avangando NAFTA, 0 Mercosul ¢ outros acordos regionais tem gerado expectativas. No inicio da década de 90, era possivel pensar que os Estados latino-americanos estavam reordenando suas economias nacionais com rapidez para atrair investimentos ¢ torné-las mais competitivas no mercado global. Mas desde a crise mexicana de 1994 até a ocorrida em 1998-1999 no Brasil ¢ na Argentina em 2001- 2002, com efeitos desestabilizadores que se refletem em toda a regiao, ¢ até nas metrépoles, salta aos olhos a baixa confiabilidade ¢ 0 escasso poder dos governos. Os acordos de integrasao intergovernamentais revelam-se apoios & convergéncia monopélica dos setores empresatiais ¢ financeiros mais concentrados. As avaliagdes académicas da nossa escassa capacidade de construir, por meio de integracées continentais, instancias que fortalegam as sociedades ¢ culturas latino-americanas (McAnany e Wilkinson, 1996; Recondo, 1997; Roncagliolo, 1996), nao ensejam nenhum otimismo. Tampouco o resultado de sondagens recentes que registram a desconfianga de trabalhadores e consumidores quando escutam empresdrios ¢ governantes anunciarem a nova via para a modernizagao com a ambivalente formula de “globalizacio ¢ integraco regional”. Observa-se um desencontro entre 0 que pregam as elites econémicas ou politicas ¢ a opiniio da maioria dos cidadaos. Em abril de 1998, celebrou-se em Santiago do Chile a II Ctipula das Américas, em que os Estados Unidos, aliados a varios governos latino-americanos, trabalharam pela criagio da Area de Livre-Comércio das Américas (ALCA) para liberalizar os intercimbios no continente. A proposta era integrar, j4 no ano 2005, as economias nacionais da regiao a fim de favorecer as importagées e exportagdes e melhorar a posigao do continente nas disputas globais. Contudo, uma gigantesca pesquisa de opiniao realizada entre novembro e dezembro de 1997 em dezessete paises da regido pelo instituro Latinobarémetro, com a aplicagio de 17.500 entrevista, revelou que os cidadios nao compartilhavam desse otimismo. Os resultados dessa sondagem, entregues aos governantes na ctipula 20 de Santiago, mostravam que apenas 23% acreditavam que seu pais estava progredindo, ¢ em quase todas as nagdes essa avaliacdo piorou em relago aos dados obtidos em 1996, As instituigdes que os prdprios entrevistados consideravam mais poderosas (governo, grandes empresas, militares, bancos ¢ partidos politicos) eram aquelas em que menos se confiava. As crises de governabilidade, as desvalorizagdes, junto ao aumento do desemprego ¢ da pobreza, foram alguns dos fatos que levaram um ntimero crescente a duvidar da democtacia e a pedir “pulso firme”: a porcentagem foi menor nos paises que até hé poucos anos viviam sob ditaduras militares (Argentina, Chile ¢ Brasil), mas aumentava significativamente em outros, entre eles o Paraguai e 0 México, em processo incipiente de democrati: asio. Entre 1996 ¢ 1997, os paraguaios partidérios de uma solugio “autoritéria” saltaram de 26 para 42%, e os mexicanos de 23 para 31%. A excegio de Costa Rica ¢ Uruguai, onde a credibilidade no sistema politico permanecia alta, no resto da América Latina, 65% se mostraram “pouco ou nada satisfeitos” com o desempenho da democracia (Moreno, 1998: 4). Segundo a mesma pesquisa, o aumento do autoritarismo na cultura politica dos cidadaos vem associado & convicgdo de que seus governos tém cada ver menos poder. Entre 1996 ¢ 1997, a porcentagem dos que acreditavam que 0 governo era 0 ator mais poderoso baixou de 60 para 48%, Por outro lado, aumentou o ntimero dos que sustentam que as decises que definem o futuro sfo cada vez mais tomadas pelas empresas transnacionais, com o aumento da participacéo militar. Ao ver que o distanciamento da politica ¢ 0 aprofundamento das desigualdades geram nao apenas descrenga, mas também turbuléncias nas ctipulas financeiras ¢ nas economias, alta abstengao eleitoral ¢ abalos na base social, cabe perguntar se esse modo injusto de globalizar € governdvel. Ou, simplesmente, se a globalizacao, feita desse modo, tem algum futuro. Segundo o Relatério sobre desenvolvimento humano no Chile, pais onde, supostamente, a abertura econémica teria sido mais bem-sucedida, as expectativas sio de que a inseguranca aumente devido & delingiiéncia, as crises de sociabilidade ¢ a instabilidade econdmica. O mal-estar aumenta também, como aponta esse estudo, devido ao “medo de sobrar” (PNUD, 1998: 115-126). Numa interpretacio desse relatério, Norbert Lechner observa que 0 crescimento econdmico de 7% ao ano ¢ outros indices macrossociais positivos sio acompanhados de um vago mal-estar que se manifesta como medo do outro, da exclusio ¢ da falta de sentido. As estatisticas indicam que a modernizagao e a abertura do pais ampliaram o acesso a empregos ¢ a educagio ¢ melhorou os indicadores de satide. “Mas as pessoas desconfiam... do futuro”. A globalizagao é “vivida como uma invasio extraterrestre” (Lechner, 1998: 187 ¢ 192). © que se pode esperar desse enfraquecimento dos Estados nacionais, da impoténcia dos cidadaos ¢ da recomposigio globalizada do poder ¢ da riqueza? O que esse processo implica na cultura, ¢ sobretudo em sua frea mais dindmica € 21 influente: as comunicagées? A globalizacio, que acirra a concorréncia internacional e desestrutura a producéo cultural endégena, favorece a expansio de industrias culturais com capacidade de homogeneizar ¢ a0 mesmo tempo contemplar de forma articulada as diversidades setoriais ¢ regionais. Destréi ou enfraquece os produtores pouco eficientes ¢ concede as culturas periféricas a possibilidade de se encapsularem em suas tradigdes locais. Em uns poucos casos, dé a essas culturas a possibilidade de estilizar-se ¢ difundir sua musica, suas festas ¢ sua gastronomia por meio de empresas transnacionais. A concentracio nos Estados Unidos, Europa e Japio da pesquisa cientifica ¢ das inovagées em informacio ¢ entretenimento aumenta a distancia entre o Primeiro Mundo ¢ a produgio raquitica ¢ desatualizada das nagdes periféricas. Mesmo em relagio a Europa, tem-se agravado a desvantagem da América Latina, como se verifica em relacao ao desenvolvimento demografico: nosso continente € responsavel por 0,8% das exportagées mundiais de bens culturais tendo 9% da populagao do planeta, a0 passo que a Unio Européia, com 7% da populagio mundial, exporta 37,5% e importa 43,6% de todos os bens culturais comercializados (Garretén, 1994), 2. Serd que nas metrépoles a integracao supranacional conta com maior consenso dos cidadaos? Os estudos sobre a Unio Européia revelam dificuldades para construir uma esfera publica, com deliberages democriticas, devido & prevaléncia, nos acordos ¢ organismos supranacionais — e mais ainda nos de cada pais —, da negociagio sobre os mandatos dos representantes, dos compromissos entre grupos empresariais sobre os interesses piiblicos majoritarios e do lobby (ou do “lobbysmo”) sobre as instancias de governo regional ou continental. Ao que se redu a politica, pergunta Marc Abélés, quando em Bruxelas, em torno dos organismos comunitirios, prosperam mais de dez mil consultores, advogadas e especialistas, as vezes representando grupos territoriais, em outros casos como técnicos agricolas, financeiros ou, juridicos dispostos a vender seus servigos a embaixadores, ministros, sindicatos, jornalistas, empresirios, ¢ até a varios deles a0 mesmo tempo? “A politica se identifica cada vez mais com uma pratica do lobby” (Abélés, 1996: 102). Na Unido Européia tem-se tentado aumentar a transparéncia dos acordos supranacionais ¢ aproximé-los da compreensio dos cidadios. Ao estabelecer, junto com os acordos comerciais, programas educativos ¢ culturais que abrangem os guinz membros, busca-se integrar as sociedades. Tem-se apoiado a formagio © paises de “um espago audiovisual curopeu” com marcos normatives comuns e programas como Media, Euroimages ¢ Eureka, que favorecem as co-produgées da inditstria cultural na regio ¢ sua circulagio nos pafses que a compéem, 0 que vai muito além da defesa retérica da identidade, Na mesma linha, os cidadaos dos quinze paises-membros compartilham um passaporte europeu, criaram-se uma bandeira © um hino da Europa, fixaram-se agendas anuais compartilhadas (0 ano curopeu 22 do cinema, da seguranga nas estradas) ¢ realizam-se sondagens periédicas para identificar uma “opiniao publica curopéia” (Moragas, 1996). A instalagio do euro como moeda tnica a partir de 1999, processo que culminou em 2002 com o desaparecimento das moedas nacionais, consolida a unificagio econémica e tem fortes conseqiiéncias para a constituigao de uma identidade simbélica comunitaria. Essas mudangas sio amplamente difundidas ¢ explicadas com didatismo para todos os eleitores. Os jornalistas, porém, dao pouco espago & maioria desses acontecimentos ¢ confessam sua dificuldade para traduzi-los & linguagem dos jornais. Analistas preocupados com a participacao social se perguntam se a complexidade técnica da europeizagio da politica “nao seré contraditéria com 0 ideal de uma democracia fundada na transparéncia ¢ na facilidade de acesso de cada concidadao ao que esti em jogo no debate” (Abélés, 1996: 110). Estudos antropoldgicos e sociopoliticos sobre a integracio européia tém mostrado que os programas destinados a construir projetos comuns nao bastam para reduzir a brecha entre a Europa dos mercados ou dos governantes ¢ a dos cidadaos. Por mais que nesse continente, mais do que em outros blocos regionais, se venha reconhecendo o papel da cultura e da dimensio imagindria nas integragdes supranacionais, a construgio de elementos de identificagio compartilhada nao basta para que a maioria interiorize essa nova escala do social. Uma explicagao possivel para 0 fendmeno ¢ que nenhum programa voluntarista de integragio pode conseguir grande coisa quando nao se sabe 0 que fazer com a heterogencidade, isto é, com as diferengas ¢ os conflitos que nao séo redutiveis a uma identidade homogénea. Muitos intelectuais ¢ cientistas sociais, por exemplo, aqueles que se retinem em torno da revista Liber, editada por Pierre Bourdieu em dez linguas européias, apontam como chave explicativa do baixo consenso social 0 predominio da integraséo monetétia, da “Europa dos banquciros”, sobre a integragéo social. Questionam a capacidade de criar lagos sociais a partir de uma teoria globalizadora que, em seus célculos econdmicos, nao leva em conta os custos sociais do proceso, © custo das doensas ¢ do sofrimento, do suicidio, do alcoolismo e da dependéncia de drogas. Até de um ponto de vista estritamente econémico, é uma politica equivocada, “nao necessariamente econdmica”, a que nao leva em conta os custos de suas aces na “inseguranca das pessoas ¢ dos bens, portanto em policia”, que trabalha com uma definigio abstrata ¢ estreita de eficiéncia — a rentabilidade financeira dos investidores — e negligencia a atengio a clientes ¢ usurios (Bourdieu, 1998: 45-46). As onze linguas faladas no Parlamento Europeu correspondem a diferengas culturais que nao se dissolvem com os acordos econdmicos de integracio. Algo semelhante ocorre com a diversidade de idiomas ¢ os antagonismos culturais ¢ politicos entre norte-americanos ¢ latino-americanos (protestantes versus catdlicos, 23 brancos versus “hispanicos” ¢ indios). Também com as profundas diferengas entre latino-americanos, que afloram nas negociag6es econdmicas ¢ se tornam mais patentes na hora de aplicar as decis6es tomadas pelas cipulas de governantes ¢ técnicos. Os poucos estudos etnogréficos ¢ comunicacionais realizados até agora sobre processos de livre-comércio ¢ integragio, que retomarei nos capitulos seguintes, mostram quantos interesses econdmicos, étnicos, politicos ¢ culturais se entrecruzam ao construir esferas piiblicas supranacionais: com muita freqiiéncia, as tentativas de construir égoras resultam em torres de Babel. QUANDO Davi NAO SABE ONDE ESTA GOLIAS Um dos principais obsticulos para que os cidadaos acreditem nos projetos de integracao supranacional sio os efeitos negativos dessas transformagées nas sociedades nacionais ¢ locais. E dificil obter consenso popular para mudangas nas relagbes de produgio, comércio ¢ consumo que tendem a depreciar os vinculos das pessoas com seu territério nativo, a suprimir postos de trabalho ¢ a achatar os pregos dos produtos locais. O imagindrio de um futuro econdémico préspero eventualmente suscitado pelos procesios de globalizasao ¢ integracao regional é muito frégil se nao se leva em conta a unidade ou diversidade de linguas, comportamentos ¢ bens culturais que dio sentido & continuidade das relagdes sociais. Contudo, os processos de integracio mais avangados na atualidade se realizam entre paises que nao contam com essas coincidéncias culturais. Se isso vale para um operdtio espanhol, francés ou grego face 4 distancia que sente em relagéo a Bruxelas, ou um chileno, argentino ou mexicano em relagao ao que se decide em Brasilia ou Cartagena, a impoténcia ¢ ainda maior quando a referencia de poder é uma empresa transnacional que fabrica pecas de um automével ou de um televisor em quatro paises, monta o produto em um quinto ¢ tem seus esctitdrios em outros dois ou trés. Essa distancia equivale, as vezes, aquela que experimentamos ao receber mensagens pela televisio, pelo cinema ou pelos discos, vindas de lugares nao-identificdveis. A pergunta que surge é se, perante esses poderes anénimos e translocalizados, pode haver sujeitos na produgao ¢ no consumo. Cada vez mais, trabalha-se para outros, mas nao patries ou chefes identificiveis, e sim empresas transnacionais, fantasmagéricas sociedades anénimas que ditam, a partir de lugares obscuros, regras indiscuttveis ¢ inapeliveis I as empresas sem rosto — com marca mas sem nome — dio a isso é “flexibilizacgio E cada ver ma ado o poder de negociago dos sin atos, € 0 nome que do trabalho”, Na verdade, 0 que se torna instivel, mais do que flexivel, s40. as condigoes de trabalho; o trabalho é rigido porque & incerto, o trabalhador deve cumprir & risca os horirios, os rituais de submissao, a adesdo a uma ordem alheia 24 que acaba sendo interiorizada para nao perder o salério. Entre os muitos exemplos recolhidos nos escritos sobre globalizagao, recordo este, citado por Ulrich Beck: “Sao 21h10; no aeroporto berlinense de Tegel, uma voz rotineira eamavel comunica aos exaustos passageiros que podem afinal embarcar com destino a Hamburgo. A voz pertence a Angelika B., que esta sentada diante de seu painel eletrénico na Califérnia. Depois das 16 horas, hora local, a locugdo do aeroporto berlinense ¢ feita na Califérnia, por raves tio simples quanto inteligentes. Em primeiro lugar, ali nao é necessétio pagar mais por servigos fora do horirio comercial; em segundo lugar, os custos salariais (adicionais) para a mesma atividade sao consideravelmente mais baixos do que na Alemanha” (Beck, 1998: 38-39). De maneira andloga, as peas de entretenimento so produzidas por outros agentes distantes, também sem nome, como as logomarcas — CNN, Televisa, MTV — cujo titulo completo a maioria muitas vezes desconhece. Em que lugar sio produzidos esses thrillers, telenovelas, noticidrios e seriados? Em Los Angeles, na Cidade do México, ‘em Buenos Aires, Nova York ou, quem sabe, num estudio disfargado em certa baia dos Estados Unidos? Afinal, a Sony nao era japonesa? Que & que ela faz, entio, transmitindo de Miami? O fato de os apresentadores de um programa falarem em espanhol ou inglés, um espanhol marcadamente argentino ou mexicano, como faz a MTV para sugerir identificagao com paises especificos, nao significa grande coisa. Afinal, é mais verossimil, mais coerente com essa desterritorializaggo essa distancia imprecisa, que nos falem no inglés deslocalizado da CNN, no espanhol descolorido dos locutores de Televisa ou das séries dubladas. Na época do imperialismo, podia-se experimentar a sindrome de Davi ante Golias, mesmo sabendo-se que 0 Golias politico estava, em parte, na capital do proprio pais ¢, em parte, em Washington ou em Londres; o Golias da comunicagio em Hollywood, e assim por diante. Hoje, cada um desses gigantes se desdobra em trinta cenérios, com gil flexibilidade para se mover de um pais para outro, de uma cultura a muitas, pelas redes de um mercado polimorfo. Raramente conseguimos imaginar um local preciso de onde nos falam. Isso condiciona a sensacio de que ¢ dificil modificar alguma coisa, que em vez desse programa de televisio ou desse regime politico poderia haver outro. Alguns espectadores podem intervir nesses simulacros de participagio no radio ¢ na televisdo que sio a linha direta ou a presenga no esttidio, ou podem ser entrevistados numa pesquisa de audiéncia. Essas aproximagies excepcionais ao poder, a sensacio de ser consultado, nao alteram para a maioria, como se vé, por exemplo, nos recentes estudos de Angela Giglia e Rosalia Winocur, a percepgio de que a midia fala a partir de posigdes intangiveis, Seus planos ¢ suas decisses vém de lugares inacessiveis, de estruturas organizacionais, e nao de pessoas. Em outros tempos, chegamos a pensar que as pesquisas sobre habitos de consumo poderiam ajudar a saber 0 que os receptores realmente querem. Estudos 25 desse tipo podem até servir para democratizar as polfticas culturais em cidades, rédios ou centros culturais independentes, sempre na esfera de um microptiblico. Mas a maioria das pesquisas de audiéncia no procura conhecer os habitos de consumo, e sim confirmar preferéncias pontuais, num determinado dia ¢ hordrio. Nao estudam necessidades de receptores particulares, e sim “ptiblicos” ou “audiéncias” em varios pafses 20 mesmo tempo. Nao importa saber nada sobre sua vida cotidiana, suas preferéncias nao-contempladas, ¢ sim como manté-los ligados a uma programacao elaborada em escritérios e estiidios ignotos ¢ padronizados. Uma discussio de fundo sobre o tipo de sociedade a que a comunicagio massificada est4 nos levando nao pode se basear em estatisticas de audiéncia. ‘Temos de estudar 0 consumo como manifestaio de sujeitos, buscar onde se favorece sua emergéncia ¢ sua interpelagao, onde se propicia ou se obstrui sua interagio com outros sujeitos. Talvez o fascinio das telenovelas, do cinema melodramético ou herdico ¢ dos noticidrios que transformam eventos estruturais em dramas pessoais ou familiares se assente nfo apenas em sua espetacularidade mérbida, como se costuma dizer, mas no fato de sustentarem a ilusdo de existéncia de sujeitos importantes, que softem ow realizam atos extraordindrios. Mas a recente reestruturacio das relagées de poder, tanto no campo do trabalho como no do entretenimento, estd, cada vez mais, reduzindo a possibilidade de ser sujeito a uma fico da midia. Sabe-se que isso nao ocorre do mesmo modo em todos os setores sociais. Sem negar esse fato, quero propor que estudemos a razio pela qual tanto os atores populares como os hegeménicos, os da politica como os da economia, tém sido imobilizados pelo que poderiamos chamar de atrofia da ago conflituosa ¢ da deliberagio democritica. As grandes decisdes sobre os conflitos e sobre o futuro nao apenas nao séo tomadas por governantes ou organismos leitos, mas nem sequer sio plenamente assumidas por aqueles “que tém 0 mercado nas mos”. John Berger usa essa expressio em vez de “controlam”, “porque 0 acaso tem aqui um papel significativo” (Berger, 1995: 13). Nenhum século teve tantos estudiosos de economia ¢ histéria, antropologia de todas as épocas e sociedades, assim como congressos, bibliotecas, revistas e redes informdticas para interligar esses saberes, para relacionar o que acontece em outros lugares de entretenimento e trabalho ao redor do mundo. O que se pode trocar, ou pelo menos acompanhar, gracas a essa profusio multidirecional de informagées? Aonde ros levam a expansio das empresas transnacionais, dos mercados pensamentos tinicos ¢, por outro lado, a proliferacio das dissidéncias e seus movimentos sociais, das solidariedades hererodoxas das ONGs e seus imagindrios alternativos? Parece duvidoso que possam constituir alternativas reais quando se comprova quantas vezes acabam subordinadas & ordem totalizante. No final do século mais produtivo em inovagies politicas, tecnoldgicas ¢ artisticas, tudo parece insticucionalizar-se 26 precariamente sob regras de uma reprodugio a curto prazo, carente de projetos, consagrada A especulagio econdmica ¢ & acumulagao de poderes instaveis, ‘Talvez possamos explicar esse estreitamento do horizonte social saindo da oposigao corrente entre global ¢ local. Cumpre refazer, entéo, de um modo mais complexo, as articulagdes entre 0 concreto e 0 abstrato, entre o imediato ¢ 0 intercultural. E preciso trabalhar com as metéforas a que se recorre para designar as mudangas no modo de fazer cultura, de nos comunicarmos com o diferente ou com quem imaginamos semelhante, ¢ construir conceitos que permitam analisar a redistribuicdo entre 0 proprio ¢ 0 alheio que esta ocorrendo nestes tempos globalizados. Como um primeiro caminho para organizar essa diversidade de situagdes repensar a impoténcia induzida pela distancia ou abstracéo dos vinculos, proponho considerar 0 esquema com que Craig Calhoun, ¢ mais tarde Ulf Hannerz (1998), reformularam a antiga oposigio entre 0 Gemeinschaft e Gesellschaft, entre comunidade ¢ sociedade. A globalizagio tornou mais complexa a distingio entre relagves primdrias, em que se estabelecem vinculos diretos entre pessoas, ¢ relagces secunddrias, que ocorrem entre fungdes ou papéis desempenhados na vida social. O cardter indireto de muitas trocas atuais permite identificar relagdes tercidrias, mediadas por tecnologias ¢ grandes organizagdes: escrevemos para uma instituiggo ou telefonamos para um escritério ¢ obtemos respostas despersonalizadas, do mesmo modo que quando escutamos um politico ou recebemos informagées sobre bens de consumo pelo radio ou pela televisio. Interessa-me principalmente o ultimo tipo definido por Calhoun, o das relagoes quaterndrias, em que uma das partes nao € consciente da existéncia da relagao: ages de vigilancia, espionagem telefonica, bancos de dados que sabem muito dos individuos ao reunir suas informagoes pessoais ¢ de crédito, entre outras. As vezes procura-se “analisar” essas interacdes, ¢ somos tratados como “clientelas imaginadas” (Calhoun, 1992; Hannerz, 1998), por exemplo, quando recebemos publicidade de uma empresa sem saber como ela conseguiu nosso enderego, ocultando-se essa invasio de privacidade com a imitagio da linguagem das relagbes pessoais intimas: “Querido Néstor: considerando a freqiiéncia com que vocé viaja, seu estilo de vida ¢ 0 de sua familia, resolvemos propor-lhe...”. Os dados acumulados com 0 uso do cartéo de crédito constituem um superpanéptico, mas com a peculiaridade de que, “ao fornecer os dados a armazenar, 0 vigiado torna-se um fator importante ¢ complacente da vigilancia’ (Bauman, 1999: 68). O que podemos fazer com este mundo em que poucos observam a muitos? E possivel organizar de outro modo os vinculos midiatizados, suas astiicias de simulagio para personalizé-los, separar-nos de seus procedimentos de selesio segregagao, de exclusio e vigilancia, em suma, reconverter-nos em sujeitos do trabalho e do consumo? 27 Uma reagio possivel é lembrar com saudade 0 tempo em que a politica se apresentava como 0 combate militante entre concepgies de mundo entendidas como antagénicas. Outra é refugiar-se em unidades territoriais, étnicas ou religiosas na esperanga de que se reduza a distancia entre quem toma as decisées e quem vive seus efeitos: fugir pela tangente. Concordo com a hipétese de que as duas posturas podem resultar em agées produtivas para melhorar a qualidade da politica (no primeiro caso) e para melhorar a convivéncia em ambitos restritos (no segundo). Mas a viabilidade desses intentos depende de que eles transcendam seu cardter reativo e elaborem projetos que interajam com as novas condigées estabelecidas pela globalizasao. Trocando cm mitidos: nao penso que, hoje, a opgao central seja cntre defender a identidade ou nos globalizar. Os estudos mais esclarecedores do processo globalizador nao sio os que apontam para uma revisio de questécs identitérias isoladas, mas os que propiciam a compreensio do que podemos fazer ¢ ser com os outros, de como encarar a heterogeneidade, a diferenga ¢ a desigualdade. Um mundo onde as certezas locais perdem sua exclusividade ¢ podem, por isso, ser menos mesquinhas, onde os esteredtipos com que representévamos o distante se decompéem na medida em que o encontramos com frequiéncia, um mundo que oferece a chance (sem muitas garantias) de que a convivéncia global seja menos incompreensiva, com menos mal-entendidos, do que nos tempos da colonizacao e do imperialismo. Para tanto, é preciso que a globalizacao assuma a responsabilidade sobre os imagindrios com que trabalha ¢ a interculturalidade que mobiliza. ‘Ao deslocar 0 debate sobre a globalizacao da questao da identidade para a dos desencontros entre politicas de integracao supranacional e comportamentos cidadaos, negamo-nos a reduzi-lo 4 oposigao global/local. Tentamos situd-lo na recomposigio geral do abstrato e do concreto na vida contemporanea e na formagao de novas mediagées entre os dois extremos. Mais do que contrapor identidades essencializadas a globalizacao, trata-se de indagar se é possivel instituir sujeitos em estruturas sociais ampliadas. E certo que a maior parte da producio ¢ do consumo atuais séo organizados em cendrios que nao controlamos, ¢ muitas vezes nem sequer entendemos, mas, em meio as tendéncias globalizadoras, os atores sociais podem estabelecer novas interconexées entre culturas ¢ circuitos que potencializem as iniciativas sociais. A indagagao sobre os sujeitos capazes de transformar a atual estruturagio globalizada nos levard a atentar aos novos espagos de intermediagdo cultural ¢ sociopolitica. Além das formas de mediac’o apontadas — organismos transnacionais, consultoras, escritérios financeiros e sistemas de vigilancia — existem circuitos internacionais de agéncias de noticias, de galerias e museus, editoras que atuam em varios continentes, ONGs que interligam movimentos locais distantes. Entre os organismos internacionais ¢ os cidadios, entre as empresas 28 ¢ seus consumidores, existem instituigies flexiveis que trabalham em varias linguas, especialistas formados em cédigos de diversas etnias ¢ nagées, funciondrios, promotores culturais ¢ ativistas politicos treinados para agir em varios contextos. Para nao fetichizar 0 global e, portanto, nao polarizar excessivamente suas relagoes com 0 local, um principio metodolégico fecundo € considerar, entre centro ¢ periferia, entre norte ¢ sul, a proliferasio de redes dedicadas a “negociaso da diversidade”. George Ytidice emprega essa expresso para descrever a influéncia dos curadores de exposigdes ¢ das revistas de arte norte-americanas na imagem da arte latino-americana nos Estados Unidos, na auto-percepgio dos artistas, bem como nos critérios dos piblicos latino-americanos ¢ norte-americanos, até em questées que transcendem 0 plano artistico (Ytidice, 1996). Daniel Mato mostra de que modo a ago do Instituto Smithsoniano tem contribuido para reconceituar 0 significado dos povos indigenas da América Latina, as representagées de etnicidade € género, as relacées transculturais entre as Américas, ¢ também a forma como as representagoes dos paises centrais sobre os grupos periféricos séo reformuladas por organizagées nao-governamentais que projetam as perspectivas periféricas em escala transnacional (Mato, 1998a ¢ 1999b). Mobos DE IMAGINAR © GLOBAL A globalizacao pode ser vista como um conjunto de estratégias para realizar a hegemonia de conglomerados industriais, corporagées financeiras, majors do cinema, da televisio, da misica ¢ da informatica, para apropriar-se dos recursos naturais ¢ culturais, do trabalho, do écio ¢ do dinheiro dos paises pobres, subordinando-os a explorago concentrada com que esses atores reordenaram 0 mundo na segunda metade do século XX. Mas a globalizagio é também o horizonte imaginado por sujeitos coletivos ¢ individuais, isto é, por governos e empresas dos paises dependentes, por produtores de cinema e televisio, artistas e intelectuais, que desejam inserir seus produtos em mercados mais amplos. As politicas globalizadoras obtém consenso, em parte, porque excitam a imaginagio de milhdes de pessoas a0 prometer que o dois ¢ dois que sempre somou quatro pode resultar em cinco ou até seis. Muitas histérias sobre 0 que aconteceu a quem soube adaptar seus bens, suas mensagens e operagdes financeiras para se recolocar em um territério expandido indicam que 0 realismo de se ater ao locar, de quem se conforma a trabalhar com nimeros nacionais, seria hoje uma visio mfope. Trataremos de distinguis, nos varios processos culturais, o que hi de real ¢ 0 que hé de imagindrio nessa ampliagao do horizonte local ¢ nacional. Deve-se diferenciar quem se beneficia com a ampliagio dos mercados, quem pode participar 29 dele nas economias e culturas periféricas, daqueles que so excluidos dos circuitos globais. As novas fronteiras da desigualdade separam cada ver. mais quem é capuz de se conectar a redes supranacionais de quem ¢ abandonado em seu reduto local. Se falo em “globalizagdes imaginadas” nao € s6 pelo fato de a integragao incluir certos paises mais do que outros. Ou de beneficiar setores minoritérios desses paises, enquanto para a maioria continua a ser uma mera fantasia. Também porque © discurso globalizador inclui fuses que, como jé disse, realmente ocorrem entre umas poucas nagdes, O que se anuncia como globalizagio esté gerando, na maioria dos casos, inter-relagdes regionais, aliangas entre empresarios, circuitos de comunicagio ¢ consumo comuns aos paises da Europa ou da América do Norte ou de uma determinada regio da Asia. Nio de todos com todos. Depois de décadas em que os acordos de livre-comércio mostraram os limites da abertura das economias € culturas nacionais, podemos hoje distinguir as narrativas globalizadoras das agGes € politicas de médio alcance em que esses imagindrios se concretizam. Um exemplo: os niimeros referentes aos lucros do setor audiovisual mostram que os paises ibero- americanos ficam com 5% do que se fatura no mercado mundial, mas sabemos que, somados, os habitantes latino-americanos, espanhdis ¢ hispandfonos dos Estados Unidos superam os 550 milhées. Pensar na globalizagao significa explicar por que temos uma porcentagem tio baixa do faturamento ¢, a0 mesmo tempo, imaginar como poderiamos aproveitar o fato de sermos um dos conjuntos ling maior nivel de alfabetizagio ¢ de consumo cultural. Nao estou identificando imaginirio com falso. Se as construcées imagindrias possibilitam a existéncia das sociedades locais ¢ nacionais, elas também contribuem para a arquitetura da globalizacio. As sociedades se abrem para a importacéo exportacio de bens materiais, que passam de um pais para outro, ¢ também para a circulagio de mensagens co-produzidas em varios paises, expressando, no plano do simbélico, processos de cooperacio ¢ intercimbio. Por exemplo, misicas que fundem tradig6es outrora distantes ¢ filmes produzidos com capitai multinacionais. Esta transnacionalizagao libera muitos bens materiais ¢ simbélicos ticos com atores e cendrios de rigidas adscriges nacionais (um automével Ford nao expressa apenas a cultura norte-americana, nem um filme de Spielberg se refere apenas a Hollywood). Converte-os em emblemas de um imagindrio supranacional. Até aquilo que eventualmente persiste da cultura brasileira ou mexicana numa telenovela, da francesa num perfume, da japonesa num televisor, é integrado em discursos priticas que podemes ver multiplicados em sessenta ou cem sociedades. A época globalizada ¢ esta em que, além de nos relacionarmos efetivamente com muitas sociedades, podemos situar nossa fantasia em multiplos cendtios a0 mesmo tempo. Assim desenvolvemos, segundo Asjun Appadurai, “vidas imaginadas” (Appadurai, 1996). Imaginado pode ser © campo do ilusdrio, mas também ¢ o lugar, diz Etienne Balibar, onde “nos contamos histérias, © que significa que temos 0 poder de inventar histérias” (Balibar, 1998). 30 Com a expansio global dos imagindrios, incorporaram-se a0 nosso horizonte culturas que, até hd poucas décadas, sentiamos estranhas a nossa existéncia. No Ocidente, até meados do século XX, alguns poucos comerciantes, artistas ¢ religiosos, cientistas ¢ aventureiros manifestavam interesse pelo modo de vida no Extremo Oriente. Hoje, {ndia, Japa, Hong Kong — os exemplos poderiam se multiplicar — sio destinos turisticos, de investimentos ¢ de viagens comerciais para milhGes de ocidentais. Durante os anos 80 ¢ até a crise de meados dos 90, os tigres asisticos funcionaram como modelos de desenvolvimento econémico e suscitaram curiosidade nas elites do Terceiro Mundo ocidental por seu modo de conjugar inovacao industrial, culturas antigas ¢ habitos de trabalho. Isso sem falar da expansao de religides orientais na Europa, Estados Unidos ¢ América Latina, nem de outros intercimbios que se instalam em nossa vida cotidiana, junto com aparelhos japoneses ou de Taiwan, ecos culturais dessas sociedades. Hi muito mais do que expansio por territérios antes ignorados. A intensificagio dos intercimbios, sobretudo com paises préximos, pée em xeque os esteredtipos que tinhamos em relagio a eles. Entender a globalizagao exige, como ja dissemos, explorar 0 modo como os esterestipos sobre a Europa e os Estados Unidos estio mudando na América Latina. Mas eles esto realmente mudando? Vamos examinar a porsisténcia de certos relatos sobre os outros, que atrapalham novas oportunidades de integragéo, c 0 surgimento de novos discursos na esteira dos recentes intercimbios migratérios, comerciais ¢ turisticos, Vamos ver, também, as diferengas no olhar sobre a integragao quando cla é narrada por empresirios, cidadaos ou indocumentados. Como chegar & globalizacéo significa, para a maioria, aumentar o intercimbio com 0 outros mais ou menos proximos, ela serve para renovar nossa compreensio sobre suas vidas. Essa ¢ a razio de as fronteiras terem se tornado laboratérios do global. Por isso tentaremos entender como o global se modula nas fronteiras, na multiculturalidade das cidades ¢ na segmentacao de puiblicos miditicos. EsPETACULOS DA GLOBALIZAGAO E MELODRAMAS DA INTERCULTURALIDADE Uma das possiveis conseqiiéncias dessa aproximagao diferencial, combinada com materiais tio heterogéncos, é a necessidade de tratarmos ao mesmo tempo da globalizagao ¢ da interculturalidade. Quem fala sobre 0 modo como nosso tempo se globaliza narra processos de intercimbios fluidos ¢ homogencizacao, nacoes que abrem suas fronteiras ¢ povos que se comunicam, Seus argumentos se apdiam nos ntimeros do aumento das transagGes ¢ da rapidez ou simultaneidade com que agora se realizam: volume e velocidade. A par disso, os estudos sobre migraca0, transculturagao e outras experiéncias interculturais estao cheios de relatos de 31 desarraigamentos ¢ conflitos, fronteiras que se renovam e€ desejos de restaurar unidades nacionais, étnicas ou familiares perdidas: intensidade ¢ meméria. Portanto, as tensdes entre globalizagao ¢ interculturalidade podem ser concebidas como uma relacao entre épica e melodrama. As cis6es que hoje separam as ciéncias sociais ocorrem, em grande medida, entre quem procura montar relatos épicos com as conquistas da globalizagao (na economia, em certa parte da sociologia ¢ na comunicagio) e os que constroem narragdes melodramaticas com as fissuras, as violéncias ¢ as dores da interculturalidade (na antropologia, na psicanilise, na estética). Quando os primeiros admitem, nas margens do relato, os dramas interculturais, como se fossem resisténcias & globalizacio, logo tratam de garantir que estas serao climinadas pela marcha da histéria e pela sucessio de geragdes. Para os segundos, as profundas ¢ persistentes diferengas ¢ as incompatibilidades entre culturas mostrariam o cariter parcial dos processos globalizadores, ou seu fracasso, ou os novos deslocamentos gerados pela precipitada unificagéo do mundo, pouco atenta a tudo o que discrimina e separa. Nos tiltimos anos, alguns narradores da globalizagio ¢ alguns defensores das diferengas locais ¢ subjetivas comegaram a se escutar uns aos outros: para além da preocupagao por contar uma épica ou um drama, interessa aqui entender 0 que acontece quando ambos 0s movimentos coexistem. A hipétese € que os dados dos censos migratérios, da circulagio planetaria de capitais financeiros ¢ as estatisticas sobre 0 consumo ganham mais sentido quando se carregam das narrativas da heterogencidade. Nas estruturas, reaparecem os sujeitos, Inversamente, os relatos enunciados por atores locais dizem mais se nos perguntarmos como falam, através desses dramas pessoais, os grandes movimentos da globalizagao ¢ os discursos coletivos que estabelecem as regras atuais da produgio ¢ as modas do consumo. Nao é facil unir as duas perspectivas nesta época em que se acredita cada vez menos na capacidade explicativa de um paradigma. Mas, 20 mesmo tempo, convivéncias t4o intensas e freqiientes como as que nosso mundo exige serio incompreensiveis se compartimentarmos as sociedades, como fez 0 relativismo cultural que imaginava cada cultura isolada e auto-suficiente. Que relatos — nem simplesmente épicos, nem melodraméticos — podem dar conta das recomposigdes que se produzem entre o local ¢ 0 global? Quando, em 1° de janeiro de 1994, eclodiu a revolta neozapatista no sul do México, vi um economista e um antropélogo mexicanos reagirem & noticia com desigual assombro. O economista afirmou que dificilmente o fato teria grande repercussio na sociedade nacional porque o estado de Chiapas representava algo em torno de 1,5% da economia mexicana. Os tropismos do antropélogo o levaram a responder que essa regiao tinha uma das mais altas porcentagens de indigenas do México, cerca de 30% da populagdo, que ¢ importante na histéria ¢ na cultura do pais, c também como frontcira com a América Central. Alguns meses mais tarde, 32 viu-se que, para entender 0 que 0 movimento zapatista tinha de prolongagao de um longo passado ¢ de inovacéo politico-comunicacional, era preciso transcender o paralelismo da explicagdo econdmica ¢ antropol6gica, seu modo desvinculado de narrar o que integra ¢ 0 que discrimina ou marginaliza. E impossivel superar o espanto diante desses fatos recotrendo aos relatos (econémicos ou antropolégicos) que deram consisténcia a uma organizagao enviesada dos dados: é preciso manter a surpresa aceitar a multiplicidade de narragées. Mas, se no € 0 caso de escrever um romance um pouco mais complexo e sim de elaborar explicagées e interpretagdes do que construimos como real, devemos nos perguntar se essas diversas narragdes sio ou nao compativeis e aspirar a descrigées densas que articulem as estruturas mais ou menos objetivas ¢ os niveis de significagao mais ou menos subjetivos. Ha que elaborar construcées logicamente consistentes, que possam ser contrastadas com 2s maneiras como.o global “estaciona” em cada cultura e com os modos como 0 local se reestrutura para sobreviver, ¢ talver tirar algum proveito das trocas que se globalizam. Por mais que queiramos restringir nossas pesquisas a um bairro ou a uma cidade, ou aos estrangciros radicados num pais em particular, chegaré um momento em que, se trabalharmos no Ocidente, teremos de nos perguntar sobre a forma como estio mudando as estruturas globalizantes ¢ os processos de integragao supranacional. Por exemplo, as relagées entre a Europa, a América Latina os Estados Unidos. Pode-se alegar que um universo tao amplo nao cabe em nenhuma andlise ¢ abandonar a questio. Mas as incdgnitas continuarao af, condicionando nossos estudos, e, mesmo se resolvermos nao fazer generalizagbes sobre o desenvolvimento do Ocidente, os velhos pressupostos da filosofia ¢ da epistemologia ocidentais permanecerao como hipéteses. O problema é que essas hipéteses correspondem a uma ctapa pré-global, quando as nagdes eram unidades aparentemente mais cocsas, que pareciam conter a maioria das relagées interculturais. Ou seja, quando era possivel distinguir, com nitidez, o local do universal. Nao conhego melhor maneira de enfrentar esses riscos do que trabalhando com ntimeros ¢ outros dados duros, macrossociais, que indicam as grandes tendéncias da globalizagao e, a0 mesmo tempo, com descrigdes socioculturais que captam processos especificos, tanto em sua estrutura objetiva como nos imagindrios que expressam 0 modo como os sujeitos individuais ¢ coletivos representam seu lugar e suas possibilidades de agio em tais processos. Trata-se de reunir 0 que tantas veres foi cindido nas ciéncias sociais: explicagio ¢ compreensio. Ou seja, articular as observacées telescdpicas das estruturas sociais ¢ os olhares que falam da intimidade das relagdes entre culturas. Creio que essa tarefa é um recurso- chave para que 0 futuro da globalizagao seja decidido por cidadios multiculturais. 33 ne a Mis i SMR = WoekEHY a x = MM BI WTHOHH i mM Yukinori Yanagi América, inSITE 94 Installation Gallery e Museu de Arte Contemporinea San Diogo, Cal., EUA Trinta e seis bandeiras feitas com caixas de plastico cheias de areia colorida. As bandeiras foram interligadas por tubos dentro dos quais transitavam formigas, que as foram corroendo e confundindo. “Neg 4 ll ay ail @ dal = Wd E=Wlw= y r ‘Ke g HMEWE! % Emigrantes esperando a noite para atravessar a barreira que separa o México dos Estados Unidos, Foto: Alejandro Huid ita de chapas de ago usadas em campos de joouso no deserto durante a Guerra do Golfo. Foto: Alejandro Muidobs De Tijuana a San Diego Ou de San Diego a Tijuana Marcos Ramirez Erre, Toy and Horse, inSITE 97. Porta de entrada a San Diego, de Tijuana. Foto Jimmy Fluker CapITULO 2 A GLOBALIZACAO: OBJETO CULTURAL NAO-IDENTIFICADO Muito do que se diz sobre a globalizagio ¢ falso. Por exemplo, que ela uniformiza todo o mundo. Ela nem sequer conseguiu estabelecer um consenso quanto ao que significa “globalizar-se”, nem quanto ao momento histérico em que seu processo comegou, nem quanto a sua capacidade de reorganizar ou decompor a ordem social. Sobre a data em que a globalizacéo teria comegado, vérios autores a localizam no século XVI, no inicio da expansao capitalista e da modernidade ocidental (Chesnaux, 1989; Wallerstein, 1989). Outros datam a origem em meados do século XX, quando as inovagées tecnoldgicas e comunicacionais articulam os mercados em escala mundial. Essa conjuncio de mudangas tecnoldgicas e mercantis sé ganha contornos globais quando se estabelecem mercados planetérios nas comunicagées ena circulacao do dinheiro, ¢ se consolida com o desaparecimento da URSS e 0 esgotamento da divisio bipolar do mundo (Albrow, 1997; Giddens, 1997; Ortiz, 1997). Essas discrepancias na datagao tém que ver com diferentes modos de definir a globalizagao. Aqueles que the atribuem uma origem mais remota privilegiam seu aspecto econémico, ao passo que quem justifica a aparigao recente desse processo dé mais peso a suas dimensdes politicas, culturais e comunicacionais. Eu, de minha parte, entendo que ha boas razées para afirmar, segundo a expresso de Giddens, (0 a ter acesso a uma era global” (Giddens, 1997). que “somos a primeira gera INTERNACIONALIZAGAO, TRANSNACIONALIZAGAO, GLOBALIZAGAO, A possibilidade de situar a origem da globalizagao na segunda metade do século XX advém da diferenga entre esta, a internacionalizagao ¢ a transnacionalizacio. A internacionalizaciéo da economia e da cultura tem infcio com as navegacées transocednicas, a abertura comercial das sociedades européias para o Extremo Oriente ¢ a América Latina ¢ a conseguinte colonizaao. Os navios levaram aos paises centrais objetos ¢ noticias desconhecidos na Espanha, em Portugal, na Itélia ena Inglaterra, Desde as narragdes de Marco Polo ¢ Alexander von Humboldt até 41 os relatos dos imigrantes ¢ comerciantes do século XIX ¢ infcios do XX, rudo foi sendo incorporado 20 que hoje chamamos mercado mundial. Mas a maioria das mensagens ¢ bens consumidos em cada pais eram produzidos em sew interior, 0 tumulto de informagées ¢ objetos exteriores que enriquecia a vida cotidiana devia passar por alfandegas, submeter-se a leis ¢ controles que protegiam a produgio local. “Qualquer que seja a comarca que minhas palavras evoquem em toro a ti, tua veris de um observatorio localizado”, das escadarias do teu palicio, diz Marco Polo ao Grande Khan (Calvino, 1985: 37). Verds as sociedades diferentes a partir de teu bairro, tua cidade ou tua nagao, poderia ter dito um antropélogo ou um jornalista que contasse a seus compatriotas 0 que acontecia longe deles quando as sociedades nacionais ¢ as etnias eram observatérios bem delimitados. A transnacionalizagao é um processo que se forma mediante a intemacionalizagio da economia ¢ da cultura, mas que dé alguns pasos além a partir da primeira metade do século XX, ao gerar organismos, empresas ¢ movimentos cuja sede nao se encontra exclusiva nem predominantemente numa nacio. A Phillips, a Ford ¢ a Peugeot abarcam varios paises ¢ se movem com bastante independéncia em relacio aos Estados ¢ as populacies a que se vinculam. Nao obstante, nesse segundo movimento, as interconexdes ainda trazem a marca das nagdes origindrias, Os filmes de Hollywood transmitiram a0 mundo a visio americana das guerras ¢ da vida cotidiana, as telenovelas mexicanas ¢ brasileiras emocionaram italianos, chineses ¢ muitos outros com a mancira como as nagdes produtoras concebiam a coesio ¢ as rupturas familiares. A globalizagao foi-se preparando nesses dois processos anteriores por meio de uma intensificagio das dependéncias reciprocas (Beck, 1998), do crescimento ¢ da aceleracéo de redes econémicas ¢ culturais que operam em escala mundial ¢ sobre uma base mundial. Mas foram necessérios os satélites e 0 desenvolvimento de sistemas de informagio, manufatura ¢ processamento de bens com recursos eletrénicos, o transporte aéreo, os trens de alta velocidade os servicos distribufdos em nivel planetério para que se construfsse um mercado mundial onde o dinheiro €.a produgio de bens ¢ mensagens se desterritorializassem, as fronteiras geogrificas se rornassem porosas ¢ as alfindegas fossem muitas vezes inoperantes. Ocorre esse momento uma interacio mais complexa ¢ interdependente entre focos tells, 1995; Ortiz, 1997; Singer, 1997). Longe de mim sugerir um determinismo tecnolégico; quero apenas dispersos de produgio, circulagio ¢ consumo (C demonstrar 0 papel facilitador da tecnologia. Na verdade, os novos fluxos comunicacionais informatizados geraram processos globais ao se associarem a grandes concentragées de capitais industriais ¢ financeiros, com a flexibilizagio ¢ climinagao de restrigdes e controles nacionais que limitavam as transagdes internacionais. Também foi preciso que os movimentos transfronterigos de tecnologias, bens e finangas fossem acompanhados por uma intensificagio de fluxos 42 migratérios ¢ turisticos que favorecem a aquisigao de linguas ¢ imaginérios multiculturais, Nessas condigdes ¢ possivel, além de exportar filmes e programas televisivos de um pais a outro, construir produtos simbélicos globais, sem ancoragens nacionais especificas, ou com varias ao mesmo tempo, como os filmes de Steven Spielberg, os videogames e a world music, Essas dimensdes econdmicas, financeiras, migratérias ¢ comunicacionais da globalizagao sao reunidas por varios autores (Appadurai, 1996; Giddens, 1999; Sassen, inédito) que afirmam ser a globalizacao um novo regime de produgao do espaco ¢ do tempo. Ainda que essa distingao conceitual e histérica me parega convincente, sabemos que nao hé consenso internacional ¢ transdisciplinar sobre a questo. Também se discute se 0 processo deve ser denominado “globalizacao” ou “mundializacio”, diferenga que nao apenas distingue quem escreve em inglés ow francés, mas que tem que ver com divergéncias conceituais (Ortiz, 1997). Menos claro ainda é se 0 balanco da globalizacio é negativo ou positive. Foram- se 0s tempos em que era ficil sustentar que toda abertura ¢ integracio internacional seria benéfica para todos. © agravamento de problemas ¢ conflitos — desemprego, poluisio, violencia, narcotréfico —, quando a liberalizagéo global é subordinada a interesses privados, leva a pensar na necessidade de que a globalizagéo tenha uma condugio politica ¢ que a disputa entre os grandes capitais scja regulada por meio de integragdes regionais (Uniéo Européia, Mercosul). Hoje se discute se a globalizagao ¢ mesmo inevitdvel, ¢ em que grau, ¢ até se cla ¢ desejavel em todos os aspectos da produgio, da circulago ¢ do consumo (Singer, 1997). Tais divergéncias em relagio ao significado ¢ alcance da globalizago permitem tirar algumas conclusées clementares mas com fortes conseqiiéncias tedricas ¢ metodoldgicas: a) a globalizagao nao é um paradigma cientifico, nem econémico, uma vez que nao tem um objeto de estudo claramente delimitado nem oferece um conjunto coerente ¢ consistente de saberes, escorado em um consenso intersubjetivo de especialistas ¢ contrastavel com referéncias empiticas (Passeron, 1991: 37-48 ¢ 362-363); b) a globalizagio tampouco pode ser considerada um paradigma politico ou cultural, pois nio constitui 0 tinico modo possivel de desenvolvimento. A globalizagio, mais do que uma ordem social ou um processo nico, é resultado de miltiplos movimentos, em parte contraditérios, com resultados abertos, que implicam diversas conexdes “local-global ¢ local-local” (Mato, 1996). Os conhecimentos disponiveis sobre a globalizagio constituem um conjunto de narrativas, obtidas por meio de aproximagées parciais, em muitos pontos divergentes. Observamos, numa parte da bibliografia recente, que essa precariedade costuma ser oculta por meio de duas operacées. Uma consiste em reduzir a globalizagao quase que a um sindnimo do neoliberalismo e, portanto, a um ponto de partida pretensamente inquestiondvel, “pensamento tinico” acima das lutas ideolégicas. A 43 globalizasio a neoliberal tentou estabelecer um tinico modelo para paises desenvolvidos ¢ subdesenvolvidos que néo quisessem ficar fora da economia mundial. Assim, em alguns autores ela tem o status outrora reservado, no marxismo, 4 teoria dos modos de produgao (0 intento de pensar com um tinico paradigma a totalidade do desenvolvimento mundial ¢ cada um dos processos que ocorrem em qualquer sociedade). Os ingredientes nucleares deste “paradigma” ou narrativa sio a economia de mercado, o pluripartidarismo, a abertura das economias nacionais 20 exterior, a livre circulagao de capitais, a protecao de investimentos estrangeiros ¢ da propriedade intelectual, 0 equilibrio fiscal e a liberdade de imprensa. Quem fugir desse modelo, como o Iraque, 0 Ira, a Libia ou a Albania, ser banido da hist6ria, Outros paises que chegaram a trilhar esse caminho (China, Cuba e Vietna) estariam, com seu reenquadramento, confirmando a validade universal do paradigma, Essa é a visio de alguns intelectuais (Fukuyama, 1989; Huntington, 1998) ¢, € obvio, do Grupo dos Sete, de empresas ¢ bancos do Primeiro Mundo que conduzem a politica econdmica. As crises desse modelo no México ¢ em outros paises latino-americanos a partir de dezembro de 1994, na Russia e no sudeste asidtico desde 1997, no Brasil em 1998 ¢ na Argentina em 2001-2002, com os conflitos sociais agravando-se em toda parte, geram duividas quanto & sua consisténcia ¢ seus beneficios. A outta posigao que oculta as deficiéncias do nosso saber sobre a globalizagio €a daqueles que nao se preocupam com a falta de um paradigma ou de um modelo cientifico para seu estudo, de acordo com o principio pés-moderno que aceita a redugao do saber & coexisténcia de muiltiplas narrativas. Nao estou propondo voltar a0 positivismo que postulava um saber de validade universal, cuja formalizacio abstrata o tornaria aplicivel a qualquer sociedade. Mas tampouco me parece plausivel, num mundo tio interligado, abdicar & exposigao dos problemas da universalidade do conhecimento, ou seja, 4 procura de uma racionalidade interculturalmente compartilhada que organize com coeréncia os enunciados bésicos. Ainda mais quando se trata de teorizar a globalizacio. Pensar sobre o global exige superar essas duas posturas: tanto a que faz da globalizacio um paradigma tinico ¢ irreversivel, a que resta importincia & sua incoeréncia ¢ ao fato de nao integrar a todos. Antes parece metodologicamente necessirio, diante das tendéncias que homogeneizam parte: dos mercados materiais ¢ simbélicos, investigar 0 que tepresenta aquilo que a globalizacio exclui para se constituir, A hipétese que quero trabalhar, conseqiientemente, & que, se nao. contamos com uma teoria unitéria da globalizacio, nao é apenas por deficiéncias no estado atual do conhecimento, mas também porque a fragmentagio é um trago estrutural dos processos globalizadores. Para dizé-lo de maneira mais clara, 0 que se costuma chamar de “globalizagio” apresenta-se como um conjunto de processos de homogeneizagio ¢, ao mesmo tempo, de fragmentagio articulada do mundo que 44 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. culturais que pedem que os pensemos em conjunto. Um deles ¢ 0 fato de que narrar historias em tempos globalizados, mesmo que seja a propria, a do lugar em que se nasceu ou se vive, é falar para outros, nao apenas contar 0 que existe mas também imaginé-lo fora de si. Também por isso ganham importancia as metéforas, que explicam o significado das coisas por comparagio com o diferente, Contamos historias ¢ empregamos metéforas porque, ao falar do que temos, queremos nos referir a outra coisa; porque participar de qualquer mercado — de alimentos, de dinheiro, de imagens — é como atirar contra um alvo mével. POSTAIS PARA UM BESTIARIO DA GLOBALIZAGAO Se, para informar-se sobre qualquer aspecto da vida social, convém consultar esses especialistas em narrativas e metéforas que sao os artistas ¢ os escritores, isto & ainda mais pertinente quando 0 fendmeno que tentamos descrever € esquivo, remete a outros lugares ¢ a outros povos. Como jé ocorreu tantas vezes na histéria, a metaforizagio do inapreensivel, quando se refere a alteragées muito répidas ¢ violentas das identidades habituais, as vezes constréi imagens conciliadoras. Em outros casos, pensa em monstros. 1. Trinta ¢ seis bandeitas de diferentes pafses, feitas com caixinhas de plistico cheias de arcia colorida, As bandeiras estéo interligadas por tubos dentro dos quais transitam formigas que as vao corroendo ¢ confundindo. Yukinori Yanagi realizou uma primeira versio dessa obra em 1993 para a Bienal de Veneza. Em 1994, reproduziu-a em San Diego, no contexto da mostra de arte multinacional inS/TE, com as bandeiras de paises das trés Américas, Passadas algumas semanas, os emblemas eram irreconheciveis. Pode-se interpretar a obra de Yanagi como metéfora dos trabalhadores que, a0 migrar pelo mundo, vio decompondo os nacionalismos ¢ imperialismos. Mas nem todos os receptores atentaram para esse fato. Quando 0 artista apresentou a obra na Bienal de Veneza, a Sociedade Protetora de Animais conseguit interdité-la por uns dias para que Yanagi nio continuasse com aquela “exploraao das formigas”. Outras reagées resultavam do fato de os espectadores no aceitarem ver desestabilizadas as diferengas entre as nagdes. O artista, 20 contrério, tentava levar sua experiéncia até a dissolugao das marcas identitérias: a espécie de formiga conseguida no Brasil para a Bienal de Sao Paulo de 1996 pareceu- Ihe lenta demais, tanto que, no inicio da exibigio, Yanagi manifestou seu temor de que os insetos no chegassem a transtornar as bandeiras 0 suficiente. A metéfora sugere que as migragGes macicas ¢ a globalizagio transformariam 0 mundo atual em um sistema de fluxos ¢ interatividade onde se dissolveriam as diferencas entre as nagbes, Os dados demogréficos néo confirmam essa imagem de fluidez total, nem de uma mobilidade transnacional generalizada. O nimero 48 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. gente de outros pafses, mais que os mesmos de sempre.” Também morara em San Francisco, no Canada ¢ em Paris, ¢ foi combinando coisas que escutou nessas sociedades heterogéneas com vis6es préprias sobre a multiculturalidade. Disse-me que em Los Angeles “sio cosmopolitas, mas nem tanto, porque muitos grupos sé se véem entre eles, Encontram-se nos locais de trabalho, mas depois cada um volta para casa, para o seu bairro”. E conclufa que “o capitalismo é segregador”. De quando cm quando, repetia que “os judeus sio os mais podcrosos nos Estados Unidos”. Sobre “os negros”, afirmaya que “acreditam muito nos seus herdis, mas © que os enfraquece € 0 sentimento de serem tio discriminados. Séo fortes sé na misica”, “Quanto a nds, mexicans, nosso maior problema € que, para fazer qualquer negécio, precisamos beber.” Seus juizos mostrayam que a simples acumulagéo multicultural de experiéncias nao gera automaticamente hibridagio, nem compreensio democritica das diferengas. Fechado o restaurante, fomos beber no hotel onde eu estava hospedado, ¢ ali ele me explicou que “as coisas funcionam mais nos Estados Unidos que no Reino Unido. Os escoceses sio orgulhosos, mas 0 orgulho deles € passive. O dos americanos é ativo: eles se identificam em todo o mundo, se destacam nos negécios porque nunca querem perder”. Falava com tal admiragao de sua vida em Los Angeles que Ihe perguntei por que havia deixado essa cidade. “Porque, quando eu entendo uma coisa ¢ vejo como funciona, j4 acho chato, ¢ af eu preciso mudar, trocar a fita.” Sua flexibilidade multicultural se verificava, também, quando falava italiano quase to bem quanto inglés, apesar de nunca ter estado na Itélia, sé por interagit com os colegas ¢ representar a italianidade no dia-a-dia, entre agnellotti, carpaccio ¢ vinhos Chianti. Quando quis saber por que decidira ir morar em Edimburgo, ele me disse que sua mulher era escocesa, ¢ me surpreendeu — ele, que tinha transitado por muitas partes do México, Estados Unidos e Canada a0 afirmar que gostava dos escoceses porque ‘nao so cosmopolitas. Sao gente conservadora, que acredita na familia ¢ tém orgulho das suas coisas. Viajam como turistas, mas estio sossegados ¢ se sentem bem na seguranga dessa cidade de 400 mil habitantes”. Por fim me disse que queria montar um restaurante mexicano de qualidade, mas nao gostava das tortillas que eram yendidas nos restaurantes tex-mex de Edimburgo, porque vinham da Dinamarca, (O fato me trouxe & meméria as festas na Embaixada do México em Buenos Aires, quando, no dia 15 de setembro, para comemorar a independéncia mexicana, os poucos mexicanos que moram na cidade se reinem com centenas de argentinos que viveram exilados no México, ¢ 0 embaixador contrata o tinico grupo de mariachis que se pode conseguir na Argentina, formado por paraguaios residentes na capital argentina.) Ento o garcom mexicano de Edimburgo me pediu que, a0 voltar para o México, eu the mandasse uma boa receita de sortillas, Pediu esse favor justo a mim, que sou 55 argentino, cheguei faz. duas décadas a0 México como fildsofo exilado ¢ me estabeleci no pais porque estudei antropologia ¢ fiquei fascinado com muitos costumes mexicanos, mas uma de minhas dificuldades de adaptagao sempre foi a comida picante, ¢ € justamente por isso que, ao escolher um restaurante, minha preferéncia costuma recair nos italianos. Essa inclinagao vem do fato de esse sistema precério chamado “cozinha argentina’ ter-se formado com a forte presenga de imigrantes italianos, que se misturaram com espanhéis, judeus, arabes ¢ gatichos para formar uma nacionalidade. Pertencer a uma identidade de fusdo, de deslocados, ajudou este fildsofo convertido em antropdlogo a representar a identidade mexicana perante um mexicano casado com uma escocesa, que representava a italianidade em um restaurante de Edimburgo. Sei que entre os milhdes de mexicanos residentes nos Estados Unidos, ou que passaram por esse pais, é possivel encontrar muitas histérias semelhantes que problematizam quem ¢ como representa hoje a nacionalidade. Nao sé os que habitam o territério da nagéo, Nao era o lugar de residéncia 0 que definia nossos pertencimentos nessa noite em Edimburgo. Tampouco a lingua nem a comida constitufam marca identitérias que nos inscrevessem rigidamente em uma tinica nacionalidade. Ambos extrairamos de varios repertérios habits ¢ pensamentos, marcas heterogéneas de identidade, que nos permi ¢ até fora de contexto. iam desempenhar papéis diversos Pareceu-me evidente que jd nao € possivel entender esses paradoxos por meio de uma antropologia para a qual 0 objeto de estudo sio as culturas locais, tradicionais ec estaveis. E que, portanto, o futuro dos antropélogos (¢ de outros cientistas sociais) depende de reassumirmos essa outra parte da disciplina que nos treinou a examinar aalteridade ea interculturalidade, as tensdes entre o local ¢ 0 global. James Clifford escreve que 0 objeto de pesquisa devem ser as “culturas translocais”, as mediacées entre os espagos onde se habita ¢ os itineririos: é preciso “repensar as culturas como locais de residéncia e de viagem” (Clifford, 1999: 46). Das NARRATIVAS A ‘TEORIA CULTURAL DA GLOBALIZAGAO, Retomo o problema que expus hé pouco, O que fazer com esses relatos € metéforas para it construindo uma visio conceitual capaz de ordenar as perspectivas divergentes, os imagindrios sobre a globalizagio, em uma definigéo ¢ um conjunto ias de mancira bem- de procedimentos metodolégicos que estudem suas ambivalén fundamentada? Apontarci a seguir algumas mudangas tedricas necessirias nas nogées habituais de culira c globalizagito. A cultura redefinida, As mudangas globalizadoras alteraram a mancira de conceber a cultura. Entre os anos 60 ¢ 80 do século XX, os estudos socio-semidticos, ¢ com 56 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Foto: Luis Poirot no pavilhao chileno da Feira de 1992 Longe do tropicalismo, mostrar-se como um pais frio. Ou reminiscéncia da descoberta do gelo por José Arcadio Buendia em Cem anos de solidao? Um objeto “virgem, branco, natural, sem antecedentes”, “purificado pela longa travessia do oceano”. “Era como se 0 Chile tivesse acabado de nascer.” aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. “Os extras boiam e tremem entre bonecos de cadaveres, gesticulando e engasgando conforme as ordens, um verdadeiro exército de afogados [...] a fronteira industrial norte do México é o prototipo de um sombrio futuro Taylorista”. O Titanic, diz Sekula, “é o vetusto precursor de uma maquiadora incognita. Uma reserva de mao-de-obra barata é contida e dirigida pela agao hidraulica do maquinario do apartheid. A maquina é cada vez mais indiferente 4 democracia, em ambos os lados da fronteira, mas nao é indiferente a cultura, 6leo derramado em aguas turvas”. CAPITULO 3 MERCADO E INTERCULTURALIDADE: A AMERICA LATINA ENTRE A EUROPA E OS ESTADOS UNIDOS Quais sao os nossos “outros”? Essa pergunta esté sendo reformulada nesses tempos de globalizagio. Além disso, é impossivel respondé-la do mesmo modo se falarmos de finangas, terreno em que, dia apés dia, vemos todos os governos ¢ empresas interagirem com fragilidade, ou de outras trocas econédmicas, comunicacionais ¢ migratérias mais durdveis, por meio das quais nos vinculamos com certas sociedades e com alguns setores delas. Os movimentos globalizadores adquirem diferentes formatos nas vérias integracées regionais, e estas por vezes funcionam como defesa, por vezes como filtro, dos intercambios globais. Aqui observarei como se foram formando os modos particulares de administrar, sob um regime global, as relagdes culturais entre a América Latina, a Europa ¢ os Estados Unidos. A interagao histérica entre essas regides foi-se recompondo nas duas tiltimas décadas por meio dos acordos de livre-comércio que agrupam Estados Unidos, Canada ¢ México, ou os que avancam no Mercosul, ¢ os destes e outros paises da América Latina com a Uniio Européia. S40 poucos, porém, os estudos sobre as modificagdes das culturas latino-americanas ao deslocar-se sua relacao histérica com a Europa para os Estados Unidos. Assim como a globalizacio traz ocultos seus objetos culturais, esses processos de integracio regional desenvolvem as pressas seus acordos econémicos, sem tempo para maiores reflexes sobre as radicais mudancas simbélicas que estio gerando, tanto nas sociedades € nos sistemas de comunicacio como nas representagdes que cada nacZo tem de si mesma e das outras. Proponho-me reunir aqui algumas andlises histéricas ¢ antropoldgicas dessas mudangas, ¢ sugerir linhas de trabalho para correlacionar ¢ contrastar fatos, dados ¢ narrativas do passado com a situagao atual. Trata-se de explorar o que ficou da conquista e a colonizagio da América, das relagdes modernas entre as nagées latino-americanas e as européias depois das independéncias do século XIX, das trocas desenvolvidas ao longo do século XX e da substituigao parcial desses vinculos econémicos ¢ culturais pela nova dependéncia dos Estados Unidos. O que permanece do redescobrimento europeu da América propiciado pelo quinto centendrio (1992) ¢ da tentativa dos paises latinos da Europa, especialmente. a Espanha, de disputar com os norte-americanos uma parte da América Latina, 69 valendo-se de sua mediagio com os 480 milhées de consumidores que compoem © seu mercado para se afirmar perante outros pafses curopeus? Houve muitos mais livros ¢ revistas dedicados a esses temas que os publicados nos quinhentos anos anteriores, centenas de congressos ¢ seminirios, algumas exposigdes internacionais, novos centros de cultura ¢ reunio, além dos ja instalados pela Alemanha, Espanha ¢ Franca em paises latino-americanos. Deve-se, ainda, actescentar a aquisigao de bancos ¢ indtistrias em varios paises da América Latina ¢ de editoras argentinas ¢ mexicanas por empresas curopéias, além da recente compra de varias companhias telefénicas latino-americanas, dos investimentos em televisdo ¢ imprensa destinados a ocupar um espaco significative no rearranjo multimididtico da América Latina, Se a essa lista incompleta de vinculos histéricos entre a Europa ¢ a América acrescentarmos as peripécias da interculturalidade, a modificagao dos intercimbios sera ainda mais complexa. As sociedades latino-americanas, formadas pela colonizagao espanhola, portuguesa, francesa, inglesa ¢ holandesa, que ao longo do século XX receberam enormes contingentes de imigrantes de paises europeus ¢ asidticos, expulsaram de volta para a Europa milhées de filhos ¢ netos daqueles imigrantes, durante as ditaduras militares dos anos 70 ¢ 80 também por causa do empobrecimento econémico e do desemprego. Esses fluxos ¢ refluxos entre europeus ¢ latino-americanos tomam-se ainda mais intrincados quando reconhecemos que, no meio, estio os Estados Unidos. Muitas corporagées européias — editoras ¢ companhias telefonicas, montadoras de automéveis, fabricas de alimentos ¢ de roupa — que investem na América Latina também cobigam 0 mercado norte-americano ¢ seus 30 milhdes de hispandfonos que ali residem, Enquanto isso, os governos latino-americanos que nos anos 90 assinaram acordos de livre-comércio com paises europeus procuram com essa diversificagao de sua economia nao se prender a uma relagio exclusiva com os Estados Unidos. Tais oscilagées vem sendo estudadas mais pelas universidades norte-americanas que pelas da Europa ¢ da América Latina. Algumas instituiges desenvolvem pesquisas pragmaticas nos mercados latino-americanos, estadunidenses ¢ europeus eas aliangas econdmicas entre essas regides; outros grupos se dedicam a desconstruir € criticar 0 que consideram ser a condigio pés-colonial das sociedades latino- americanas. Um professor cubano da universidade de Stony Brook calcula que “ha m: is professores de literatura latino-americana nos estados de Nova York ¢ da Califérnia — que se dedicam sobretudo 4 pesquisa (com seis horas de aula por semestre) ¢ siio remunerados em termos de classe média — que em toda a América Latina. Se a nagao é uma comunidade imaginada — ele se pergunta © que serd a nago ensinada em outra?” (De la Campa, 1995: 139). A disputa pelo modo de integrago e concorréncia econémica entre América 70 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. mio de uma mecifora latino-americat para advertir, no capitulo final, onde podem acabar os europeus por destruir a alianga entre mercado, Estado assistencial ¢ democracia estabelecida pela modernidade. Diz que a violenta perda de fronteiras da globalizagio nos desafia a buscar uma possibilidade de justiga social em “espacos transnacionais” ea prestar atengao no que acontece em sociedades muito diferentes. Mas € curiosa a visio que esse autor tem do pais mais dinamico da América Latina, Se nao resolvermos a questao da justia social, diz Beck, 0 Brasil de hoje sera o futuro da Europa. S 05 neoliberais continuarem ganhando 0 jogo, 0 Estado social ficara reduzido a ruinas, as cidades serio lugares perigosos vigiados por cameras de video, divididas entre os que andam de limusine ¢ os que vio de bicicleta: ¢ 0 que cle chama de “brasileirizagéo da Europa” (Beck, 1998: 219-220). A histéria social e cultural, concebida como trafico de identidades, é um labirinto de confuusdes. Cada lado escolhe as caracteristicas que bem entende naquilo que o outro teatraliza como sua identidade, combinando-os a partir de suas categorias atuando como pode. Mas é impossivel nao trabalhar sobre essas narrativas ¢ metiforas identitérias, pois sio recursos internos de coesio em cada grupo, em cada nago, ¢ servem para se comunicar com os outros. O mundo globalizado, porém, nao é apenas esse teatro de atuagées desencontradas, que de vez em quando entram em sinergia; é também um espago organizado por estruturas transnacionais de poder ¢ comunicagio, por induscrias culturais ¢ acordos econdmicos, juridicos, ainda precirios, embora cognosciveis ¢ passiveis de intervengées politicas em varios sentidos. Antes de examinar essa recomposigo industrial ¢ transnacional da cultura, convém examinar mais detidamente outro quadro narrativo: aquele que relata como se observam ¢ interpretam norte-americanos ¢ latino-americanos. d) As identidades incomensurdveis Assim como a incompatibilidade entre latino-americanos ¢ europeus vem sendo repetida desde a conquista, o de: é0 micleo de um relato no minimo tio antigo quanto.as invasdes de tropas americanas no México-e outros’ patses da América Latina: Sempre‘nes concam que:o'sul do territério dos Estados Unidos foi colonizado por brancos de ascendéncia inglesa encontro entre latino-americanos ¢ norte-americanos que conquistaram a regiio com sua ética puritana ¢ sua religiosidade protestante, de modo que o trabalho, a parciménia, a diliggncia e a honestidade foram seus q P ig: valores bdsicos. Enfrentaram-se com mexicanos descendentes de espanhdis ¢ digenas, ¢ supuseram que dessa mistura advinha sua tendéncia & lassidao, & sensualidade preguigosa ¢ violenta. Como explica Arnaldo De Leén, 0 risco de “serem dominados por criaturas indémitas, bérbaras ¢ desordeiras tornava quase inevitével uma luta pela hegemonia nacional” (De Leén, 1983: 13). A conseqiiente certeza da superioridade dos brancos americanos sobre os mesticos latino-americanos serviu, como sabemos, para justificar as invasdes ¢ imaginar a sujciso destes 86 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Depois de duas décadas em que a globalizagiio foi declarada como destino ATLA MereMa inte Cuter Comoe Teter UICC Tene MPT ET (emt TTT TO desencontros e desigualdades que provoca. Nao a imaginam do mesmo modo © gerente de uma empresa multinacional, os governantes de paises centrais ou POEUN eee eRe ee Theta TTS erate ae Te diéncia. Somente alguns poucos politicos, financistas ¢ académicos — sustenta Canclini — pensam em uma globalizagao circular. O resto imagina globaliza- Tae URE ELMO it MeOH EONS EMU KO Nae MCMC em acordos de livre-comércio para se protegerem da concorréncia generalizada. STEM Oe ant eevee em volcan ero Re Mert eT eCa retemeerneneecor} POR e Rete SRE CORO eS ny Oma oer Se Ce (er B ORT ot cme MOR CREM seve me on ie tem oir rie COTES NES ec RCO ORC CICTETSE teen tcucnmene here e rng rd ST ropa, América Latina e Estados Unidos. Com cifras e dados novos compara os modos distintos de como se globalizam as finangas, a cidadania, as artes vi- SUSE eC ec ORG LIT SE CCUM AE ULF ECer Clete omen CEC emer Mtr eee RN m PICT CRCON TOM CM Torte e Mae PTT o humor nos mal-entendidos interculturais. Mas este nao é sé um livro sobre a globalizacio; propde, ainda, como reno- var os estudos culturais — dialogando com a antropologia, a sociologia € a eco- nomia — para reconstruir um pensamento critico. Pergunta-se sobre o qué fazer para que os intercdmbios globais nao sejam gerados apenas em lobbies de empresarios e, sim, deslocando-se para a esfera ptiblica na perspectiva da cons- trugao de uma cidadania mundial.

Você também pode gostar